Resumo: O presente artigo analisa a impossibilidade de responsabilizar penalmente uma pessoa jurídica diante da atual estrutura da teoria do delito, denunciando a necessidade de adotar medidas extra-penais para resolução dos problemas relacionados a estas ficções jurídicas. Primeiramente é analisada a estrutura da teoria do delito no contexto pátrio para que, em seguida, seja examinada a incompatibilidade entre essa estrutura e a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por fim, é analisada a posição dos Tribunais Superiores a respeito do tema, partindo-se em seguida para as considerações finais, momento em que é reforçada a importância em adotar outras medidas de natureza jurídica e administrativa.
Palavras-chave: Teoria do delito; responsabilidade penal da pessoa jurídica; incompatibilidade.
Abstract:The present article analyzes impossibility of criminally charging a legal entity given the current structure of the crime theory, denouncing the need to adopt extra-criminal measures to resolve the problems related to these legal fictions. Firstly, the structure of the national crime theory is analyzed to, only then, examine the incompatibilities between this structure and the criminal responsibility of a legal entity. Finally, the Higher Courts’ stance in this matter is analyzed, going from there to the final considerations, in which the importance of adopting different measures of legal and administrative nature is reinforced.
Key-Words: Crime theory; legal entities’ criminal responsibility; incompatibility.
Sumário: Introdução. 1. A estrutura da teoria do delito. 2. A responsabilidade penal da pessoa jurídica perante a teoria do delito. 3. A posição dos tribunais superiores. Considerações finais. Referências.
Introdução
O direito penal, durante suas evoluções estruturais na teoria do delito, direcionou-se para a responsabilização das pessoas físicas, construindo um aparado técnico e teórico a partir de complexas discussões doutrinárias que possuem como base e horizonte de reflexão as capacidades cognitivas e volitivas do ser humano. Logo, na formação das noções de ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, as quais determinam os limites e a tessitura da responsabilização penal, a teoria do delito sempre levou em conta as aptidões estritamente pertencentes a pessoas físicas.
No entanto, diante da complexa realidade social contemporânea, o direito penal se depara com tentativas que, a partir de um contorcionismo argumentativo, visam expandir seu mecanismo de responsabilização às pessoas jurídicas. No contexto brasileiro, este projeto toma forma a partir da Lei de Crimes Ambientais que, ao se basear em uma interpretação controversa da Constituição Federal, levanta a possibilidade de responsabilizar penalmente estes entes fictícios, o que eleva a pertinência do debate proposto pelo presente artigo.
Assim, o presente estudo analisará como a tentativa de responsabilizar criminalmente uma pessoa jurídica se mostra incompatível com a estrutura da teoria do delito, demonstrando que o direito penal é um instrumento totalmente inapto para lidar com estes entes fictícios. Inicialmente será abordada a evolução histórica da teoria do delito, apontando as principais fases da evolução de seus elementos estruturais, bem como a influência da concepção finalista no contexto jurídico pátrio. Em seguida, será analisada a incompatibilidade entre essa estrutura baseada em capacidades exclusivas de pessoas físicas e a tentativa de responsabilizar penalmente uma pessoa jurídica. Por fim, é examinada a posição dos Tribunais Superiores a respeito do tema, passando-se para as considerações finais, momento em que é ressaltada a necessidade de adotar medidas administrativas e de natureza extrapenal.
1. A estrutura da teoria do delito:
Conforme as lições de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli “chama-se ‘teoria do delito’ a parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o delito em geral, isto é, quais são as características que deve ter qualquer delito”.[1]Esta teoria passou por significativas fases de desenvolvimento em sua história e, como bem destaca Cezar Roberto Bitencourt em obra conjunta com Francisco Muñoz Conde, essas fases “apresentam uma certa integração, na medida em que nenhuma delas estabeleceu um marco de interrupção, afastando as demais concepções”.[2]
Inicialmente, destaca-se o conceito clássico de delito formulado por Von Liszt e Beling, o qual representou um verdadeiro produto do pensamento jurídico positivista, pois “afastava completamente qualquer contribuição das valorações filosóficas, psicológicas e sociológicas”.[3]Liszt conceituava o delito como ação, antijurídica, culpável e punível,[4] sendo a noção de tipicidade posteriormente acrescida por Beling, o que propiciou a definição de crime como conduta típica, antijurídica e culpável, ainda que alguns tenham permanecido conservando a punibilidade.[5]Logo, nessa perspectiva clássica,a ação era enfocada como um mero movimento corpóreo, puramente descritivo e valorativamente neutro, onde o conteúdo da vontade não tinha relevância, importando apenas a marcha causal que dela emergiu e veio a causar determinado resultado externo.[6] O crime era dividido em duas partes: uma objetiva – constituída pela tipicidade e antijuridicidade –e outra subjetiva – constituída pela culpabilidade.[7] A tipicidade compreendia apenas o caráter externo da ação, remetendo as circunstâncias subjetivas à esfera da culpabilidade, enquanto a antijuridicidade se resumia a um juízo de desvalor estritamente objetivo-normativo. Por fim, a culpabilidade era entendida como aspecto subjetivo do crime, no qual deveria se demonstrar justamente vínculo de subjetividade entre o agente e o fato, podendo se dar na forma dolosa ou culposa.[8]
Essa visão estritamente formalista e naturalista do delito que foi promovida sob a influência positivista veio a ser reformulada a partir das orientações do pensamento neokantiano, o qual impulsionou a substituição da “coerência formal do pensamento jurídico, circunscrito em si mesmo, por um conceito de delito voltado para os fins pretendidos pelo Direito Penal e pelas perspectivas valorativas que o embasam”.[9]A partir de penalistas como Radbruch, Frank e Mezger, esquema naturalista do delito passou a ter suas categorias orientadas aos “valores”.[10] Ainda que não tenha rompido completamente com os postulados clássicos, justificando sua denominação como neoclássico, esse conceito de crime que emerge das perspectivas neokantianas teve o mérito de demonstrar que o Direito positivo não possui em si mesmo um sentido objetivo, mas, pelo contrário, têm como pressupostos valores culturais preestabelecidos.[11] Logo, a partir desse horizonte, promoveu-se a transformação de todos os elementos do crime: a ação perde o caráter puramente naturalístico, reduzida a mero movimento corporal;[12] a tipicidade passa a possuir em alguns casos elementos normativos e, em outros, elementos subjetivos; a antijuridicidade transcende os limites formais referentes à lógica contradição entre conduta e norma jurídica, adotando um conceito material representado pela danosidade social; enquanto a culpabilidade, por fim, incorporou o conceito de “reprovabilidade”.[13]
Posteriormente, Welzel reagiu ao neokantismo, levantando-se contra o seu subjetivismo e, com isso, promoveu uma grande reforma estrutural nos elementos da teoria do delito. Ainda que tenha partido de um questionável enfoque ontológico, a partir do qual sustentava “a formulação de um conceito pré-jurídico de pressupostos materiais (dentre os quais a conduta humana), existentes antes da valoração humana e, por isso, precedentes a qualquer valoração jurídica”,[14]Welzel elaborou o conceito finalista de ação, que seria justamente o exercício de uma atividade final, baseada na capacidade do homem de prever as possíveis consequências de sua conduta a partir de seu saber causal.[15] Essa concepção de ação acaba por transferir sua finalidade para a esfera da tipicidade, “ensejando que dolo e culpa pudessem considerar-se modalidades típicas, migrando da culpabilidade (…): com este movimento, a reprovação (culpabilidade) e seu objeto (dolo e culpa) não mais se confundiriam no mesmo estrato analítico do delito”,[16] o que, conforme ressalta Bitencourt, representou a contribuição mais marcante do finalismo.[17] Ademais, Welzel entende essa culpabilidade estritamente normativa como elementar ao crime, mantendo a concepção de delito como ação típica, antijurídica e culpável.[18]
A partir dessa reforma estrutural da teoria do delito promovida por Welzel, o conceito analítico de crime, ou seja, aquele conceito que emerge da decomposição do delito em suas partes constitutivas a partir da investigação lógica e sistemática das leis penais, permanece compreendendo-o como ação ou omissão típica, ilícita e culpável, sendo tal modelo teórico, segundo as lições de Luiz Regis Prado, preferível “por razão científico-sistemática, seja por motivo didático-pedagógico, seja ainda por fundamento de cunho prático e garantista”.[19] No entanto, o finalismo gerou uma significativa reformulação no conteúdo dos elementos constitutivos do crime e sua influência se faz presente na estrutura da teoria do delito que emerge da legislação pátria. Conforme ressalta Bitencourt em trabalho conjunto com Munõz Conde, “ao contrário dos Códigos Penais de 1830 (art. 2º, § 1º) e 1890 (art. 7º), o atual Código Penal (1940, com a Reforma Penal de 1984) não define crime, deixando a elaboração de seu conceito à doutrina nacional”.[20]Apesar disso, da análise da legislação penal brasileira, é possível revelar uma verdadeira preservação das reformas estruturais promovidas pela teoria finalista.
Logo, a partir do exame sistemático do Código Penal, Zaffaroni e Pierangeli destacam que, primeiramente, um delito exige uma conduta humana prevista como crime na Parte Especial do CP, ou na legislação penal esparsa, não havendo delito quanto uma ação ou omissão não se enquadrar em determinado tipo penal, ou seja, em um dispositivo normativo que individualiza uma conduta, proibindo-a com relevância penal.[21]Logo, “a conduta típica se mostra uma espécie do gênero conduta”.[22]
Como bem refere Hassemer, “somente a conduta humana pode ser objeto de comprovação jurídico-penal”,[23] assim, por força do princípio do nullum crimen sine conducta, “qualquer pretensão de exercício do poder punitivo tem que fundar-se na atuação de uma pessoa”.[24] Portanto, o conceito de ação se mostra elementar à teoria do delito, sendo uma concepção pré-típica, pois delimita justamente qual a forma de conduta que pode vir a ser criminalizada. Bitencourt conceitua essa ação nos seguintes termos:
“Ação é o comportamento humano voluntário conscientemente dirigido a um fim. A ação compõe-se de um comportamento exterior, de conteúdo psicológico, que é a vontade dirigida a um fim, da representação ou antecipação mental do resultado pretendido, da escolha dos meios e a consideração dos efeitos concomitantes ou necessários e o movimento corporal dirigido a um fim proposto. O resultado não pertence a ação, mas ao tipo, naqueles crimes que o exigem (crimes materiais). Ação e omissão, em sentido estrito, constituem as duas formas básicas do fato punível, cada uma com estrutura completamente diferente: a primeira viola uma proibição (crime comissivo), a segunda descumpre uma ordem (crime omissivo). Omissão, como assinalou ArminKaufmann. “é a não ação com possibilidade concreta de ação; isto é, a não realização de uma ação finalista que o autor podia realizar na situação concreta”.[25]
No mesmo sentido, em obra conjunta com Cezar Roberto Bitencourt, Francisco Muñoz Conde, aponta ainda que:
“Se llama acción todo comportamiento dependiente de La voluntad humana. Sólo El acto voluntario puede ser penalmente relevante y La voluntad implica siempre uma finalidad. No se concibe un acto de la voluntad que no vaya dirigido a um fin. El contenido de la voluntad es siempre algo que se quiere alcanzar, es decir, um fin. De ahí que la acción humana regida por la vonluntad sea siempre uma acción final, uma acción dirigida a la consecución de un fin”.[26]
Assim, verifica-se que a ação, que pode ou não ser enquadrada em determinado tipo penal, consiste em uma conduta humana destinada à determinada finalidade, mentalmente antecipável, enquanto a omissão representa justamente a inatividade diante de uma possibilidade de ação. Ademais, conforme as lições de Muñoz Conde, dizer que a ação final é a base do direito penal não significa que ele se ocupe apenas do fim desse ato, pois o direito penal “puede estar igualmente interesado em los medios elegidos para conseguir el fin o em los efectos concomitantes a la realización de ese fin”.[27]
Notoriamente, tal concepção, como o próprio Muñoz Conde reconhece, coincide em linhas gerais com os fundamentos na teoria finalista, a qual Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar elegem como política e tecnicamente preferível para a ciência penal perante os postulados constitucionais, justamente por representar a base para uma incidência contida do poder punitivo, diante da preservação do princípio elementar do nullum crimen sine conducta e a delimitação das hipóteses de criminalização primária, balizando o legislador.[28]
Assim, uma conduta típica somente ocorre quando essa conduta final se enquadra em um determinado tipo penal. Ressalta-se ainda que, diante da preservação do conceito finalista de ação, a tipicidade no contexto pátrio também reflete postulados do finalismo, integrando dolo e culpa em sua esfera, razão pela qual Prado aponta que “o tipo legal vem a ser o modelo, o esquema conceitual da ação ou da omissão vedada, dolosa ou culposa”.[29]Portanto, na concepção finalista, para que uma conduta possua tipicidade, ou seja, apresente adequação a um tipo penal,[30]é preciso que se demonstre seu elemento subjetivo, ou seja, que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo – configurando uma conduta dolosa conforme part. 18, inciso I, do CP – ou ainda que deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia – o que representa uma conduta culposa, conforme o art. 18, inciso II, do CP. Dessa forma, não basta que se revele objetivamente a ocorrência da conduta descrita no dispositivo penal, exigindo-se também uma efetiva demonstração de que o indivíduo agiu com dolo ou culpa para que sua conduta possa vir a ser considerada típica.
Ademais, além da tipicidade, para uma conduta ser considerada criminosa ela precisa ser também antijurídica. Essa antijuridicidade representa a contrariedade de uma ação com o ordenamento jurídico, sendo comprovada através da “constatação de que uma conduta típica (antinormativa) não está permitida por qualquer justificação (preceito permisso), em parte alguma da ordem jurídica (não somente no direito penal, mas tampouco no civil, comercial, administrativo, trabalhista etc.)”.[31]
Por fim, além de típica e antijurídica, uma ação ou omissão ainda precisa ser culpável para ser considerada criminosa. A culpabilidade, em decorrência dos postulados finalistas, apresenta-se puramente normativa, podendo ser conceituada, conforme as lições de Bitencourt, “como a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez”.[32]Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli aduzem que para que uma conduta de determinado indivíduo seja reprovável em juízo de culpabilidade, “requer-se que este tenha tido a possibilidade exigível de compreender a antijuridicidade de sua conduta, e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de autodeterminação mais ou menos amplo, ou seja, que não tenha estado em uma pura escolha”.[33] Assim, é possível destacar três elementos que integram a culpabilidade: a imputabilidade; a potencial consciência da ilicitude; e a exigibilidade de conduta diversa. O primeiro representa o conjunto das condições de maturidade e sanidade mental que possibilitam ao indivíduo compreender o caráter ilícito de seu ato e ajustar sua conduta conforme essa compreensão.[34] O segundo, por sua vez, remete possibilidade de o agente saber que seu comportamento contraria ao ordenamento jurídico.[35]Já o último elemento, por sua vez, remete a casos em que apesar de o agente ser imputável e ter conhecimento da ilicitude sua possibilidade de agir do conforme a norma resta fortemente atenuada pelas circunstâncias em que se encontra, como ocorre em casos de coação moral irresistível, obediência hierárquica e estado de necessidade exculpante.
Assim, diante do exposto, resta claro que a estrutura dos elementos que compõe o conceito analítico de crime do âmbito do direito penal pátrio é determinada a partir de uma forte influência dos postulados finalistas: uma ação ou omissão humana destinada a uma finalidade antecipável em razão do conhecimento causal será considerada crime quando se enquadrar nos elementos objetivos e subjetivos (dolo ou culpa) de um tipo penal sem nenhuma causa de justificação, e ser reprovada em juízo de censura baseado nas capacidades do agente de agir em conformidade com o direito naquela situação.
2. A responsabilidade penal da pessoa jurídica perante a teoria do delito
Esta estrutura que molda a imputação penal no contexto pátrio, no entanto, vem sendo alvo de constantes tentativas desconstrutoras, as quais comprometem seu caráter de contensão e delimitação da esfera de exercício do poder punitivo, fenômeno que, em grande parte, deve-se as novas missões que o direito penal assume na contemporaneidade. A respeito dessa atual tendência, Salo de Carvalho aponta que a Constituição de 1988, “para além da previsão de princípios negativos (de limitação), projetou a ingerência penal em diversas esferas do direito, a partir da (falsa) compreensão de sua capacidade de tutela de bens jurídicos e resolução de conflitos coletivos e transindividuais”.[36]
Nesse sentido, a Constituição Federal, ao tratar da ordem econômica e financeira previu em seu art. 173, § 5º que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.
Observa-se que a legislação ordinária, por sua vez, ao tratar dos crimes econômicos, tributários e de consumo, por meio das Leis 8.078, 8.137/90 e 8.176/91, fixou responsabilidade individual dos representantes,[37] em moldes compatíveis com a estrutura da teoria do delito.
Na mesma linha, o § 3º do art. 225 da Constituição Federal, ao tratar da tutela ambiental, prevê que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
No entanto, embora a primeira vista o texto aparente consagrar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, a redação referida acima é muito debatida entre os juristas expoentes do estudo penal. Cezar Roberto Bitencourt pleiteia que a vaga formulação do artigo involuntariamente abre espaço para interpretações errôneas sobre o verdadeiro objetivo do trecho, afirmando que “a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual”.[38] Na mesma linha, o professor René Ariel Dotti afirma categoricamente que é impossível a responsabilização penal de um ente fictício, uma vez que este não apresenta as capacidades necessárias para praticar uma conduta criminosa:“Os crimes ou delitos e as contravenções não podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, posto que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos”.[39] Da mesma forma, Muñoz Conde enxerga que:
“[…] la capacidad de acción, de culpabilidad y de pena exige la presencia de una voluntad, entendida como facultad psíquica de la persona individual, que no existe enla persona jurídica, mero ente ficticio al queel Derecho atribuye capacidad a otros efectos distintos a los penales”[40].
Ocorre que, ao invés de assumir postura semelhante àquela adotada quanto à responsabilidade penal dos crimes contra a ordem econômica, tributária e as relações de consumo, a legislação ambiental estabeleceu expressamente a responsabilização criminal das pessoas jurídicas, criando até mesmo um rol de penas a ela aplicáveis.[41]Nesse sentido, o art. 3º da Lei 9.605/98 prevê que “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”. Ademais, seu parágrafo único aponta que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”.A respeito do debate acerca de tal possibilidade de responsabilização, Salo de Carvalho ressalta que:
“As teses contrapostas à possibilidade de atribuição de responsabilidade criminal à pessoas jurídicas invariavelmente foram colocadas a partir da natureza jurídica dos entes coletivos, notadamente pela discussão entre as teorias da ficção (Savigny) e da realidade (Gierke). O debate, pois, acaba restrito à oposição entre conceber a pessoa jurídica como criação artificial, abstração legal que permite o exercício de direitos patrimoniais (teoria ficção) ou em ver o ente coletivo como dotado de existência real, cuja vontade pode ser equiparada dos entes naturais (teoria da realidade)”.[42]
No entanto, dentro desta última perspectiva, se verifica a incompatibilidade entre a pessoa jurídica e a estrutura da teoria do delito pensada essencialmente para a responsabilização de pessoas físicas. Nesse sentido verifica-se que, conforme ressalta Cezar Roberto Bitencourt, “os dois principais fundamentos para não se reconhecer a capacidade penal desses entes abstratos são:a falta de capacidade ‘natural’ de ação e a carência de capacidade de culpabilidade”[43].
Tal incompatibilidade resta evidente diante da tentativa de atribuir a pessoa jurídica o conceito de ação como sendo vontade dirigida a um fim, bem como a representação ou antecipação mental do resultado pretendido[44], aptidão que nitidamente pertence de forma exclusiva às pessoas físicas. Como assevera Luiz Régis Prado, o Direito Penal foi cuidadosamente construído em volta do indivíduo físico (ser humano dotado do livre-arbítrio, capaz de raciocinar individualmente e sensível ao ambiente a sua volta), jamais podendo ser utilizado para julgar e reger atitudes da pessoa jurídica, pois esta não passa de um ser abstrato, despojado dessas características essenciais. O popular apotegma delinquere non potest, central ao majoritário entendimento da questão no Direito Penal Brasileiro, ratifica os axiomas referentes à personalidade e culpabilidade, afirmando somente ser possível criminalmente imputar delitos à pessoas naturais (como autores ou partícipes), mesmo quando estes aparentarem, à primeira vista, terem sido praticados por pessoas jurídicas, pois carece a estes entes fictícios o que Prado chama de “coeficiente de humanidade”. Como este afirma:
“De primeiro, ressalta à evidência que a pessoa coletiva não tem consciência e vontade – em sentido psicológico – semelhante à pessoa física, e, com isso, capacidade de autodeterminação, faculdades que necessariamente hão de ser tomadas por empréstimos aos homens.”[45].
Nessa linha, torna-se primordial para a manutenção dos princípios de criminalização, sempre preservar com clareza a distinção entre o sujeito da ação e o da imputação, que acabam sendo distintos quando trata-se de pessoas jurídicas, uma vez que estas tem a extensão de seus atos limitada ao alcance de seus órgãos e de seus representantes, que são pessoas físicas. E quaisquer que sejam os efeitos dos atos da pessoa jurídica, eles decorrem da conduta dessas pessoas físicas, seus representantes, únicos dentro daquela atividade que podem vir a ser juridicamente imputados.
Ademais, consequentemente, mostra-se impossível verificar os elementos subjetivos da tipicidade na conduta de uma pessoa jurídica, uma vez que o dolo e a culpa partem desse modelo de ação estruturado a partir de capacidades estritamente humanas. Assim, por não ter capacidade de ação – partindo do conceito de ação final como elemento único que o tipo penal pode recair –logicamente a pessoa jurídica também não é capaz de agir dolosa ou culposamente, uma vez que ambas exigem uma concepção de conduta como ato de vontade dirigido a determinado fim a partir da aptidão mental de antecipação do resultado.
Por fim, os elementos da culpabilidade a partir da concepção finalista (imputabilidade, possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato e exigibilidade de obediência ao direito)[46] relevam-se como critérios compatíveis apenas com pessoas físicas, carecendo a pessoa jurídica de capacidade volitiva e cognitiva apta a ser objeto de tais análises.
No entanto, o clamor popular por “justiça” tende a forçar a mão dos legisladores, que acabam por relevar os aspectos basilares da intervenção penalista em busca de uma penalização formal das pessoas jurídicas, fortalecendo assim a função simbólica do Direito Penal. E partindo do princípio de que o Direito Penal é requisitado a partir de suas funções oficiais para supostamente oferecer proteção aos bens de vida considerados essenciais pelo ordenamento jurídico e punir todos aqueles que ameaçarem a sua integridade, impõe-se a constante análise de seus preceitos basilares e a atualização de seus termos quando necessário, na busca de acompanhar a sociedade que tenta proteger, esta sempre mutável e em constante avanço. Por este motivo, a eficácia do Direito é sempre posta em dúvida. Através desta perspectiva, afirmam Busato e Huapaya[47]:
“O Direito Penal tenta responder às mudanças sociais. Exemplos como os da escolha de novos bens jurídicos que se deve proteger, a mudança dos fins declarados da pena desde uma fundamentação absoluta até outra preventiva; os processos reformados surgidos nos diversos Estados da Europa são sintomas da evolução do Direito Penal. Entramos em um sistema ainda não muito claro onde todos os conceitos básicos dogmáticos passam a ser debatidos, como a função do bem jurídico, a missão da pena, etc”.
Diante destas novas espécies de crimes a sociedade demanda maior segurança e intervenção por parte do Estado, que por sua vez tem respondido com ênfase no poder simbólico do Direito Penal, cujo objetivo geral é suprir esta necessidade popular por ação governamental, através da criação de novos tipos penais e sanções mais estritas para os crimes, extrapolando assim os limites estabelecidos pelo Direito Penal Clássico e as suas proteções usuais de bens e valores. Ao acentuar o caráter simbólico da legislação, o Estado almeja alcançar uma mudança imediata da opinião pública a respeito da sua suposta ineficiência, esforçando-se para promover o retrato de um Poder Legislativo que decreta soluções penais eficazes aos males que suscitam a inquietação popular. Como declara Raúl Cervini[48]“[…] a ‘grande mídia’ incutiria na opinião pública a suficiência dessa satisfação básica aos seus anseios de justiça, enquanto as pessoas físicas verdadeiramente responsáveis poderiam continuar tão impunes como sempre, atuando através de outras sociedades”.
Todavia, a dificuldade em alterar seriamente o conceito de ação e a sua utilidade política limitadora não é gratificado através da utilização do direito penal como sentenciador da pessoa jurídica. Pois como sabemos, a pena em si não é capaz de solucionar conflitos, talvez somente sendo capaz de fazer uso de sua força repressiva, podendo “o juiz ser chamado a exercer coerção direta ou coerção reparadora sobre as pessoas jurídicas, com maior proveito social do que a infecunda intervenção penal”[49].
No entanto, é de suma importância manter uma distinção em mente, como apresentada por Raul Zaffaroni:
“Afirmar que a pessoa jurídica não pode ser autora de delito não implica negar a possibilidade de punir seus diretores e administradores, nem que a pessoa jurídica possa ser objeto de sanções administrativas que, em substância, não podem ser diferentes das que se pretendem legislar em sede penal (multa, suspensão da personalidade, intervenção, dissolução)”.[50]
De fato, a sanção individualizada de administradores ou controladores de pessoas jurídicas representa possibilidade compatível com a estrutura da teoria do delito, desde que ocorra de forma subjetiva, buscando a punição do indivíduo por seu envolvimento específico no crime e não por simplesmente ocupar um cargo que encontra-se atrelado ao delito hipotético, uma vez que isso constituiria responsabilidade objetiva, que é vedada na Constituição Federal e na Doutrina Penalista moderna. Como atesta Muñoz Conde:
“Para evitar estas indeseables lagunas de punibilidade, el legislador puede optar por una doble vía: o sancionar expresamente em los tipos delictivos donde se den estos casos a las personas físicas que actúan en nombre de la jurídica (gerentes, administradores, etc), o crear un precepto general que permita esta sanción en todos los casos donde concurran problemas de este tipo”.[51]
3. A posição dos tribunais superiores
Assim, dada a manifesta incompatibilidade do Direito Penal para responsabilizar as pessoas jurídicas, cabe agora verificar como os Tribunais Superiores pátrios se manifestam a cerca do tema.
Dentre as diversas correntes de pensamento a respeito da temática, os Tribunais Superiores parecem se coadunar com o entendimento de que a responsabilização penal da pessoa jurídica é inteiramente possível dentro do sistema judiciário brasileiro, mesmo que não ocorra a responsabilização das pessoas físicas igualmente envolvidas no delito.
Tal concepção provém quase que absolutamente da determinação constitucional sobre crimes ambientais presente no § 3º do art. 225 da CF/88, que especifica a desnecessidade da denúncia conjunta de pessoas físicas juntamente com as jurídicas. Como afirmam Gilberto e Vladimir Passos de Freitas:
“(…) a denúncia poderá ser dirigida apenas contra a pessoa jurídica, caso não se descubra a autoria das pessoas naturais, e poderá, também, ser direcionada contra todos. Foi exatamente para isto que elas, as pessoas jurídicas, passaram a ser responsabilizadas. Na maioria absoluta dos casos, não se descobria a autoria do delito. Com isto, a punição findava por ser na pessoa de um empregado, de regra o último elo da hierarquia da corporação. E quanto mais poderosa a pessoa jurídica, mais difícil se tornava identificar os causadores reais do dano. No caso de multinacionais, a dificuldade torna-se maior, e o agente, por vezes, nem reside no Brasil. Pois bem, agora o Ministério Púbico poderá imputar o crime às pessoas naturais e à pessoa jurídica, juntos ou separadamente. A opção dependerá do caso concreto.”[52]
Mesmo com este texto presente na Carta Magna, muitos ainda associavam-se ao entendimento de que, por não possuir vontade própria, pessoas jurídicas atuam sempre por representação de pessoas naturais. No entanto, isso mudou com a decisão do Recurso Extraordinário 548.181, publicada em 30 de outubro de 2014. Devido a um vazamento de óleo, a Petrobrás S.A. se encontrou na posição de ré em um processo penal por prática de poluição omissiva imprópria culposa, delito previsto na referida Lei de Crimes Ambientais. No polo passivo, juntamente com a companhia nacional, figuravam o então presidente da Petrobrás e o superintendente da unidade onde havia ocorrido o vazamento. Durante a passagem do processo no Tribunal Regional Federal da 4ª região, o Presidente entrou com pedido de habeas corpus, alegando que suas ações enquanto este ocupava o cargo não estavam diretamente envolvidas no ocorrido, justificativa esta que resultou na sua exclusão do polo passivo da lide. Ao chegar no Superior Tribunal de Justiça, o órgão judiciário concedeu de ofício HC ao superintendente sob a mesma argumentação. Ausentes as duas pessoas físicas envolvidas no processo, o STJ determinou o trancamento da ação penal baseada no entendimento acima exposto. Porém, quando o caso encontrou-se diante do STF, a relatora Rosa Weber manifestou-se contrariamente à decisão, argumentando que as organizações modernas se caracterizam pela difusão de funções e distribuição de responsabilidades, dificultando assim a imputação do delito a uma pessoa física. Assim, acredita a ministra que a restrição das penas a pessoas físicas acabaria por possibilitar a impunidade de crimes cometidos por grandes empresas.[53]
Considerações finais
Apesar dessa conturbada interpretação adotada pelo STF, resta evidente que o direito penal não possui estrutura apta a responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica, uma vez que esta é compatível exclusivamente com a ação humana. Para tanto, como opções mais adequadas a complexidade do problema, em oposição à responsabilidade penal da pessoa jurídica na esfera ambiental Salo de Carvalho sugere “incremento dos órgãos de fiscalização,reparação e indenização pelos danos causados, além de severas penalidades administrativas”[54].
Conclui-se que o Direito Penal, este firmemente fundamentado na noção de culpabilidade e impossibilitado de regredir nos avanços alcançados dentro das suas garantias fundamentais, não é capaz de se adequar às necessidades da criminalidade moderna quando praticada por entes abstratos. Porém, de forma alguma se sugere qualquer noção de impunidade dentro dos crimes praticados por pessoas jurídicas. Somente busca-se considerar opções mais apropriadas dentro do próprio ordenamento pátrio para lidar com a matéria em questão. Como assevera Bitencourt:“[…] além de sanção efetiva aos autores físicos das condutas tipificadas (que podem facilmente ser substituídos), deve-se punir severamente também e, particularmente, as pessoas jurídicas, com sanções próprias a esse gênero de entes morais” [55].
Com isto em mente, o notório jurista alemão Winfried Hassemer propôs a criação de um novo ramo jurídico, chamado de “Direito de Intervenção” [56] que visaria ser um intermediário entre o Direito Administrativo e o Penal, não impondo as severas punições do segundo(particularmente as referentes à privação de liberdade), enquanto, ao mesmo tempo, sendo efetivo o suficiente dentro das suas garantias voltadas para eficazmente lidar com a criminalidade moderna, estas menores que as presentes no Direito Penal Clássico.
Porém, tal noção não se limitaria somente a buscar punição para pessoas jurídicas infratoras e seus representantes físicos, e sim procurar maneiras efetivas de fiscalizar as ações destes entes fictícios, de forma que a punição somente seria necessária em casos excepcionais, findando a dependência dos poderes públicos nas intervenções punitivas do Direito Penal, estas que, majoritariamente, somente buscam desobrigar os governantes de criarem políticas de proteção efetivas. Como sustenta Lenôra Azevedo de Oliveira:
“Precisamos tratar de forma diferente o diferente, ampliando nossas perspectivas jurídicas da visão interna dos problemas para uma visão externa, que contemple de forma holística as incertezas típicas da atualidade, reconhecendo a ineficácia de alguns institutos jurídicos.”[57]
Assim, os esforços públicos deveriam estar focados em prevenir apropriadamente ações de pessoas jurídicas que pudessem vir a causar danos dentro da esfera penal do que concentrados desnecessariamente em fúteis tentativas de moldar a doutrina penal dentro de parâmetros que não cabem na sua concepção base.
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