“Para encontrar a Justiça é preciso
lhe ser fiel. Ela como qualquer outra divindade só se manifesta a quem nela crê”.
Piero Calamandrei, Eles os
juízes vistos por um advogado.
A construção de um Estado de Direito
exige o respeito às garantias fundamentais do cidadão, que são essenciais para
o desenvolvimento da sociedade e o fortalecimento das instituições. Quando da promulgação da nova Constituição Federal, os
representantes do povo buscaram instituir um Estado Democrático destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias. (preâmbulo da Constituição
Federal de 1988).
A liberdade é um direito fundamental e
essencial que somente pode ser cerceado no caso de prisão em flagrante
ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,
não se permitindo prisões para averiguações ou qualquer outra espécie de
procedimento que não esteja previsto em lei. No Estado de
Direito, a liberdade é a regra e a prisão uma medida de exceção.
A preservação da ordem pública é dever
do Estado que deve zelar pela integridade física e patrimonial dos
administrados sob pena de responsabilidade. No cumprimento desta atividade, o
Estado utiliza-se das forças policiais que estão legitimadas a empregarem a
força quando esta for necessária para o restabelecimento da paz e
tranqüilidade, sem que isso signifique a prática de atos abusivos ou
autoritários contra qualquer pessoa. As garantias do cidadão não estão
voltadas para a impunidade, mas para a efetiva aplicação da lei com justiça e
equidade.
A prisão de uma pessoa não significa
necessariamente que esta tenha praticado um ato ilícito que terá como
conseqüência à imposição de uma penalidade. A privação da liberdade poderá ter
sido um ato ilegal praticado por integrantes das forças policiais ou mesmo por
um cidadão, sendo que a lei prevê a possibilidade desta prisão ser relaxada ou
mesmo afastada. O art. 5º, inciso LXV, da CF, prevê que, “a prisão ilegal
será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.
No caso de prisão ilegal ou abusiva
desprovida de fundamento para o cerceamento da liberdade, a CF prevê a
possibilidade de interposição de habeas corpus, que
é uma garantia constitucional e que poderá ser assinada por qualquer pessoa. O
art. 5º, LXVIII, da CF, diz que, “conceder-se-á habeas
corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou
coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Em
nenhum momento, o art. 5º, LXVIII, faz qualquer ressalva em relação aos
brasileiros naturalizados, estrangeiros ou militares.
O art. 5º, caput, da CF,
preceitua que, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes” (grifos nossos). Novamente, a CF não faz nenhuma ressalva
quanto a igualdade prevista no art. 5º, caput,
em relação aos militares (federais ou estaduais), que também são cidadãos e
responsáveis pela preservação do Estado de Direito.
O regime jurídico dos servidores
militares é diverso do regime jurídico assegurado aos servidores civis, que
atualmente são regidos pela Lei n.º 8.112/90. No
campo do direito administrativo militar, existe a possibilidade do servidor
(federal ou estadual) ter a sua prisão administrativa decreta por uma
autoridade militar sem qualquer autorização judicial neste sentido. O
art. 5.º, inciso LXI, diz que, “ninguém será preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei”(grifo nosso).
A possibilidade da
prisão administrativa ser decretada sem qualquer autorização
judicial não significa que o militar tenha perdido o seu status de
cidadão ou que os direitos e garantias fundamentais assegurados pela CF
perderam a sua eficácia. O Estado apenas concedeu a possibilidade de
cerceamento da liberdade por ato de autoridade diversa da autoridade judiciária
nos casos expressamente previstos em lei como crime militar ou transgressão
disciplinar militar.
Deve-se observar,
que a maioria dos regulamentos disciplinares das forças de segurança são decretos
do poder executivo (estadual ou federal) que em tese foram recepcionados
pela nova ordem constitucional. Mas, qualquer alteração nos diplomas
castrenses somente poderá ser realizada por meio de lei provinda do
Poder Legislativo, o que não tem sido observado na
atualidade, o que torna
ilegal qualquer modificação pós-1988 feita por decreto.
A prisão administrativa encontra-se
sujeita a controle jurisdicional em atendimento ao art. 5.º,
inciso XXXV, da CF, segundo o qual, “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O militar
preso sob a acusação de ter praticado uma transgressão disciplinar ou
contravenção militar poderá caso esta seja abusiva interpor habeas
corpus na forma do art. 5º, inciso LXVIII, da CF.
O § 2.º, do
art. 5.º, da CF, diz expressamente que os direitos e garantias expressos na
Constituição não excluem outros decorrentes de tratados que a República
Federativa do Brasil seja parte. Por meio de decreto legislativo e decreto
provindo do poder executivo, o Brasil ratificou a Convenção Americana de
Direitos Humanos (CADH), Pacto de São José da Costa Rica, que passou a ser
norma interna de conteúdo constitucional por tratar de direitos e garantias
fundamentais asseguradas aos cidadãos da América, que deve ser observada pelos
operadores do direito.
O art. 7º, n.º 06,
da CADH, preceitua que, “Toda pessoa privada da liberdade tem direito a
recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem
demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a
prisão ou detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que
toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a
recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a
legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O
recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa”. Em
nenhum momento, a Convenção Americana de Direitos Humanos fez qualquer distinção
entre o cidadão civil ou militar ou mesmo vedou a possibilidade de interposição
de habeas corpus nas transgressões
disciplinares militares.
A preocupação do Congresso Constituinte
com os direitos e garantias fundamentais do cidadão enumerados no art. 5.º, da CF, foi tamanha, que este no art. 60, § 4.º, inciso
IV, elaborou restrições em caso de Emendas Constitucionais observando que, “Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir : IV
– os direitos e garantias individuais”. Por
mais que o legislador derivado queira modificar as garantias constitucionais
previstas no art. 5.º, da CF, terá que respeitar a vontade manifestada pelo
povo através de seus representantes em 1988, por ser esta matéria integrante
das denominadas cláusulas pétreas.
Para fundamentar o não cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares os estudiosos
se apóiam no art. 142, § 2º, da CF, que integra o capítulo II, da Seção III, do
Título V, da CF, que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas
segundo o qual, “Não caberá habeas corpus em
relação a punições disciplinares militares” (grifo nosso). Esse
dispositivo está flagrantemente em conflito com o art. 5.º,
inciso LXVIII, da CF e com o art. 7.º, n.º 06, da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
Os militares por força de disposições
regulamentares encontram-se sujeitos aos princípios de hierarquia e disciplina,
mas isso não significa que os direitos e garantias fundamentais possam ser
desrespeitados. As instituições no Estado de Direito devem se submeter aos
princípios que regem os direitos e garantias dos cidadãos, que devem ser
preservados pelo Estado sob pena de responsabilidade em atendimento ao art. 37,
§ 6º, da CF.
O art, 142, §
2º, da CF, por mais que se conteste é inconstitucional por ferir flagrantemente
o disposto no art. 5.º, inciso LXVIII, da CF. Caso
fosse a intenção do constituinte de limitar o seu cabimento nas transgressões
disciplinares o teria feito expressamente no capítulo dos direitos e garantias
fundamentais do cidadão, o que não ocorreu. O habeas
corpus é uma garantia contra o abuso, a arbitrariedade, e negar o seu
cabimento nas transgressões disciplinares é limitar os direitos e garantias
fundamentais que também foram outorgados aos cidadãos militares.
A hierarquia e a disciplina devem ser
preservadas por serem princípios essenciais das corporações militares, mas os direitos e garantias
fundamentais previstos no art. 5.º, da CF, são normas
de aplicação imediata (art. 5.º, § 1.º, da CF),
que devem ser aplicadas a todos os cidadãos (civil ou militar, brasileiro ou
estrangeiro), sem qualquer distinção na busca do fortalecimento do Estado de
Direito, que foi escolhido pela República Federativa do Brasil, art. 1.º, da
CF.
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