Resumo: Os direitos dos trabalhadores, conquistados por meio de diversas lutas durante os séculos, se fortaleceram até alcançarem a prerrogativa da indisponibilidade. Esta se tornou, por sua vez, um dos princípios que externa a função finalística do Direito do Trabalho, qual seja, a proteção do trabalhador hipossuficiente. O progresso da sociedade e, consequentemente, do Direito, trouxe à baila o fenômeno da flexibilização, cujo escopo é adaptar os direitos trabalhistas, afastando, ainda que de forma contida, a intervenção do Estado da relação laboral. Resta avaliar, dessa forma, em que hipóteses tais direitos podem ser manejados, se os direitos indisponíveis se encontram no referido rol, bem como se essa flexibilização traz prejuízos às garantias mínimas dos trabalhadores diante da análise da legislação pátria.
Palavras-chave: flexibilização, indisponibilidade, proteção.
Abstract: The employment law, achieved through several struggles over the centuries, has been strengthened until unavailability was reached. Therefore, it turned out as one of the principles which externalized the Labor Law's final function, the protection of the frail worker. The progress of society and consequently, the progress of Law, has brought the loosening phenomenon, whose goal is to adapt the labor rights, keeping off the State intervention from work terms. It is left to evaluate, nonetheless, the assumptions on which such rights can be handled, if the unavailable rights are still found on this list, and if this loosening phenomenon may actually bring any harm when it comes to the minimum assurance of the workers according with the analysis of the brazilian legislation.
Key words: flexibility, unavailability, protection.
Sumário: Introdução; 1 Evolução histórica do Direito do Trabalho; 1.1 Surgimento do Direito do Trabalho no mundo; 1.2 Primeiras leis de proteção ao trabalho; 1.3 Surgimento do Direito do Trabalho no Brasil; 1.4 Direito do Trabalho contemporâneo; 2 A indisponibilidade dos Direitos do Trabalhador; 3 O processo de flexibilização; 3.1 Terminologias; 3.2 Origem; 3.3 Causas; 3.4 Pontos positivos e negativos; 3.4.1 Corrente flexibilista; 3.4.2 Corrente antiflexibilista; 3.4.3 Corrente mista; 3.5 Direitos atingidos pela flexibilização; 4 Tendências Jurisprudenciais; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O tema objeto do presente artigo, qual seja, “A indisponibilidade dos direitos do trabalhador em face da flexibilização da legislação trabalhista brasileira”, é da mais alta relevância, tendo em vista a natureza protecionista do Direito do Trabalho em relação ao empregado, bem como a evolução do Direito e suas implicações à sociedade.
Com efeito, a evolução histórica do Direito demonstra que a luta travada pela classe trabalhadora em busca de proteção por parte do Estado deu ensejo ao princípio da indisponibilidade, garantia que permanece hodiernamente com a finalidade de assegurar os direitos já conquistados.
Essa mesma evolução trouxe, mais tarde, progressos no que concerne à negociação das normas. Foi nesse ínterim, então, que surgiu o fenômeno da flexibilização, tópico corrente na doutrina contemporânea, porém não como ideal de total desregulamentação, mas sim de ajustamento a situações que possam melhorar as condições laborais dos trabalhadores.
Nesse contexto, o tema em questão revela uma problemática no tocante à flexibilização, especialmente no que diz respeito aos direitos do trabalhador considerados indisponíveis. Embora haja muitos posicionamentos acerca do assunto, a função da presente pesquisa se faz na tentativa de buscar respostas a essas polêmicas e se, em algum momento, há a possibilidade de o trabalhador dispor de seus direitos sem que seja lesado.
Dessa forma, com o intuito de relatar alguns pontos fundamentais, propor soluções ou mesmo pacificar entendimentos, este trabalho se utilizou, como fonte de pesquisa, da legislação trabalhista brasileira, bem como da doutrina de renomados juristas nacionais e das decisões proferidas pelos tribunais pátrios.
O estudo em questão se iniciou pela evolução histórica do Direito do Trabalho, imprescindível para a plena compreensão do tema. Com isso, demarcou-se de forma específica tal desenvolvimento no mundo e sua influência no Direito do Trabalho brasileiro.
Em um segundo momento, passou-se a uma breve pesquisa acerca dos direitos indisponíveis. Nesse sentido, a pretensão do estudo foi de justificar tal prerrogativa no âmbito trabalhista, de acordo com os princípios básicos do Direito do Trabalho pátrio e da Constituição Federal, bem como de demonstrar a segurança que a indisponibilidade traz em seu cerne.
No que tange à flexibilização, o trabalho deu ênfase à análise minuciosa do termo e da origem do instituto, bem como de suas causas e efeitos. Ostentou, ainda, os pontos positivos e negativos da questão, considerando os fundamentos de três correntes básicas, quais sejam, flexibilista, antiflexibilista e mista.
A pesquisa apresentou, também, os direitos atingidos pela flexibilização, especialmente no tocante aos contratos de trabalho. Por derradeiro, trouxe à baila as tendências jurisprudenciais atinentes à flexibilização dos direitos indisponíveis, por meio dos julgados mais recentes do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná (9ª Região).
1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DO TRABALHO
1.1 SURGIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO NO MUNDO
Para que se avalie a evolução histórica do Direito do Trabalho, é preciso, em primeiro lugar, levar em consideração seu núcleo fundamental, qual seja, a relação de trabalho, sobre a qual será construído todo o conjunto de princípios e normas deste ramo específico do Direito.
Na Idade Média, após um período de escravidão, desenvolveu-se o trabalho servil, em que os servos estavam limitados às determinações dos senhores feudais, sem que pudessem optar por situações mais favoráveis de trabalho[2].
Embora tenha sido uma forma de trabalho evoluída em relação à condição de escravo, esses trabalhadores só alcançaram a liberdade plena com a Revolução Francesa, quando da edição da Lei de Chapelier, que, segundo Sabrina Zein, “permitiu aos trabalhadores negociar diretamente suas relações, sem um organismo intermediário”.[3]
É somente com a Revolução Industrial, entretanto, que se notam as primeiras manifestações relevantes de relação empregatícia, posto que foi nesse momento que todas as formas de trabalho antigas deram lugar ao trabalho fabril assalariado mais próximo do sentido que se conhece hoje.
Conforme explana Maurício Godinho Delgado, é nesse período que o trabalhador passa a ser parte de uma “relação de produção inovadora, hábil a combinar liberdade […] e subordinação”[4], isto é, uma relação em que não figura mais a sujeição pessoal do feudalismo, mas sim uma sujeição objetiva, agora meramente contratual.
Segundo o autor,
“[…] a relação empregatícia (com a subordinação que lhe é inerente) começará seu roteiro de construção de hegemonia no conjunto das relações de produção fundamentais da sociedade industrial contemporânea”[5].
Nessa esteira, a Revolução Industrial deu origem a inúmeras transformações no setor produtivo, especialmente no que tange ao surgimento do operariado. Assim, com a crescente utilização da máquina, o homem gradualmente perdeu seu posto e, sem ter os meios de produção, se obrigou a aceitar salários baixos e jornadas exorbitantes. Como forma de protesto à exploração, passou então a pressionar o Poder Público, exigindo uma solução.
Nesse sentido, leciona Alice Monteiro de Barros:
“O Direito do Trabalho surge no século XIX, na Europa, em um mundo marcado pela desigualdade econômica e social, fenômeno que tornou necessária a intervenção do Estado por meio de uma legislação predominantemente imperativa, de força cogente, insuscetível de renúncia pelas partes” (grifos) [6].
É inegável, pois, que o período de formação do Direito do Trabalho, em resposta aos abusos de outrora, foi marcado pela ausência de liberdade, em que o rol de normas que podiam ser dispostas era reduzido. Isso significa que, nesse momento, a autonomia da vontade das partes é tomada pela intervenção estatal, aplicando-se, conforme o entendimento da autora supracitada, “indistintamente a todos os que se encontrarem no suposto fato previsto em lei”[7].
A irrenunciabilidade, vale dizer, é atribuída ao intervencionismo presente nesse período, principalmente como forma de proteção à exploração sofrida pelo operariado em face da burguesia, dona do capital e dos meios de produção.
Portanto, é nesse contexto da sociedade industrial e do trabalho assalariado que surge de forma concreta o Direito do Trabalho, ramo do Direito responsável hoje pela proteção do trabalhador, direção do sistema econômico e da mão-de-obra do mercado de trabalho, criação de regras de solução dos conflitos e satisfação das condições sociais, econômicas e tecnológicas em mudança[8].
1.2 PRIMEIRAS LEIS DE PROTEÇÃO AO TRABALHO
A passagem do sistema agrário e artesanal para um sistema industrial, dominado pelas máquinas, deu ensejo a leis imperativas de tutela ao trabalho.
Essa primeira fase, de manifestações incipientes ou esparsas, se dá, segundo destaque de Maurício Godinho Delgado, “pela existência de leis dirigidas tão somente a reduzir a violência brutal de superexploração empresarial sobre mulheres e crianças”[9].
Assim, a primeira lei legitimamente protetiva teve origem na Inglaterra, com Robert Peel, em 1802. A Peel´s Act consistia na proibição do trabalho noturno e superior a 12 horas diárias para menores, dispondo também sobre sua aprendizagem e estabelecendo nas fábricas algumas regras de higiene[10].
Arnaldo Sussekind afirma que a referida lei não teve eficácia na prática. Segundo o entendimento do autor, os frutos só vieram, na verdade, com o empresário Robert Owen, que implantou medidas de proteção ao empregado em sua fábrica, ficando por isso reconhecido como o pai da legislação do trabalho[11].
Além dessas leis, cumpre dizer, outros documentos se destacaram na luta garantista, como fica evidente no Manifesto Comunista de Marx e Engels, que incitou a pressão popular sobre o empresariado; na lei social de Bismarck, que implantou na Alemanha a primeira forma de seguro social, em 1833; e na Encíclica Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII, que exigia “do Estado e das classes dirigentes postura mais compreensiva sobre a necessidade de regulação das relações trabalhistas”[12].
Por derradeiro, um dos momentos mais importantes para a consolidação do cenário trabalhista foi o Tratado de Versalhes, de 1919, que abrigou prerrogativas importantes no que tange à universalização do Direito do Trabalho. Em seu art. 427, por exemplo, trouxe à baila a inadmissibilidade do trabalho como mercadoria[13], sugerindo um indício de irrenunciabilidade.
Após a Primeira Guerra Mundial, o Tratado deu origem à Organização Internacional do Trabalho. Flávia Piovesan frisa que, influenciada pelo contexto de normatização do Direito do Trabalho e
“com o objetivo de promover parâmetros internacionais referentes às condições de trabalho e bem-estar […], a OIT destacou quatro princípios, como de fundamental importância: (a) abolição do trabalho forçado; (b) erradicação do trabalho infantil; (c) eliminação da discriminação no emprego e na ocupação e (d) liberdade de associação e proteção do direito à negociação coletiva”[14].
Destarte, resta notório o caráter intervencionista do Estado nas primeiras manifestações da legislação trabalhista. Aquelas se tornaram, ainda, responsáveis por influenciar outros Estados, de maneira que diversas Constituições implantaram os direitos sociais em seus escritos, como é o caso do Brasil.
1.3 SURGIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL
As transformações mundiais, principalmente decorrentes da Primeira Guerra e do conseqüente surgimento da OIT, entusiasmaram o Brasil a criar normas trabalhistas, com vistas a promover melhores condições de trabalho e salários à classe trabalhadora.
Embora alguns diplomas legais tratando dos direitos dos trabalhadores tenham surgido antes da Revolução de 1930, o marco do aparecimento do Direito do Trabalho no Brasil se dá apenas no início da Era Vargas, no período em questão. É o que Maurício Godinho Delgado chama de “fase de institucionalização do Direito do Trabalho”[15].
Com o objetivo de promover uma política trabalhista, Getúlio Vargas determinou, entre outras reformas, a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, o reconhecimento da Lei de Sindicalização (Lei 19.770/31) e a instituição da carteira profissional[16].
Além dessas iniciativas, Vargas foi também responsável pela promulgação da primeira Constituição a tratar especificamente do Direito do Trabalho, em 1934, que abarcava garantias como liberdade sindical, isonomia salarial, salário mínimo, jornada de 8 horas diárias, repouso semanal remunerado, proteção ao trabalho da mulher e do menor e férias anuais[17].
Ainda no poder, o ditador outorgou em 1943 a Consolidação das Leis do Trabalho, que se trata, na lição de Amauri Mascaro Nascimento, de
“[…] lei geral, desde que se aplica a todos os empregados, sem distinção entre a natureza do trabalho técnico, manual ou intelectual. […] não é um código, porque, não obstante a sua apreciável dimensão criativa, sua principal função foi a reunião das leis existentes e não a criação, como num código, de leis novas”[18].
A CLT, então, se formou pelo conjunto de leis esparsas, originando a base da legislação do Direito do Trabalho atual e influenciando o próprio texto da Constituição Federal de 1988. Como explica Sérgio Pinto Martins, “para alguns autores, o art. 7º da Lei Maior vem a ser uma verdadeira CLT, tantos os direitos trabalhistas nele albergados”[19].
Em suma, pode-se dizer que os direitos trabalhistas no Brasil não surgiram a partir de lutas dos trabalhadores, como nos demais países. Conforme afirma Leandro do Amaral D. de Dorneles,
“deram-se predominantemente por concessão estatal, sem a participação ativa dos trabalhadores (ou com pouca participação ativa), em um período em que a luta de classes caracterizava-se como prejudicial ao processo de transição para a era capitalista e, portanto, foi incorporada pelo Estado”[20].
Dessa forma, nota-se que o período de surgimento do Direito do Trabalho no Brasil foi marcado pela presença característica do Estado nas relações laborais, em que não era cabível a luta de classes. Com aspecto interventor, portanto, deu origem a diversos direitos que servem ainda de base até os dias atuais.
1.4 DIREITO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO
O Direito do trabalho nasceu com a sociedade industrial e com o trabalho assalariado, alcançando autonomia após lutas de classes, revoluções e leis, que conferiram a ele o status de protetor e de responsável pelo equilíbrio das relações laborais.
Nessa esteira, ter por objeto a melhoria das condições sociais do trabalhador não significa, conforme leciona Maria Inês Moura S. A. da Cunha,
“preocupar-se com o mesmo, não enquanto cidadão comum […]. Ao revés, o direito do trabalho vai preocupar-se com o homem trabalhador, enquanto inserido em seu ambiente de trabalho, dentro de uma determinada classe social e junto à sua família, verificando que o modo de vida do mesmo retrata distorções e desequilíbrios que deverão ser corrigidos”[21].
Diante da evolução histórica do Direito do trabalho, o Estado adotou o papel de interventor, atribuindo a este ramo do Direito diretrizes próprias, principalmente no que tange à proteção e indisponibilidade dos direitos conquistados.
Atualmente, porém, o Direito do trabalho vive uma nova etapa de sua história que, conforme Orlando Teixeira da Costa, “persegue o abrandamento do conteúdo predominantemente de ordem pública da legislação do trabalho, assegurador da eficácia do seu princípio protetor”[22].
Conforme brilhante síntese do autor,
“Esta flexibilidade é perseguida através de uma equivalente proteção do trabalhador e da empresa, a fim de assegurar ocupação ao primeiro e garantir a sobrevivência da segunda, por intermédio do uso de técnicas derrogatórias das normas legais do Direito do Trabalho, procurando dar aos que trabalham o que é possível e, em contrapartida, aos que empresariam, o que é necessário”[23].
Portanto, é imprescindível que o Direito do trabalho se atualize, acompanhando as novas necessidades e a modernização da sociedade como um todo. Há, porém, um óbice que não pode ser mitigado, qual seja, o da indisponibilidade de certos direitos conferidos ao trabalhador.
2 A INDISPONIBILIDADE DOS DIREITOS DO TRABALHADOR
A ideia de indisponibilidade, geralmente atribuída aos direitos da personalidade – próprios do Direito Civil – está também diretamente ligada aos direitos sociais abrangidos pela Constituição Federal.
Flávia Piovesan assevera que, embora as Constituições anteriores tenham tratado dos direitos sociais, foi somente com a Carta Magna de 1988 que estes foram incorporados à categoria de direitos fundamentais, tendo aplicabilidade direta e sendo consagrados dentre as cláusulas pétreas[24].
Segundo a autora, são, portanto, “direitos intangíveis, direitos irredutíveis, de forma que tanto a lei ordinária como a emenda à Constituição que afetarem, abolirem ou suprimirem os direitos sociais, padecerão do vício de inconstitucionalidade”.[25]
No tocante à peculiaridade do Direito do Trabalho, o princípio da indisponibilidade se justifica, nas palavras de Carlos Henrique Bezerra Leite,
“[…] pela considerável gama de normas de ordem pública do direito material do trabalho, o que implica a existência de um interesse social que transcende a vontade dos sujeitos do processo no seu cumprimento e influencia a própria gênese da prestação jurisdicional. Numa palavra, o processo do trabalho teria uma função finalística: a busca efetiva do cumprimento dos direitos indisponíveis dos trabalhadores”[26].
Significa que, visando à proteção da parte hipossuficiente da relação trabalhista, cabe ao Direito do Trabalho utilizar de todos os meios para garantir que os direitos do empregado sejam assegurados. Entre as formas de amparo, pois, é que se encontra a indisponibilidade.
3 O PROCESSO DE FLEXIBILIZAÇÃO
3.1 TERMINOLOGIAS
O vocábulo flexibilização, pauta de exaustivas discussões jurídicas, tem origem latina, flexibilis[27], com o sentido literal de maleabilidade, elasticidade, adaptação ou acomodação, aquilo que é passível de cessão ou manejo.
Não é possível encontrar a nomenclatura em um dicionário brasileiro, pois se trata de um neologismo, originado pela língua espanhola, cuja utilização da palavra flexibilización[28] decorre da posição favorável do país quanto à maleabilidade das regras trabalhistas.
Dessa forma, em virtude do contexto histórico, o termo correto, flexibilidade, não teria o sentido pretendido, razão pela qual se faz uso da influência daquele país no tratamento do tema no Direito pátrio, especialmente no campo do Direito do Trabalho.
Outras denominações também remetem ao assunto. Fala-se, por exemplo, em desregulamentação ou deslegalização como sinônimos de flexibilização, idéia não defendida por Sérgio Pinto Martins:
“Desregulamentação envolveria a completa ausência de normas a respeito do trabalho. Não é isso que se pretende, mas a existência de normas legais trabalhistas que garantam um mínimo ao trabalhador, porém com maior flexibilidade para se adaptar, por exemplo, às situações de crises”[29].
A proposta é, portanto, adaptar as regras e não aboli-las, mantendo, assim, a segurança das partes da relação jurídica trabalhista e a ingerência do próprio Estado. Isso significa que, enquanto a desregulamentação substituiria de forma completa a norma estatal pela convenção particular, a flexibilização tem o intuito de adaptar a legislação sem, contudo, retirar o papel protetor do Estado na intervenção mínima às relações.
Segundo leciona Arnaldo Sussekind, a tese defendida pelos neoliberais de que as condições de emprego sejam determinadas não pelo Estado, mas pelas leis do mercado, fere a Declaração Universal dos Direitos Humanos[30], visto que a intervenção estatal nas relações de trabalho é, nas palavras do autor, “necessária à efetivação dos princípios formadores da justiça social e à preservação da dignidade humana”[31].
Por outro lado, o instituto da desregulamentação não pode, de todo, ser desconsiderado. Conforme o entendimento de Alice Monteiro de Barros[32], foi utilizado, por exemplo, no que tange ao trabalho da mulher quando da revogação do art. 376 da Consolidação das Leis do Trabalho, que proibia o trabalho extraordinário para o sexo feminino.
Resta evidente, segundo a autora, que foi em função dessa desregulamentação normativa que se deu efetividade ao artigo 5º, I da Constituição Federal, que prevê que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
Ainda, quanto às terminologias, Sérgio Pinto Martins entende que a forma mais correta de tratar a flexibilização é relacionando-a a “condições de trabalho” e não a “Direito do Trabalho”, posto que o que se maneja é um contrato, uma regra dentro da empresa, um horário, um salário, etc[33].
Nesse sentido, Alice Monteiro de Barros divide a flexibilização em dois tipos, interna e externa:
“A flexibilização interna, atinente à ordenação do trabalho na empresa, compreende a mobilidade funcional e geográfica, a modificação substancial das condições de trabalho, do tempo de trabalho, da suspensão do contrato e da remuneração. […] Paralelamente, temos a flexibilização externa, que diz respeito ao ingresso do trabalhador na empresa […]”[34].
A par disso, a flexibilização é também discutida sob dois prismas conflitantes, quais sejam, sociológico e jurídico. O primeiro é pautado no fator social da renúncia a determinado costume para dar lugar a uma nova circunstância[35]. Este conceito, elaborado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e trazido por Sérgio Pinto Martins, indica que o mero debate sobre a flexibilização não dá ensejo à profundidade das conseqüências trazidas por suas mudanças.
Na mesma esteira, destaca Cássio Mesquita Barros Júnior que o detentor desse papel é, na realidade, o segundo aspecto, jurídico, responsável pela transformação das relações, na medida em que os mecanismos e procedimentos de Direito é que efetivamente ajustam a “produção, emprego e condições de trabalho às contingências rápidas ou contínuas do sistema econômico”[36].
Logo, o tratamento devido ao tema vai além dos aspectos sociológicos ou psicológicos e da decisão isolada da renúncia; mais do que isso, tem guarida em um conjunto de regras que visam organizar as mudanças ocorridas neste sistema social.
3.2 ORIGEM
Alguns doutrinadores entendem que o fenômeno da flexibilização surgiu, primeiramente, como ideal de adaptação para uma época de crise, tendo em vista que esta, ao promover a quebra em um ciclo econômico estável, desencadeou conseqüências diretas na vida dos trabalhadores, como o desemprego em massa[37].
Com o intuito de adequar as mudanças à realidade, os direitos também foram se moldando, no ânimo de garantir ao trabalhador as condições mínimas de emprego sem deixar de manter, por outro lado, o capital do empregador. Isso porque apenas com a produção e a vida do trabalhador em ordem é que o equilíbrio se instaura novamente e a flexibilização concretiza seu objetivo.
Após a Revolução Industrial, com a necessidade de operacionalização das máquinas, foram estabelecidos dois modelos de produção em massa, quais sejam, o taylorismo[38] e o fordismo[39], cujas grandes características eram a organização e racionalização do trabalho, com o mínimo tempo ocioso do operário.
Esses modelos, alimentados por uma sociedade de consumo em massa, entraram em crise com o surgimento de outro modelo de produção, o toyotismo[40], que, ao invés de especificar a linha de montagem, envolvia o trabalhador em várias fases da produção. Por este novo paradigma, mais flexível, Leandro do Amaral D. de Dorneles ensina que era a demanda responsável por estabelecer a produção, isto é, o produto era ajustado conforme as necessidades do mercado consumidor[41].
A consequência da flexibilidade do modelo toyotista, segundo o autor, foi a própria flexibilização da organização do trabalho, pois “deve haver agilidade na adaptação do maquinário e dos instrumentos para que novos produtos sejam elaborados conforme a demanda do mercado”[42].
Foi nesse cenário que se iniciou um dos primeiros e talvez mais importantes períodos a suplicar a elasticidade nas condições trabalhistas: a crise do petróleo. No início da década de 70, em virtude do protesto ao apoio dos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur, os países árabes da Organização dos Países Exploradores de Petróleo – a OPEP – aumentaram o preço do petróleo, gerando uma grave crise na Europa[43].
A recessão econômica acarretou em altas taxas de desemprego, cuja solução não foi encontrada de forma rápida e eficaz. Além disso, Maurício Godinho Delgado leciona que
“a crise abalava a higidez do sistema econômico, fazendo crescer a inflação e acentuando a concorrência interempresarial e as taxas de desocupação no mercado de trabalho. A par disso, agravava o déficit fiscal do Estado, colocando em questão seu papel de provedor de políticas sociais intensas e generalizantes”[44].
A partir de então, as exigências de flexibilização, tanto das leis como das relações trabalhistas, se intensificaram, uma vez que a intervenção do Estado, embora indispensável, implorava por reformas.
Era necessário reverter o quadro crítico, a começar pelas transformações estruturais nas empresas, com o escopo de adequar o trabalhador ao novo sistema instaurado e manter seu emprego, conforme assevera Amauri Mascaro Nascimento:
“[…] diante da crise do petróleo de 1973, a necessidade do desenvolvimento das comunidades econômicas internacionais, o avanço da tecnologia e o desemprego levaram à revisão de algumas leis trabalhistas que influíram na formação de propostas destinadas a reduzir a rigidez de algumas delas, para que não dificultassem a criação de novos tipos de contratos individuais de trabalho que permitissem o aproveitamento de trabalhadores desempregados […]”[45].
Já no Brasil, a influência da flexibilização sofrida na Europa na década de 70 chegou tardiamente e de forma discreta, apenas no final da década de 90, quando o regime ditatorial deu lugar ao sistema democrático.
Entretanto, embora a Carta Constitucional de 1988 tenha trazido modificações, tratava-se tão somente de um período de transição, visto que naquele momento, segundo ensina Maurício Godinho Delgado, ainda não estavam “instauradas e consolidadas práticas e instituições estritamente democráticas no sistema justrabalhista.”[46]
Porém, ainda que presente em um momento transitório, a Carta Magna trouxe duas importantes inovações: a primeira, em relação à impossibilidade de intervenção estatal sobre as entidades sindicais (art. 8º, inciso I); a segunda, quanto ao reconhecimento da convenção ou acordo coletivo de trabalho na redução salarial (art. 7º, inciso VI). Isso demonstra que a tendência da flexibilização não foi descartada em face do protecionismo estatal, principalmente em relação ao Direito Coletivo do Trabalho.
Além dessas mudanças, outras adequações foram realizadas pela legislação trabalhista, conforme cita Michel Olivier Giraudeau:
“[…] a exemplo da disposição do artigo 58-A, da CLT – com a instituição do trabalho em regime de tempo parcial, não superior a 25 horas semanais, e mediante negociação coletiva – e a modificação do artigo 59, § 2º, instituindo o chamado “banco de horas”, e possibilitando a compensação de horas, não apenas em uma semana, mas em um ano. Como formas alternativas de contratação, e desde que atendidos os requisitos previstos, pode-se também mencionar o trabalho temporário (Lei 6.019/74) e o contrato por prazo determinado, da Lei 9.601/98, instituído como alternativa de atenuação do desemprego, mediante negociação coletiva”[47].
Hodiernamente, as discussões acerca do assunto ainda não se encontram dirimidas, principalmente no que concerne ao objetivo de se evitar o desemprego, principal função da flexibilização. No entendimento de Maria Lucia Freire Roboredo,
“o Brasil precisa despertar. Sair do discurso para a ação. Buscar maior flexibilidade nas leis para atuação eficaz no mercado de trabalho. A rigidez atual, e os elevados juros e custos sociais são fatores impeditivos de competição e melhoria do emprego. Não poder-se-ia esquecer que o nosso país necessita transpor fronteiras e precisa encontrar soluções rápidas e eficientes para as relações de trabalho, enfrentando, inclusive, o desemprego”[48].
Com efeito, se por um lado o empregado aceita a adaptação para manter sua renda, de outra sorte, o empregador se aproveita da fragilidade daquele, usando mais sua força de trabalho e pagando menos por isso.
Portanto, resta saber se as normas flexibilizadas são, de fato, benéficas à condição do empregado, ou se tratam-se simplesmente de uma forma de o empregador usar a mão-de-obra mais barata para manter seu capital. Embora o Brasil tenha se tornado um país democrático, a legislação pátria apresenta falhas no que diz respeito à proteção laboral em face do interesse econômico.
3.3 CAUSAS
As flexibilizações ocorridas nas relações de trabalho das últimas décadas foram desencadeadas por aspectos sociológicos e culturais, como por exemplo a inserção da mulher no mercado de trabalho, antes ocupado só pelos homens, e o êxodo dos trabalhadores rurais para as áreas urbanas[49].
Fruto da evolução social, a flexibilização exigiu, então, modificações legais, visto que o desenvolvimento do Direito do Trabalho tem origem na própria evolução da sociedade. Isso se verifica principalmente no que concerne às lutas dos trabalhadores em face da exploração, tantas vezes presente na história humana.
Além destes, outros fatores também contribuíram para que as adaptações ocorressem. São eles as crises econômicas, as inovações tecnológicas, as modificações na organização da produção, a globalização, a competitividade internacional, o desemprego e a economia informal. Explica-se cada um deles a seguir.
O primeiro fator, as crises econômicas, possui papel precursor na reivindicação de mudanças no âmbito trabalhista. São, na verdade, as grandes responsáveis por desencadear uma série de outros conflitos que, por sua vez, deságuam na efetiva necessidade de transformações.
Isso quer dizer que as crises não chegam sozinhas; ao contrário, trazem consigo a inflação, a desestruturação da economia e da sociedade como um todo, bem como dos processos de produção e do próprio consumo e, por conseqüência, a lástima do desemprego. Em função da crise, portanto, todo o sistema fica prejudicado e carente de adaptação, sendo a relação de trabalho a mais atingida.
Evidente se faz, também, a impossibilidade de as empresas se adaptarem a um mercado turbulento frente a normas imperativas[50]. Dessa forma, a flexibilização surge como solução, na medida em que garante o emprego, satisfazendo, por um lado, a renda do empregado e, ao mesmo tempo, a sobrevivência da empresa.
Nesse mesmo limite encontram-se as inovações tecnológicas, segundo aspecto causador da flexibilização, posto que a rapidez com que surgem nem sempre é acompanhada de forma eficaz por todos os trabalhadores, o que conduz, outra vez, ao desemprego. Nesse sentido, Kátia Magalhães Arruda assevera que
“esses milhares de trabalhadores, cada vez mais substituídos por máquinas, encontram-se desnorteados diante do questionamento sobre qual vai ser o seu papel nessa nova sociedade. Nesse contexto de transição, é urgente e necessária a evolução nos estudos que busquem a eficácia dos direitos constitucionais de proteção ao trabalhador, numa tentativa de amenizar os rigores peculiares às transformações econômicas abruptas pelas quais passa a comunidade global”[51].
Em princípio, a revolução tecnológica abarcou outro agente de ajustamento, qual seja, a globalização da economia, tratada por Marcos César Amador Alves como um processo de integração econômica, social, cultural e política que tem em seu núcleo, entre outros aspectos, a flexibilidade do mercado de trabalho[52].
Fala-se em integração, muito embora o que se encontra é, na opinião de Arnaldo Sussekind, uma separação, não somente entre países globalizantes e globalizados, mas da própria distribuição de riquezas. Conforme estatísticas demonstradas pelo doutrinador, a crise decorrente da globalização da economia “[…] tem características estruturais, já tendo acarretado 180 milhões de desempregados e 750 milhões de subempregados, isto é, 1/3 da população ativa mundial”[53].
A nova economia global, portanto, não atingiu a todos de maneira uniforme, demandando novos métodos de trabalho, mais maleáveis, para que se estabeleça a ordem social.
Com efeito, nota-se como conseqüência da globalização o aparecimento de novas formas de produção e, por óbvio, o acirramento da concorrência, uma vez que a qualidade de produtos e serviços melhora e abaixa os custos[54]. É em nome, de tais mudanças, pois, que novas expectativas são delineadas pela flexibilização.
Entretanto, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy entende que nem tudo pode ser permitido, pois “o empresário vê-se forçado a competir em condições que exigem mão-de-obra barata e manipulação de horários”. Com isso, no juízo do autor, “uma fúria neoliberal estaria minando conquistas laborais construídas ao longo de penosa jornada histórica”[55], embora o objetivo da elasticidade das normas não seja diminuir direitos existentes e sim adaptá-los a ocasiões específicas.
Por derradeiro, a existência da economia informal também dá ensejo à flexibilização, principalmente porque as regras formais muitas vezes travam a relação laboral, seja obrigando o empregador a manter sem registro o empregado, seja pela sujeição deste à informalidade para obter seu sustento. Dessa forma, a maleabilidade das normas nasce com o fim de preservar a relação de trabalho, pois, conforme leciona Sérgio Pinto Martins, "estabelecer legislação extremamente rígida implicaria a extinção das empresas e, por consequencia, dos empregos"[56].
É, pois, em virtude desses aspectos que se faz a proposta de uma legislação mais branda, cujo escopo seja acomodar o direito à realidade vivida na relação laboral.
3.4. PONTOS POSITIVOS E NEGATIVOS
Por se tratar de um assunto envolto em polêmicas, resta manifesto ser a flexibilização, para alguns, o mocinho e, para outros, o grande vilão.
Os primeiros acreditam que, por meio dela, protege-se o emprego e, por conseguinte, sua natureza alimentícia, isto é, o sustento do empregado. Já os críticos asseveram que, ao contrário, no lugar da proteção, o único efeito obtido é a supressão dos direitos conquistados ao longo da história e o rompimento da principal finalidade do Direito do Trabalho, qual seja, a proteção do trabalhador como parte hipossuficiente.
Nessa esteira, três correntes se formaram: uma, favorável à flexibilização; outra, contrária ao instituto; e, por fim, uma terceira, intermediária ou mista.
3.4.1 Corrente flexibilista
A corrente que apóia a flexibilização insiste, em primeiro lugar, na questão protecionista, visto que o instituto auxilia na preservação da relação laboral, resguardando o empregado da falta de renda.
Nesse sentido, a própria Constituição Federal de 1988 criou mecanismos para evitar o desemprego, com novos contratos de trabalho, possibilitando “novos horizontes para os trabalhadores que estavam sem exercer funções pelo simples fato de não ter mais espaço no mercado de trabalho”[57], conforme leciona Aldêmio Ogliari.
As adaptações realizadas frente às crises, explica Sérgio Pinto Martins,
“tanto podem assegurar melhores condições de trabalho como também situações in peius. Num momento em que a economia está normal, aplica-se a lei. Na fase em que ela apresenta as crises, haveria a flexibilização das regras trabalhistas, inclusive para pior”[58].
Este, porém, não é um posicionamento pacificado, pois se entende, por outro lado, que a flexibilização deve estar em conformidade com os preceitos básicos de Justiça Social, principalmente no que diz respeito ao princípio do in dubio pro operario.
Deve, por esse raciocínio, apenas transformar a condição de trabalho in mellius ou do trabalho decente, cujo conceito foi recentemente divulgado pela OIT:
“Trabalho decente é um trabalho produtivo e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, e que garanta uma vida digna a todas as pessoas que vivem do trabalho e as suas famílias […] e que respeite os direitos fundamentais do trabalho, garanta proteção social quando não pode ser exercido […] e participação no diálogo social”[59]. (grifos)
A flexibilização tem, ainda, o condão de aproximar a relação capital-trabalho. Isso porque quando o trabalhador concorda com a redução de seu salário por meio de uma negociação coletiva, por exemplo, colabora com o crescimento da empresa. Evoluindo, por sua vez, esta também ganha e volta a beneficiar o funcionário com a participação nos lucros e resultados, prerrogativa trazida pelo artigo 7º, XI da Carta Magna.
Assim, conforme entendimento de Mário Luiz Balster Moreira de Castilho, “a participação dos trabalhadores nos lucros e gestão das empresas deverá se incorporar ao costume do pacto laboral, trazendo o trabalhador para ao lado do capital com incentivo à produtividade”[60].
Em que pese o direito coletivo do trabalho, Aldêmio Ogliari explica que existe também um aspecto positivo a se considerar no que concerne à atuação dos sindicatos na flexibilização. Com o papel de controlar e adequar as mudanças, as negociações coletivas não sofrem ingerência estatal, o que facilita a acomodação das normas à realidade fática dos trabalhadores[61].
Dessa forma, o que se pretende com a flexibilização, segundo essa corrente, é a solução de problemas concretos da relação de trabalho, para que sejam satisfeitas tanto a condição do empregador como a rotina laboral do empregado, ainda que para isso seja necessária a cessão de direitos ou a transformação in pejus..
3.4.2 Corrente antiflexibilista
O maior e mais freqüente argumento dos críticos ao instituto da flexibilização é, indubitavelmente, a tese da luta histórica pelos direitos sociais. Para eles, os direitos pelos quais os trabalhadores pelejaram séculos para conquistar estão sendo atacados de maneira sutil pela maleabilidade das regras laborais, razão pela qual se faz necessária reconsideração sobre o assunto.
O escopo-mor da flexibilização é notório: moldar as regras à realidade da relação trabalhista e, especialmente, tutelar a parte hipossuficiente. Os antiflexibilistas, contudo, não creem na igualdade pretendida pelo instituto em questão. Acreditam que o manejo das normas, ao contrário, deixa o empregado ainda mais sob o domínio do empregador e não põe fim ao desemprego, conforme afirma Luiz Carlos Robortella:
“A flexibilização realmente não produziu os resultados esperados, no campo da melhoria das condições de vida do trabalhador. O desemprego continua grande nos países europeus e os padrões salariais não apresentam elevações; ao contrário, mostram-se inferiores aos de outras épocas.”[62]
Em virtude dessa fragilidade do empregado, resta evidente que as negociações não o colocam em um patamar de igualdade com o empregador. Ainda, tendo em vista que não deixam outra saída ao trabalhador a não ser aceitá-las, nada mais são, na opinião de Pedro Marcos Nunes Barbosa, do que um contrato de adesão[63].
Orlando Teixeira da Costa retrata, ainda, o quadro crítico da flexibilização, apontando suas más conseqüências tais como a concorrência desenfreada, a decadência dos sindicatos tradicionais e as desigualdades salariais.
Na opinião do autor, a flexibilização fragmenta o mercado de trabalho, desestimulando as empresas e os trabalhadores a “investirem na formação de mão-de-obra qualificada e na aquisição de novas qualificações, com o conseqüente decréscimo das remunerações e o agravamento das desigualdades salariais”[64].
Posto isto, percebe-se que, diante da flexibilização, o Direito do Trabalho mudaria seu aspecto e, conforme o entendimento de Amauri Mascaro Nascimento,
“[…]deixaria de ser uma defesa do trabalhador contra a sua absorção pelo processo econômico, para ser preponderantemente um conjunto de normas destinadas à realização do progresso econômico, atritando-se com a sua finalidade, que é a proteção do trabalhador diante da sua inferioridade econômica no contrato de trabalho”[65].
Destarte, a corrente em tela não crê na conformidade da flexibilização com o princípio da proteção do empregado, trazendo a este muito mais ônus do que bônus. Para os antiflexibilistas, portanto, a flexibilização surge como verdadeira vilã, incapaz de atingir o fim a que se propõe.
3.4.3 Corrente mista
Distante do aspecto radical dos posicionamentos anteriores, o pensamento dos que defendem a corrente mista é, como o próprio nome sugere, de adequar uma conduta flexível à intervenção do Estado.
Para Arnaldo Sussekind, o ideal seria apenas a redução do grau de intervenção da lei, a fim de que
“1º) os sistemas legais se constituam de diversas regras indisponíveis, que estabeleçam um mínimo de proteção a todos os trabalhadores, abaixo do qual não se concebe a dignidade do ser humano;
2º) esses sistemas abram espaço para a complementação do piso protetor irrenunciável ou para flexibilizar a aplicação das normas gerais de nível superior, mediante negociação coletiva, isto é, com a participação dos correspondentes sindicatos, aos quais cumpre assegurar a liberdade sindical, tal como prevista na Convenção da OIT nº 87;
3º) a flexibilização deve visar às cláusulas contratuais ajustadas para a aplicação dessas normas gerais e das estipuladas supra ou extra lex, objetivando: a) o atendimento a peculiaridades regionais, empresariais ou profissionais; b) a implementação de nova tecnologia ou de novos métodos de trabalho; c) a preservação da saúde econômica da empresa e dos respectivos empregos”[66].
O autor defende, portanto, a importância da flexibilização, mas não exclui a função do Estado de equilibrar a relação de trabalho. É necessário que a aplicação das leis seja feita de forma peculiar, mas que ao mesmo tempo seja garantida a proteção a todos os trabalhadores, por meio de direitos que não podem ser renunciados.
Por derradeiro, Sérgio Pinto Martins conclui o posicionamento da corrente mista ao asseverar que “sob a ótica da teoria semiflexibilista, seria possível afirmar a existência de uma norma legal mínima, estabelecendo regras básicas, e o restante seria determinado pelas convenções ou acordos coletivos”[67].
Isso demonstra, portanto, a ponderação da referida corrente, pois ao mesmo tempo em que se preocupa com os direitos conquistados pelos trabalhadores, não fecha os olhos para o progresso do Direito, indispensável na atualização das normas frente às necessidades sociais.
Em suma, adotando-se os preceitos da teoria em apreço, seria possível garantir aos trabalhadores o não-retrocesso a direitos que lhe são tão caros, bem como apresentar aos empregadores alternativas para a sobrevivência de seus estabelecimentos em situações adversas.
3.5. DIREITOS ATINGIDOS PELA FLEXIBILIZAÇÃO
Como se evidenciou, a flexibilização atingiu, no campo do Direito do Trabalho, diversos direitos dos empregados, tornando as condições de trabalho mais brandas e até mesmo negociáveis em alguns casos. Isso se verifica na própria Constituição Federal de 1988 que inovou, trazendo em seu texto a flexibilização do salário, na medida em que, conforme reza o artigo 7º, VI, pode ser reduzido mediante acordo ou convenção coletiva.
Porém, além dessa hipótese autorizada pela Carta Magna, a flexibilização também alcançou outros direitos, como a jornada de trabalho, a dispensa do trabalhador e principalmente o contrato de trabalho, em seus mais variados segmentos[68].
O contrato de trabalho, indubitavelmente, foi o aspecto da relação de emprego mais abordado pela flexibilização, destacando-se, dentre os mais relevantes, o contrato de trabalho por tempo determinado, o trabalho temporário e o contrato a tempo parcial.
O contrato por tempo determinado foi criado pela Lei 9.601/1998, com o intuito de suavizar eventuais crises econômicas e o desemprego, visto que, conforme ensina Sérgio Pinto Martins, “é uma forma menos onerosa para o empregador quando do término do pacto laboral, pois a empresa não paga indenização de 40% sobre os depósitos de FGTS nem aviso prévio”[69].
Tendo em vista o princípio da continuidade do contrato de trabalho, há que se dizer que se trata de exceção e não de regra, devendo por isso obedecer aos preceitos e limitações legais.
Já no tocante ao trabalho temporário, ocorre quando uma empresa co-loca o trabalhador no tomador de serviços por um período que não ultrapassa três meses. Com isso, atende-se ao mesmo tempo a transitoriedade da empresa e a necessidade de emprego do trabalhador, uma vez que flexibiliza uma contratação diversa da normal, que é a contratação por tempo indeterminado.[70]
O trabalho a tempo parcial, por fim, estabelece jornada de até 25 horas semanais, conforme estabelecido no artigo 58-A da Consolidação das Leis do Trabalho. É útil tanto para pessoas que não podem laborar a jornada completa como para o empregador, que tem custo menor com salário e férias, haja vista serem proporcionais.[71]
Além disso, insta salientar, foi instituído pela Lei 9061/1998 o banco de horas, visando atender flutuações dos negócios e cominando prazo de até 1 ano para sua compensação, por meio de acordo ou convenção coletiva; e o rito sumaríssimo, pela Lei 9957/2000, que facilita o procedimento para causas com valor abaixo de 40 salários mínimos.[72]
Diversos foram, portanto, os direitos abarcados pela flexibilização, principalmente no que se refere ao contrato de trabalho, instrumento base das condições de trabalho. Todas essas mudanças tornaram maleáveis de alguma forma os direitos do trabalhador, seja com o fim de evitar seu desemprego ou para promover a negociação com o empregador.
4. TENDÊNCIAS JURISPRUDENCIAIS
Tratando-se de direitos dos trabalhadores, há uma grande preocupação com a prerrogativa da disponibilidade, tendo em vista o princípio majoritário da relação de trabalho, qual seja, o da proteção. A jurisprudência aparece, nesse sentido, como norte a ser seguido, auxiliando as decisões sem deixar de amparar o trabalhador, parte hipossuficiente.
Os julgados mais recentes demonstram que a flexibilização nunca é aplicada se estiverem envolvidos direitos assegurados em normas de ordem pública. Dessa forma, os direitos indisponíveis também não podem ser suprimidos, mesmo que por acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Tem-se como exemplo corrente o intervalo intrajornada, sobre o qual o Tribunal Superior do Trabalho tem se manifestado no sentido que se segue:
“INTERVALO INTRAJORNADA. SUPRESSÃO POR NORMA COLETIVA. "É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva" (Orientação Jurisprudencial 342 da SBDI-1 desta Corte). Recurso de Revista de que se conhece em parte e a que se dá provimento[…].”[73]
O entendimento pacífico do TST é de que, mesmo que o Direito do Trabalho admita a flexibilização em alguns casos, “as normas que possibilitam essa flexibilização não autorizam a negociação de direitos indisponíveis do empregado, concernentes à proteção da higidez física e mental”.[74]
Cumpre dizer, o direito à integridade física é, conforme Silvio Romero Beltrão, um direito subjetivo da personalidade, projetado pela dignidade da pessoa humana e, portanto, de cunho indisponível. Assim, na lição do autor, “não se permite a disposição do corpo humano que torne inviável a vida ou a saúde, ou cause deformidade permanente”[75].
Isso também se verifica em outro julgado do mesmo Tribunal:
“ACORDO DE COMPENSAÇÃO. ESCALA 12X36. HORAS EXTRAS. NÃO CONCESSÃO DE INTERVALO INTRAJORNADA. HORA NOTURNA REDUZIDA. INOBSERVÂNCIA. 1. Vulnera o artigo 896 da CLT acórdão de Turma do TST que, mediante invocação inadequada da Súmula nº 297, não conhece de recurso de revista devidamente fundamentado em violação aos artigos 71, § 4º, 73, § 1º, também da CLT. 2. Empregado que labora em regime de compensação de jornada, em escala de 12×36 horas, ainda que encetada mediante acordo tácito, faz jus ao intervalo intrajornada e à hora noturna reduzida, por tratar-se de direitos assegurados em normas de ordem pública (arts. 71, § 4º, e 73, § 1º, da CLT) e, portanto, indisponíveis pela vontade das partes, uma vez que tutelares da higiene, saúde e segurança do trabalho. 3. Embargos conhecidos e providos.”[76]
O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região – Paraná – igualmente tem decidido no sentido de não admitir a flexibilização quando da supressão de garantias mínimas dos trabalhadores, na medida em que a flexibilização in pejus, que torna pior as condições de trabalho, viola o princípio protecionista do Direito do Trabalho.
Nessa esteira, decidiu recentemente o TRT:
“PISO SALARIAL. NORMA COLETIVA. SALÁRIO NORMATIVO INFERIOR AO PISO REGIONAL. INAPLICABILIDADE. A negociação coletiva não pode ser feita em prejuízo ao trabalhador, operando-se a flexibilização "in pejus". A norma coletiva deve manter como parâmetro mínimo salarial o piso regional. Assim, a melhor interpretação que se faz do art. 1° da Lei Complementar 103/2000 é a de que o piso regional só não se aplica àqueles que, por força de instrumento coletivo, possuem piso salarial superior o piso regional”. (grifos) [77]
De outra sorte, a flexibilização é cabível quando não há dispositivo regulando a matéria e desde que não prejudique as condições de trabalho do empregado. Constata-se na seguinte decisão a prerrogativa da negociação pelas partes:
“NORMA COLETIVA. PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS E RESULTADOS. EXCLUSÃO DOS EMPREGADOS AFASTADOS POR AUXÍLIO-DOENÇA. POSSIBILIDADE. A norma resultante da negociação coletiva representa a vontade das partes na busca de certas vantagens consideradas mais importantes em confronto com os direitos então flexibilizados. Certo que não se pode interpretar a redação do art. 7º, XXVI, da Constituição Federal de forma a considerar válida a integralidade dos instrumentos coletivos, independentemente do fato de contrariar dispositivo de lei em prejuízo do empregado, pois o dispositivo em comento apenas reconhece as convenções e os acordos coletivos de trabalho, como fontes do Direito do Trabalho, através dos quais são criadas normas e condições para a prestação de serviços, aplicáveis ao contrato de trabalho (art. 611 da CLT). Contudo, os direitos que permitem flexibilização ou normatização própria figuram como objeto da prerrogativa das partes de poderem negociá-los em busca de obter melhores adaptações e condições para a prestação dos serviços. Possível às partes, assim, estipular a participação nos lucros restrita apenas aos empregados que tenham trabalhado, no mínimo, quinze dias no ano, excluindo, de maneira expressa, aqueles afastados em gozo de auxílio-doença acidentário. Recurso do Reclamante a que se nega provimento.”[78]
Vale dizer, portanto, que apenas serão passíveis de negociação direitos que não prejudicam o trabalhador, mas sim que o auxiliam na adaptação favorável das condições de trabalho. Dessa forma, restou possível no caso em comento a estipulação de certos trabalhadores nos lucros e resultados da empresa, visto que a negociação ocorreu por meio de instrumento coletivo e devidamente amparada pelo instituto da flexibilização.
Posto isto, há que se ressaltar a importância das decisões dos Tribunais, no sentido de que alicerçam toda a interpretação e aplicação das normas de Direito do Trabalho.
Nota-se, com efeito, que grande parte dos direitos passíveis de flexibilização tem como antecedente a prerrogativa de um acordo ou convenção coletiva. Isso não significa, porém, que não há limites para a atuação dessas normas, uma vez que os princípios norteadores da relação de trabalho, como o protetivo, devem ser plenamente respeitados.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, pode-se concluir que, desde as primeiras manifestações de relação de trabalho até os dias atuais, restou demonstrado a exploração dos trabalhadores por muitos séculos, na medida em que, por serem a parte mais frágil e por não possuírem os meios de produção, tiveram suprimidos os seus direitos mais básicos.
Nesse contexto, as reivindicações dos trabalhadores deram ensejo ao surgimento das primeiras leis trabalhistas, período marcado pela ausência de liberdade, haja vista a existência de uma grande e necessária intervenção por parte do Estado. No Brasil, entretanto, o aparecimento desses direitos não foi caracterizado por lutas, mas sim por concessão estatal, sobretudo no governo de Getúlio Vargas, com a criação de diversas garantias aos empregados, tuteladas até hoje.
Com efeito, os direitos conquistados caminharam automaticamente à indisponibilidade. A própria Constituição Federal de 1988 não autoriza a renúncia, a não ser que esteja expressamente prevista a possibilidade de acordo ou convenção coletiva sobre o assunto. Isso ratifica a segurança ao princípio de proteção ao trabalhador, que não mais teme a exploração por ser a parte vulnerável da relação laboral.
Dessa forma, a flexibilização, fruto da evolução das relações sociais laborais, bem como do Direito, atinge tão somente as questões que não são erigidas à categoria de normas de ordem pública. Muitos contratos de trabalho, por exemplo, foram manejados para garantir a manutenção do emprego, razão mais que suficiente para que não se descarte de imediato a proposta de elasticidade nem se tenha preconceitos em relação a ela.
O Direito do Trabalho, como se sabe, engloba um conjunto de leis, institutos e princípios que tem como dever a proteção aos trabalhadores. Dessa forma, é possível que se permita o progresso e, ao mesmo tempo, se garanta direitos, deixando ao Estado um papel mais fiscalizador de direitos básicos dos trabalhadores que propriamente regulador.
Destarte, é nesse sentido que os Tribunais pátrios tem decidido. O elemento flexibilização é inegável e deve ser utilizado apenas em favor do trabalhador. No tocante às adaptações in pejus, como as que ferem a indisponibilidade dos direitos, é pacífico que não podem ser realizadas, pois agridem a essência do Direito do Trabalho brasileiro.
Frente ao exposto, resta evidente a importância da figura da flexibilização nos dias atuais, seja para manutenção de empregos, seja para evitar o desmantelamento da empresa, surgindo como verdadeira tábua de salvação para ambas as partes da relação laboral em tempos adversos.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Maringá – Cesumar
Advogada, professora universitária, especialista em direito aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná, Mestre em Direitos da Personalidade pelo Cesumar.
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