Sumário: 1. Notas introdutórias; 2. Decisões do Supremo Tribunal Federal; 3. Conclusão.
1. Notas introdutórias
Desde que a Lei 10.409/2002 (Lei Antitóxicos) entrou em vigor a discussão sobre a necessidade de se aplicar ou não o procedimento destinado à instrução criminal, conforme ela regula, causou grande inquietação na doutrina, sendo majoritário, hoje, o entendimento que defende sua aplicação.
Na prática, são incontáveis os casos em que o “procedimento novo” não foi e não vem sendo observado, notadamente nos Juízos de Primeira Instância, onde houve e ainda há, acentuada resistência, deveras injustificada, e no mais das vezes em razão de uma certa incompreensão quanto ao verdadeiro alcance do art. 27 da Lei 10.409/2002, a quem se deu molduras mais amplas do que realmente tem.
De nossa parte, como já anotamos tantas vezes,[1] sempre defendemos a aplicação do procedimento relativo à instrução criminal, regulado no Capítulo V, art. 37 e seguintes da Lei 10.409/2002, sendo que sua inobservância fere os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, acarretando a nulidade absoluta.
Em trabalho recente[2] salientamos o posicionamento de alguns Tribunais Estaduais em relação a matéria tratada, apontando variações de entendimento, e destacamos v. Acórdão da Egrégia 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que por maioria de votos, deu parcial provimento a recurso, concedendo habeas corpus a condenado por tráfico de entorpecentes, determinando a anulação do processo em razão de não ter sido aplicado o procedimento da Lei 10.409/2002.
Segundo o entendimento exposto naquela Augusta Corte, e que coincide com aquele que sempre defendemos, a omissão gera nulidade absoluta do processo em razão de manifesto cerceamento de defesa, notadamente em razão da supressão da possibilidade de resposta escrita prevista no art. 38 da Lei 10.409/2002.
A E. 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, invariavelmente vem entendendo que a não-aplicação do procedimento gera apenas nulidade relativa. Nesse sentido: STJ, RHC 14.416/RJ, 5ª Turma, j. 12.8.2003, rel. Min. Félix Fischer, DJU de 28.10.2003, v.u; STJ, RHC 13.525/PR, 5ª Turma, j. 6.3.2003, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 31.3.2003, v.u.
2. Decisões do Supremo Tribunal Federal
A matéria analisada já foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, e a E. 2ª Turma vinha entendendo que a eiva decorrente da não-aplicação do procedimento regulado na Lei 10.409/2002 para a instrução criminal (art. 38 e seguintes), ensejava nulidade relativa, cumprindo à parte interessada alegar e provar a existência de prejuízo decorrente do desvio do procedimento. A respeito, confira-se:
Habeas corpus. Processo penal. Tráfico ilícito de entorpecentes. Procedimento. Lei 10.409/2002. Nulidade. Prejuízo.
1. A demonstração de prejuízo, a teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que, conforme já decidiu a Corte, “o âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades – pas de nullité sans grief – compreende as nulidades absolutas” (HC 81.510, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, unânime, DJ de 12.4.2002). 2. Ordem indeferida (STF, HC 85.155/SP, 2ª Turma, Rela. Min. Ellen Gracie, j. 22.03.2005, DJ 15.04.2005, p. 00038, Ement. Vol. 02187-03 p.00568).
Também reclamando demonstração de prejuízo: STF, HC 84.714/MG, 2ª Turma, Rela. Mina. Ellen Gracie, j. 14.12.2004, DJ 18.02.2005, p. 00045, Ement. Vol. 02180-04, p. 00925.
Entretanto, em julgamento datado de 13 de dezembro de 2005, por inobservância do art. 38 da Lei 10.409/2002 a mesma 2ª Turma, por maioria, “deu provimento a recurso ordinário em habeas corpus interposto por condenado pela prática do crime de tráfico de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12), cuja citação para oferecimento de defesa prévia, por escrito, no prazo de 10 dias, não fora realizada. Entendeu-se que não se assegurara ao recorrente o exercício do contraditório prévio determinado pelo aludido dispositivo legal (Lei 10.409/2002: ‘Art. 38. Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias…;’). Vencida a Min. Ellen Gracie, que negava provimento ao recurso por considerar não demonstrado o prejuízo à defesa, uma vez que a matéria que se pretendia alegar naquela fase fora deduzida em outros momentos processuais. RHC concedido para invalidar o procedimento penal, desde o recebimento da denúncia, inclusive, determinando a expedição de alvará de soltura” (STF, RHC 86680/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, 13.12.2005. Informativo nº 413).
A seu turno a E. 1ª Turma vem reconhecendo nulidade absoluta em processo onde não foi aplicado o procedimento determinado pela Lei 10.409/2002 para a instrução criminal. A esse respeito transcrevemos a ementa que segue:
“Defesa – Entorpecentes – Nulidade por falta de oportunidade para a defesa preliminar prevista no art. 38 da L. 10.409/02: demonstração de prejuízo: prova impossível (HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926; HC 85.443, 1ª T., 19.4.05, Pertence, DJ 13.5.05). Não bastassem o recebimento da denúncia e a superveniente condenação do paciente, não cabe reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada a oportunidade legal para a defesa preliminar, a denúncia não teria sido recebida (STF, HC 84.835/SP, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 9.8.2005, DJ 26.8.2005, p. 00028, Ement. Vol. 02202-2, p. 00366).
Interessante ressaltar que no julgamento de outro processo de que foi relator o Min. Sepúlveda Pertence, ficou decidido que a demonstração do prejuízo, sempre que possível, é indispensável (STF, HC 86.022/SP, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 23.8.2005, DJ 28.10.2005, p. 00050, Ement. Vol. 02211-02, p. 00242).
Para o reconhecimento da nulidade, segundo o entendimento acima indicado, há que se ponderar sobre a existência de prejuízo demonstrável e prejuízo de prova impossível.
3. Conclusão
No Superior Tribunal de Justiça, a 5ª Turma vem entendendo que a não-aplicação do procedimento fixado na Lei 10.409/2002 (Lei Antitóxicos) para a instrução criminal gera apenas nulidade relativa; para a 6ª Turma a nulidade é absoluta.
No Supremo Tribunal Federal a 1ª e a 2ª Turma vêm entendendo que a eiva acarreta nulidade absoluta.
Em outra ocasião já havíamos alertado para a real possibilidade de anulação de um número incontável de processos na Superior Instância, por ausência de aplicação do procedimento previsto na Lei 10.409/2002 para a instrução criminal.[3]
Em muitos casos a advertência nada adiantou.
Agora temos a constatação do resultado.
[1] Renato Marcão. Tóxicos – Leis 6.368/76 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas. 3ª ed., são Paulo Saraiva, 2005; Renato Marcão, Novas considerações sobre o procedimento e a instrução criminal na Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos), Revista Meio Jurídico, ano V, n.º 52, junho de 2002, pág. 18/28; “Plural”: Boletim Informativo do CEAF/Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, ano 6, n.º 34 – março-abril/2002, p. 13; RT 800/500; http://www.direitopenal.adv.br; http://www1.jus.com.br; http://www.bpdir.adv.br; http://www.juridica.com.br; http://www.apoena.adv.br; http://www.suigeneris.pro.br; http://www.emporiodosaber.com.br; http://www.mundojuridico.adv.br/penal.html; http://www.direitonet.com.br; http://www.ibccrim.org.br; http://www.saraivajur.com.br; Renato Marcão. Anotações pontuais sobre a Lei 10.409/2002 (Nova Lei Antitóxicos) – Procedimento e Instrução criminal; RT 797/493; Renato Marcão. Legislação Antitóxicos – Novos problemas iminentes (Projeto de Lei 6.108/2002, que altera a Lei 10.409/2002), www.ibccrim.org.br, 03.05.2002; http://www.mp.sp.gov.br; .htm; www.direitopenal.adv.br; www1.jus.com.br; www.mundojuridico.adv.br; www.juridica.com.br; www.saraivajur.com.br; http://www.direitonet.com.br.
[2] Renato Marcão. STJ anula processo em razão da não aplicação do procedimento previsto na Lei 10.409/2002. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 21.12.2005.
[3] Renato Marcão. Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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