Resumo: A tímida atuação do Poder Público em cumprir com o dever assegurado na Constituição Federal para com a defesa e proteção do meio ambiente equilibrado e sadio atenta não apenas contra direitos fundamentais das presentes, mas também das futuras gerações. Os recursos hídricos, embora presentes em grande quantidade no Brasil, não recebem o tratamento que deveria ser conferido a bens de tamanha relevância para o progresso e desenvolvimento, porque essenciais à vida. A deficiência do saneamento básico, a ausência de uma rede de esgotos ampla e do adequado tratamento desses efluentes, e a precariedade na distribuição de água potável, são atualmente agravadas pelos efeitos da mudança do clima, causada principalmente pelo aquecimento global; não bastasse, há a sazonal exabundância na vazão de cursos d’água, que penetram em áreas urbanas e resultam em inegável prejuízo à qualidade de vida de toda a sociedade. Entretanto, se o excesso ocasional de água dos rios fosse recolhido antes de invadidas as áreas urbanas e armazenado, poderia ser adequadamente aproveitado, com a devida integração da malha hidrográfica, para manter um fluxo mínimo nas bacias nacionais.
Palavras-chave: interligação entre bacias hidrográficas; bacia hidrográfica; meio ambiente; direito ambiental; direitos fundamentais.
Abstract: The timid government performance on complying with the obligation secured by the Constitution for defense and protection of the carefully balanced and healthy environment attempts not only against the fundamental rights of the present generations, but also of the future ones. The water resources, though being present in large quantities in Brazil, do not receive the treatment that should be given to a good of great importance to the progress and development, as essential to life. The basic sanitation deficiency, the lack of a large sewers network and of a good treatment of these effluents, and the precariousness in the drinking water distribution, are currently exacerbated by the climate change effects, which are mainly caused by global warming; not enough, there is the seasonal stream flow superabundance, which penetrate in urban areas resulting in an undeniable injury to the life quality of whole society. However, if the occasional water excess from rivers was collected and stored before invading urban areas, it could be properly utilized, with a suitable hydrographic network integration, to maintain a minimum flow in national basins.
Keywords: interconnection between river basins; river basin; environment; environmental law; fundamental rights.
Sumário: 1- Introdução; 2- A garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado; 2.1- Da eficácia do direito fundamental social de tutela ambiental; 2.1.1- Da Lei de Responsabilidade Ambiental; 2.2- Dos princípios aplicáveis em matéria ambiental; 2.2.1- Princípio do desenvolvimento sustentável; 2.2.2- Princípio da prevenção; 2.2.3- Princípio da precaução; 2.2.4- Princípio do poluidor-pagador; 3- Dos recursos hídricos; 3.1- A quem pertencem os recursos hídricos; 3.2- Da transposição do Rio São Francisco; 3.3- Da interligação das bacias hidrográficas para a transferência do excedente; 4- Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A desídia do Poder Público na adoção de políticas que tratem os recursos hídricos com o grau de grandeza de um direito fundamental resulta em clara violação aos preceitos estabelecidos pelos constituintes de 1988 no art. 225 da Carta Magna. Não há, por exemplo, uma Lei de Responsabilidade Ambiental que estabeleça objetivos a serem alcançados e gastos que devem ser observados pela Administração Pública, com sanções aos gestores. Disso resulta o agravamento das dificuldades com as modificações climáticas previstas e aguardadas para os próximos anos.
Um meio ambiente equilibrado, que propicie qualidade de vida às gerações presentes e futuras, reclama a adoção de políticas públicas efetivas, que verdadeiramente corroborem na solução do problema de escassez de água sazonal em algumas regiões e crônico no semiárido. Mas não só, pois é necessário, também, amainar os dissabores e transtornos causados pelo transbordamento de alguns rios, que provocam enchentes e inundações. Essas necessidades prementes não ilidem, evidente, a indispensável universalização da água potável, da rede de esgotos e total tratamento desses resíduos antes de lançá-los no ambiente.
Com relação à superabundância sazonal na vazão de alguns cursos d’água, que invadem regiões urbanas e inundam e encharcam áreas regularmente secas, há um inegável passivo hídrico ambiental. Todavia, há também um ativo, que hodiernamente é inutilizado. Enfrentada a questão sob o prisma de um direito humano fundamental, que é o direito ao meio ambiente equilibrado, e considerando a relevância dos valores envolvidos, notadamente a qualidade de vida, o ativo hídrico propiciado pelo excesso de vazão deve ser aproveitado para, consequentemente, reduzir o passivo a níveis aceitáveis, minimizando os efeitos hodiernamente percebidos.
Isso porque a água presente no excesso da vazão, se coletada antes do transbordamento, diminuiria o passivo, podendo até mesmo anulá-lo. E, por outro lado, essa água coletada não seria simplesmente retirada de um curso d’água em sua vazão média, prejudicando o equilíbrio do ecossistema do doador; pelo contrário, pois seria uma água que não traria qualquer benefício àquele ecossistema e, ao final, seria destinada ao mar.
O ativo hídrico, assim, seria constituído pelo aproveitamento da água descartável de cursos d’água que, ocasionalmente, experimentam excessiva elevação na vazão e provocam inundações e enchentes em áreas comumente secas, causando danos e prejuízos imensuráveis. Esse aproveitamento, se por um lado revela capacidade de reduzir os malefícios decorrentes de fortes chuvas e de evitar o nefasto efeito das cheias de rios, por outro constituirá em fonte idônea, sob o aspecto de impactos ambientais, na constituição de depósitos hábeis a suprir a necessidade de outras bacias, como a do semiárido, e daquelas que, sazonalmente, padecem pela estiagem.
Daí porque a integração das bacias hidrográficas, com a consequente captação do excesso de vazão dos cursos d’água e sua armazenagem, constitui pressuposto relevante para assegurar melhoria na qualidade de vida em tempos de aquecimento global.
2. A GARANTIA DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
Meio ambiente, nos termos do art. 3º, I, da Lei nº 6.938/81, é definido como “o conjunto de condições, leis influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Esse conceito foi recepcionado pela atual Constituição porque, como lembra Fiorillo (2005, p. 19), “a Carta Magna de 1988 buscou tutelar não só o meio ambiente natural, mas também o artificial, o cultural e o do trabalho”.
Destaca Abraão (2013, p. 1107) que, antes de 1988, nunca uma Constituição nacional havia estabelecido um “capítulo sobre o meio ambiente”, e que essa inserção na Carta Política revela “a importância da questão que, já há algum tempo, preocupa a população do planeta”, concluindo “a questão ambiental é de complexidade mundial, obrigando que as nações optem por um sistema normativo e fiscalizatório eficiente”[1].
Na verdade, são acentuadas as críticas doutrinárias sobre a “expressão meio ambiente, afirmando que ambos os termos seriam sinônimos e, portanto, haveria uma redundância”, como aponta Fernandes (2013, p. 1230-1231), assentando que, entretanto, “há quem atribua à expressão sentido mais amplo, mais rico devido à conexão de valores”[2]. Para o autor, o signo de meio ambiente
“Engloba, portanto, o meio ambiente natural (ou físico), formado pelo solo, água, ar atmosférico, energia, flora, fauna (art. 225, da CR/88); o meio ambiente cultural (art. 215 e 216, da CR/88), que se liga à história e cultura de um povo, revelando suas raízes e identidades (na forma do patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico); o meio ambiente artificial (ou humano), que é o espaço urbano construído pelo homem (edificações, ruas, parques, áreas verdes, praças etc); e o meio ambiente do trabalho, como espécie de meio ambiente artificial, mas que se destaca pela autonomia, sendo o local no qual o trabalhador exerce sua atividade (art. 196 e ss., da CR/88)”. (FERNANDES, 2013, p. 1230-1231) (destaques no original)
Embora sintetizado num único artigo na Constituição Federal, no Capítulo VI, denominado “Do Meio Ambiente”, inserido no Título VIII, “Da Ordem Social”, sua redação levou Silva (2012, p. 436) assentar que a qualidade ambiental “se transformara num bem, num patrimônio, num valor comum, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornaram num imperativo para o Poder Público, para assegurar a saúde, o bem estar do homem e as condições de seu desenvolvimento”, ou seja, “para assegurar o direito fundamental à vida”.
“CAPÍTULO VI
DO MEIO AMBIENTE
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; […]
III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; […]
V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. […]
§ 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.[…]. (destacamos)
O termo utilizado pelos constituintes de 1988 para identificar, no caput do art. 225, qual o meio ambiente tutelado, qualificando-o como aquele “essencial à sadia qualidade de vida”, revela dois objetos de proteção ambiental, como destaca José Afonso da Silva (1994, p. 54), “um imediato, que é a qualidade do meio ambiente, e outro mediato, que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população, que se vêm sintetizando na expressão da qualidade de vida”. O escopo dessa interação, para Cunha Júnior (2013, p. 1266), é propiciar “uma visão unitária do meio ambiente compreensiva dos elementos naturais e culturais”, ressaltando que “esse conceito de meio ambiente não se reduz a ar, água, terra, mas deve ser definido como o conjunto de condições de existência humana, que integra e influencia o relacionamento entre os homens, sua saúde e seu desenvolvimento”[3].
“O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, reconhecido na Constituição Federal em capítulo situado no título da ordem social, é um direito fundamental, na categoria direito social, qualificado pela doutrina como direito de terceira geração. Nem por isso se lhe negue o caráter, também, individual. Cuida-se, pois, de um direito simultaneamente considerado direito social e individual, uma vez que a realização individual deste direito fundamental está intrinsecamente ligada à sua realização social, por isso mesmo considerada transindividual.” (CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 1266) (destaque no original)
O equilíbrio ambiental, “do ponto de vista ecológico, consubstancia-se na conservação das propriedades e das funções naturais desse meio”, adverte Machado (2013, p. 65-66), de sorte a permitir não apenas a existência, mas também a evolução e o desenvolvimento de todos os seres vivos. Para o professor, “Ter direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado equivale a afirmar que há um direito a que não se desequilibre significativamente o meio ambiente”, lembrando que “esse estado de equilíbrio não visa à obtenção de uma situação de estabilidade absoluta, em que nada se altere”, mas sim “um desafio científico, social e político permanente”, no qual sempre haja a possibilidade de “aferir e decidir se as mudanças ou inovações são positivas ou negativas” (MACHADO, 2013, p. 66).
Desse equilíbrio decorre o direito à qualidade de vida sadia, que não se revela apenas “numa contraposição a não ter doenças diagnosticadas no presente” (MACHADO, 2013, p. 70), sendo imprescindível levar “em conta o estado dos elementos da Natureza- águas, solo, ar, flora, fauna e paisagem- para aquilatar se esses elementos estão em estado de sanidade e de seu uso advenham saúde ou doenças e incômodos para os seres humanos”. Aliás, o Pleno do STF já deliberou, com relatoria do Ministro Menezes de Direito, que “O meio ambiente não é incompatível com projetos de desenvolvimento econômico e social que cuidem de preservá-lo como patrimônio da humanidade. Com isso, pode-se afirmar que o meio ambiente pode ser palco para a promoção do homem todo e de todos os homens”.
2.1 DA EFICÁCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL DE TUTELA AMBIENTAL
Os direitos fundamentais, como salienta Gilmar Ferreira Mendes (2011, p. 667), possuem, “além de uma proibição de intervenção, um postulado de intervenção”, significando “não apenas uma proibição de excesso, mas uma proibição de proteção insuficiente”. O autor arremata:
“Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades individuais, impliquem tanto direitos a prestações em sentido estrito (positivos) quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandem o emprego de recursos públicos para a sua garantia, é a dimensão prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal argumento contrário à sua judicialização. A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornar exigíveis. Nessa perspectiva, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação de poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível”. (MENDES, 2011, p. 667-668)
De outro turno, ao discorrer sobre a eficácia dos direitos fundamentais, Silva (2013, p. 469- 470) assenta que “a garantia das garantias consiste na eficácia e aplicabilidade imediata das normas constitucionais”, porque os direitos, as liberdades e as prerrogativas caracterizadas como direitos fundamentais “só cumprem sua finalidade se as normas que as expressem tiverem efetividade”, ressalvadas as excepcionais situações de impossibilidade absoluta:
“Sua incidência só por si, contudo, estabelece uma ordem aos aplicadores da Constituição no sentido de que o princípio é o da eficácia plena e a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos, de tal sorte que só em situações de absoluta impossibilidade se há de decidir pela necessidade de normatividade ulterior de aplicação.
Por isso, revela-se, por seu alto sentido político, como eminente garantia política de defesa da eficácia jurídica e social da Constituição”. (SILVA, 2013, p. 469- 470)
Todavia, o Direito não é estanque, e a jurisprudência nacional, acompanhando a melhor doutrina, entende que o alcance dos direitos fundamentais não deve ser menor do que aquele adequado para atender as necessidades da sociedade em um determinado momento. Sem essa interpretação consentânea da Carta Política, os conflitos imanentes da própria evolução social não seriam enfrentados com justiça; mais que isso, os fundamentos pretendidos pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, como a dignidade da pessoa humana e a promoção do bem comum, seriam lançados meramente à condição de normas programáticas (POLÍZIO JÚNIOR, 2014², p. 98-99). Oportuno escólio de Barroso (2013, p. 334-335):
“A nova interpretação constitucional surge para atender às demandas de uma sociedade que se tornou bem mais complexa e plural. Ela não derrota a interpretação tradicional, mas vem para atender às necessidades deficientemente supridas pelas fórmulas clássicas. Tome-se como exemplo o conceito constitucional de família. Até a Constituição de 1988, havia uma única forma de se constituir família legítima, que era pelo casamento. A partir da nova Carta, três modalidades de família são expressamente previstas no texto constitucional: a família que resulta do casamento, a que advém das uniões estáveis e as famílias monoparentais. Contudo, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passou a existir uma nova espécie de família: a que decorre de uniões homoafetivas. Veja-se, então, que onde havia unidade passou a existir uma pluralidade.
A nova interpretação incorpora um conjunto de novas categorias, destinadas a lidar com as situações mais complexas e plurais […]. Dentre elas, a normatividade dos princípios (como dignidade da pessoa humana, solidariedade, segurança jurídica), as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação jurídica. Nesse novo ambiente, mudam o papel da norma, dos fatos e do intérprete. A norma, muitas vezes, traz apenas um início de solução, inscrito em um conceito indeterminado ou em um princípio. Os fatos, por sua vez, passam a fazer parte da normatividade, na medida em que só é possível construir a solução constitucionalmente adequada a partir dos elementos do caso concreto. E o intérprete, que se encontra na contingência de construir adequadamente a solução, torna-se coparticipante do processo de criação do Direito”.
Essa evolução na exegese do Direito é essencial para que se possa adequar a vida em sociedade com o ordenamento jurídico. As normas devem adequar-se à sociedade, e não esta àquelas. Evidente que são dos legisladores, em um Estado Democrático de Direito, a atribuição republicana de criar, revisar e revogar leis; todavia, na hipótese de inércia do Poder Legislativo no cumprimento de suas atribuições, cabe ao Poder Judiciário, no exercício de suas também republicanas atribuições, extrair da norma um sentido que atenda aos anseios da sociedade, notadamente quando busca fundamento em princípios constitucionais ou, mesmo, compelir a Administração Pública a adotar medidas necessárias atender direitos estabelecidos na Carta Maior. Daí porque se diz que “a disposição do artigo 225 da Carta Regente constitui exemplo de direito humano fundamental, fazendo jus, à sua proteção, de todos os instrumentos e mecanismos disponíveis para conferir-lhe a eficácia necessária na consecução de seus objetivos” (POLÍZIO JÚNIOR, 2014¹, p. 99). Nesse sentido tem deliberado o STF, como no RE nº 577.996 AgR/SP, entendendo que “O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes”.
2.1.1 Da Lei de Responsabilidade Ambiental
À míngua de um diploma normativo que imponha aos entes da Federação metas a serem atingidas e valores que devam ser investidos em matéria ambiental, à semelhança da Lei Complementar nº 101 em matéria de responsabilidade na gestão fiscal, a eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais sociais é imediata. E em situações onde o objeto tutelado constitui essencialidade à vida e é finito, como a água, não é razoável que a ausência de políticas públicas, ou mesmo de recursos econômicos, obste do Poder Judiciário a imposição de medidas que assegurem o adequado e racional aproveitamento desse recurso natural.
2.2 DOS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS EM MATÉRIA AMBIENTAL
Leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 958-959) que princípio constitui “mandamento nuclear de um sistema”, funcionando como “verdadeiro alicerce”, que alcança as diversas normas “compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. O autor é categórico:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Isso porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada” (MELLO, 2010, p. 959)
Com relação ao meio ambiente, inúmeros são os princípios reconhecidos pelos estudiosos, tamanha a proeminência da temática envolvida. Desse rol, destacamos os seguintes: i. Princípio do desenvolvimento sustentável; ii. Princípio da prevenção; iii. Princípio da Precaução; iv) Princípio do poluidor- pagador.
2.2.1 Princípio do desenvolvimento sustentável
Utilizada inicialmente na Conferência Mundial de Meio Ambiente de 1972, em Estocolmo, foi adotada pelas demais conferências ambientais desde então; na Constituição Federal de 1988, a idéia de desenvolvimento sustentável está presente quando, na parte final do caput do art. 225, está dito que, ao direito de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto o Poder Público quanto a coletividade possuem o dever de defender e preservar, para as gerações atuais e as que vierem a existir (FIORILLO, 2005, p. 27). De fato, na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, no seu Princípio 3º ficou assentado que “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras” (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE).
A característica principal do princípio, aponta Machado (2013, p. 68), “é a de que o desequilíbrio ecológico não é indiferente ao Direito, pois o Direito Ambiental realiza-se somente numa sociedade equilibrada ecologicamente”, de modo que “Cada ser humano só fruirá plenamente de um estado de bem-estar e de equidade se lhe for assegurado o direito fundamental de viver num ambiente ecologicamente equilibrado”.
2.2.2 Princípio da prevenção
O escopo do princípio da prevenção é prevenir danos de uma ação cujas conseqüências são conhecidas, daí Machado (2013, p. 122) afirmar que a informação organizada e a pesquisa lhe são essenciais. O princípio “deve levar à criação e à prática de política pública ambiental, através de planos obrigatórios” (MACHADO, 2013, p. 123).
Isso porque a prevenção é preferível à posterior responsabilização pelo dano causado ao meio ambiente (BENJAMIN, 1993, p. 227). A restauração de um ambiente equilibrado e sadio, quando possível, demanda tempo e elevados recursos, prejudicando as presentes e as futuras gerações da fruição desse direito fundamental, de sorte que evitar o surgimento do dano é melhor do que, embora previsível, deixá-lo ocorrer, para somente depois adotar as medidas necessárias para o restituição do status quo ante. A reparação do dano, a indenização pelo prejuízo e a punição pela conduta lesiva ao ambiente devem constituir a ultima ratio do Direito Ambiental (NOGUEIRA, 2004, p. 198).
2.2.3 Princípio da precaução
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, fez referência expressa à precaução na redação do seu Princípio 15:
“Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE) (destacamos)
Em que pese a divergência doutrinária, pois para alguns estudiosos o princípio da precaução constitui espécie ou gênero do princípio da prevenção, como ensinam Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2005, p. 39-40) e Edis Milaré (2004, p. 143- 144), outros, como Machado (2013, p. 108- 109), entendem que a incerteza do dano ambiental, ou seja, a existência de “dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção”, daí porque o princípio da precaução deve ser aplicado “ainda quando existe a incerteza, não se aguardando que esta se torne certeza”.
Dessarte, o princípio da precaução é adotado quando não há o exato conhecimento sobre as conseqüências de determinado ato ou quando ausente a absoluta certeza científica; nessas hipóteses, inexiste justificativa para obstar a adoção das medidas necessárias para impedir a degradação, ainda que esta só exista no campo da possibilidade.
Para Machado (2013, p. 109-110), qualquer “risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” não constituem temas que possam ser relegados pelo Poder Público, porque “A Constituição Federal manda que o Poder Público não se omita no exame das técnicas e métodos utilizados nas atividades humanas que ensejem risco para a saúde humana e o meio ambiente”, concluindo que:
“Controlar o risco é não aceitar qualquer risco. Há riscos inaceitáveis, como aquele que coloca em perigo valores constitucionais protegidos, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, os processos ecológicos essenciais, o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, a diversidade e a integridade do patrimônio biológico- incluindo o genético- e a função ecológica da fauna e flora”. (MACHADO, 2013, p. 109- 110)
Ao discorrer sobre os custos das medidas preventivas, Machado (2013, p. 110- 111) ressalva que “O custo excessivo deve ser ponderado de acordo com a realidade econômica de cada País, pois a responsabilidade ambiental é comum a todos os Países, mas diferenciada”, devendo optar-se, havendo dúvida sobre sua implantação, “pela solução que proteja imediatamente o ser humano e conserve o meio ambiente (in dubio pro salute ou in dubio pro natura)”.
2.2.4 Princípio do poluidor-pagador
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, fez referência ao tema na redação do seu Princípio 16:
“As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.” (destacamos)
Oportuna a síntese de Fiorillo (2005, p. 30):
“Podemos identificar no princípio do poluidor-pagador duas órbitas de alcance: a) busca evitar a ocorrência de danos ambientais (caráter preventivo); e b) ocorrido o dano, visa sua reparação (caráter repressivo).
Desse modo, num primeiro momento, impõe-se ao poluidor o dever de arcar com as despesas de prevenção dos danos ao meio ambiente que a sua atividade possa ocasionar. Cabe a ele o ônus de utilizar os instrumentos necessários à prevenção dos danos. Numa segunda órbita de alcance, esclarece este princípio que, ocorrendo danos ao meio ambiente em razão da atividade desenvolvida, o poluidor será responsável pela sua reparação”. (destaques no original)
Já Paulo Affonso Leme Machado (2015, p. 94) adota, ao lado do princípio do poluidor-pagador, o do usuário-pagador. Para o autor, a utilização dos recursos naturais pode ser gratuita como onerosa, isso porque “A raridade do recurso, o uso poluidor e a necessidade de prevenir catástrofes, entre outras coisas, podem levar à cobrança do uso dos recursos naturais”. Ele explica:
“O princípio do usuário-pagador contém também o princípio poluidor-pagador, isto é, aquele que obriga o poluidor a pagar a poluição que pode ser causada ou que já foi causada.
O uso gratuito dos recursos naturais tem representado um enriquecimento ilegítimo do usuário, pois a comunidade que não usa do recurso ou que o utiliza em menor escala fica onerada. O poluidor que usa gratuitamente o meio ambiente para nele lançar os poluentes invade a propriedade pessoal de todos os outros que não poluem, confiscando o direito de propriedade alheia”.
Não constitui punição o princípio do usuário-pagador, “pois mesmo não existindo qualquer ilicitude no comportamento do pagador ele pode ser implementado”, ressalta Machado (2013, p. 95- 96), que dispõe:
“Assim, para tornar obrigatório o pagamento pelo uso do recurso ou pela sua poluição não há necessidade de ser provado que o usuário e o poluidor estão cometendo faltas ou infrações. O órgão que pretenda receber o pagamento deve provar o efetivo uso do recurso ambiental ou a sua poluição. A existência de autorização administrativa para poluir, segundo as normas de emissão regularmente fixadas, não isenta o poluidor de pagar pela poluição por ele efetuada.”
3. DOS RECURSOS HÍDRICOS
Os recursos hídricos presentes no território nacional são imensos, conforme comprova levantamento da Agência Nacional de Águas- ANA, em 2007, transcrito na parte em que interessa:
“No País, a precipitação média anual é de 1.797 mm. As maiores precipitações anuais são observadas nas regiões Amazônica (2.239 mm), Tocantins/ Araguaia (1.837 mm), Atlântico Nordeste Ocidental (1.790 mm) e Uruguai (1.785 mm); ao passo que os menores valores ocorrem nas regiões hidrográ- ficas do São Francisco (1.037 mm), Atlântico Leste (1.058 mm), Parnaíba (1.117 mm) e Atlântico Nordeste Oriental (1.218 mm). […]
A vazão média anual dos rios em território brasileiro é de 179 mil m3/s, valor que corresponde a aproximadamente 12% da disponibilidade mundial de água doce. A região hidrográfica Amazônica detém 73,6% dos recursos hídricos superficiais.
Ou seja, a vazão média desta região é quase três vezes maior que a soma das vazões das demais regiões hidrográficas. Considerando a contribuição de vazões em território estrangeiro, a vazão média anual total atinge valor da ordem de 267 mil m3/s, que corresponde a 18% da disponibilidade mundial. A segunda maior região, em termos de vazão média, é a do Tocantins/Araguaia, com 13.624 m3/s (7,6%), seguida da região do Paraná, com 11.453 m3/s (6,4%). As bacias com menor vazão são, respectivamente: Parnaíba, com 763 m3/s (0,4%); Atlântico Nordeste Oriental, com 779 m3/s (0,4%) e Atlântico Leste, com 1.492 m3/s (0,8%). […]
Em épocas de estiagem, a vazão no País chega a 85 mil m3/s (vazão com permanência de 95%). Considerando as séries temporais de vazões existentes no Brasil, o período considerado crítico, ou seja, aquele correspondente às menores vazões observadas, estende-se de 1949 a 1956. Com exceção da região hidrográfica do São Francisco, que teve o seu período crítico entre 1999 a 2001, quando ocorreu racionamento de energia elétrica em todo o País. As maiores vazões de estiagem (vazão com permanência de 95%) estão nas regiões Amazônica, Paraná e Tocantins/Araguaia, ao passo que as menores estão nas bacias do Atlântico Nordeste Oriental, Parnaíba e Atlântico Leste. As bacias localizadas em terrenos cristalinos, com regime de chuva irregular, possuem vazões de estiagem muito baixas, em geral, inferiores a 10% da vazão média.” (ANA, 2007, p. 113) (destacamos)
Os recursos hídricos, todavia, não são aproveitados nem geridos adequadamente. Bem ressalvam Bittencourt e Pereira (2014, p. 98) que “o nítido e acelerado aumento da população e o desenvolvimento industrial e tecnológico têm trazido graves prejuízos ambientais”, notadamente “relacionados à água, tanto através de esgotos domésticos, como de escoamentos industriais e da chuva” em áreas urbanas, por vezes se misturando ao lixo e poluindo “de forma generalizada e alarmante”, e que há, ainda, “a poluição causada por acidentes ecológicos, que podem ser gigantescos e atingir diversas comunidades e localidades ao mesmo tempo”. Não se ignora, pois, que “enquanto o índice de atendimento da população no abastecimento de água atingiu 81,2% em 2008, o atendimento na coleta de esgoto foi de apenas 43,2%”, dos quais 66% recebia tratamento (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2010, p. 6-7) e que, dos 100 maiores municípios brasileiros, “57 investem 20% ou menos do que arrecadam” em saneamento básico[4] (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2014, p. 29); tampouco que da água tratada para o abastecimento humano quase 35% se perca somente na distribuição (BARROS e THOMAS, 2015, p. 70)[5].
Não bastasse a degradação ambiental, que torna a água imprópria para consumo e revela o subaproveitamento dos recursos hídricos, as modificações climáticas globais agravam a questão da seca no semiárido brasileiro e reduzem os índices pluviométricos em inúmeros Estados, sobremaneira nos da região Sudeste[6]; sazonalmente, ademais, inúmeros Estados sofrem com eventuais transbordamentos de cursos d’água ao longo dos anos[7], resultando em grandes transtornos sociais e em elevado prejuízo à economia[8]. Essa situação gera uma oscilação no volume dos cursos d’água: nas regiões que recebem maior quantidade pluvial, ultrapassa a média, e naquelas que recebem menor quantidade de chuvas, fica muito aquém; existem regiões, ainda, que sofrem as consequências de um aumento da vazão pelo degelo da Cordilheira dos Andes e pelas chuvas, antes de ingressaram no território nacional[9]. E na região em que tradicionalmente há escassez de chuvas, como no semiárido, empioram as dificuldades.
Daí porque, entre 1990 e 2010, aproximadamente 86 milhões de pessoas, direta ou indiretamente, sofreram, no Brasil, por conseqüência da seca ou das enchentes, sendo que 5,5 milhões “foram diretamente expostas a esses desastres”; nesse período, “1.780 pessoas morreram nos eventos que ocasionaram os desastres”, mas “o número de mortes efetivamente causadas por eles chega a 460 mil, caso se incluam doenças e outros males desencadeados pelas tragédias” (LISBOA, 2013)[10]. E sem reversão do aquecimento global, a tendência é de agravamento dessa situação:
“Os números mostram que, até 2100, as mudanças seriam consideráveis. A previsão é que o clima local ficaria muito mais seco que o atual, com redução de até 45% das chuvas, e mais quente, com aumento de temperatura variando de 5°C a 6°C – compatível com os piores cenários produzidos pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. O levantamento revela, no entanto, que o problema não está tão distante quanto parece. Os primeiros efeitos já seriam sentidos nos próximos 30 anos, quando as chuvas poderão ser reduzidas em 10%.
Na caatinga, a situação seria semelhante, indicando que as recentes secas registradas no Nordeste devem estar incluídas num contexto maior de mudanças climáticas. Nas próximas três décadas, as chuvas seriam reduzidas em até 20% nessa área já tão árida. Esse percentual de queda poderia chegar a alarmantes 50% até o fim do século, com sério agravamento do déficit hídrico do Nordeste. A tendência da redução de chuvas e aumento das temperaturas também aparece para o cerrado, o Pantanal e a porção da Mata Atlântica no Nordeste”. (O GLOBO)
3.1 A QUEM PERTENCEM OS RECURSOS HÍDRICOS
A Constituição Federal, no art. 20, III, dispõe que, dentre outros, são bens da União “os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais”.
Já no art. 26, I, da Carta Magna, estão arrolados, dentre os bens estaduais, “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. Como explica Mercier (2013, p. 200- 2001):
“As águas fluentes são os rios. Rio é toda corrente contínua de água mais ou menos caudalosa, que flui em direção a outro rio, ao mar ou a um lago. A Constituição da República adotou o critério da situação territorial para separar os rios de domínio da União dos rios dos Estados. Assim, os rios que banham mais de um Estado, sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham são rios de domínio da União (art. 20, III, CF), e os rios que tenham sua nascente e foz apenas no território de um Estado Federado pertencem a esse Estado Federado.”
Ao dispor sobre bens públicos, o Código Civil estabelece, no art. 99, I, que, dentre eles, estão “os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças”. Essa disposição, aliás, já estava presente no art. 66, I, da revogada legislação civil de 1916.
A Lei nº 9.433/97 reconhece que água é um bem público:
“Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I – a água é um bem de domínio público;
II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais;
IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;
V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.” (destacamos)
A água, portanto, “é um dos elementos do meio ambiente”, fazendo “com que se aplique à água o enunciado do art. 225 da CF”, lembra Machado (2013, p. 499), que conclui:
“Salientamos as conseqüências da conceituação da água como “bem de uso comum do povo”: o uso da água não pode ser apropriado por uma só pessoa física ou jurídica, com exclusão absoluta dos outros usuários em potencial; o uso da água não pode significar a poluição ou a agressão desse bem; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado e a concessão ou a autorização (ou qualquer tipo de outorga) do uso da água deve ser motivada ou fundamentada pelo gestor público.” (MACHADO, 2013, p. 500)
3.2 DA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
Inúmeros eram os argumentos favoráveis e contrários às obras para que as águas do Rio São Francisco fossem transpostas para outras regiões do semiárido brasileiro (PALLADINO, 2005). Todavia, com a aprovação da Resolução nº 47, de 17 de janeiro de 2005, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos concedeu autorização para início dos trabalhos. No endereço eletrônico do Ministério da Integração Nacional está posto que
“O Projeto de Integração do Rio São Francisco é a mais relevante iniciativa do governo federal dentro Política Nacional de Recursos Hídricos. O objetivo é garantir a segurança hídrica para mais de 390 municípios Nordeste Setentrional, onde a estiagem ocorre freqüentemente.
A região Nordeste possui 28% da população brasileira e apenas 3% da disponibilidade de água, o que provoca grande irregularidade na distribuição dos recursos hídricos, já que o rio São Francisco apresenta 70% de toda a oferta regional.
As bacias beneficiadas pela água do rio São Francisco serão: Brígida, Terra Nova, Pajeú, Moxotó e bacias do Agreste, em Pernambuco; Jaguaribe e Metropolitanas, no Ceará; Apodi e Piranhas-Açu, no Rio Grande do Norte; Paraíba e Piranhas, na Paraíba. Essas bacias têm uma oferta hídrica per capita bem inferior à considerada como ideal pela Organização das Nações Unidas (ONU), que é de 1.500 m3/hab/ano. A disponibilidade no Nordeste Setentrional por habitante ao ano é de 450 m3, em média
Este empreendimento, além de recuperar 23 açudes, vai construir outros 27 reservatórios, que funcionarão como pulmões de água para os sistemas de abastecimento do agreste, fornecendo 6 m³ por segundo.”
Entrementes, em que pese os inquestionáveis benefícios para as populações que terão acesso à água por consequência da transposição, a obra consiste na retirada de certa quantidade de água de um curso e na sua transferência para outro curso[11]. Ou seja, da regular vazão do Rio São Francisco será extraído constantemente determinado volume suficiente para atender grande parcela do semiárido.
3.3 DA INTERLIGAÇÃO DAS BACIAS HIDROGRÁFICAS PARA A TRANSFERÊNCIA DO EXCEDENTE
Afloram, ocasionalmente, notadamente nos períodos de forte estiagem nas regiões mais populosas, ideias de transferir água dos grandes rios da região Amazônica para suprir a escassez desse recurso essencial à vida. Como declarou a Superintendência Regional do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), seria possível a transferência de 1% da vazão do Rio Amazonas para as regiões Sudeste e Nordeste, o que supriria a necessidade de abastecimento: “Os grandes rios estão longe das grandes concentrações populacionais do país. Os problemas com abastecimento de água poderiam ser solucionados com obras que levassem água do Rio Amazonas para as regiões afetadas” (SEVERIANO, 2015).
A questão, contudo, não se limita à análise da possibilidade de uma bacia hidrográfica suprir eventual deficiência de outra em território nacional, e do impacto ambiental que essa transferência ocasionaria. Isso porque essa contínua transferência resultaria tão só num acréscimo constante na quantidade de água disponível nas regiões beneficiadas[12], apenas isso, e não o enfrentamento dos problemas oriundos das ocasionais chuvas torrenciais e conseqüentes enchentes e inundações: essa quantidade a mais de água disponibilizada continuaria a ser mal utilizada e desperdiçada.
Destarte, a solução hídrica nacional exige, além da utilização racional da água, do tratamento universal dos efluentes e do saneamento básico, com o consequente tratamento dos esgotos e disponibilização de água tratada e própria ao consumo, da constituição de uma rede de interligação entre as diversas bacias hidrográficas nacionais, e dentro delas, entre seus cursos d’água.
O escopo primeiro não seria atender a uma região que, sazonalmente, sente a escassez da água, mas sim em estabelecer um fundo hídrico com o excedente dos cursos d’água nacionais. E tão somente dos excedentes, conferindo uma destinação útil ao volume que excedesse as margens. Houvesse algo similar, as grandes chuvas que acometeram a região Sudeste em 2013, e que fizeram transbordar inúmeros rios, seriam adequadamente armazenadas; as previsíveis inundações causadas pelos abruptos aumentos nas vazões de rios da Amazônia, como o Amazonas e o Madeira, seriam evitadas, porque o excesso de água seria retirado dos leitos antes de atingir os centros urbanos[13].
As necessidades ocasionais de recursos hídricos, bem como a regular assistência à região do semiárido, seriam satisfeitas com aqueles armazenados nos diversos depósitos, verdadeiros lagos artificiais, que receberiam o constante afluxo dos excessos da universalidade das bacias hidrográficas brasileiras. Dito de outro modo, com a interligação entre os cursos d’água, e entre suas respectivas bacias, arrecadando o volume que excedesse a vazão máxima aceitável, seriam minimizados os efeitos nocivos da elevada pluviosidade e, observado o limite máximo variável conforme as peculiaridades locais, seriam evitadas enchentes, inundações e toda a gama de tragédias, prejuízos e dissabores que lhes são indissociáveis; além disso, como consequência desse processo preventivo, haveria um ativo ambiental hídrico inegável, pois a água armazenada nos depósitos teria o objetivo de funcionar como um regulador desse sistema integrado, assegurando a vazão mínima aceitável entre os cursos d’água da rede, minimizando a amplitude entre o máximo e o mínimo, conforme os ecossistemas envolvidos.
Deste modo, grande parte dos problemas causados pelo excesso de chuvas seria minimizada, porque os cursos d’água não transbordariam; o excesso na vazão, extraído por meio de estações de coleta estabelecidas ao longo das margens, seria conduzido ao depósito e devidamente armazenado. Da mesma forma com os rios da Amazônia, que hodiernamente transbordam também pelo excesso de água recebida ainda antes de adentrarem em território nacional, constituiriam importantes fontes de suprimento à mantença do armazenamento controlado de água e consequente regulador do sistema.
A interligação entre as diversas bacias hidrográficas, nos campos macro e micro, se por um lado exigem grandes investimentos, por outro representam a efetiva atuação do Poder Público na proteção da qualidade de vida não apenas às gerações presentes, mas principalmente àquelas que hão de vir.
4. CONCLUSÃO
A garantia do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos fixados pelos constituintes de 1988, no caput do art. 225, obriga todos, coletividade e Poder Público, para as gerações atuais e futuras, ao dever de adotar as medidas necessárias para sua defesa e preservação. Não constitui mera faculdade, relegada à alçada discricionária do administrador, mas uma obrigação universal, da qual coletividade e Poder Público estão sujeitos; e não apenas para os que dessa garantia possam usufruir hodiernamente, porque está expresso no texto constitucional que a prerrogativa é extensível às gerações vindouras.
Reconhecido pela doutrina como integrante do rol da 3ª geração, ou dimensão, de direitos fundamentais, a garantia do ambiente equilibrado ecologicamente, por sua natureza social, é geratriz de obrigações ao Estado, positivas e negativas, que inexoravelmente exigem investimentos, muitas vezes vultosos, e eficiência de gestão. Os recursos hídricos, contudo, pela sua essencialidade à vida, ocupam lugar de destaque no conjunto dos direitos fundamentais sociais.
A moderna exegese constitucional, aliás, atenta à morosidade legislativa e principalmente à desídia do Poder Público na concretização de direitos fundamentais, reconhece a possibilidade da intervenção do Poder Judiciário sem que com isso seja caracterizada violação ao princípio da separação de poderes, porque a ausência de políticas públicas, ou mesmo de uma legislação que imponha responsabilidade na gestão ambiental para os integrantes da Administração, como uma Lei de Responsabilidade Ambiental, não podem constituir impedimentos para que o meio ambiente seja mantido saudável e equilibrado. Há princípios que embasam esse raciocínio, como (i) o do “desenvolvimento sustentável”, extraído do caput do art. 225 da Carta Magna, ao preconizar que o direito ao meio ambiente equilibrado ecologicamente pertence às gerações atuais e às que vierem a surgir, de sorte que apenas com sustentabilidade no desenvolvimento esse escopo pode ser atingido; (ii) o da “prevenção”, que exige a adoção de medidas e ações preventivas para evitar a ocorrência de um dano previsível; (iii) o da “precaução”, que difere do da prevenção porque, enquanto desta se exige a comprovação científica da existência do risco ambiental, pelo princípio da precaução essa ausência não impede a adoção de medidas para evitar a possibilidade do dano, ainda que de sua ocorrência não haja absoluta certeza; e (iv) do “poluidor-pagador”, no qual se impõe ao causador do dano ambiental sua responsabilização para a efetiva reparação, independente de dolo ou culpa, embora para alguns estudiosos esse princípio também contenha um outro princípio, o do “usuário-pagador”, que gera àquele que utiliza o recurso ambiental a obrigação de suportar os custos observados para a viabilidade do seu aproveitamento e dos decorrentes de sua efetiva utilização.
Ainda assim, os recursos hídricos nacionais não são aproveitados e tampouco geridos adequadamente. O saneamento básico não é universal em suas premissas elementares, como distribuição de água tratada e coleta e tratamento de esgotos. Dados informam que, embora grande parte dos domicílios receba água tratada, pouco mais da metade tem seus esgotos ligados à rede, e desse esgoto coletado apenas pouco mais da metade recebe tratamento adequado antes de ser devolvido aos cursos d’água. Não bastasse essa situação de flagrante vilipêndio ao direito de um ambiente ecologicamente equilibrado e sadio, as alterações climáticas causadas notadamente pelo aquecimento global agravam a escassez de água no semiárido e modificam os regimes e índices pluviométricos, causando longos períodos de estiagem e também de fortes chuvas, causadoras de enchentes e inundações que atingem regiões urbanas e rurais; na região Amazônica há também regularidade nos períodos em que seus cursos d’água ultrapassam em muito os limites adequados e invadem áreas utilizadas economicamente.
A consequência dessa incúria da Administração Pública é a petrificação do direito constitucional do art. 225, mantido como norma meramente programática quando, na verdade, seu conteúdo é de plena eficácia e reclama imediata aplicabilidade. Há, infelizmente, uma proteção insuficiente do direito fundamental ao ambiente ecologicamente sadio e equilibrado.
Por disposição constitucional, as águas, subterrâneas ou superficiais, pertencem aos Estados ou à União, e o Código Civil as qualifica como bens públicos de uso comum. Essa situação, aliada à condição de direito fundamental do ambiente ecologicamente equilibrado e saudável, transforma a tutela dos recursos hídricos em inegável proteção de direitos fundamentais, constituindo, assim, dever da coletividade e do Poder Público.
Dito de outro modo, os recursos hídricos devem ser utilizados e aproveitados na condição de direitos fundamentais, profícuos ao equilíbrio ambiental e à qualidade de vida.
Daí porque medidas como a transposição do Rio São Francisco não atendem a essa fundamentalidade: não basta simplesmente extrair determinada quantidade de água de um curso e desviá-la para outro. As estiagens de 2013 e 2014 na região Sudeste comprovam que, sem planejamento macro, medidas localizadas, além de dispendiosas, representam paliativos que não solucionam efetivamente qualquer problema, tampouco corroboram para a proteção ambiental.
Tampouco a transferência de 1% do volume do Rio Amazonas para atender as necessidades das regiões Nordeste e Sudeste cumpriria a proteção pretendida ao meio ambiente, porque também se limitaria a retirar certa quantidade de água de uma bacia e despejá-la em outras.
Neste diapasão, considerando a integralidade das bacias hidrográficas nacionais em suas peculiares características, se apercebe ocasional excesso na vazão de alguns cursos d’água, que hodiernamente é perdido no mar. Esses excessos, que por vezes resultam em enchentes e inundações, dão azo aos mais diversos danos e transtornos, prejudicando a economia e ceifando vidas humanas, embora pudessem ser reduzidos ou mesmo evitados.
Destarte, a proteção do direito das gerações atuais e das futuras a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que resulte na sadia qualidade de vida, reclama a adoção de medidas que possam, ao mesmo tempo, significar o menor impacto ambiental cumulado ao maior proveito social. Disso resulta que a captação do excesso nas vazões dos cursos d’água resultaria no menor impacto, porque não haveria modificação do volume habitual, daquele que é proveitoso para as populações que dele se beneficiam comumente, porque tão somente o excedente, ou seja, a quantidade de água sazonal que não ocasiona benefícios e vantagens à vida e à qualidade de vida seria extraída; por outro lado, esse excesso, devidamente armazenado, corresponderia à reserva necessária na mantença de uma vazão mínima em toda a malha hídrica nacional, em inequívoco proveito social.
A interligação das bacias hidrográficas representa, assim, o reconhecimento da afirmação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e de zelo com as presentes e futuras gerações. Contribuiria para evitar enchentes e inundações e para minimizar os efeitos nocivos de fortes chuvas, resultando em um ativo hídrico capaz de atender eventuais necessidades sazonais de outras regiões e regularmente o semiárido. Imensuráveis suas virtudes, não se há de falar em inviabilidade econômica para sua implantação.
Doutorando em Direito e Mestre em Direito Processual Constitucional pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora Argentina. Defensor Público Estadual no Estado do Espírito Santo
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