A interpretação restritiva do STF ao instituto do foro por prerrogativa de função

Resumo:.O presente trabalho visa estudar a possibilidade de interpretação restritiva por parte do Supremo Tribunal Federal do instituto do foro por prerrogativa de função, analisando o histórico da discussão e oferecendo um parecer constitucional do caso ora em contendo.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Foro por prerrogativa de função.

Abstract: The present paper aimed to study the possibility of a restrictive intrprtation of the legislative interpretation by the Brazilian Supreme Court, analyzing its historic and offering a legal report about the case.

Keywords: Constitucional Law. Legislative Immunity.

Sumário: Introdução. 1. Histórico da discussão. 2. Parecer Constitucional. Considerações finais. Referências.

Introdução

Em uma época de infinitos escândalos de corrupção envolvendo os políticos brasileiros, a possibilidade de discussão de aplicar uma interpretação restritiva ao foro por prerrogativa de função, limitando-o somente a crimes praticados no curso do mandato chama atenção e merece ser estudado. Nesse sentindo, o presente artigo busca analisar a proposta do Supremo Tribunal Federal de interpretação restritiva ao instituto do foro por prerrogativa de função, oferecendo um parecer constitucional do caso em análise.

1. Histórico da discussão

No dia 10 de fevereiro de 2017, o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luíz Roberto Barroso, encaminhou a apreciação do Plenário da Corte Suprema brasileira a Ação Penal 937, afim de que se fosse analisada a possibilidade de uma interpretação restritiva por parte do STF quanto ao instituto do foro por prerrogativa de função presente na CRFB/88 quanto ao seu sentido e alcance.

O Ministro acredita que uma mudança substancial como essa deva se dar por meio de Emenda Constitucional (EC) de apreciação do Congresso Nacional (CN). Porém, enquanto este não o faz, nada impediria uma mudança na interpretação constitucional por parte do Supremo, em virtude da alteração da realidade fática e da percepção de qual seja o melhor direito quanto ao, comumente chamado, foro privilegiado.

Barroso apoiasse na ideia de que a prerrogativa de foro funcional deva ser reduzida a poucas autoridades, os chefes de Poder e os Presidentes do Senado Federal (SF), Câmara dos Deputados (CD) e do STF, provavelmente por se encontrarem no rol de substituição do Presidente da República em eventual falta.

O Magistrado sugere que o STF julgue apenas acusações por crimes cometidos no cargo – a partir da investidura – e em razão dele. Desse modo, fatos imputados antes da posse do cargo não seriam de competência do Supremo.

Segundo dados da Assessoria de Gestão Estratégica do Supremo Tribunal Federal apresentados por Barroso em seu despacho, até o final de 2016 tramitavam aproximadamente 500 processos contra parlamentares –  entre esses, 357 inquéritos e 103 ações penais –, sendo que o tempo médio de recebimento da denúncia pelo STF era de 565 dias.

Tal catástrofe estaria fundamenta em 3 razões: razões filosóficas, já que esse instituto seria um privilégio sem fundamento razoável; razões estruturais, uma vez que o STF não foi projetado para funcionar como juízo criminal de 1º grau; e razões de justiça, pois a utilização da prerrogativa de foro funcional seria uma causa frequente da impunidade, tendo em vista que a tramitação é muito demorada (gerando prescrição em muitos casos) e a possibilidade de se manipular a jurisdição do Tribunal.

Acusado pelo Ministério Público Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro, Marcos da Rocha Mendes, atual prefeito de Cabo Frio, é réu na Ação Penal 937, respondendo pela prática de crime de captação ilícita de sufrágio pela distribuição de notas de R$ 50,00 (cinquenta reais) e carne aos eleitores no ano de 2008, visando ocupar o cargo Prefeito de Cabo Frio, fato tipificado do art. 299 do Código Eleitoral. Cabe ressaltar que tal crime é comumente conhecido como “caixa 2”.

Originariamente, a competência era do Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Contudo, entre os anos de 2013 e 2017, a referida ação passou pelas mais diversas instâncias do Poder Judiciário brasileiro, acompanhando as mudanças de função de Marcos (primeiramente, eleito Prefeito de Cabo Frio em 2008, seu mandato chegou ao fim em 2012; diplomado como Deputado Federal em substituição no ano de 2015; afastado, assumiu novamente o cargo de Deputado Federal e, finalmente, efetivado em 2016; renunciou ao mandato de Deputado Federal e mais uma vez, eleito Prefeito de Cabo Frio em 2017), os dispositivos constitucionais e as orientações jurisprudenciais consolidadas.

2. Parecer Constitucional

O Ministro utiliza-se do exemplo acima – em que o crime foi cometido quando o réu não teria a prerrogativa de foro funcional – para evidenciar a disfuncionalidade prática do instituto e ser um meio de formação de um possível novo entendimento: caso o crime tenha sido praticado anteriormente à investidura no mandato como parlamentar federal, não haveria que se falar em competência do STF. Um crime, que nem deveria estar no STF, está.

Primeiramente, é importante ressaltar que existem diversas propostas tramitando no Congresso Nacional quanto ao tema, seja para acabar com as prerrogativas de foro em geral ou restringi-las. O parecer em tela, terá como objeto somente a prerrogativa de foro funcional de competência do STF, assegurada no art. 102, I, b e c da CRFB/88, objeto do despacho de Barroso (BRASIL, 1988).

Segundo a lição de Aury Lopes Jr., a prerrogativa de foro funcional é um direito assegurado constitucionalmente a algumas pessoas por exercerem determinadas funções e por esse motivo, seriam julgadas originariamente por determinados órgãos (2012, p. 485).

Tal prerrogativa é conferida pela necessidade de tranquilidade ao exercício de específicos cargos públicos, sendo uma proteção ao cargo e não ao seu titular (MENDES, 2010, p. 678).

Conforme expõe Alexandre de Moraes, o Brasil segue a regra da atualidade do mandato. Enquanto este durar, a competência será estabelecida de acordo com os dispositivos constitucionais que especificam o órgão competente. Uma vez encerrado o mandato, a prerrogativa será cessada e o processo encaminhado ao órgão competente – aquele que o seria caso essa não existisse -, que depende do caso concreto (2012, p. 475).

Os dispositivos que conferem a determinados cargos públicos tal prerrogativa encontram-se espalhados pelo texto constitucional, porém, ao tratar dos parlamentares, a título exemplificativo, é evidente a diplomação como marco da aplicação do instituto, como indica o art. 53, §3º da CRFB/88 (BRASIL, 1988).

Entende-se como diplomação o “ato pelo qual a Justiça Eleitoral atesta que o candidato foi efetivamente eleito pelo povo e, por isso, está apto a tomar posse no cargo" (TSE, 2017).

Ao contrapor à disposição constitucional que estabelece a prerrogativa foro funcional a partir da diplomação e a intenção do Ministro de limitá-la, transferindo para a posse tal marco, é cristalino a inconstitucionalidade do discurso de Barroso.

Verdadeiro afronta a nossa Carta Máxima, o ataque vem do lado de quem menos se esperava: um dos guardiões da Constituição, Ministro do STF.

Não cabe discutir se tal medida possui boas intenções. O fato é que vai de encontro ao principal objetivo da existência de uma Suprema Corte: proteger os dispositivos constitucionais vigentes desenvolvidos em pelo menos dois âmbitos “contra os demais poderes, pois as normas jurídicas por eles criadas podem estar em desacordo com a Constituição e devem ser anuladas; e contra aquelas condutas que atentarem contra a Constituição, quando deverão ser fulminadas” (SCAFF, 2016, p. 3).

Scaff afirma que o risco de qualquer desses sistemas ocorre quando o guardião muda de posição e se entende como dono: “Aos guardiões é incumbida uma função, qual seja, a de guarda algo em proveito de outrem. Isto é, o exercício de uma função. Os servidores públicos incumbidos de guardar a Constituição a devem guardar em proveito da sociedade que lhes atribui essa função pública, e não se tornar donos dela. Ninguém deu aos guardiões a propriedade da Constituição, apenas a guarda” (2016, p.3).

Nosso país auferiu poderes astronômico ao Poder Judiciário. Carecendo de políticas públicas que viabilizassem a concretização dos direitos garantidos constitucionalmente, não restou outra alternativa a população a não ser o de procurar o judiciário para ver seus problemas sanados.

É preocupante o modo como a população tem percebido a atividade jurisdicional e o papel dos juízes, vendo-os como o único meio de resolução de conflitos e atribuindo-lhes a função de administrador da moral.

A atividade jurisdicional resta prejudicada, visto que na atualidade a decisão dos juízes é baseada na própria consciência, de modo que interpretam as leis e a Constituição conforme suas convicções morais e valores pessoais. Decisões baseadas no foro íntimo dão margem a sentenças discricionárias e controversas, prejudicando a integridade do sistema. “Além de criarmos cidadãos de segunda classe judiciário-dependente, deixamos de pressionar os governos a implementar políticas públicas. Ou seja, até quando flertamos com o judiciário, fizemo-lo erradamente” (STRECK, 2016, p. 4).

Optamos por apostar no ativismo judicial: as leis passaram a ter um papel secundário, enquanto as decisões dos magistrados – muitas vezes embasadas em achismos sem fundamento legal -, se tornou a regra. Nossa Suprema Corte, exercendo tanto o controle de constitucionalidade difuso quanto o concentrado, possui perigosa arma em mãos e infelizmente, cada vez mais erra o alvo.

Nas palavras de Lênio Streck, “(..) a lei não vincula, a súmula, sim, mesmo que ela seja contrária à lei e a Constituição!” (2009, p. 74).

Cedendo a todo momento à pressões – seja da sociedade, do Presidente da República, dos parlamentares, entre outros -, o STF deveria “dizer não em todos os sentidos que divirjam daqueles estabelecidos pela Constituição” (SCAFF, 2016, p. 3).

Ironicamente, a tese do Ministro Barroso é totalmente o oposto disso. Confirmando-se, ela não pode ser considerada uma verdade autêntica, uma vez que se mostra completamente inconstitucional pelos motivos acima expostos.

Considerações Finais

Nada impede que a prerrogativa de foro funcional seja objeto de Proposta de Emenda Constitucional apreciada pelo Congresso Nacional – claro que este também merece críticas quanto a sua atuação, o que não é objeto desse parecer – pelo menos, tal mudança seria legítima.

Mais uma vez fica comprovada a tradição solipsista do Poder Judiciário. Fruto do fracassado positivismo e as más adaptações oriundas dos institutos trazidos de outros países a realidade brasileira, vivemos uma aberração jurídica no ápice de sua desonra.

 

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo, Saraiva, 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
MORAES, Alexandre De. Direito Constitucional. 28ª edição. São Paulo: Atlas, 2012.
SCAFF, Fernando Facury. Primeiro dever fundamento do Supremo Tribunal Federal é dizer não. Consultor jurídico. São Paulo: 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-23/contas-vista-primeiro-dever-fundamental-supremo-dizer-nao>. Acesso em: 17/05/2017.
STRECK, Lenio Luiz. Rumo a Norundi, a bordo da CDI – Constituição Dirigente Invertida. Consultor jurídico. São Paulo, 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-out-27/senso-incumom-rumo-norundi-bordo-cdi-constituicao-dirigente-invertida>. Acesso em: 17/05/2017.
________. Hermenêutica, Constituição e autonomia do Direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. Unisinos: v. 1, n.1, p. 65-77, 2009.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – TSE. Diplomação dos candidatos eleitos. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/processo-eleitoral-brasileiro/pos-eleicoes/diplomacao-dos-candidatos-eleitos>. Acesso em: 17/05/2017.

Informações Sobre o Autor

Mariele Cunha Rocha

Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG


Equipe Âmbito Jurídico

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