Resumo: Busca o presente estudo demonstrar a desnecessidade de o Constituinte estadual repetir quaisquer normas da Constituição Federal de observância obrigatória para os Estados-membros. Alem de demonstrar a irrelevância da copia, em caso de repetição.
Sumário: 1. Considerações preliminares. 2. A origem do problema 3. Normas centrais x constituição total. 3.1. Casuística: a cópia dos princípios sensíveis pelo constituinte estadual. 3.2. Casuística: a cópia do artigo 35, IV, da CF. 4. Conclusão
1- CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A rigor, o problema da repetição nas Constituições estaduais de normas da Constituição federal que já vinculam os Estados-membros não deveria ocorrer. É que a Constituição federal, ao atribuir aos Estados-membros o Poder Constituinte Decorrente, limita-os a observarem, segundo o artigo 11 do ADCT, os “princípios dessa”. Observar os princípios da Constituição federal não implica a obrigação de copiá-los. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “observar um princípio significa assim abster-se de emitir regras com ele incompatíveis ou, positivamente, emitir regras constitucionais compatíveis. Não se cumpre um princípio repetindo o seu teor, mas emitindo regras que com ele compõem um conjunto hierarquicamente harmônico”.[1]
Além disso, a cópia de normas da Constituição federal vigentes nos limites dos Estados-membros vai de encontro à função complementar inerente ao Poder Constituinte decorrente. Como afirmou Carl Shmitt:
“ […] A organização de um estado não é moldada de maneira a se basear, primeiro, na Constituição estadual, e, segundo, na Constituição do Reich delimitada territorialmente e acolhida pela Constituição estadual. A Constituição estadual atinge apenas o resto do ser estatal que ainda compete aos Estados […]”[2].
De fato, se a Constituição federal é, ao mesmo tempo, a fonte de normas que garantem a unidade federal – como, por exemplo, a norma que estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3, da CF) – e o foco irradiador de competências[3], pois cria entes parciais com capacidade política, as Constituições dos Estados-membros, por sua vez, são poderes posteriores, que atuam dentro de uma experiência constitucional já existente[4]
No entanto, mesmo com a liberdade de os Estados-membros completarem a obra do Constituinte federal, criando normas originárias no exercício de seu Poder Constituinte, o fato é que muitos dispositivos de suas Constituições são verdadeiras cópias de normas já obrigatórias estabelecidas na Constituição federal. A Constituição do Paraná, por exemplo, estabelece, em seu artigo 27, cujo título é “Da Administração Pública”, que “todos os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”, dispositivo que é cópia idêntica do disposto no artigo 37, I, da Constituição federal. Já a Constituição do Pará repete (artigos 17 e 18) as hipóteses de competência comum e concorrente estabelecidas na Constituição federal.
Necessário destacar que não haveria razão para investigar sobre a natureza jurídica das normas copiadas da Constituição estadual de normas obrigatórias da CF caso essas normas-cópia se limitassem a cumprir sua função principal: incidirem nos fatos regulados. Suponha que a norma contida na Constituição federal e obrigatória aos Estados-membros que prescreve o prazo de quatro anos para mandato de governador fosse repetida pela Constituição de determinado Estado-membro. Após a repetição, caso ocorresse no mundo real o pressuposto de fato previsto nessa norma – a eleição do governador –, a relevância estaria tão-somente no direito conferido ao eleito, na imputação da conseqüência normativa: a garantia de seu mandato por quatro anos. Que importa ao eleito se o seu direito ao exercício do mandato proveio da norma original da Constituição federal ou da norma-cópia da Constituição estadual? O que importa tanto para os sujeitos vinculados pela norma jurídica, quanto para os órgãos autorizados a aplicá-la é apenas a conseqüência estabelecida: a garantia do exercício do mandato e sua extensão.
O problema gerado pelas cópias dessas normas ocorre quando se discute sua aplicação como parâmetro no controle de constitucionalidade em abstrato exercido pelos Tribunais de Justiça dos Estados-membros (art. 125, parágrafo 2º, da CF). Caso se admita a relevância do ato de cópia, os Tribunais de Justiça seriam competentes para utilizar as normas copiadas de normas da CF obrigatórias aos Estados-membros como parâmetro no controle em abstrato de constitucionalidade. Isso ocorreria sem prejuízo de o Supremo Tribunal Federal, provocado por ação direta de inconstitucionalidade, exercer o controle de constitucionalidade das leis federais e estaduais com parâmetro nas normas copiadas da CF. A adoção da tese da autonomia implicaria inclusive a possibilidade de a mesma lei ser impugnada simultaneamente no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal de Justiça com parâmetro em norma de mesmo conteúdo – a original da Constituição Federal e a cópia da Constituição Estadual –, já que ambos os Tribunais podem exercer o controle de constitucionalidade em abstrato das leis estaduais. Por outro lado, a adoção da tese da ociosidade da cópia pelo Constituinte estadual de norma obrigatória da Constituição federal teria como conseqüência desconsiderar essas normas-cópia como normas jurídicas da Constituição estadual, impedindo, por conseqüência, que os Tribunais de Justiça exercessem o controle de constitucionalidade em abstrato com parâmetro nessas normas.
Com base nessas considerações, busca-se demonstrar no presente estudo que a cópia das normas de observância obrigatória da Constituição federal pelos Estados-membros, no exercício do Poder Constituinte Decorrente, não tem o condão de transformá-las em normas da Constituição Estadual. As normas obrigatórias da Constituição Federal integram o ordenamento jurídico dos Estados-membros independente de repetição dessas normas na Constituição dos Estados-membros, cabendo ao Poder Constituinte Decorrente apenas complementar a obra do Constituinte Federal.
2- A ORIGEM DO PROBLEMA
Segundo Canotilho, há no Estado federal, além da clássica relação de hierarquia entre os atos normativos – em que a norma inferior tem sua produção e conteúdo determinada por norma superior –, uma divisão espacial de competências, em que cada ente político tem a capacidade política de criar normas sobre determinado território. Segundo o autor, a divisão de competências existente no Estado federal não perturba o “princípio” da hierarquia, pois baseados em pressupostos distintos:
“A função ordenadora dos actos normativos não pressupõe apenas uma hierarquização dos mesmos através de relações de supra-infra-ordenação, mas também uma divisão espacial de competências. O princípio hierárquico acentua o carácter de limite negativo dos atos normativos superiores em relação aos atos normativos inferiores; o princípio da competência pressupõe antes uma delimitação positiva, incluindo-se na competência de certas entidades a regulamentação material de certas matérias (exemplo: só pertence às regiões autônomas legislar sobre as matérias de interesse específico para a região).[…] O princípio da competência não perturba o princípio da hierarquia e a configuração piramidal da ordem jurídico-constitucional (de resto, exigidos pelo princípio da unidade do Estado).”[5]
Com base na distinção proposta pelo autor, é necessário esclarecer se a relação entre as normas copiadas pelo Constituinte estadual e as normas obrigatórias estabelecidas na Constituição federal decorre do princípio da hierarquia ou da divisão espacial de competências.
É que se as normas obrigatórias da CF dependem da repetição na Constituição dos Estados-membros para incidirem nos fatos por elas previstos, isso implica considerar as normas porventura copiadas como manifestação do Poder Constituinte Decorrente dos Estados-membros[6]. Nessa hipótese, as normas copiadas só teriam a força de obrigar a sua reprodução (transplante) para a Constituição estadual. Embora com o mesmo conteúdo, quem incidiria efetivamente nos fatos previstos pelas duas normas seria a norma-cópia. Daí a autonomia das normas-cópia inseridas na Constituição estadual.
Por outro lado, caso não exista o dever (norma de competência) de cópia das normas da Constituição federal obrigatórias aos Estados-membros; haverá, no mínimo, o dever proveniente do “princípio hierárquico”, a obrigação (norma de conduta)[7] de não dispor de forma contrária aos mandamentos das normas obrigatórias aos Estados-membros estabelecidas na Constituição federal. Nesse caso, as normas-cópia não ofenderiam a Constituição federal, pois o Estado-membro que copiasse norma da Constituição federal em seu ordenamento parcial não descumpriria a obrigação de não contrariar a norma copiada (norma superior). Além disso, a cópia de norma pelo obrigado não representaria a criação de norma inferior, pois não alteraria o seu conteúdo, nem o seu objeto. Aceitar a existência jurídica dessas normas copiadas implicaria admitir a existência de norma no meio do ordenamento sem relação com norma superior ou inferior, em afronta ao “princípio” da unidade do ordenamento jurídico. Só restando, portanto, considerá-las meras normas ociosas, não pertencentes ao ordenamento jurídico – nem sequer fatos jurídicos, e sim meros fatos fenomênicos que não ultrapassariam o plano da existência.[8]
A melhor forma de avaliar se as normas originais – presentes na Constituição Federal e que são obrigatórias aos Estados-membros – estão numa relação negativa (hierárquica) ou positiva com as normas copiadas da Constituição Estadual é confrontar os fundamentos das duas teorias sobre as normas obrigatórias aos Estados-membros contidas na Constituição federal: Constituição total e normas centrais.
3- NORMAS CENTRAIS X CONSTITUIÇÃO TOTAL
Segundo Raul Machado Horta, as normas centrais da Constituição federal:
“[…] designam um conjunto de normas constitucionais vinculadas à organização da forma federal de Estado, com missão de manter e preservar a homogeneidade dentro da pluralidade das pessoas jurídicas, dos entes dotados de soberania na União e de autonomia nos Estados-membros e nos Municípios, que compõem a figura complexa do Estado Federal. As normas centrais não são normas de centralização, como as do Estado Unitário. São normas constitucionais federais que servem aos fins da participação, da coordenação e da autonomia das partes constitutivas dos Estados. Nem sempre dispõem de aplicação imediata e automática. Identificam o figurino, o modelo federal, para nele introduzir-se, posteriormente, o constituinte estadual, em sua tarefa de organização do Estado Federado. Não são normas inócuas. A infringência de normas dessa natureza, na Constituição do Estado ou na legislação estadual, gera a sanção de inconstitucionalidade”.[9]
Já a teoria da Constituição total decorre da tese lógico-jurídica de Kelsen sobre a formação do Estado federal. Segundo o autor, todo Estado federal – não importa se formado pela agregação de entes anteriormente soberanos ou após a desagregação de Estado Unitário – é organizado a partir da Constituição de um Estado unitário, que logo depois se desconstitui, limitando a sua competência ao atribuí-la parcialmente aos entes parciais – Estados-membros, União e Municípios – criando o Estado federal.[10] A desconstituição do Estado unitário, somada à parcela de poder não transferida aos demais entes políticos, forma a chamada Constituição total, que se encontra no mesmo documento a que pertence a Constituição da União, a “Constituição federal”. Como afirmou Celso Antonio Bandeira de Mello:
“a chamada ‘Constituição Federal’ pode ser desdobrada em duas cartas distintas: a Constituição Total e a Constituição da União. A Constituição Total compreende a verdadeira Constituição Federal e regula, portanto, os poderes do Estado Federal. A Constituição da União dispõe somente sobre as competências da coletividade central, delegadas pela Constituição Total[11]”
Enquanto o ente total está em relação de subordinação com os entes parciais (União, Estados e Municípios), esses, por sua vez, estão coordenados entre si. Isso implica que as únicas normas do texto “Constituição federal” limitadoras do Poder Constituinte Decorrente pertencem à Constituição total. É que se as normas da Constituição federal relacionadas à União também limitassem o Poder Constituinte dos Estados-membros, ter-se-ia que admitir a desigualdade entre os entes parciais, o que afrontaria o “princípio” da igualdade entre os entes parciais, inerente ao Federalismo.
Frise-se que sem a diferenciação proposta por Kelsen entre as constituições que compõem o documento “Constituição federal” ficaria impossível sustentar a tese de igualdade entre os entes parciais. Por exemplo, a confusão entre União e Estado federal torna difícil a explicação sobre os fundamentos da intervenção federal. Se a União estabelece as hipóteses de intervenção, tendo ainda a atribuição, conferida por si mesma, de intervir nos Estados-membros e no Distrito Federal, como argumentar que ainda haveria igualdade entre a União e esses entes parciais? Os autores que não diferenciam a União do ente total são obrigados a usar argumento abstrato, e que extravasa o jurídico, para explicar a intervenção. Segundo Francisco Bilac Pinto, que não diferencia União do ente total, a intervenção federal seria:
“a concretização da vontade dos demais Estados-Membros que formam a União Federal de intervir no Estado que sofre a conturbação ou desordem constitucional, exatamente para que a hipótese temporária de sublevação não se desenvolva e atinja outras partes do território da federação. Ainda que não haja o perigo de espalhar-se pelo território da nação, a ação é efetivada em nome dos demais Estados-membros para manutenção da ordem interna do Estado atingido, tendo em vista a cumplicidade de deveres e direitos que nos traz a formação de uma federação”[12].
Ao aplicar as idéias de Kelsen para explicar o fenômeno da intervenção federal, fica claro que a norma sobre a possibilidade de intervenção entre os entes parciais pertence à Constituição total, tendo em vista a impossibilidade de que os entes parciais estabeleçam normas (subordinações) entre si. E que, quando um ente parcial intervém noutro ente parcial, assim o faz por autorização do ente total. No caso, não há ofensa à idéia de hierarquia entre os entes parciais, pois a norma interventiva não é estabelecida por vontade própria do ente interventor, mas em cumprimento de autorização do ente total.
Embora Kelsen não tivesse classificado as normas da Constituição total, é possível deduzir da tese proposta pelo autor três espécies de normas do ente total: (1) normas materiais, (2) normas que desintegram o Estado unitário e (3) normas que subordinam os entes parciais. As primeiras seriam as normas provenientes do poder não delegado aos entes parciais, como, por exemplo, a norma que estabelece ser a língua portuguesa o idioma oficial da República Federativa do Brasil (art. 13 da CF). As segundas, as que desconstituem o Estado unitário, formando a Federação. Exemplos dessas normas são as que atribuem competências aos entes parciais (União, Estados-membros e Municípios), inclusive a que atribui o Poder Constituinte Decorrente aos Estados-membros. As terceiras espécies de normas da Constituição Total são as normas da Constituição Federal que estabelecem subordinações entre os entes parciais, cujo exemplo mais marcante é a que permite a intervenção de um ente parcial noutro. Admiti-las como normas da Constituição da União implicaria admitir a subordinação entre entes parciais, o que afrontaria o princípio da igualdade entre os entes parciais.
Pelo confronto entre as duas teorias, vê-se que, embora haja semelhanças entre as normas da Constituição total e as normas centrais, há uma diferença relevante. Enquanto parte das normas centrais dependem de serem inseridas nas Constituições dos Estados-membros para vigerem nesses ordenamentos jurídicos parciais; todas as normas da Constituição total, por conta da impossibilidade de subordinação entre as normas do ente total e as normas de entes parciais, entrariam automaticamente no ordenamento parcial dos Estados-membros[13]. Portanto, para a teoria das normas centrais, cabe aos Estados-membros, no exercício de seu Poder Constituinte, criar um ordenamento misto[14], ou seja, criar a Constituição estadual com normas próprias e normas centrais relacionadas ao poder de auto-organização autônomo do Estado-membro, já da teoria da Constituição total deduz-se que cabe ao Poder Constituinte dos Estados-membros apenas o resto da organização dos Estados-membros não pré-ordenado pelas normas obrigatórias da Constituição federal.
A tese de que algumas normas da Constituição federal obrigatórias aos Estados-membros dependem de inserção, para vigerem no ordenamento jurídico dos Estados-membros, é frágil, pois está baseada no critério valorativo adotado por Horta sobre as normas que compõem a Federação. Segundo o autor:
“[…]Salvo na hipótese de normas centrais da Federação – direitos fundamentais, separação de poderes, forma de Governo e de Estado, que independem de transposição normativa e são dotadas de imediatidade, as normas centrais de outra natureza reclamam atividade do órgão constituinte estadual, para integração dessas normas na organização constitucional do Estado. É competência do constituinte estadual a atividade de transplantação das normas centrais que devem integrar a organização do Estado e do Município. A inércia, caracterizando descumprimento de preceito fundamental, configura omissão corrigível pelo Supremo Tribunal Federal […]”[15]
Ao considerar que as normas relacionadas à organização dos Estados-membros contidas na Constituição federal – normas de pré-ordenação[16] na classificação consagrada pelo o autor – não pertencem à Federação, por não garantirem a unidade do Estado federal, só restaria duas alternativas: atribuí-las aos Estados-membros ou à União. A primeira alternativa desafia a lógica, tendo em vista que implicaria admitir a existência de norma pertencente aos Estados-membros antes mesmo do exercício do Poder Constituinte decorrente que lhes origina. A segunda hipótese vai de encontro ao “princípio” inerente à Federação antes referido: a igualdade entre os entes parciais.
Além disso, ao que parece, outro fundamento para a tese de que as normas de pré-ordenação estabelecem uma obrigação positiva (de cópia) para os Estados-membros é a idéia de que toda Constituição, para que seja assim considerada, deve tratar sobre a organização do ente político instituído. Esse conceito clássico, no entanto, apenas se aplica à Constituição federal. É o que se depreende das lições do mais eminente representante da doutrina clássica sobre a essência da Constituição. Segundo Carl Schmitt, somente as normas que compõem a decisão política fundamental seriam normas constitucionais. Para esse autor, portanto, somente as normas que são as bases do Estado compõem sua Constituição, as demais normas seriam apenas leis constitucionais[17]. No entanto, ao comentar sobre a Constituição estadual, afirmou que essa atinge: “[…] apenas o resto de ser estatal que ainda compete aos Estados […]”[18], deixando claro as funções estritamente jurídica e complementar destinadas às Constituições estaduais.
Portanto, mesmo as normas da Constituição federal obrigatórias aos Estados-membros que regulam suas instituições não precisam ser copiadas pelas Constituições estaduais. Por serem normas da Federação, estabelecem uma obrigação negativa aos Estados-membros de não criarem normas com mandamento contrário, e não obrigação positiva, destinada ao Poder Constituinte decorrente.
Ao contrário do que prega a tese das normas centrais, não há razão para diferenciar as normas da Federação que limitam o poder de auto-organização dos Estados-membros das que asseguram a unidade do Estado federal. A Federação não se distingue de outras formas de Estado pela essência das matérias que permanecem em poder do ente total, e sim pela mera divisão de fontes produtoras de normas jurídicas num determinado território, conforme demonstrou Kelsen[19]. Razão por que serão ociosas, por exemplo, tanto as normas estabelecidas pelo Constituinte estadual que repetem os direitos e garantias fundamentais como também a que conferir aos deputados estaduais o prazo de quatro anos para o exercício do mandato, normas já obrigatórias aos Estados-membros contidas na Constituição federal.
3.1 CASUÍSTICA: A CÓPIA DOS PRINCÍPIOS SENSÍVEIS PELO CONSTITUINTE ESTADUAL
Seria a não cópia dos princípios sensíveis (artigo 34, inciso VII, da CF) pelo Constituinte estadual conduta afrontosa à norma da Constituição federal que determina sua observância, sendo, portanto, omissão possível de ser sanada pela intervenção da União nos Estados-membros?
A resposta é negativa. É que a intervenção ocorre em virtude de atos do Estado-membro[20] que infrinjam os princípios sensíveis, sendo irrelevante a mera repetição desses princípios na Constituição dos Estados-membros. Para Temístocles Brandão Cavalcanti, os atos que ensejam a intervenção “[…] devem compreender todas as manifestações de atividade dos órgãos do Estado que produzam efeitos jurídicos, mas que venham a contrariar os preceitos expressos na Constituição”.[21]
A possibilidade de ofensa por ato legislativo aos princípios sensíveis só seria possível em caso de norma da constituição estadual com disposição contrária ao previsto nos princípios sensíveis. Como, por exemplo, norma de Constituição estadual que permitisse chicotear os bandidos presos, o que ofenderia o princípio sensível do artigo 34, VII, b, que protege a dignidade da pessoa humana. A mera repetição do princípio sensível não implica obediência aos princípios sensíveis, pois os Estados-membros podem, apesar da repetição desses princípios, ofendê-los através de atos concretos, inclusive por omissão.
Foi o que ocorreu no Município de Matuapã, onde três cidadãos foram capturados, por assalto e manutenção de adultos e crianças como reféns, e mortos em seguida pela Polícia local, que ateou fogo em seus corpos, em ação filmada pela imprensa local. Provocado o STF a manifestar-se sobre pedido de intervenção no Estado-membro de Mato Grosso, conheceu da representação, pois o Tribunal entendeu ter ocorrido violação ao princípio sensível da dignidade da pessoa humana (artigo 34, VII, b)[22] por conta da omissão do Estado-membro de impedir a conduta dos policiais. O fato de constar na Constituição do Mato Grosso, promulgada ainda em 1989, antes da ação praticada pelos Policiais locais, o compromisso desse Estado-membro de respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana, no Titulo I, “Dos Princípios Constitucionais Fundamentais”, não impediu que o STF conhecesse da representação interventiva.
Há ainda outro argumento a favor da necessidade de repetição de normas obrigatórias da Constituição federal pelo Constituinte estadual. O professor Clèmerson Merlin Clève[23] considera haver obrigação de os Estados-membros repetirem em suas Constituições estaduais, sob pena de intervenção federal, o princípio sensível estabelecido no art. 34, VII, d, “a prestação de contas da administração direta e indireta”. O fundamento para a necessidade de repetição seria o princípio administrativo da legalidade, que condiciona a ação do administrador à lei que o autorize.
Essa hipótese, contudo, não contraria a tese da ociosidade da repetição, pois, no caso, a cópia poderia ser feita também em lei, a qual igualmente disciplinaria a ação do administrador. Também é discutível se a mera repetição desse princípio sensível seria suficiente para sua obediência, já que a própria Constituição federal, dada a abstração desse princípio, concretiza-o em regras, como a que estabelece prazo de sessenta dias para a análise da prestação de contas anual do Presidente da República (artigo 71, I, da CF).
3.2 CASUÍSTICA: A CÓPIA DO ARTIGO 35, IV, DA CF
Na Reclamação 383[24], em que o Supremo Tribunal Federal adotou a tese de que as normas-cópia da Constituição estadual de normas obrigatórias da Constituição federal são autênticas normas jurídicas, o ministro Moreira Alves forneceu argumento de ordem prática favorável à tese da juridicidade da cópia dos princípios sensíveis. Afirmou que a adoção da tese da ociosidade dos preceitos copiados implicaria o desaparecimento de uma das hipóteses em que a Constituição federal admite a intervenção pelos Estados-membros nos municípios situados em seu território.
É que o artigo 35, inciso IV, da Constituição federal, possibilita a intervenção dos Estados-membros nos Municípios para assegurar os princípios estabelecidos na Constituição estadual. Esses princípios, conforme entendimento majoritário da doutrina e do Supremo Tribunal Federal[25], sob pena de ofensa à igualdade entre os entes parciais, só podem ser os princípios sensíveis (artigo 34, VII, da CF).
Ao prevalecer a tese da ociosidade das normas que repetem os princípios sensíveis, não poderia haver intervenção no Município com base nessas normas, pois, conforme afirmou Moreira Alves:
“[…] a intervenção no Município, que se faz também por meio de representação de inconstitucionalidade pelo parâmetro da Constituição Estadual (e representação que acarreta a suspensão, com eficácia erga omnes, da execução da norma municipal impugnada como providência preliminar), ou não se poderá fazer porque as normas de reprodução são ociosas e sem qualquer eficácia, ou – ilogicamente – poderá ser feita, controlando-se, por via dela, a constitucionalidade das leis municipais em face de todos os princípios contidos na Constituição Estadual (inclusive os federais obrigatórios inocuamente reproduzidos) e por ela tidos como sensíveis. Note-se, ademais, que, tanto para a representação de inconstitucionalidade interventiva quanto para a ação direta de inconstitucionalidade, no âmbito estadual, o inciso IV do artigo 35 e o parágrafo segundo do artigo 125, ambos da Carta Magna Federal, estabeleceram como parâmetro a Constituição Estadual, sem qualquer distinção com relação às normas nesta contidas”.[26]
O equívoco está em não distinguir a norma extraída do artigo 34, VII, da CF, da que se extrai do artigo 35, IV, da CF. Enquanto a primeira estabelece uma obrigação negativa para o Constituinte estadual, estabelecendo-lhe a obrigação de não desrespeitar os princípios sensíveis sob pena de intervenção da União, a segunda norma, por sua vez, estabelece uma obrigação positiva aos Estados-membros, de somente intervir nos Municípios em caso de ofensa aos: “[…] princípios indicados na Constituição estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial”.
No primeiro caso é irrelevante a repetição, pois há relação hierárquica entre a norma que se extrai do artigo 34, VII, da CF, e as normas da Constituição estadual. E, como já apontado, eventual repetição de norma, no caso, seria inócua, pois não representaria cumprimento, descumprimento, tampouco aplicação de norma superior.
No segundo, caso determinado Constituinte Estadual estabeleça como hipótese de intervenção nos Municípios nele situados a ofensa aos princípios sensíveis; estará, em verdade, aplicando, e não repetindo a norma do artigo 35 IV, da CF. Repetiria se reeditasse a ordem emitida pela Federação que permite aos Estados-membros intervir nos Municípios, não no caso de estabelecer comando próprio. Além do que, a repetição das hipóteses contidas no artigo 34, VII configura somente repetição do preceito primário da norma extraída desse dispositivo da Constituição, e não da norma que desse se extrai.
Daí por que o artigo 35, IV, da CF, não pode ser consideração exceção à regra da desnecessidade de cópia, pelo Constituinte estadual, das normas obrigatórias da Constituição Federal aos Estados-membros.
4- CONCLUSÃO
Se as Constituições dos Estados-membros são subordinadas à Constituição total, é desnecessária a cópia das normas de observância obrigatória da Constituição federal – normas da Constituição total – pelo Poder Constituinte Decorrente. É que norma inferior não pode determinar a eficácia de norma superior. Desse modo, o Estado-membro não é obrigado a copiar as normas da Constituição federal obrigatórias a esse ente parcial, sob pena de considerá-las subordinadas às normas inferiores da Constituição estadual.
Mesmo as normas sobre a organização dos Estados-membros contidas na Constituição federal não precisam ser copiadas para a Constituição estadual. Não há razão para diferenciar normas da Federação que garantem a unidade federal das que estabelecem subordinações aos entes parciais.
No entanto, caso o Poder Constituinte estadual copie norma da Constituição total, mesmo não sendo obrigado, pode-se afirmar que o ato de cópia implica a criação de mero texto pertence à Constituição estadual, que não pode ser considerado pertencente ao Direito, ou melhor, norma jurídica. Se toda norma jurídica, a não ser a norma fundamental – a qual só cria norma jurídica – e o último ato de aplicação do direito – o qual só aplica a norma jurídica –, deve aplicar e criar norma jurídica[27], é porque as normas da Constituição estadual que repetem normas da Constituição federal de observância obrigatória não são normas jurídicas. Primeiro, porque o ato da cópia não representa a aplicação da norma superior da Constituição Total, que, ao instituir o Poder Constituinte Decorrente, apenas o limitou a observar os princípios da Constituição federal (artigo 25, da CF). Segundo, porque a cópia de norma pelo sujeito obrigado não cria norma inferior. Terceiro, porque não se pode considerar ilícito/inválido o ato de cópia de normas de observância obrigatória da Constituição federal pelos Estados-membros.
Quanto a um possível caráter de reforço dessas “normas” da Constituição estadual[28], trata-se de fenômeno não pertencente ao Direito, para o qual importa apenas o ato do sujeito obrigado, e não a vontade de cumprir ou descumprir a norma superior. Como afirmou Kelsen[29], com acerto, a vontade de aderir do sujeito obrigado é irrelevante, já que se pode aderir a um comando e não o cumprir – como o criminoso que aprova a norma que proíbe o homicídio, mas que, num acesso de raiva, acaba matando alguém – como também cumprir o comando sem aderir à ordem– como o pagamento de imposto por contribuinte que tem a certeza de que o dinheiro pago será desviado após o ingresso na receita do Estado.
Analista judiciario do STJ, ex-tecnico administrativo da Procuradoria Geral da Republica
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