A judicialização do direito social à saúde, sua especialidade em relação aos demais direitos sociais e o teor exceptivo frente à reserva do possível

Resumo: A partir de um estudo doutrinário e jurisprudencial, este trabalho procura romper e reformular o atual entendimento sobre a Teoria da Reserva do Possível, explicitar a ideia de especialidade do direito social à saúde frente aos demais direitos sociais, com enfoque na efetivação deste direito por intermédio da prestação jurisdicional, diante da necessidade da recorrência ao Judiciário em virtude da inércia e negatividade do Executivo. Muitas vezes, o Estado se reveste com a escusa da escassez de recursos públicos, insuficientes para promover o mínimo existencial, que tangencia o direito à saúde e, por conseguinte, transgredindo o direito ao bem jurídico mais importante garantido por nossa Lei Maior: a vida. A especialização da justiça e de suas funções essenciais, isto é, do Ministério Público, dos componentes das Defensorias Públicas, nos âmbitos estadual e federal, e até mesmo dos advogados faz-se cada vez mais necessária, a fim de que se efetive a dignidade da pessoa humana e esse direito tão essencial à vida.

Palavras-chave: Direitos Sociais. Judicialização. Saúde. Reserva do Possível. Mínimo Existencial. Dignidade da Pessoa Humana. Especialização.

Abstract: From a doctrinal and jurisprudential study, this work seeks to break with the current understanding of the Theory of Possible Book, explaining the idea of ​​specialty social right to health in the other social rights, focusing on the effectiveness of this right through rendering court, faced with the necessity of recurring to the judiciary by virtue of inertia and negativity Executive. Often, the State covers with the excuse of shortage of public funds, insufficient to promote the existential minimum, tangential to the right to health and therefore violating the right to the important legal right guaranteed by our highest law: life. The specialization of justice and its essential functions, the public prosecutor, the components of the Public Defender, the state and federal levels, and even advocacy it is increasingly necessary, so that the dignity becomes effective the human person and that right so essential to life .

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Keywords: Judicialization. Possible Health Reserve. Existential min. Dignity of the Human Person. Specialization.

Sumário:

1 – Introdução9

2 – Saúde: um direito fundamental11

3 – A saúde no estado brasileiro13

4 – A dignidade da pessoa humana corroborada pela teoria do

Mínimo existêncial 15

5 – A gênese da teoria da reserva do possível17

6 – A reserva do possível como escusa da efetivação do direito social à saúde e a necessidade de evolução do princípio da

Reserva do possível19

7 – O descaso e a burocracia do executivo, a imprescindível judicialização e a necessidade de especialização da justiça para a efetiva promoção do direito social à saúde22

8 – Conclusão26

Referências27

1 Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil preceitua a saúde como um direito fundamental e social. Ademais, autorizou a criação de um Sistema Único de Saúde (SUS), que não tem excedido às expectativas de efetivação desse direito. Dessa forma, muitos brasileiros recorrem à prestação jurisdicional, a fim de que lhes sejam conferidos o direito a um tratamento de saúde digno. Não é difícil concluir que a questão não pode ser tratada como reserva do possível, frente o caráter especial do direito à saúde cuja necessidade faz-se perceber simplesmente pelo fato de se estar vivo. Sucintamente, o direito à saúde é indubitavelmente inseparável do direito à vida, direito básico à sobrevivência, que possibilita o exercício de direito e deveres.

Em virtude da deficitariedade do Sistema, a necessidade de especialização da justiça nos casos do SUS é mais que necessária, uma vez que há expressivo número de cidadãos que necessitam recorrer ao judiciário para que possa ver conferido seu direito à saúde. As burocracias executiva e judicial não podem ser uma barreira e ir contra um preceito constitucional fundamental e social, caso contrário transgrediriam um dos fundamentos da República Federativa: a dignidade da pessoa humana. Entretanto, lamentavelmente, elas são fato.

De encontro à efetivação plena do direito à saúde, sobretudo àquela realizada pela prestação jurisdicional, vai a Teoria da Reserva do Possível. Esta dispõe sobre a necessidade de observância à razoabilidade da pretensão a fim de que se estabeleça o que poderá e o que não será possível realizar a partir do exercício da atividade estatal. Contudo, não é possível conceber o direito à saúde como um direito social qualquer, isto é, tratá-lo como os outros (educação, moradia, trabalho, lazer). Certamente, o referido direito é dotado de certa especialidade, que se revela na obrigação de ser resguardado precípua e integralmente, sem variações, uma vez que sem ele não é possível auferir quaisquer outros direitos. Coloquialmente, sem saúde não se é nada. Desse modo, o direito à saúde deve ser tratado como essencial frente às outras necessidades do ser humano.

A partir de uma visão teleológica, nota-se que a Teoria da Reserva do Possível, ao privar pela razoabilidade da pretensão, por vezes resvala fatidicamente num dos fundamentos da República Federativa do Brasil, de forma a transgredi-lo. É possível extrair que, ao optar pelo atendimento razoável do paciente, a garantia à saúde não é resguardada de forma plena e integral, e, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial são desconsiderados. Isto é, quando o tratamento médico mais se fizer necessário ao cidadão, o Estado poderá não se ver compelido a prestá-lo em sua completude, em respeito à reserva do possível e em detrimento das necessidades básicas de sobrevivência dos particulares.

Notoriamente, a garantia fundamental mais relevante da Constituição brasileira vigente, a vida, também poderá ser cessada com a aplicabilidade da Reserva do Possível nas questões referentes à saúde. Reforça-se que não há que se falar em vida apartando-a da saúde. Não se trata meramente de estar vivo, ainda que enfermo.

A Garantia Fundamental a que se refere a nossa Lei Maior é a vida saudável, a fim de se poder usufruir dos direitos conferidos e de se praticar os deveres coercitivos.

A intenção deste trabalho, ao final, é também a de informar a existência de possibilidades que minimizariam a falta de efetividade de prestação da saúde. Observando o caráter multidisciplinar do direito à saúde, isto é, a necessidade de vários campos e órgãos se unirem, é possível que se chegue à proteção do bem maior, a vida.

2 Saúde: um direito fundamental

A palavra saúde tem sua etimologia advinda do latim: “salus,útis”, que significa salvação, conservação (da vida); dessa forma ensina o dicionário Houaiss (2007). Por todos os séculos, sempre se preocupou com a possibilidade de se estender a vida, fato que levou ao desenvolvimento da medicina e de outros campos de estudo, como até mesmo o Direito, revelando um caráter multidisciplinar da saúde.

Henrique Hoffmann Monteiro Castro (2005) ensina que por saúde deve-se entender a correspondência:

“a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças. Em outras palavras, saúde significa estado normal e funcionamento correto de todos os órgãos do corpo humano”. (CASTRO, 2005).

A todo tempo, o ser humano tenta se proteger daquilo que lhe poderá ameaçar e estuda a possibilidade e necessidade de desenvolver medicamentos, vacinas, procedimentos e métodos profiláticos a fim de se preservar a saúde.

O direito à saúde, fruto da evolução dos direitos fundamentais e humanos, inclui-se entre um direito intangível, indisponível, do qual não se pode abrir mão, vez que se revela indissociável do direito à vida. Assevera-se ser um dos mais preciosos direitos do ser humano, visto o caráter especializado que o reveste por estar umbilicalmente ligado à vida. Dessa forma, defende o Defensor Público da União André da Silva Ordacgy (2007):

“O direito à saúde insere-se numa dimensão social, fruto da evolução dos direitos humanos fundamentais e do conceito de cidadania plena. O direito à saúde pode ser considerado o direito humano e social mais importante, de caráter universal, essencial e inafastável, porque umbilicalmente ligado ao direito à vida, o que se percebe por seus antecedentes históricos e pelo alto nível de normatização da matéria no âmbito dos direitos interno e internacional”. (ORDACGY, 2007).

E continua:

“A saúde encontra-se entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano, digna de receber a tutela protetiva estatal, porque se consubstancia em característica indissociável do direito à vida. Dessa forma, a atenção à saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais. Em outras palavras, a saúde é direito social fundamental, a ser exercido pelo Estado (e não contra o Estado), através da implementação de políticas públicas e sociais que propiciem seu gozo efetivo”. (ORDACGY, 2007).

Fundamental é aquilo que é básico, sem o qual não se pode evoluir. Grafa da seguinte forma o significado do verbete “fundamental” o dicionário Houaiss (2007): ”fundamental: que tem caráter essencial, determinante, básico e indispensável”. A partir desse ensinamento, percebe-se que é possível caracterizar o direito à saúde com todos estes adjetivos, não restando duvidoso o seu caráter fundamental à existência humana.

3 A saúde no estado brasileiro

A Constituição da República Federativa do Brasil, além de incluir a saúde entre os direitos sociais, dedica uma seção por inteiro somente ao tema (Arts. 196 a 200, Título VIII, Capítulo II, Seção II). Segundo o artigo 196 da Lei Maior, “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", por conseguinte, houve a instituição do Sistema Único de Saúde – SUS – a fim de efetivar o direito apregoado pela Constituinte. (BRASIL, 1988).

A Carta Magna de 1988, ademais, traz entre os fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, no art. 1º, III. Da mesma forma, o direito à saúde é garantido pelo texto constitucional, no art. 5º (Caput), que dispõe sobre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Uma das formas de proteção e garantia deste fundamento é a partir da proteção e promoção à saúde, seja de forma profilática ou terapêutica. Estes preceitos revelam-se na consagração da Teoria do Mínimo Existencial, cujo ensinamento será apresentado mais adiante.

Segundo Luis Roberto Barroso (2001), a norma trazida pelo art. 196 da Carta Política de 1988 define aquilo que seria um direito subjetivo, exigindo prestações positivas do Estado:

“Aqui (…) o dever jurídico a ser cumprido consiste em uma atuação efetiva, na entrega de um bem ou na satisfação de um interesse. Na Constituição de 1988, são exemplos dessa espécie os direitos à proteção da saúde (art.196, CRFB, 1988). (BRASIL, 1988).”

No Brasil, a Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, instituiu o SUS, ao qual competem ações e serviços públicos de saúde que deve integrar uma rede regionalizada e hierarquizada. São algumas características do SUS: descentralização, atendimento integra e participação da comunidade.

Sendo também a jurisprudência, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal, uma das fontes do direito brasileiro, a partir de vários julgados, como no caso do o exemplo a seguir, é possível extrair a ideia do direito à saúde como um dos mais importantes trazidos à população brasileira pela Carta Magna de 1988:

“Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 273834 (DJ 02/02/2001), de relatoria do Min. Celso de Mello. SAÚDE. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. PACIENTE COM HIV/AIDS. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS . DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO. CF/88, ARTS. 5º, “CAPUT”, E 196. PRECEDENTES DO STF.”

Derradeiramente, observa-se o sistema de saúde brasileiro num todo em composição pela iniciativa estatal (SUS) e pela iniciativa privada, conforme dispõe o art. 199 da Lei Maior: “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.

4 A dignidade da pessoa humana corroborada pela teoria do mínimo existêncial

Segundo o professor, desembargador e constitucionalista Kildare Gonçalves Carvalho (2008) “no âmbito da Constituição Brasileira de 1998, a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o sistema de direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base nesta é que devem ser aqueles interpretados (…)”. E continua: “(…) o princípio abrange não só os direitos individuais, mas também os de natureza econômica, social e cultural, pois, no Estado Democrático de Direito a liberdade não é apenas negativa, entendida como ausência de constrangimento, mas liberdade positiva, que consiste na remoção de impedimentos (econômicos, sociais e políticos), que possam embaraçar a plena realização da personalidade humana”. Interpretando-o, corrobora-se que os direitos sociais analisados à luz da vigente Constituição estão dotados de um teor cuja principal intenção é garantir uma vida digna ao ser humano. Deve-se entender por dignidade, segundo o dicionário Houaiss a “qualidade moral que infunde repeito”. Depreende-se, pois, que a pessoa, por sua própria qualidade humana, possui inata conotação de dignidade, isto é, o simples fato de ser humana já a faz possuir dignidade, que, por sua vez, confere-a respeito. Dessa forma, o mestre Kildare (2008) conclui que “a dignidade da pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado como um fim em si mesmo”. (HOUAISS, 2007, virtual)

A condição de respeito imposta pela dignidade da pessoa humana, todavia, não deve ser entendida de forma exacerbada, como cortejos e pompas. Requer-se, ao relevar um direito ou ser com dignidade humana, o respeito mínimo. No que tange à saúde, trata-se de mínimas condições para uma vida saudável, a fim de que se possa usufruir e exercer direitos e deveres.

Nesse sentido, ensina Sarlet Figueiredo (2010):

“A Dignidade da Pessoa Humana somente será assegurada – em termos de condições básicas a serem garantidas pelo Estado e sociedade – onde a todos e a qualquer um estiver garantida nem mais nem menos do que uma vida saudável”. (FIGUEIREDO, 2010, p.22-24).

Ao tratar a dignidade da pessoa humana sob tal perspectiva, resvala-se na Teoria do Mínimo Existencial. O mínimo existencial é a base de uma vida digna;  garantia inerente à pessoa que a resguarda pela efetividade de todo suprimento necessário ao desempenhar qualquer ato, até mesmo o de falecer. Diz-se, ademais, que se trata dos alicerces do ser humano, direitos sem os quais não se pode viver dignamente. Os direitos fundamentais, as garantias individuais e os direitos sociais são dotados de tal especialidade, ao serem considerados como indispensáveis à vida humana. Contudo, hodierna e corriqueiramente, vê-se a transgressão do mínimo existencial em diversas seções desses direitos.

No que tange à saúde, a não garantia de uma vida saudável já se revela como transgressão ao mínimo existencial e, por sua vez, à dignidade da pessoa humana. Observa-se, ainda, que não se devem fazer distinções entre enfermidades mais graves (ou incuráveis) e menos graves (ou curáveis), sendo estas as debeladas com fármacos e tratamentos mais baratos, mais ligeiros, que causam menos sofrimento e aquelas as de cuidados lentos, dispendiosos e de remoto fim. Ou seja, independente da doença que vitima o ser humano, o fato de não relevá-la com a importância devida deve ser visto como transgressão ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana. Assim entende André da Silva Ordacgy (2007):

“É inquestionável que esse direito à saúde deve ser entendido em sentido amplo, não se restringindo apenas aos casos de risco à vida ou de grave lesão à higidez física ou mental, mas deve também abranger a hipótese de se assegurar um mínimo de dignidade e bem-estar ao paciente, como, por exemplo, quando a Defensoria Pública da União (Núcleo de Florianópolis – SC) garantiu, através de medida judicial proposta nos juizados especiais federais, o fornecimento do medicamento Viagra a um paciente tetraplégico.” (ORDACGY, 2007).

Após todas essas explanações, nota-se que, ainda assim, é possível harmonizar a saúde, a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial com a prestação do efetivo direito à saúde por parte do Estado em observância à Reserva do Possível, como será tratado a seguir.

5 A gênese da teoria da reserva do possível

Em virtude de determinada política de limitação do número de vagas, nos cursos de graduação, adotada na década 1970 pelo ordenamento alemão, estudantes insatisfeitos por não terem sido admitidos em escolas de medicina de Munique e Hamburgo, amparados pelo art. 12 da Lei Fundamental do referido País, pleitearam, perante o Tribunal Constitucional Alemão, sob a pretensão de que “todos os alemães têm direito à profissão, local de trabalho e centro de formação”, os seus respectivos direitos à graduação em curso superior. A prestação jurisdicional fora realizada, e a Corte Alemã consolidou entendimento nas vertentes da razoabilidade da pretensão. Isto é, entendeu-se que uma maior oferta do número de vagas nas faculdades alemãs seria possível desde que fossem observados os limites da possibilidade de prestação do serviço pelo Estado Alemão (PEREIRA, 2012).

A aplicabilidade da teoria no caso referido acima é de certa forma plausível. Essa realidade é explícita no Brasil, onde tem direito de se graduar gratuitamente aqueles capacitados a serem aprovados no vestibular das universidades públicas. Todavia, a aplicabilidade da Teoria original no campo do direito social à saúde é no mínimo transgressora, no sentido de opressão.

Há que se ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu pela não aplicabilidade de tal teoria, em exaltação aos direitos à saúde e à vida. Observe:

“Ementa: ECA. TRATAMENTO FISIOTERAPICO. DIREITO A SAÚDE. ILEGITIMIDADE PASSIVA. INDISPONIBILIDADE ORÇAMENTÁRIA. PRINCIPIO DARESERVA DO POSSIVEL. Recurso contra decisão que determinou a ente estatal que providencie tratamento consistente em sessões de fisioterapia. Alegações recursais que repetem argumentos que afrontam a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal Federal. Recurso manifestamente improcedente. NEGADO SEGUIMENTO. EM MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento Nº 70055310858, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 24/07/2013, grifo nosso).”

Todavia, é mais que necessária uma mudança de referencial quando da aplicação da Teoria da Reserva do Possível diante da especialidade do referido direito social, colocando o indivíduo como ponto central da análise, observando suas necessidades existenciais mínimas de modo a promover dignidade da pessoa humana.

6 A reserva do possível como escusa da efetivação do direito social à saúde e a necessidade de evolução do princípio da reserva do possível.

Amparado pela Reserva do Possível e sob o argumento de que o erário não possui reservas suficientes (nunca demonstrado de forma clara e evidente) para arcar com as muitas pretensões e demandas do Sistema de Saúde, o Estado tem tentado esquivar-se do cumprimento das decisões e sentenças que a todo tempo são prolatadas objetivando garantir a plenitude do direito social à saúde previsto no ordenamento jurídico brasileiro. A referida alegação estatal até seria sensata caso não houvesse na Constituição da República Federativa do Brasil a garantia do mínimo existencial, denotada pela dignidade da pessoa humana.

Ao longo da história, os povos mundiais (com as devidas variações) sempre caminharam em direção à promoção e ao resguardo da vida humana, resultando no hodierno conceito de dignidade da pessoa humana. Seja no que tange à liberdade, à igualdade, ou à propriedade (entre outros) as mais diversificadas espécies de normas existem para que se proteja o ser humano. Alguns tropeços à parte, evoluímos sempre com o ideal de bem comum, de marginalização daquilo que de uma forma ou de outra possa colocar em risco a vida humana. Desta forma, haver mister a evolução do princípio da Reserva do possível, vez que sua forma fora concebida em tempos não tão democráticos como a atual, e cuja conotação nota-se ultrapassada.

A Reserva do Possível não pode servir-se como escusa para a promoção de um direito social tão importante como a saúde, positivado em nosso ordenamento jurídico à luz de uma Constituição democrática e sob a perspectiva de um Estado Democrático de Direito. É mais que necessária sua reformulação. Não se pode aceitar que a falta de recursos seja argumento válido frente à necessidade de sobrevivência de uma pessoa. Corroborando com tal tese, na Arguição de Preceito Fundamental 45-9/DF, cujo relator fora o Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal prolatou, in verbis:

“Ementa: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)”.

Uma vez garantida como direito social em nossa atual Constituição, é inaceitável que a saúde não seja efetivamente oferecida aos cidadãos brasileiros. Obsta, porém, que não se trata meramente de um discurso positivista e preocupado com a formalidade do direito. Senão, releva-se a necessidade de real materialidade e efetividade desse direito social. Isto é, oferecer saúde de forma plena passou a ser dever do Estado, vez que, observada a impossibilidade de vários cidadãos não ter acesso a ela por sua própria força, muitos morrem sem sequer gozarem do mínimo desse direito.

Ao elencar a saúde como direito social, o próprio Estado entendeu que, caso não tomasse para si tal responsabilidade, muitas pessoas morreriam sem o mínimo de dignidade. E não se trata de fato controverso, pois tratamento médico é dispendioso e a maioria da população brasileira não possui acesso ao sistema de saúde particular.

A atual forma do princípio da Reserva do Possível diz-se preocupar com a coletividade, em observância ao bem comum, todavia, em detrimento das necessidades subjetivas dos cidadãos e, por conseguinte, não observando o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana.

Deve-se observar que a ideia de mínimo existencial (já superado no título anterior), em casos específicos, poderá ser subjetiva e particular. Isto é, o mínimo existencial para um indivíduo acometido pelo câncer, não é o mesmo mínimo existencial para um indivíduo portador de um vírus que lhe causa um mero resfriado. Isto é, ora, ambos merecem atenção especializada dentro do seu grau de periculosidade, de forma que o mínimo existencial a eles seja oferecido, a fim de que tenham pelo menos expectativa de sobrevivência e saúde. E é a partir dessa perspectiva que a Reserva do Possível precisa evoluir.

O argumento do Estado sobre a não possibilidade de prestação efetiva do direito à saúde em virtude do diminuto orçamento público é, muitas vezes, apresentado explicita e concisamente, de forma a não evidenciar e comprovar realmente a referida escassez de dinheiro público. O que se sabe é que todos os anos paga-se um valor vultoso por intermédio de tributos ao erário e, em retorno, o Estado escusas-se, sob o argumento de que não possui reservas suficientes para ajudar pessoas que muitas vezes sequer têm condições de arcar sua própria sobrevivência.

A proposta da “nova” Reserva do Possível é que, após analisado o caso em particular, observado o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, sejam oferecidas ao enfermo condições de continuar sua vida, desfrutando de seus direitos e cumprindo com suas obrigações.

Entende-se que o paciente acometido com câncer não poderá ser submetido, a título de exemplo, a um tratamento experimental no oriente, em virtude da realidade de esta prestação não ser obrigação do Estado. Todavia, é por completo dever deste oferecer o tratamento de quimioterapia necessário à reabilitação desse cidadão.

7 O descaso e a burocracia do executivo, a imprescindível judicialização e a necessidade de especialização da justiça para a efetiva promoção do direito social à saúde

Não é segredo para nenhum brasileiro a lamentável situação da saúde e do Sistema Único de Saúde no Brasil. As causas de tamanha deficitariedade são demasiadamente preocupantes, como: corrupção, má distribuição de verbas públicas, burocracias, falta de regulamentação, etc. Notam-se causas que não são fáceis de conter, ora porque dependem de fiscalização, ora porque o processo legislativo é moroso, ora porque não se é possível impor ilibação a nenhum ser humano.

Todos os dias, muitas pessoas perdem a vida tentando um atendimento médico nas filas dos postos de saúde, das unidades de pronto atendimento, dos prontos socorros, dos hospitais públicos. Não se trata de falta de qualidade no atendimento, senão do vultoso número de pacientes e do escasso contingente de profissionais e espaços físicos, onde seja capaz um atendimento minimamente digno. É um grave problema, também, a tentativa de aquisição de medicamentos, insumos ou realização de procedimentos médicos pela via administrativa. Muitas são as burocracias que se delongam no tempo; interregno que muitas vezes leva ao perecimento do paciente.

Quando negada a solicitação na via administrativa, resta ao enfermo a procura da prestação jurisdicional, que muitas vezes não é célere, não especializada (no sentido de não haver certa prioridade na tramitação e informações que ajudariam na celeridade e também organização processual) e também burocrática. Dessarte, é de extrema importância a especialização do Judiciário diante da necessidade de se buscar a efetivação da saúde. Assevera-se não ser o caminho mais justo, todavia, é necessidade paliativa, uma vez que, como já demonstrado, as causas que geram a problemática são praticamente incuráveis.

Junto à necessidade de buscar a saúde, está a necessidade da justiça em se informar e se especializar, a fim de o problema não seja meramente transferido do Executivo para o Judiciário.

7.1  A quase impossibilidade de efetivação do direito à saúde na via administrativa

A resposta de requerimento de um fármaco, ou insumo ou quaisquer procedimentos médicos, ainda que na lista dos distribuídos administrativamente, na via administrativa, isto é, diretamente às autoridades, é quase sempre negativa. O cidadão protocola requerimento nas Secretarias de Saúde, ou estaduais ou municipais, instrumentalizados com os devidos documentos médicos comprobatórios. Algumas Secretarias disponibilizam aos pacientes formulário pronto somente para preenchimento.

Advogados que atuam em defesa do direito à saúde, como procuradores dos paciente, na maioria das vezes recorrem à via administrativa simplesmente para fazerem provas ou conseguirem negativas que os permitam impetrar um Mandado de Segurança, por exemplo.

É absurdo que não se consiga nada administrativamente quando se é demonstrado, com todas as provas, a hipossuficiência financeira do paciente a sua real necessidade de tratamento. Em casos como estes, sabe-se que a tutela jurisdicional será positiva, de forma a conceder ao enfermo o tratamento necessário a dispêndio do Estado, todavia a resposta administrativa é quase sempre negativa. Percebe-se, pois, uma mera burocracia protelatória.

7.2 A necessidade da judicialização

A impossibilidade de se conseguir um tratamento completo na via ordinária no SUS, em seus hospitais, e as burocracias e negativas do Estado que a todo momento são remetidas aos necessitados, faz com que estes recorram ao judiciário a fim de vencer a batalha contra a enfermidade. Trata-se de uma movimentação da máquina judiciária muitas vezes desnecessária, como relatado em supra; visto que, já em via administrativa, o paciente já demonstrara a precisão do tratamento e a insuficiência financeira. Nesse sentido, André da Silva Ordacgy (2007), critica:

“A notória precariedade do sistema público de saúde brasileiro, bem como o insuficiente fornecimento gratuito de medicamentos pelos órgãos públicos, muitos dos quais demasiadamente caros até para as classes de maior poder aquisitivo, têm feito a população civil socorrer-se das tutelas judiciais de saúde para a efetivação do seu tratamento médico, fenômeno esse que veio a ser denominado de “judicialização” da saúde. (ORDACGY, 2007).”

E continua:

“(…) incluem-se no direito fundamental à saúde até mesmo aqueles medicamentos ou tratamentos médicos não contemplados administrativamente pelo Sistema Único de Saúde – SUS, visto que a norma constitucional do art. 196 tem natureza elástica e caráter imperativo sobre as normas regulamentares administrativas baixadas pelo Poder Executivo. O Estado deve desenvolver as atividades de saúde dos níveis mais básicos de cuidado até os mais complexos” (ORDACGY, 2007).

7.3 A especialização como proposta de soluções

Primeiramente, ressalta-se que a proposta de especialização da justiça, no que tange a necessidade de judicialização do direito à saúde, não se iguala à proposta de uma justiça apartada das demais já existentes, como por exemplo, ocorreu com a justiça do trabalho. Senão, a intenção é a promoção do direito à saúde através da sua multidisciplinariedade, com acompanhamento social, psicológico, quando necessário, e jurídico. Tais procedimentos ajudariam na celeridade da prestação jurisdicional, promovendo também certo desacúmulo da quantidade de processos que a todo momento são ingressados de forma desnecessária. Dessa forma também entende Ordacgy:

“Outro aspecto de nodal importância na questão da saúde é a natureza multidisciplinar de que se deve revestir o atendimento prestado ao paciente, devendo envolver a cooperação das diversas áreas de atuação, tais como a médica, a psicológica, a assistência social e a jurídica. (ORDACGY, 2007).”

A verdadeira intenção é a prestação de um acompanhamento profissional, conciso, ético e funcional. É certa, por exemplo, a necessidade de uma avaliação com profissionais da área de assistência social, a fim de se esclarecer qual a real condição do paciente que pleiteia o medicamento, encaminhando-o para o profissional da Psicologia caso necessário. O que se propõe é que tal especialização ocorra no âmbito da justiça. Num primeiro momento tais ações parecem ser deveres somente do Poder Executivo, todavia não cabe somente à atividade jurisdicional julgar. Ela deve, nos casos em que lhe for benéfico, prover ações que maximizarão sua prestação. O fato é que não se pode tratar uma pessoa que necessita de um AS como uma pessoa que necessita de um medicamento para câncer.

Dessa forma, faz-se necessária a criação de assessorias técnicas para atuar adjuntamente aos magistrados em suas decisões. O fato é que muitos medicamentos estão nos programas do SUS. É absurdo deferir pleitos com os quais os próprios cidadãos têm condições de arcar, ou que já são abrangidos por programas do governo. Nesse sentido critica a Procuradora do Estado de São Paulo Juliana Yumi Yoshinaga:

“A atual posição da jurisprudência brasileira dominante que, frequentemente, sem audiência prévia dos gestores da saúde e, pior, desconsiderando ações e serviços públicos de saúde, determina o fornecimento indiscriminado de tudo quanto requerido pelos demandantes possui um efeito desorganizador importante na gestão da saúde pública. (YOSHINAGA, 2011).”

Outra sugestão é uma aliança entre os órgãos. Por exemplo, no Estado de Minas Gerais, uma vez na semana, farmacêuticos, servidores públicos da administração direta, são encaminhados à defensoria pública do estado para prestar informações aos necessitados sobre quais fármacos encontram-se nas listas de dispensa administrativa do SUS, tais como outras informações pertinentes a cada caso.

8 Conclusão

A problemática em torno da efetivação do direito social à saúde é muito grande. Todavia, existem soluções, que dependem de políticas públicas e organização por parte daqueles responsáveis por desenvolvê-las. Tratando-se de um Estado Democrático de Direito, é preciso também ouvir os cidadãos, a população. Não se trata de participação generalizada de leigos, senão, da participação dos diversos segmentos sociais: da Medicina, do Serviço Social, do Direito, da Psicologia; de forma a levantarem os pontos mais deficitários e aqueles que merecem ser continuados, trabalhando em conjunto, diante do aspecto multidisciplinar do direito à saúde.

Ademais, fato é que tudo aquilo que se revela a transgredir a vida humana ou que a impeça de se desenvolver deve ser rechaçado em todos os aspectos. O direito à saúde está umbilicalmente ligado à vida, fato que o torna tão fundamental quanto este. Destarte, não é plausível condicionar a falta da saúde no Brasil à falta de recursos financeiros do País, sem ao menos apresentar outras soluções, deixando de considerar aquele que para muitos é o principal fundamento da República Federativa do Brasil: a dignidade da pessoa humana. Nesse caso, a reserva do possível torna-se escusa falha sobre a impossibilidade do fornecimento do direito pleiteado, sem a real demonstração da não condição de expensas dos tratamentos médicos por parte do Estado.

Em virtude da inércia e da negatividade do Poder Executivo. Nota-se, então, a necessidade de especialização da justiça, no sentido de desenvolver políticas que facilitariam o acesso à saúde, sem burocracias e protelações desnecessárias.  Referidas políticas ajudariam até mesmo o Judiciário a se desafogar, visto o vultoso número de ações judiciais que todos os dias batem à sua porta, com o pleito de fármacos, insumos e procedimentos médicos que já são oferecidos pelo Estado em programas sociais. Mas, o mais importante, é a possibilidade de garantir a todos que precisarem o direito a uma vida saudável e digna.

Referências
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo, ed. Saraiva, 2001.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição, direito constitucional positivo. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Do direito público subjetivo à saúde: conceituação, previsão legal e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-membro. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6783 Acesso em 17.mar.2010.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss. Instituto Antônio Houaiss – versão 2.0a, abril 2007 – ed. Objetiva.
ORDACGY, André da Silva. A tutela de direito de saúde como um direito fundamental do cidadão. Disponível em http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_saude_andre.pdf Acesso em 28.mar.2014
PEREIRA, Fernanda de Aguiar. O poder judiciário e as demandas de saúde. In: CASTRO, Dayse Starling Lima (Coord.) Direito Público. Belo Horizonte: Instituto de Educação Continuada, 2012.
SARLET, Ingo Wolfgang e Figueiredo, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In. SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, Orçamento e “Reserva do Possível”. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado. P.22-24, 28.
SILVA, Adão Ferreira da. O direito à saúde e o princípio da reserva do possível. In: CASTRO, Dase Starling Lima (Cood.). Direito público. Belo Horizonte: Instituto de Educação Continuada, 2012.
YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do direito à saúde: a experiência do Estado de São Paulo na adoção de estratégias judiciais e extrajudiciais para lidar com esta realidade. Revista Eletrônica sobre a reforma do Estado; dezembro/janeiro/fevereiro 2011 – Salvador – Bahia
Agravo de Instrumento Nº 70055310858, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 24/07/2013

Informações Sobre o Autor

Lucas Renan Marques

Bacharel em Direito pela PUC-MINAS São Gabriel


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Equipe Âmbito Jurídico

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