Resumo: Este artigo tem o foco de analisar a questão geral do crime de lavagem de dinheiro através de paraísos fiscais, abrangendo a origem desta expressão, bem como conceitos teóricos e métodos utilizados no emprego do crime. Ainda, visa observar e conceituar, de maneira objetiva, paraíso fiscal como destino de capital oriundo de atividade ilícita. Atualmente, verifica-se a dificuldade de repatriar este capital, uma vez que já incorporado na economia do Estado receptor, e, assim, caracterizando a transnacionalidade do crime, uma vez que incide em ordenamentos jurídicos dos Estados envolvidos. Com este trabalho, tenta-se enfatizar e estudar a cooperação internacional para a recuperação deste capital, interpretando leis e acordos internacionais e, ao final, apresentando considerações sobre o empenho internacional em coibir a prática do crime.
Palavras-chave: Lavagem de dinheiro, paraíso fiscal, crime transnacional, acordos internacionais, recuperação de ativos.
Abstract: This article has the focus to examine the general question of the laundering money crime through tax havens, including the origin of this expression, as well as theoretical concepts and methods used in the employment of the crime. Still, observe and conceptualize, objectively, as a tax haven destination of capital from the illicit activity. Currently, there is the difficulty to repatriate this capital, as already embedded in the economy of the receiving State, and, thus, characterizing the trans-national crime, as it focuses on the legal systems of states involved. With this work, we try to emphasize and study the international cooperation for the recovery of this capital, interpreting laws and international agreements and, ultimately, with considerations about the international effort against the the crime.
Keywords: Money laundering, tax haven, transnational crime, international agreements, asset and capital recovering.
Sumário: Introdução. 1. Noções introdutórias a lavagem de dinheiro e paraísos Fiscais. 2. O crime da lavagem de dinheiro: regime jurídico nacional e transnacionalidade. 3. Cooperação jurídica internacional para a repatriação de ativos. Considerações Finais. Bibliografia.
Introdução
Atualmente, verifica-se a dificuldade de se responsabilizar agentes os quais corroboram com a prática do ilícito. A lavagem de dinheiro é um ilícito penal de alta complexidade, ainda se tratando da transnacionalidade do crime.
O tema proposto detém relevância por se tratar de um assunto que está estampado em jornais e noticiários diariamente e, pouco se fala, na recuperação deste capital oriundo do ilícito e, menos ainda, da cooperação internacional a fim de coibir e responsabilizar culpados.
É fato que, tal dificuldade se atribui às questões inerentes aos paraísos fiscais e seu protecionismo aos investidores, aliado ao sigilo fiscal e bancário, assim, tornando possível o despejo de dinheiro ilícito em países adeptos do anonimato em transações financeiras.
Fato notório é a recuperação deste dinheiro após sua internalização e integração na economia local, bem como atribuir responsabilidades criminais, haja vista este dinheiro ter trilhado vários países, versando sob vários sistemas jurídicos, dentre os quais não disporem de um sistema legal regulador e punitivo à prática da lavagem de dinheiro.
Merece atenção o entendimento da operação da lavagem de dinheiro, especialmente através de paraísos fiscais, entendendo sua origem, bem como entendendo seu conceito. Ainda se faz necessário a análise da cooperação sobre a matéria, sob a ótica dos tratados e acordos internacionais e sua devida aplicação legal no Estado brasileiro.
Por fim, debruça-se sobre alguns preceitos da recuperação dos ativos oriundos da lavagem de dinheiro, entendo o princípio da reciprocidade como uma maneira eficaz de ter acesso a bens e capitais já internalizados depois de vencidas as etapas do branqueamento do capital, bem como entendendo a atuação do órgão brasileiro responsável pela recuperação deste capital.
O interesse na matéria justifica-se no estudo da cooperação internacional e, ainda, na maneira em que se procede a recuperação do dinheiro outrora maculado na forma de capital lícito e, por conseguinte, verificar como os Estados cedem a abertura de sua soberania para a devolução do capital ilícito.
1. Noções introdutórias à lavagem de dinheiro e paraísos fiscais
Ao realizar o estudo sobre lavagem de dinheiro e paraísos fiscais, justo se faz debruçar-se sobre a análise conceitual do tema proposto.
Este capítulo é introdutório à lavagem de dinheiro, bem como os denominados paraísos fiscais e contém algumas reflexões gerais sobre este crime, sua história, conceitos doutrinários e análise da conjugação lavagem de dinheiro e paraísos fiscais para a prática do ilícito.
1.1 Conceito e Evolução Histórica da Lavagem de Dinheiro
A lavagem de dinheiro, sendo um fenômeno criminológico, é, evidentemente, bastante antiga.
Entretanto, sua tipificação como modalidade criminosa na legislação, é extremamente recente.
Pontualmente, verifica-se a efetividade do estudo das definições dos conceitos, bem como estudar o tratamento internacional sobre o assunto e ainda realizar uma linha histórica acerca do tema.
1.1.1 Definição
Pela definição mais comum, a lavagem de dinheiro constitui um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país dos recursos, bens e serviços que se originam ou estão ligados a atos ilícitos (COAF, 1999, p. 8)[1].
O conceito mais simples para a lavagem[2] de dinheiro[3], em termos gerais, é fazer com que produtos e capitais adquiridos como produto de crime pareçam ter sido adquiridos legalmente. Assim, a lavagem de dinheiro constitui um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país dos recursos, bens e serviços que se originam ou estão ligados a atos ilícitos.
O entendimento do GAFI[4], lavagem de dinheiro é o processo que tem como objetivo disfarçar a origem criminosa dos proveitos de crime
Segundo a Lei nº 9.613/98, a qual institui a lavagem de dinheiro como ilícito penal, a lavagem de dinheiro imputa-se em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de crime”[5]
Como entende SILVA (2001)[6], lavagem de dinheiro é “a expressão que passou a ser utilizada para designar o dinheiro ilícito com aparência de lícito, ou seja, o ‘dinheiro sujo’ transformado em ‘dinheiro limpo’, ou, ainda, o ‘dinheiro frio’ convertido em ‘dinheiro quente’, com a ocultação de sua verdadeira origem”.
A lavagem de dinheiro caracteriza-se pelo conjunto de operações comerciais ou financeiras efetuadas a fim de transformar esse dinheiro “sujo” – recursos ganhos em atividades ilegais – em ativos aparentemente legais, ocultando a sua origem e permitindo que sejam utilizados para financiar estilos de vida luxuosos e para investir na continuidade da atividade criminosa ou até em atividades lícitas.
1.1.2 Tratamento Internacional
Existem vários tratados e convenções internacionais que são relevantes para a lavagem de dinheiro. No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), não existe nenhum dedicado exclusivamente à lavagem de dinheiro, mas vários abordam a obrigação jurídica dos Estados de criminalizar a conduta de converter ou transferir bens, ou de ocultar ou dissimular sua origem criminosa, além das medidas de bloqueio e confisco de bens, a transnacionalidade das condutas, a cooperação internacional, as técnicas especiais de investigação.
No âmbito Europeu, existem três Diretivas[7] (normas de aplicação regional, que obrigam apenas os Estados que compõem a União Européia) e duas Convenções[8] que tratam sobre lavagem de dinheiro.
O Brasil é signatário de todas as Convenções da ONU[9] tendo-as incorporado ao direito interno através de decretos[10].
O crime da lavagem de dinheiro pode ter característica exclusivamente nacional. Entretanto, com a utilização de paraísos fiscais, acaba obtendo o caráter transnacional e, desta feita, enseja a cooperação entre países com o intuito da prevenção, identificação e recuperação de bens e ativos.
1.1.3 Evolução Histórica
O método utilizado e batizado como lavagem de dinheiro, na história recente, nos remete à década de 20, na plena atividade da máfia norte-americana, onde mafiosos investiram seu capital, este de origem ilícita, em lavanderias locais, a fim de dar origem lícita ao dinheiro oriundo de atividade criminosa. Este ato de branqueamento de capital ficou conhecido como “Money Laundry”, em menção à utilização das lavanderias como forma de macular a origem do capital[11].
Este método de ocultação e branqueamento do capital era necessário, pois vigorava naquele país à época a “Lei Seca”[12], promulgada através da 18ª Emenda à Constituição[13], em 1920. Esta emenda constitucional proibiu a fabricação, a venda e o transporte de bebidas intoxicantes (aquelas que continham mais de 0,5 % de teor alcoólico). Enquanto esteve em vigor,[14] possibilitou o surgimento de várias organizações criminosas para o fornecimento de produtos e serviços ilegais, movimentando uma grande soma de dinheiro. Era necessário o branqueamento[15] deste capital, a fim de torná-lo lícito nas declarações de renda. Surgia assim, a lavagem de dinheiro nos tempos modernos, pois há relatos que camponeses na antiga China já utilizavam de métodos obscuros a fim de ocultar patrimônio do Imperador e, assim, recolher menos impostos[16].
Se, por um lado, a expressão em questão remonta ao início do século XX, a prática que ela descreve – revestir de licitude o dinheiro adquirido ilicitamente – é bem mais antigo do que se possa imaginar, pois há referências a ela até no Novo Testamento, na história de Ananias e Safira (WEISS, 2001).
Dos países pioneiros no combate à lavagem de dinheiro destaca-se a Itália que, em 1978, já desenvolveu a conduta típica que se resumia à imposição de obstáculos na identificação das origens dos bens. Muito se desenvolveu depois disso, tanto nas legislações internas como no âmbito internacional.[17]
1.2 Paraíso Fiscal: Concepções
Ao suscitar a transacionalidade do crime da lavagem de dinheiro, há de se falar que a hipótese de incidência da utilização dos paraísos fiscais[18] como um segundo Estado com a finalidade de branquear o capital obtido através de crime antecedente, seja ele por corrupção ou tráfico de substâncias proibidas, é uma prática complexa e que envolve conhecimentos técnicos específicos[19].
1.2.1 Conceito
A lavagem de dinheiro pode utilizar de vários caminhos para ser efetivada e uma das maneiras mais utilizadas e, de fato, mais técnica, é através do chamado paraíso fiscal[20]. A Receita Federal do Brasil entende como paraíso fiscal países ou dependências que tributam a renda com alíquota inferior a 20%[21]. O Brasil também entende como paraísos fiscais países cuja legislação permite manter em sigilo a composição societária das empresas.
O que se denomina paraíso fiscal é um pequeno país ou região com alíquotas de impostos especialmente baixas. Isso costuma levar cidadãos e empresas dos países com impostos altos a transferir sua residência ou sede para esses lugares e, na maioria dos casos, trata-se de centros financeiros offshore[22]. Com baixos impostos, aliado a um sigilo bancário especialmente rigoroso e um controle mínimo do mercado financeiro, os paraísos fiscais são o destino principal de bens e capitais de origem ilícita.
Os países que adotam o regime de práticas fiscais favorecidas ou preferenciais (preferential tax system), o fazem como forma de atrair atividades produtivas de comércio, serviços e investimentos, muitas vezes sendo única opção para arrecadação. A forma de atração de investimento estrangeiro e, por conseguinte, atração de capital outrora de origem ilícita, se dá através dos incentivos fiscais, isenções totais ou parciais (como exemplo: redução na base de cálculo, concessão de crédito, etc.).
Com propriedade, Heleno Tôrres (2001, p. 75/76) discorda da terminologia “paraíso fiscal”, versando que tal jargão, incorporada na doutrina do Common Law, e, adotada coloquialmente pelo Direito Tributário, para identificar países com concorrência fiscal prejudicial, torna-se ultrapassada, haja vista a positivação da Lei 9.430/96, em seu art. 24, onde passa a utilizar a expressão “países com tributação favorecida”.
De grande valia é a definição trazida por Heleno Tôrres para os países de tributação favorecida[23], para coroar o entendimento acerca de paraísos fiscais:
“A definição de “países com tributação favorecida”, como vem sendo apresentada pela doutrina, designa aqueles países que, para o tratamento fiscal dos rendimentos de não residentes ou equiparados a residentes, aplicam “reduzida” ou “nula” tributação sobre os rendimentos e que contam ainda com segredo bancário, falta de controle de câmbios e mantêm uma grande flexibilidade para a constituição e administração de sociedades locais. Mas suas manifestações variam caso a caso. Mister, pois, separar os países com tributação favorecida (“paraísos fiscais’” dos países com regime societário favorecido (“paraísos societários”), daqueles com regime penal favorecido (“paraísos penais”), mesmo sendo impossível encontrar uma forma exclusiva de um ou de outro, prevalecendo sempre as formas híbridas, segundo a vocação preponderante de cada uma deles.”[24]
Paraíso Fiscal, na acepção do termo, não significa e não nos remete à prática criminosa. Eles servem ainda como “condutos” em operações financeiras internacionais e na montagem do planejamento tributário[25] internacional para o treaty shopping[26] – que ocorre quando o contribuinte-empresário organiza seus negócios visando se beneficiar de um tratado de dupla tributação que, em princípio, não o beneficiaria, para eliminar ou reduzir a tributação sobre a renda – como base para intermediar este tipo de operação.
Um país soberano, admitido na ordem jurídica internacional, dispõe de liberdade para gerir seu ordenamento jurídico interno, constituindo seu sistema tributário a fim de exigir os tributos que criar e a carga tributária que entenda adequada. Portanto, não há de, preliminarmente, se atribuir ao paraíso fiscal um tipo criminoso.
O fato extremo da não obtenção e a não disponibilização de dados de empresas, sociedades e informações fiscais e bancárias torna-se o meio hábil para criminosos, sejam estes do sistema financeiro, criminosos do colarinho branco, traficantes de arma e drogas ou dinheiro oriundo da corrupção de agentes públicos ou privados, esconderem o dinheiro de forma a branqueá-lo, visando à incorporação deste na economia.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico[27] (OCDE), quatro fatores-chave são usadas para determinar se uma jurisdição é um paraíso fiscal:
1. Se a jurisdição não impõe impostos ou estes são nominais. A OCDE reconhece que cada jurisdição tem o direito de determinar se a impor impostos diretos. Se não houver impostos diretos, mas indiretos, utilizando os outros três fatores para determinar se uma jurisdição é um paraíso fiscal.
2. Se houver uma falta de transparência.
3. Se as leis ou práticas administrativas não permitem a troca de informações para efeitos fiscais com outros países em relação aos contribuintes que se beneficiam de baixos impostos.
4. Se for permitido a não-residentes beneficiam de reduções de impostos, enquanto na verdade não desenvolver uma atividade no país.
A concessão de vantagens fiscais “anormais”[28], além dos benefícios e facilidades de ordem não tributária, especialmente o sigilo bancário e societário, bem como isenções e tratamento concedido a renda de não residentes ou produzidas transnacionalmente, é o grande atrativo para a utilização dos países de tributação favorecida (paraísos fiscais) como instrumento para a prática da lavagem do dinheiro ilícito.
1.2.2 Classificação: Espécies de favorecimento
É necessária a delimitação de das vantagens concedidas, pois existem tipos de favorecimentos no tocante aos paraísos fiscais que devem ser objeto de apreciação. Em geral, as manifestações de favorecimentos e vantagem ocorrem sempre em conjunto.
Além do já elencado paraíso fiscal, pode ser objeto de apreço outras situações de benefícios entendidos como “paraísos”: Paraísos Societários, Paraísos Penais e Paraísos Bancários/Financeiros[29].
Paraísos societários são aqueles que oferecem regimes societários com ampla flexibilidade e com a exigência mínima de formalidade na sua constituição, não havendo o estabelecimento de limites de capital social mínimo e limites para endividamento. Como exemplo, são mais freqüentes as holding companies[30] e trading companies[31].
Os Paraísos penais são entendidos como Estados que acumulam vantagens em demasia na esfera tributária, aliada com a falta de tipificação rigorosa em legislação penal, principalmente em matéria de lavagem de dinheiro, corrupção, receptação de bens provenientes de atividade ilícita, evasão fiscal, fraudes contábeis e, que ainda aceita a prática de ocultar ou dissimular a origem, natureza, circulação e movimentação de bens.
Por fim, os Paraísos Bancários/Financeiros são aqueles os quais operam sem a exigência de comprovação patrimonial ou fiduciária, ocorrendo a ausência de transparência jurídica e administrativa e de controle cambial. Ainda, dispõem de segredos rígidos quanto a informações bancárias, fiscais e societárias, além de não compartilhas tais informações com a comunidade internacional. Ilhas Cayman, Bahamas e Panamá são exemplos deste tipo de favorecimento.
1.2.3 Tratamento brasileiro aos Paraísos Fiscais
No ordenamento jurídico nacional, o primeiro diploma legal que veio a tratar da matéria foi a Lei Federal nº 9.430 de 27 de dezembro de 1.996[32]. A norma em questão trouxe regras até então inexistentes, normatizando as noções preços de transferência[33], pessoa vinculada, além da previsão dos caracteres dos países com tributação favorecida, denominação legal dos paraísos fiscais.
No lastro lei 9.613/98, em seu art. 24-A[34], no seu parágrafo único, fixa com precisão as características entendidas pelo estado brasileiro como características de um país com tributação favorecida.
O Brasil, normalmente, considera paraísos fiscais todos os países com tributação da renda inferior a 20%. A Secretaria da Receita Federal publica periodicamente uma lista dos países considerados "paraísos fiscais", sendo a mais recente a Instrução Normativa nº 1.037, de 2011.
Ressalte-se também, que o art. 4º da Lei Federal nº 10.451/2002, conferiu o mesmo tratamento dado aos preços de transferência, para as operações realizadas com países ou dependências cuja legislação interna garanta sigilo à composição societária de pessoas jurídicas. Esta alteração legal vem no mesmo sentido das atuais discussões travadas internacionalmente acerca dos paraísos fiscais, combatendo-os não apenas pelo reduzido nível de tributação.
1.3 Utilização dos Paraísos Fiscais para a Lavagem de Dinheiro
O modus operandi da lavagem de dinheiro tem, distintamente, três etapas, sendo, primeiramente o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando uma associação direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações para dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do dinheiro novamente para os criminosos depois de ter sido suficientemente movimentado no ciclo de lavagem e poder ser considerado "limpo".
1.3.1 Fases ou etapas da lavagem de dinheiro
Os mecanismos mais utilizados no processo de lavagem de dinheiro envolvem, teoricamente, essas três etapas[35] independentes que, com freqüência, ocorrem simultaneamente.
a) Colocação ou Placement[36] – a primeira etapa do processo é a colocação do dinheiro no sistema econômico. Objetivando ocultar sua origem, o agente visa movimentar o dinheiro em países com regras mais permissivas e naqueles que possuem um sistema financeiro liberal[37]. A colocação se efetua por meio de depósitos, compra de instrumentos negociáveis ou compra de bens. Para dificultar a identificação da procedência do dinheiro, os criminosos aplicam técnicas sofisticadas e cada vez mais dinâmicas, tais como o fracionamento dos valores[38] que transitam pelo sistema financeiro e a utilização de estabelecimentos comerciais que usualmente trabalham com dinheiro em espécie.
b) Ocultação ou Layering – a segunda etapa do processo consiste em dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos. O objetivo é quebrar a cadeia de evidências ante a possibilidade da realização de investigações sobre a origem do dinheiro. Os criminosos buscam movimentá-lo de forma eletrônica, transferindo os ativos para contas anônimas – preferencialmente, em países amparados por lei de sigilo bancário – ou realizando depósitos em contas “fantasmas”.
c) Integração ou Integration – nesta última etapa, os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico, seja em investimentos, bens de alto valor e, recentemente, até em transações entre atletas, em especial no futebol.
Nesta ultima etapa, uma vez integralizado o capital na economia local, com extrema dificuldade se dará prisão em flagrante ou até mesmo a imputação responsabilidades penais.
Há diversas outras operações comerciais realizadas internacionalmente que facilitam a lavagem de dinheiro e, por essa razão, merecem exame permanente detalhado. Entre essas operações estão, por exemplo, a compra e venda de jóias, pedras e metais preciosos e objetos de arte e antigüidades. Esse comércio mostra-se muito atraente para as organizações criminosas, principalmente por envolverem bens de alto valor, que são comercializados com relativa facilidade. Além disso, essas operações podem ser realizadas utilizando-se uma ampla gama de instrumentos financeiros, muitos dos quais garantem inclusive o anonimato.[39]
1.3.2 Operações em Centros Financeiros Offshore
Os Centros Financeiros Offshore – CFO (Offshore Financial Center – OFC) constituem sistemas financeiros cujos bancos têm ativos e passivos externos desproporcionais às transações em conta corrente das economias domésticas dos países onde estão instalados, já que, especialmente, servem para a realização de operações transnacionais e, desta maneira, recebem pouca atenção local[40]. Tais centros offshore oferecem abrigo sofisticado aos capitais que procuram “proteção”, isto é baixa fiscalização e mínima exigência documental.
Nos Centros Financeiros Offshore – CFO, as empresas não recebem fiscalização contábil e, desta feita, permitem a possibilidade de significativas movimentações monetárias e operações de transferência de dinheiro obtido em atividades ilegais.
Com a existência dos Centros Financeiros Offshore – CFO, não é possível afirmar que se a completa extinção dos paraísos fiscais faria diminuir o volume de capital lavado. Por mais que haja ações no intuito de combater a lavagem de dinheiro ilícito através dos paraísos fiscais, o fato dos CFO´s não sofrerem qualquer restrição ou atuação de fiscalização, os eleva à condição de grandes centros da lavragem de dinheiro.
1.3.3 Outros instrumentos financeiros
Não obstante à utilização dos paraísos fiscais, bem como dos centros offshore para utilização na pratica da lavagem de dinheiro, vale destacar alguns instrumentos financeiros que são objeto de uso por parte de agentes lavadores de capital ilícito.
Instrumento utilizado com o intuito de mascarar transações de capital ilícito, o Smurffing consiste na fragmentação de grande quantia monetária, oriunda na sua totalidade de crime antecedente à lavagem de dinheiro, com o objetivo de fugir do controle de autoridades administrativas. No Brasil, o Banco Central é o órgão competente para fiscalizar estas transações. O limite pra transações é R$ 10.000,00 (dez mil reais), segundo Carta Circular 2.852/98, Art. 4, inc. I.[41]
Desta forma, o agente utiliza movimentações ou transferências abaixo o valor fiscalizado, dividindo-o em tantas quantias que forem suficientes para não levantar desconfiança e, assim, macula a origem e afastando a possibilidade de fiscalização.
Outro instrumento financeiro utilizado é o Commingling[42]. Trata-se da conjunção entre o capital lícito e o ilícito com o intuito de branquear/ regularizar a quantia monetária ilícita advinda de algum crime antecedente. De forma a exemplificar, entende-se quando da utilização de recursos provenientes de crime antecedente são incorporados em empresa lícita, utilizando deste capital maculado para realizar pagamentos, aquisições para a própria empresa e, desta maneira, inviabilizando o seguimento do capital e seu rastreamento, tendo como objetivo misturar os capitais lícitos e ilícitos.
Verifica-se que estes mecanismos financeiros são utilizados para dificultar o rastreamento do capital oriundo de atividade ilícita e, mais, dificultar a responsabilização do agente causador do ilícito.
2. O crime da lavagem de dinheiro: regime jurídico nacional e transnacionalidade
A partir das experiências de outros países e frente ao seu dever assumido diante da Convenção de Viena de 1988, o Brasil editou a Lei 9.613/98, conhecida como Lei de Lavagem de Dinheiro. Trata-se de uma lei que reflete antigos anseios da sociedade no combate, não só da lavagem de dinheiro, mas dos crimes antecedentes, mesmo que de forma indireta, através do poder coercitivo das penas previstas na lei.
2.1 Tratamento brasileiro a luz da lei 9.613/98
O Brasil cedeu às pressões internacionais e, diante os compromissos assumidos, promulgou a Lei 9.613/98, a qual dispõe sobre a lavagem de dinheiro.
A Lei 9.613/98 é uma complexa interação de diversos ramos do Direito, como Direito Penal e Processo Penal, Direito Penal Internacional, Administrativo, Financeiro e Comercial, possibilitando ainda discussões constitucionais. É estruturada em nove capítulos, respectivamente: 'Dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores'; 'Disposições processuais especiais'; 'Dos efeitos da condenação'; 'Dos bens, direitos e valores oriundos de crimes praticados no estrangeiro'; 'Das pessoas sujeitas à Lei'; 'Da identificação dos clientes e manutenção dos registros'; 'Da comunicação de operações financeiras'; 'Da responsabilidade administrativa'; 'Do Conselho de Controle de Atividades Financeiras'.
2.1.1 Objeto da Lei
Em seu bojo, a lei admite a quebra de alguns paradigmas e valores constitucionais, tão somente nos casos que existam irrefutáveis provas e razões plenamente justificáveis. Admite que a legi longa manus[43] do direito alcance na privacidade, quebrando sigilo telefônico e bancário e, portanto, o interesse público prevalece sobre as relações do interesse privado.
Neydja Maria Dias de Morais[44], oportunamente, versa sobre o escopo da Lei: a) estabelecer um novo tipo penal especial; b) coibir a utilização do sistema financeiro nacional como instrumento para a “lavagem”; c) instituir uma agência nacional de inteligência financeira, o COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras; d) criar normas administrativas, penais e processuais específicas para a prevenção e punição dos crimes instituídos.
No entendimento de Rodrigo Tigre Maia (1999, p. 53), o crime de lavagem de dinheiro é um conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da justiça.
Ainda, conforme o Professor Rodrigo Tigre Maia (1999, p. 53/54), a Lei 9.613/98 tem finalidades imediatas (identificação da procedência de bens, inviabilização da fruição de bens de origem ilícita, etc.) e mediatas (tais como desestimular a prática de crimes, restaurar danos causados aos particulares, etc.)
A Lei estabeleceu penas que variam de três a dez anos (art. 1), além da proibição de fiança ou liberdade provisória (art. 3).
2.1.2 O tipo objetivo principal
Verifica-se o artigo inicial da aludida lei:
“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime”
Conforme disposto no caput, nota-se a existência de dois verbos, “ocultar” e “dissimular”, os quais dispõem sobre a conduta típica básica da lavagem de dinheiro.
A utilização destes dois verbos está em consonância com a tipificação contida no artigo 3º, b.i e b.ii, da Convenção da Organização das Nações Unidas contra o Tráfico de Entorpecentes[45].
Com isso, criminaliza-se a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores. Pretendeu-se a redação de tipo penal bastante abrangente, com a finalidade de evitar dúvidas interpretativas.[46]
Muito embora um ato típico de lavagem de dinheiro possa ser revestido de alta complexidade, por se tratar de um crime ardiloso e munido de métodos a dificultar seu rastreamento, há a possibilidade da imputação do crime mesmo pela prática de atos muitas vezes singelos e simples. Sobre isso, há inclusive precedente do Supremo Tribunal Federal[47].
Não obstante, outros países adotaram formas diversas para a tipificação do crime de lavagem. É o caso, a título de estudo, da Argentina[48], França[49], Itália[50] e Índia[51].
Evidentemente, com o estudo de casos concretos, podem ser examinados métodos e esquemas a fins de instrução da lavagem de dinheiro, com o objetivo da identificação da tipologia disposta na lei e, desta feita, entender os mecanismos complexos utilizados no crime, bem como a estruturação lógica para o objetivo de branquear o capital ilícito.
2.1.3 Normatizações, Cartas Circulares e Resoluções do Banco Central do Brasil
Sobre o assunto no ordenamento jurídico brasileiro, tem primordialmente a já aludida Lei 9.613/98. Porém, a preocupação com o crime da lavagem de dinheiro sempre se mostrou latente e presente em outros ordenamentos jurídicos. Já em 1986, através da Lei 7.560 se criou o fundo Nacional Anti Drogas. No ano de 1993, através da Lei 8.764/93 se instituiu, no âmbito do Ministério da Justiça, o Fundo de Prevenção, recuperação e Combate ao Abuso de Drogas (FUNCAB), a ser gerido pela Secretaria Nacional de Entorpecentes.
Anote-se, pois, que os recursos provenientes deste Fundo, serão destinados, entre outras hipóteses, ao custeio relativo às ações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, no tocante ao combate dos crimes de lavagem de dinheiro[52].
Quanto ao regramento administrativo de situações envolvendo lavagem de dinheiro, no ano de 1999 o Banco Central editou a carta circular nº 2.852, a qual dispôs sobre os procedimentos a serem adotados na prevenção e combate às atividades relacionadas com os crimes previstos na Lei 9.613/98.
Em destaque na referida carta circular está o art. 6º, in verbis, As instituições e entidades mencionadas no art.1 bem como à seus administradores e empregados, que deixarem de cumprir as obrigações estabelecidas nesta Circular serão aplicadas, cumulativamente ou não, pelo BACEN, as sanções previstas no Art. 12 da Lei 9.613/98.
As Instituições estão obrigadas a manter atualizadas as informações cadastrais dos clientes; O cadastro deve ser conservado por um período de 05 (cinco) anos, contados a partir do 1º dia do ano seguinte ao do encerramento da conta corrente ou conclusão da operação; Manter controles que permitam identificar o cliente e verificar a compatibilidade entre as movimentações financeiras e capacidade econômica financeira do mesmo. O controle deve abranger a totalidade das operações de uma pessoa, conglomerado ou grupo; Para Pessoas Jurídicas, as Instituições devem manter cadastro completo dos procuradores, bem como de seus controladores;
Ainda, devem desenvolver e programar controles para detectar as operações que caracterizem indício de ocorrência de "lavagem"; As Instituições, administradores e empregados, que deixarem de cumprir as determinações da Circular, estarão sujeitos as penalidades previstas na Lei 9.613/98[53].
Com finalidade de se expandir o entendimento, válida é a exposição linha do tempo com as regulamentações do Banco Central (BACEN) pertinentes a lavagem de dinheiro[54].
De forma concorrente, as normatizações administrativas regulam as atividades econômicas, com a finalidade de se obter informações pertinentes a pratica do crime de lavagem de dinheiro, bem como introduzir ao ordenamento jurídico pátrio subsídios para o combate do crime, bem como a identificação de seus agentes.
2.2 Transnacionalidade do Crime da lavagem de dinheiro
Além do crescimento, natureza, diferentes motivações adaptáveis dos criminosos e das empresas, é difícil encontrar consenso na comunidade internacional sobre quais atividades devem ser tratados como um crime transnacional. Desentendimentos sobre sanções internacionais e as diferenças nacionais nos códigos civis, especialmente entre os modernos e os Estados em desenvolvimento, ainda complicam mais a utilização das abordagens tradicionais de justiça penal para o crime transnacional.
Ainda se tratando da lavagem de dinheiro, a transnacionalidade criminal se torna dissipada quando da internalização do capital ilícito e, assim, dificultando a aplicação da legislação.
2.2.1 Crime Transnacional: Conceito
O crime transnacional é uma ameaça às instituições democráticas e um desafio para o ordenamento jurídico internacional. A ONU, inserida nesse contexto de insegurança, buscou harmonizar as normas jurídicas referentes ao crime organizado e estabeleceu a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Esse instrumento se transformou em uma das mais importantes medidas internacionais no combate ao crime organizado transnacional.
A Convenção das Nações Unidas para contra o Crime Organizado Transnacional (TOC), adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, discorre sobre os crimes transnacionais e elenca os fatores para a atribuição do ilícito internacional.
O Brasil, aprovou e incorporou a convenção em 12 de março de 2004, através do decreto nº 5015[55]. Em seu escopo, precisamente no art. 3, § 2, a inteligência do texto conceitua a transnacionalidade de um crime:
“2. Para efeitos do parágrafo 1 do presente Artigo, a infração será de caráter transnacional se:
a) For cometida em mais de um Estado;
b) For cometida num só Estado, mas uma parte substancial da sua preparação, planejamento, direção e controle tenham lugar em outro Estado;
c) For cometida num só Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique atividades criminosas em mais de um Estado; ou
d) For cometida num só Estado, mas produza efeitos substanciais noutro Estado.”
Com este entendimento, fica evidenciado que a lavagem de dinheiro, utilizando os países de tributação favorecida como meio a branquear o capital oriundo de atividade ilícita, inclue-se no rol de crimes transnacionais.
Senão, vejamos: sabido que se exige a obtenção de capital oriundo de atividade ilícita ou capital que, há de se falar, não encontra base nem origem lícita para ser declarado ao fisco. Este fato ocorre no país de origem. A transnacionalidade do crime inicia-se com a remessa ilegal de monta de capital não declarado ou de origem ilícita à outro país, este com tributação favorecida, os paraísos fiscais. A conditio sine qua non[56] para a concretização da lavagem do dinheiro ilícito é o retorno deste capital maculado ao país de origem, com aspecto de dinheiro lícito, com origem definida. O simples fato de remeter capital à um paraíso fiscal não constitui crime. Entretanto, se este capital ilícito retorna e é incorporado na economia local, constitui os elementos necessários a sua caracterização de crime[57] transacional[58].
2.2.2 A Convenção de Palermo
O crime transnacional é uma ameaça às instituições democráticas e um desafio para o ordenamento jurídico internacional. A ONU, inserida nesse contexto de insegurança, almejou harmonizar as normas jurídicas referentes ao crime organizado e estabeleceu a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado[59] Transnacional. Esse instrumento se transformou em uma das mais importantes medidas internacionais no combate ao crime organizado transnacional.
A convenção estabelece que os países signatários se comprometam a adotar medidas que incriminem "a conversão ou a transferência de bens oriundos da atividade criminosa conexa como tráfico de substância estupefaciente ou psicotrópica, com finalidade de esconder ou encobrir a proveniência ilícita. O acordo também estabelece o confisco dos produtos do crime ou dos bens e propõe que o sigilo bancário não seja tão rigoros[60]o."
Observa-se, então, que o Brasil[61] e mais outros 123 países assinaram a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional em 2000 na Itália, mais conhecida como Convenção de Palermo.
A Convenção permite que os governos evitem e combatam o crime organizado transnacional de forma mais eficaz, através de um conjunto comum de ferramentas que dispõem de técnicas de legislação criminal, além da cooperação internacional. Analisando os dispositivos da Convenção de Palermo, desde que obedecidos todos os trâmites previstos na Constituição Federal, equiparados às leis ordinárias, nota-se a previsão de diversos institutos e procedimentos que, bem antes da sua celebração, já estavam previstos no ordenamento jurídico interno.
O art. 2º traz uma série de medidas cabíveis e que visam aparelhar os órgãos da persecução penal no desiderato da colheita de provas. Ocorre que no referido artigo somente há a menção das ações, sendo que muitas delas são pormenorizadamente disciplinadas em outras leis. O art. 8º, a e b, determina a criminalização da corrupção. Outra disposição constante da Convenção é a necessidade de proteção das testemunhas.
O art. 6º da Convenção estabelece que os Estados parte adotem medidas legislativas no sentido de criminalizar as condutas de lavagem de dinheiro. Observe-se que, no Brasil, o crime de lavagem de dinheiro já está previsto na lei nº 9.613/98.
O art. 12 recomenda que cada Estado parte deverá adotar medidas no sentido da apreensão e confisco do produto das infrações cometidas pela organização criminosa, bem como dos bens utilizados na prática delituosa. Tais medidas já estão previstas no Código de Processo Penal, conforme se depreende da leitura dos artigos 125 usque 144, que trata das medidas assecuratórias. Ademais, o artigo 13 determina a adoção de medidas de cooperação internacional para efeitos de confisco dos bens referidos no art. 12. A despeito de inexistir um instrumento internacional específico tratando da cooperação internacional para o confisco dos bens, no Brasil tal medida se dá pelo cumprimento das cartas rogatórias, sendo que tal medida está prevista no art. 210 do Código de Processo Civil[62].
Deste modo, verifica-se que as disposições previstas na Convenção de Palermo, de uma alguma forma, são reproduzidas na legislação pátria. Ocorre que, devido à inflação legislativa, muitas medidas de combate às organizações criminosas estão distribuídas em diversas leis, que por sua vez, caem no ostracismo e não são devidamente utilizadas.
3. Cooperação juridica internacional para a repatriação de ativos
A cooperação internacional pauta-se na tendência de se adotar institutos jurídicos que priorizem a recuperação dos ativos ilicitamente obtidos pela organização criminosa, visando à desestruturação e paralisa deste grupo de indivíduos focados em macular o capital.
Novos instrumentos de identificação da atividade e novas formas de punibilidade contribuem para o aumento do o risco e, assim, encarecendo a prática do crime e o financiamento do combate às organizações criminosas.
3.1 Ação internacional contra a lavagem de dinheiro
Há tempos que se discute e são elaborados estudos visando alcançar mecanismos para o controle e fiscalização sobre remessas de dinheiro transnacionais. Não obstante a este controle, depende-se de combater o crime primário, aquele que dá origem a obtenção do capital ilícito, seja ele em dinheiro, bens, entre outros.
O tema da lavagem de dinheiro, embora conhecido desde a década de 80, difundiu-se, nos últimos anos, em conferências internacionais e a preocupação com os aspectos práticos do combate a esse crime começou a se materializar de forma mais ampla já no início dos anos 90.
3.3.1 Convenção de Viena e Convenção de Mérida
Inicialmente, importante verificar o conceito de convenção internacional, conforme entendimento do governo brasileiro[63]:
“Uma convenção internacional é um acordo de vontades, regido pelo Direito Internacional, estabelecido por escrito, entre Estados, agindo na qualidade de sujeitos internacionais, do qual resulta a produção de efeitos jurídicos. Vale mencionar que, no Brasil, as Convenções Internacionais são internalizadas no arcabouço jurídico interno com status de lei ordinária, tornando-se, pois, uma norma de aplicação obrigatória no país.”
A “Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas”, aprovada em Viena, Áustria, em 1988, no âmbito das Nações Unidas, mais conhecida como “Convenção de Viena”, teve como propósito promover a cooperação internacional no trato das questões ligadas ao tráfico ilícito de entorpecentes e crimes correlatos, dentre eles a lavagem de dinheiro. Trata-se do primeiro instrumento jurídico internacional a definir como crime a operação de lavagem de dinheiro. O Brasil ratificou a Convenção de Viena em junho de 1991, através do decreto nº 157 de 26 de junho de 1991.
Esta convenção versou oportunamente sobre cooperação jurídica internacional a fins de mútua assistência nos casos envolvendo lavagem de dinheiro oriundo do tráfico ilícito de substâncias psicotrópicas. Como destaque, o seguinte:
“Artigo 7 – Assistência Jurídica Recíproca
1 – As Partes se prestarão, de acordo com o disposto no presente Artigo, a mais ampla assistência jurídica recíproca nas investigações, julgamentos e processos jurídicos referentes a delitos estabelecidos no parágrafo 1 do Artigo 3.
3 – As Partes poderão prestar qualquer outra forma de assistência judicial recíproca autorizada pelo direito interno da Parte requerida.
4 – As Partes, se assim lhes for solicitado e na medida compatível, com seu direito e prática interna, facilitarão ou encorajarão a apresentação ou disponibilidade das pessoas, incluindo a dos detentos, que consintam em colocar com as investigações ou em intervir nos procedimentos.
5 – As Partes não declinarão a assistência jurídica recíproca prevista neste Artigo sob alegação de sigilo bancário”.
O artigo 3º[64] da presente Convenção versa sobre bens e capitais e sua possível dissimulação no intuito de macular a origem do montante:
“b) i) a conversão ou a transferência de bens, com conhecimento de que tais bens são procedentes de algum ou alguns dos delitos estabelecidos no inciso a) deste parágrafo, ou da prática do delito ou delitos em questão, com o objetivo de ocultar ou encobrir a origem ilícita dos bens, ou de ajudar a qualquer pessoa que participe na prática do delito ou delitos em questão, para fugir das conseqüências jurídicas de seus atos;
ii) a ocultação ou o encobrimento, da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens, sabendo que procedem de algum ou alguns dos delitos mencionados no inciso a) deste parágrafo ou de participação no delito ou delitos em questão”;
A partir do Decreto nº 5.687/2006[65], as autoridades fiscalizadoras obtiveram a chancela para prevenir e reprimir a prática ilegal da corrupção. O decreto promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, mais conhecida como Convenção de Mérida. A Convenção foi realizada em 2003, na cidade mexicana de Mérida, e resultou na assinatura de um documento por mais de cem países, entre eles o Brasil, que se comprometem a combater a corrupção.
A Convenção de Mérida é o primeiro tratado global contra a corrupção. Ele oferece a estrutura legal para criminalizar práticas de corrupção, ampliar a cooperação internacional no enfrentamento de paraísos fiscais e facilitar a recuperação de ativos desviados para o exterior, esforçando-se para atingir a finalidade base sendo esta a recuperação do ativo.
A Convenção também trata da cooperação internacional. A restituição de ativos, aliás, é um princípio fundamental da convenção e, de acordo com o texto, "os Estados participantes se prestarão a mais ampla cooperação e assistência entre si". Para haver a facilitação da comunicação entre os países signatários, a convenção também prevê a cooperação interna, entre os órgãos responsáveis por combater a corrupção.
3.3.2 Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro – GAFI (ou Financial Action Task Force – FATF)
A Financial Action Task Force[66] (FATF) é um órgão inter-governamental cujo objetivo é o desenvolvimento e promoção de políticas, tanto a nível nacional e internacional, para combater a lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. A Força-Tarefa é, portanto, um "órgão político" que trabalha para gerar a necessária vontade política para realizar nacional reformas legislativas e regulamentares nestas áreas.
O progresso dos membros do GAFI (em português, Grupo de Ação Financeira Internacional) monitores na implementação de medidas necessárias, revisões técnicas de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo e contra-medidas, e promove a adopção e implementação de medidas adequadas a nível mundial. Na realização dessas atividades, o GAFI colabora com outros organismos internacionais envolvidos no combate à lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo.
O GAFI é atualmente composto por 34 membros e duas jurisdições de organizações regionais[67], representando a maioria dos principais centros financeiros em todas as partes do globo.
Ainda, existem os membros associados, sendo eles órgãos com atuação similar ao GAFI:
“The Asia/Pacific Group on Money Laundering (APG)
Caribbean Financial Action Task Force (CFATF)
The Council of Europe Select Committee of Experts on the Evaluation of Anti-Money Landering Measures (MONEYVAL)(formerly PC-R-EV)
The Financial Action Task Force on Money Laundering in South America (GAFISUD)
Middle East and North Africa Financial Action Task Force (MENAFATF)
Eurasia Group (EAG)
Eastern and Southern Africa Anti-Money Laundering Group (ESAAMLG)
Intergovernmental Action Group against Money-Laundering in Africa (GIABA)”
O GAFI não tem uma constituição bem definida ou um tempo de vida ilimitado. A Força-Tarefa opiniões sua missão a cada cinco anos. O GAFI tem sido na existência desde 1989. Em 2004, representantes do Ministério dos membros do GAFI concordou em prorrogar o mandato da Força-Tarefa até 2012.
3.3.3 Unidades Financeiras de Inteligência – UFI
Uma Unidade Financeira de Inteligência (em inglês Financial Intelligence Unit) define-se como a agência central nacional, responsável por receber (e, se permitido, requisitar), analisar e encaminhar às autoridades competentes, denúncias sobre informações financeiras: a) referentes a recursos oriundos de crime e potencial financiamento do terrorismo; ou b) requisitados pela legislação nacional ou regulamentação, com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo[68].
As UFI são mecanismos estatais para a coleta de informações financeiras e envolve escrutinar um grande volume de dados transacionais, normalmente fornecido pelos bancos, como parte das exigências regulamentares. Operações realizadas por certos indivíduos ou entidades podem ser estudados. Alternativamente, as técnicas de mineração de dados ou datamatching pode ser empregada para identificar as pessoas potencialmente envolvidas em uma atividade particular.
No exemplo brasileiro, é o órgão criado por lei, com a finalidade de receber comunicações de operações suspeitas e analisá-las, a fim de identificar possíveis atos de lavagem de bens. A UIF também pode coletar informações, por iniciativa própria, a fim de detectar tais atos. No Brasil, a UIF é o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), criado pela Lei n.º 9.613, de 3 de março de 1998[69].
3.2 Atuações e mecanismos do governo brasileiro
Um setor em que o Brasil talvez tenha a maior presença internacional é o de inteligência financeira. Nesse sentido, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) é reconhecido pela comunidade internacional como a Unidade de Inteligência Financeira (FIU) do Brasil e tem atuado em foros internacionais vinculados ao tema, com destaque para as reuniões do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI/FATF) – a principal instituição de combate aos crimes financeiros que sustentam o crime organizado – e nos grupos regionais da América do Sul (GAFISUD[70]) e do hemisfério (Grupo das Américas e Grupo da América Central e Caribe).
3.2.1 Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF
O COAF foi criado pela Lei nº 9.613, de 03.03.98, no âmbito do Ministério da Fazenda, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividade ilícitas relacionada à lavagem de dinheiro[71].
Os princípios que regem a sua organização e estrutura estão expressos no seu Estatuto, promulgado pelo Decreto nº 2.799, de 08.10.98, e na Portaria nº 330, de 18.12.98, que aprova o Regimento Interno do COAF, regulando seu funcionamento.
O Conselho de controle de atividades financeiras é a unidade de inteligência financeira brasileira e um órgão integrante do Ministério da Fazenda. Possui um papel central no sistema brasileiro de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo, tendo a incumbência legal de coordenar mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à lavagem de dinheiro, disciplinar e aplicar penas administrativas e receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas. O COAF também coordena a participação do Brasil em várias organizações internacionais, tais como GAFI, GAFISUD e Grupo de Egmont[72].
Ainda, tem participado ativamente de eventos internacionais relacionados à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo. Graças ao COAF, o Brasil se tornou membro do GAFI, do GAFISUD e do Grupo de Egmont, sendo reconhecido internacionalmente como um país que luta de forma eficaz contra atividades financeiras ilícitas.
3.2.2 Departamento de recuperação de ativos e cooperação jurídica internacional do Ministério da Justiça – DRCI
O Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), criado por meio do Decreto n.º 4.991, de 18 de fevereiro de 2004, está subordinado à Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) do Ministério da Justiça.
O DRCI tem como principais atribuições: a análise de cenários, a identificação de ameaças, a definição de políticas eficazes e eficientes e o desenvolvimento de cultura de prevenção e combate à lavagem de dinheiro.
Além disso, o DRCI é responsável pelos acordos internacionais de cooperação jurídica internacional, tanto em matéria penal quanto em matéria civil, figurando como autoridade central no intercâmbio de informações e de pedidos de cooperação jurídica internacional.
As competências do DRCI estão dispostas a fins de promover a recuperação de ativos[73]:
A apreensão de bens também pode ser uma grande fonte de recursos para o combate ao crime, bem como uma mensagem de desestímulo aos criminosos. Uma das principais metas do governo brasileiro no combate ao crime organizado é tornar o estado mais eficiente na recuperação de ativos de origem ilícita.
3.2.3 Grupo de trabalho em lavagem de dinheiro e crimes financeiros do Ministério Público Federal – GTLD e a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA
O GTLD é o Grupo de Trabalho da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal dedicado aos temas de lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro. Suas funções[74] são:
a) prestar apoio às atividades de investigação e persecução penal desenvolvidas pelo Ministério Público Federal;
b) promover articulação interna e externa, dentro do sistema nacional e internacional antilavagem de dinheiro.
Ainda, o grupo dispõe da ASCJI – Assessoria de Cooperação Jurídica Internacional está vinculada ao Gabinete do Procurador Geral da República e tem como principais atribuições assisti-lo em assuntos de cooperação jurídica internacional com autoridades estrangeiras e organismos internacionais, bem como no relacionamento com os órgãos nacionais voltados às atividades próprias da cooperação internacional. A ASCJI é composta por três subprocuradores-gerais da República, designados pelo PGR, sendo um deles o coordenador.
A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA[75] foi criada em 2003 (mesmo ano de criação do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional – DRCI), como forma de contribuir para o combate sistemático à lavagem de dinheiro no País. Posteriormente, em 2006, o tema “combate à corrupção” foi incluído como um dos objetivos da Estratégia.
A ENCCLA consiste na articulação de diversos órgãos dos três poderes da República, Ministérios Públicos e da sociedade civil que atuam, direta ou indiretamente, na prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, com o objetivo de identificar e propor ajustes aos pontos falhos do sistema antilavagem e anticorrupção.
Atualmente, cerca de 60 órgãos e entidades fazem parte da ENCCLA, tais como, Ministérios Públicos, Policiais, Judiciário, órgãos de controle e supervisão – CGU[76], TCU[77], CVM[78], COAF[79], PREVIC[80], SUSEP[81], Banco Central, Agência Brasileira de Inteligência, Advocacia Geral da União, Federação Brasileira de Bancos, entre outros.
3.3 Instrumentos eficazes na utilização prática do resgate de ativos
A grande tendência que se molda atualmente é a harmonia global no tocante à cooperação jurídica internacional nas relações bilaterais e multilaterais, pois, é fato que, sem a devida colaboração de todos os países, será impossível o controle dos crimes financeiros transnacionais e, mais, a recuperação desse ativo advindo do ilícito.
A legislação pátria dispõe sobre esta cooperação no artigo 8º, da Lei de Lavagem de Dinheiro:
“Art. 8º O juiz determinará, na hipótese de existência de tratado ou convenção internacional e por solicitação de autoridade estrangeira competente, a apreensão ou o seqüestro de bens, direitos ou valores oriundos de crimes descritos no art. 1º, praticados no estrangeiro.
§ 1º Aplica-se o disposto neste artigo, independentemente de tratado ou convenção internacional, quando o governo do país da autoridade solicitante prometer reciprocidade ao Brasil. (grifo nosso)
§ 2º na falta de tratado ou convenção, os bens, direitos ou valores apreendidos ou seqüestrados por solicitação da autoridade estrangeira competente ou os recursos provenientes da sua alienação serão repartidos entre o estado requerente e o Brasil, na proporção de metade, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé.”
Para tal, alguns instrumentos de cooperação internacional se tornam eficazes para a contribuição do cerceamento das atividades ilícitas e, assim, dando início ao rastreamento e recuperação do montante e sua posterior repatriação.
3.3.1 As 40 recomendações do GAFI/FATF
Em 1990, o GAFI/FATF publicou as “40 Recomendações” com o intuito de estabelecer ações a serem seguidas pelos países imbuídos do propósito de combater o crime de lavagem de dinheiro, bem como para promover a repatriação dos ativos oriundos de crime. Duas metas principais são fornecer instrumentos para o desenvolvimento de um plano de ação completo de combate à lavagem de dinheiro e discutir ações ligadas à cooperação internacional. Em 1996, as 40 Recomendações[82] foram revisadas a fim de que pudesse refletir as tendências atuais do crime de lavagem e potenciais ameaças futuras, como o terrorismo.
No tocante à lavagem de dinheiro transnacional e a repatriação de ativos oriundo deste crime, as recomendações do GAFI são balizas utilizadas pelos Estados a fim de conter a proliferação do crime. Neste ato, se faz útil para aclarar o entendimento, versar sobre os principais itens da cooperação internacional.
A recomendação nº 36 é essencial para o entendimento da assistência jurídica mútua entre os Estados:
“36. Os países deveriam, de forma rápida, construtiva e eficiente, proporcionar o mais amplo auxílio judiciário mútuo nas investigações e procedimentos de natureza criminal sobre o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo e em procedimentos conexos. Em especial, os países: a) Não deveriam proibir nem colocar condições injustificadas ou indevidamente restritivas à prestação de auxílio judiciário mútuo; b) Deveriam assegurar-se de que dispõem de procedimentos claros e eficazes para a execução dos pedidos de auxílio judiciário mútuo; c) Não deveriam recusar a execução de um pedido de auxílio judiciário mútuo, tendo como única justificação o fato de o crime envolver também matéria fiscal; d) Não deveriam recusar a execução de um pedido de auxílio judiciário mútuo, tendo como justificação o fato de o seu direito interno impor às instituições financeiras que mantenham o segredo ou a confidencialidade.
Os países deveriam assegurar que os poderes atribuídos às autoridades competentes, de acordo com a Recomendação 28[83], podem ser também utilizados para dar resposta a pedidos de auxílio judiciário mútuo e, se for compatível com o seu direito interno, responder a pedidos diretos, apresentados por autoridades judiciárias ou autoridades de aplicação da lei estrangeira às suas homólogas nacionais. (…)”
Acerca do instituto jurídico da dupla incriminação[84], versa a recomendação nº 37:
“37. Os países deveriam prestar o mais amplo auxílio judiciário mútuo mesmo na ausência da dupla incriminação.
Quando a dupla incriminação seja um requisito exigido para a prestação de auxílio judiciário mútuo ou para a extradição, tal requisito deverá considerar-se cumprido independentemente de ambos os países subsumirem o crime na mesma categoria de crimes ou de tipificarem o crime com a mesma terminologia, sempre que em ambos os países esteja criminalizada a conduta subjacente à infração.”
Importante ressaltar que a dupla incriminação é um dos entraves jurídicos de maior relevância para a não cooperação entre os países. Sobre tal situação, a inteligência do art. 42, item 2º, da Convenção de Mérida já advinha a expor esta questão, no sentido de que os países signatários aceitassem os pedidos de assistência jurídica, independente de incorrer em delito na legislação do estado requerido.
A recomendação de nº 38 informa aos Estados, medidas com a finalidade de atenção aos frutos e capitais percebidos com a prática de crime:
“38. Seria conveniente que pudessem ser tomadas medidas rápidas, em resposta a pedidos de outros países, para identificar, congelar, apreender e declarar a perda de bens objeto de branqueamento de capitais, de produtos derivados do branqueamento ou das infrações subjacentes, de instrumentos
utilizados ou destinados a serem utilizados na prática daqueles crimes ou outros bens de valor equivalente. Deveriam existir também medidas destinadas a coordenar os procedimentos de apreensão e de perda, podendo incluir a repartição[85] dos bens declarados perdido.”
Por fim, a recomendação de nº 40 sugere aos Estados que promovam a cooperação internacional:
“40. Os países deveriam assegurar que as suas autoridades competentes proporcionem as mais amplas possibilidades de cooperação internacional às suas homólogas estrangeiras. Deveriam existir dispositivos claros e eficazes que facilitassem, de forma imediata e construtiva, a troca direta com as autoridades homólogas[86], espontaneamente ou a pedido, de informações sobre o branqueamento de capitais e sobre as infrações que lhe estejam subjacentes. Essas trocas de informação deveriam ser autorizadas sem condições restritivas indevidas. Em especial:
a) As autoridades competentes não deveriam recusar um pedido de assistência, tendo como única justificação o fato de o pedido envolver matéria fiscal; (…) os países são igualmente encorajados a permitir uma rápida e construtiva troca de informações com outras autoridades não homólogas. A cooperação com autoridades estrangeiras diferentes das homólogas pode ter lugar direta ou indiretamente. Quando existirem dúvidas sobre a opção a tomar, as autoridades competentes deveriam, em primeiro lugar, contatar as suas homólogas estrangeiras para solicitar a assistência pretendida.”
Contudo, percebe-se que as recomendações do GAFI sugerem, todavia, diferentes canais os quais podem ser adequados para a troca de informação, consoante o tipo de autoridade competente envolvida e a natureza e fins da cooperação.
Em seu bojo, as recomendações do GAFI versam sobre a possibilidade jurídica dos Estados cederem no sentido de prestar informações pertinentes, deixando de lado balizas jurídicas e, por fim, promover a troca de dados a fins de, como objetivo precípuo, repatriar os ativos oriundos da lavagem de dinheiro internacional.
3.3.2 O princípio da reciprocidade
Proveniente do termo latino reciprocitas, a reciprocidade significa a condição ou a qualidade daquilo que é recíproco (reciprocus), isto é, situação em que são estabelecidas condições mútuas ou correspondentes. A reciprocidade, pois, implica na identidade ou na igualdade de direitos, de obrigações ou de benefícios[87].
Este princípio, na falta de tratado, pode igualmente ser invocado como base para a cooperação se não houver óbice na legislação interna[88]. No caso do crime da lavagem de dinheiro, há inclusive expressa referência no texto legal, no art. 8, § § 1º e 2º, da lei 9.613/98, como base para apreensão, seqüestro e confisco de bens oriundos de crime.
Podemos, de forma a sedimentar o estudo, colacionar o conceito do Prof. Dr. Eduardo Biacchi Gomes:[89]
"Através do princípio da reciprocidade, que visa harmonizar as relações entre os países, os direitos e obrigações assumidos por Estado integrante de um tratado internacional ou de um bloco econômico necessariamente deverão ser cumpridos pelos demais Estados signatários do instrumento".
A assistência jurídica internacional deriva basicamente desse auxílio mútuo ou recíproco que devem os Estados entre si, porém, está claro que se trata de um dever que se impõe a todos os Estados por igual quando a ocasião se apresenta. Da mesma forma, cabe destacar que a regra de reciprocidade só é válida quando não existe um tratado vigente, pois, se existe, não faz sentido eludi-lo na base da reciprocidade.[90]
O princípio da reciprocidade em se tratando do crime da lavagem de dinheiro transnacional se faz oportuna no sentido de aperfeiçoar a recuperação dos ativos oriundos do crime, bem como o acesso a documentações e dados. Com isso, prima-se pela repatriação de bens e valores e, por fim, dando provimento à cooperação jurídica internacional.
3.3.3 As redes de cooperação jurídica da assessoria de cooperação jurídica Internacional do Ministério Público Federal
Vinculada ao Gabinete do Procurador-Geral da República, a Assessoria de Cooperação Jurídica Internacional foi criada em 3 de fevereiro de 2005 pela Portaria PGR Nº 23, a qual foi modificada posteriormente, pela Portaria PGR Nº627/10.
Entre as principais atribuições da ASCJI, está a de assistir o Procurador-Geral da República em assuntos de cooperação jurídica internacional com autoridades estrangeiras e organismos internacionais, bem como no relacionamento com os órgãos nacionais voltados às atividades próprias da cooperação internacional.
As redes de cooperação jurídica têm a finalidade de solucionar algumas dificuldades que existem na cooperação entre os Estados. O acesso a informações, o cumprimento de prazos e procedimentos jurídicos específicos em cada país e a busca por soluções de auxílio são temas que buscam tratar[91].
Essas redes são formadas por pontos de contato nacionais, designados por autoridades dos Ministérios Públicos, Poder Judiciário e demais entes envolvidos na cooperação jurídica, os quais centralizam temas de cooperação nacionalmente, e atuam como intermediários na intensificação da cooperação entre seu país e os demais membros da rede. Mais do que desempenhar um papel estritamente burocrático, as redes buscam facilitar a cooperação por meio de contatos informais, trocas de informações, remarcação de audiências, exames preliminares em pedidos de auxílio. Com esse intuito, são realizadas reuniões periódicas entre seus membros. Atualmente o Brasil faz parte de três redes de cooperação jurídica internacional.[92]
A atuação conjunta, associada à cooperação jurídica internacional, bem como a integração de organismos nacionais na efetividade da repatriação de ativos, tem sido um grande avanço jurídico no que tange a coibir a prática de crime, inclusive com os entraves jurídicos existentes, além de demonstrar a atuação prática no resgate dos ativos oriundos de crimes financeiros, em especial a lavagem de dinheiro transnacional.
Considerações finais
Através dos estudos e pesquisas realizadas para o desenvolvimento do presente artigo, pode-se extrair breves considerações.
Ocorre que a lavagem de dinheiro através dos chamados paraísos fiscais tem o condão de ser um crime praticado por agentes preparados, com desenvoltura técnica e estudo específico para o cometimento do crime financeiro. Resta demonstrado que esta prática criminosa envolve especialistas técnicos e, ainda, pessoas com know how apurado, empregando este conhecimento para o lado obscuro de suas profissões.
No tocante aos países com tributação favorecida, os denominados “paraísos fiscais”, nota-se a crescente utilização destes para a prática da lavagem de dinheiro, além do aumento significativo dos favorecimentos que estes países tem à oferecer e, desta feita, assediando agentes criminosos os quais querem total anonimato nas operações financeiras e empresariais de cunho ilícito.
Ao verificar a legislação pátria, sob um olhar analítico, fica visível que ainda é uma legislação recente, esbarrando em balizas constitucionais e internacionais, bem como se faz complexa uma análise sistemática com a Carta Magna do Estado brasileiro. Ainda, há uma série de dificuldades de ordem prática, como, por exemplo, carência de pessoal especializado e equipamento de ponta para auxiliar/otimizar as investigações e o levantamento de provas.
Por se tratar de um crime de alta complexidade, praticado por indivíduos preparados para tal ato, a lavagem de dinheiro feito por meio dos paraísos fiscais se torna um crime difícil de ser coibido, devidos a entraves jurídicos internacionais e, ainda, complexo no rastreamento de bens e direito e, assim, tornando-se dificultosa a responsabilização criminal de seus agentes.
Com o presente estudo, ficou demonstrado que a cooperação jurídica internacional ainda é deficitária, sendo que os Estados se reservam a aplicar tratados bilaterais e de assistência jurídica mútua, pouco aplicando a diplomacia e reciprocidade, resguardando sua soberania e ordenamento jurídico.
Porém, grandes avanços na área da cooperação jurídica – neste presente trabalho tendo sido analisado a cooperação jurídica internacional – há de se congratular os esforços dos agentes brasileiros com vistas a coibir o crime, bem como repatriar os bens, direitos e ativos oriundos da lavagem de dinheiro.
Sócio no escritório Ebel Battu Sociedade de Advogados. Advogado e Consultor nas áreas Empresarial Internacional e Econômico. Pós Graduação em Gestão e Legislação Tributária. Membro da Comissão de Direito Econômico da OAB/PR
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