A legislação penal e a política criminal nos anos 90

O relator especial da ONU, Jean Ziegler, concluiu
em recente visita ao Brasil que o país se encontra em constante estado de
guerra social, no qual mais de 40 mil pessoas são assassinadas por ano. No
entendimento da ONU, 15 mil mortos por ano já é indicador de guerra.

Não
há que se dizer que na última década não foram constituídos esforços para que
esta situação de descontrole da criminalidade fosse atenuada. Apenas na década
de 90,o ordenamento jurídico brasileiro foi acrescido de algumas das mais
importantes legislações complementares no âmbito penal, destinando-se a coibir
o comportamento do criminoso. Senão vejamos alguns exemplos:


Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990 – Estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente,
estabelecendo medidas de proteção a estes, inclusive em razão de sua conduta
delituosa.

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Lei 8.072 de 25 de Julho de 1990 – Dispõe sobre os crimes hediondos, nos
termos do art.5o inciso XLIII da Constituição Federal


Lei 8.137, de 27 de Dezembro de 1990 – Define os crimes contra a ordem tributária
e estabelece as condutas típicas dos agentes.


Lei 9.034, de 03 de Maio de 1995 – Dispõe sobre a utilização de meios operacionais
para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.


Lei 9.296, de 24 de Julho de 1996 – Regulamenta o inciso XII, parte final, do
art.5o da Constituição Federal, no que tange as escutas e
interceptações telefônicas feitas nos casos previstos em lei para fins de
investigação criminal.


Lei 9.437, de 20 de Fevereiro de 1997 – Institui o Sistema Nacional de Armas
– SINARM
, estabelece condições para o registro e porte de arma de fogo, e define
os crimes relativos a matéria.


Lei 9.455, de 07 de Abril de 1997 – Define os crimes de tortura, e
estabelece as condutas típicas e penalidades a seus agentes.


Lei 9.503, de 23 de Setembro de 1997 – Institui o Código Brasileiro de Trânsito
e prevê os crimes praticados por condutores de veículos automotores.


Lei 9.605, de 12 de Fevereiro de 1998 – Dispõe sobre as sanções penais derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.


Lei 9.613, de 03 de Março de 1998 – Dispo sobre os crimes de “lavagem” ou
ocultação de bens
, direitos e valores e a prevenção da utilização do
sistema financeiro para os ilícitos previstos na lei.

Diante
do exposto, não se pode considerar inócuo o trabalho do legislativo no campo
penal e tampouco pode se acusá-lo de não conceber as leis, ainda que não todas,
necessárias para que se possa estabelecer a ordem social, ou pelo menos tentar
inibir de alguma forma a conduta do criminoso, diante do rigor legal e da
efetiva aplicação correcional.

Um exemplo óbvio indica que a aprovação da lei federal proibindo ou
controlando rigidamente a posse de armas, ao aumentar a dificuldade de acesso
aos instrumentos mais eficazes de agressão e intimidação, poderá ter um
importante impacto na redução dos níveis de violência hoje existentes no
Brasil.

Deve-se
destacar, no Estado do Rio de Janeiro, algumas iniciativas inovadoras e
eficazes, no que tange o combate à criminalidade: a criação das AISP – Áreas
Integradas de Segurança Pública, que vem reorganizando os procedimentos e de
integração das polícias civil e militar. Correspondem a 34 circunscrições territoriais do
Estado, cada uma das quais tornando-se objeto da responsabilidade do comandante
de determinado batalhão da PM e dos delegados titulares de determinadas
delegacias distritais. Além de permitir a avaliação área por área da dinâmica
criminal, da performance policial e dos métodos de ação vigentes, esse trabalho
coletivo e cooperativo premia com um pagamento extra os policiais das AISPs nas
quais se verificam quedas nas taxas de criminalidade.

Em cada AISP, foi criado um Conselho Comunitário de
Segurança, que se caracteriza pela avaliação dos problemas com os principais
representantes das polícias locais e conta com a participação da sociedade.
Instituiu-se também um Conselho Estadual de Segurança, em vigor desde janeiro
de 1999, que restringe a discussão e participação às Instituições estaduais,
municipais e federais ligadas à segurança pública. (Tabela 1)

Uma outra iniciativa é a criação das Delegacias Legais, que tem como
objetivo principal eliminar a carceragem das delegacias transferindo-as para
casas de custódia. É a humanização das rotinas de trabalho e dos padrões de
atendimento da Polícia Civil. As delegacias são tradicionalmente espaços
temidos e evitados. A renovação de seus prédios e equipamentos; a eliminação
das carceragens, que são ilegais; e o atendimento aos cidadãos sendo apoiado
por estudantes universitários treinados, assistentes sociais e membros da
Defensoria e do Ministério Públicos, criaram um novo ambiente, dificultando a
corrupção e as violações de direitos humanos. Um gerenciamento moderno pode
separar outras funções – administração e atendimento ao público – do trabalho
policial, para que esse concentre-se em suas atribuições básicas de investigar
crimes e instruir inquéritos – normalmente desenvolvidas em condições
precárias. A adoção da tecnologia de informação, para informatizar registros,
georreferenciá-los e integrá-los aos outros bancos de dados do sistema de
justiça criminal, conduz ao compartilhamento de informações, agilizando inquéritos e
encurtando a atual tramitação burocrática dos trabalhos policiais. Outra
medida, como a reformulação dos Registros de Ocorrência, ampliou a quantidade e
qualidade dos dados disponíveis para o conhecimento das condições de segurança,
das dinâmicas criminais e de aspectos mais obscuros dos fenômenos de violência.
Com isso, é possível planejar estratégias específicas de atuação e avaliar
resultados do trabalho policial com base num conjunto detalhado e confiável de
informações.

Dois fatores dificultam todavia avaliar, mais ainda quantificar, os
resultados de políticas públicas voltadas para o controle da criminalidade e da
violência no Estado Rio de Janeiro. O primeiro é a falta de dados e parâmetros
indispensáveis a uma avaliação acurada. Salvo poucas exceções, o que se costuma
chamar de política de segurança, não tem correspondido, aqui ou no resto do
país, a estratégias planejadas, com prioridades e metas definidas a partir de
diagnósticos precisos dos problemas a enfrentar, restringido-se quase sempre a
intervenções reativas, assistemáticas, guiadas pelos problemas imediatos e
pelas pressões da chamada opinião pública. Em conseqüência, as avaliações de
eficácia, quando existem, limitam-se à exibição do comportamento positivo deste
ou daquele indicador criminal, do aumento do número de prisões e apreensões de
drogas e de armas, da divulgação na mídia de ações policiais espetaculares (ou
desastrosas), da apresentação de respostas de curto prazo para problemas
conjunturais.

Não obstante os esforços envidados pelo poder público no sentido de
garantir a segurança da população, há que se mencionar a extraordinária
movimentação da sociedade civil no sentido de ela mesma auxiliar nesta tarefa.
Parte-se do pressuposto de que segurança pública não pode mais ser vista apenas
como um “assunto de polícia”, um problema de Estado, e restrito a apenas uma
secretaria. A segurança envolve necessariamente múltiplas formas de
participação da sociedade civil – participação que demanda, entre outras
coisas, uma base adequada e acessível de informações. Sublinhe-se ainda que o
foco da análise se concentra aqui na criminalidade e na violência praticadas
intencionalmente por terceiros, deixando à parte acidentes e suicídios, muito embora
sejam também problemas de segurança e se relacionem de diversos modos às
questões de ordem pública no município.

Um exemplo paradigmático é o
VivaRio, movimento criado em dezembro de 1993, com o objetivo de oferecer
respostas democráticas e não-violentas para o enfrentamento da violência e que,
desde então, tem desenvolvido numerosos projetos, em parceria com órgãos
governamentais e não-governamentais, voltados para os mais diversos
públicos-alvo e relacionados, de forma direta ou indireta, ao objetivo de promover
a paz por meio da integração social. Sua inovação mais significativa consiste,
justamente, no fato de que, pela primeira vez no Estado do Rio de Janeiro,
soluções para o problema da segurança passaram a ser concebidas fora das
instâncias de governo e, mais ainda, fora do âmbito exclusivo da atuação
policial – não só ampliando o próprio conceito de segurança pública, como
transformando a participação da sociedade num elemento indispensável das
políticas para o setor. As linhas de atuação do VivaRio vão desde campanhas e
mobilizações pela paz, até programas de educação, treinamento e profissionalização,
sobretudo de jovens moradores em comunidades carentes, segmento mais vulnerável
ao envolvimento com a violência, passando pela parceria com a Polícia Militar
na implantação do policiamento comunitário e pela criação e manutenção dos
Balcões de Direitos, que prestam assistência jurídica em favelas.

Outra iniciativa duradoura, proveniente da sociedade civil, foi o
Disque Denúncia, serviço criado em agosto de 1995 pela organização
não-governamental Rio Contra o Crime, em parceria com a Secretaria Estadual de
Segurança Pública, para captar informações anônimas que pudessem auxiliar o
trabalho da Polícia na elucidação de crimes cometidos ou em andamento.
Inspirado na organização internacional Crime Stoppers, mas com um escopo
de atuação mais restrito, o serviço alcançou e manteve um grau de visibilidade
raro em iniciativas do gênero, graças ao envolvimento de emissoras de rádio e
TV, e de entidades empresariais, como a FETRANSPORT, na sua divulgação.

Um terceiro produto da mobilização social, neste caso especificamente
dos movimentos feministas, que cabe mencionar são as Delegacias Especiais de
Atendimento à Mulher, criadas no final dos anos 80 (atualmente há seis em toda
a Região Metropolitana). Inicialmente funcionando de forma precária, sem uma
rede institucional de apoio capaz de dar encaminhamento às demandas e por
várias vezes ameaçadas de extinção, as DEAMs representam um avanço fundamental,
seja no sentido de tornar mais visível a violência doméstica e de gênero, seja
fornecendo às mulheres vítimas de violência espaços referenciais para lidar com
o problema. Hoje, bem melhor estruturadas as DEAM´s estão se constituindo como
referência para outros estados brasileiros.

Há diversos outros exemplos que podem ser citados, como outras
iniciativas de menor escala que surgiram ao longo das duas últimas décadas:
centros de defesa de direitos e promoção da cidadania, serviços de captação de
denúncias com focos específicos, serviços de atendimento a vítimas, programas
de apoio a segmentos de risco, instituições de mediação de conflitos para
mencionar apenas alguns tipos de experiências que vêm sendo empreendidas como
respostas da sociedade ao crescimento da criminalidade e da violência no Estado
do Rio de Janeiro.

Mas importa sobretudo ressaltar três aspectos que caracterizam a
evolução recente do tratamento local desse problema: em primeiro lugar o
inegável amadurecimento de setores da sociedade civil no esforço de fugir à
apatia ou à sedução das propostas messiânicas e autoritárias, ampliando sua
participação e fornecendo um contraponto à idéia profundamente arraigada nos órgãos
e gestores da política de segurança, de que esta é assunto exclusivo do Estado,
questão de polícia, não um espaço para o exercício da cidadania ou para a
expressão de demandas sociais. Em segundo lugar, e por motivos diversos, inclusive
o tradicional fechamento dos órgãos de segurança ao diálogo externo, a dificuldade
de estabelecer articulações produtivas entre as múltiplas iniciativas da
sociedade civil e as ações governamentais na área da segurança pública. Em
terceiro, a desconexão entre intervenções de diferentes níveis de governo
(federal, estadual, municipal), e entre órgãos de cada um desses níveis, com a
conseqüente perda de possíveis sinergias entre projetos com algum valor preventivo
da violência e do crime.

Já no que se refere à sociedade civil, a mobilização ampliada nos
últimos anos não consegue produzir resultados agregados palpáveis porque as
iniciativas não se articulam entre si, nem, salvo poucas exceções, às políticas
estatais. No plano destas últimas, a concorrência entre distintas esferas de
governo dificulta, quando não impede, um esforço conjunto de atuação sobre
condições e ambientes sociais favoráveis ao crime, que faça convergir
intervenções sociais, econômicas, urbanísticas e policiais nas áreas mais problemáticas
da cidade.

Há duas idéias complementares ganhando terreno no Brasil: primeiro, de
que a melhoria das condições de segurança faz parte dos requisitos de acesso à
cidadania, ao bem-estar social, à eqüidade e à democracia; logo, de que não há
oposição, mas convergência, entre os objetivos de reduzir a insegurança e
promover a extensão dos direitos e do desenvolvimento humanos a toda a
população. Segundo, de que política de segurança pública não consiste apenas na
repressão ao crime, mas num conjunto integrado de intervenções em diversas
frentes, com participação imprescindível dos vários níveis e setores de
governo, da sociedade civil e das comunidades locais. Em todo o país observa-se
hoje uma ampliação do debate público sobre o tema e sua incorporação à agenda
dos mais diversos segmentos políticos, inclusive daqueles tradicionalmente
afastados desse debate.

Outro fato novo é o crescente interesse das prefeituras municipais
pelas questões de segurança, que pode resultar, a médio prazo, em maior
descentralização e em maior integração local das políticas voltadas para o
enfrentamento do problema, tirando-as do âmbito exclusivo de atuação das
secretarias de segurança estaduais.


Informações Sobre o Autor

Leonardo Rabelo de Matos Silva

advogado; mestrando em Direito pela UNIG.


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Equipe Âmbito Jurídico

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