Resumo: A possibilidade de criação normativa por parte das agências reguladoras é um tema de vital importância para a justificação e legitimação do modelo regulatório atual. A esse respeito, várias correntes doutrinárias procuraram defender a constitucionalidade desse poder normativo. A corrente que encontrou maior destaque defende a tese de que o poder normativo das agências decorre da produção de atos terciários pela Administração pública, os quais se tornam obrigatórios em função do regime de sujeição especial ao qual os delegatários estão submetidos. Sobre o assunto também já se manifestaram o Supremo Tribunal Federal e a Administração Pública Federal, tendo ambos reconhecido a legitimidade do poder normativo das agências reguladoras ante ao atual panorama constitucional.
Palavras-chave: Direito Constitucional e Administrativo. Agências Reguladoras. Criação Normativa. Constitucionalidade. Legalidade.
Sumario: 1 – Introdução; 2 – Poder Regulamentar (características e extensão); 3 – Descentralização administrativa; 4 – Correntes doutrinárias que justificam a atividade normativa das agências; 5 – Posição do Supremo Tribunal Federal e da Administração Pública; 6 – Conclusão. Referencias.
1. Introdução.
Tem o presente trabalho por escopo analisar a questão da constitucionalidade da criação normativa por parte das agências reguladoras.
Ab inicio, pretende-se proceder a uma exploração introdutória, de modo a perquirir, sob o ponto de vista doutrinário, as características e peculiaridades das figuras da lei, regulamento, ato regulatório e o próprio conceito de legalidade.
Em seguida, traz-se à baila uma análise do sistema regulatório americano à luz do ordenamento jurídico pátrio, a fim de se verificar a compatibilidade do modelo de regulação já pacífico naquele país com o constitucionalismo brasileiro, de modo a confirmar a própria legitimidade dos atos emanados pelas agências brasileiras no uso desse poder regulador.
É que o modelo regulatório adotado no Brasil, como bem sabido, é uma verdadeira importação do modelo americano, acrescido de certas nuances para compatibilizá-lo com as normas da Constituição Federal de 1988.
Com relação à vertente que trata especificamente dos atos emanados pelas agências reguladoras, analisar-se-á as diversas correntes doutrinárias que buscam justificá-los, assim como estabelecer limites para os mesmos. Nesse contexto, temos que opiniões doutrinárias das mais diversas buscam justificar a constitucionalidade do poder regulatório por parte das agências reguladoras.
Nesse campo, encontra maior acolhida por parte dos operadores do direito as correntes que se manifestam no sentido de que a legitimidade do poder normativo das agências se dá em função do regime de sujeição especial e em função da teoria da deslegalização.
A corrente que trata do regime de sujeição especial defende a possibilidade de produção de atos normativos pelas agências em face daqueles que estejam submetidos a um vinculo especial, decorrente normalmente da condição de delegatário de serviços públicos, sendo respeitadas, naturalmente, as regras gerais previstas em lei e os limites da desconcentração normativa, a serem observadas obrigatoriamente pelo regulador. Tratam-se, deste modo, de atos normativos terciários que vinculam apenas os delegatários, não devendo trazer conseqüências para terceiros.
A corrente que defende a teoria da deslegalização, por sua vez, preconiza que o ato regulatório decorre diretamente da lei e será legítimo se observar os seus preceitos gerais (standards), parâmetros e limites fixados na lei, os quais pautam a concretização (execução) da norma primária pela autoridade reguladora. Tais atos seriam aplicáveis ao setor regulado, e não apenas aos delegatários.
Como se pode observar, há clara proximidade entre as correntes. Em ambos os casos, os preceitos e as regras gerais contidos em lei devem ser observados, sob pena de extrapolação do poder normativo e invalidade da norma emitida pela agência. A divergência fica por conta de que, na primeira corrente, as normas se dirigem aos delegatários stricto sensu, enquanto que, na segunda, se destinam ao setor regulado.
As referidas correntes, em especial a primeira, tiveram boa acolhida na doutrina Brasileira, tendo encontrado abrigo inclusive no âmbito do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema, quando do julgamento da medida cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1668-DF, em 1997, oportunidade em que se posicionou pela constitucionalidade do poder normativo das agências, tendo se alinhado com a primeira corrente, mais conservadora, que encara os atos regulatórios como terciários, tendo deixado claro, ainda, que os atos normativos das agências podem ter efeitos externos.[1]
Pelo exposto, pode se observar que os esforços doutrinários nacionais procuram, normalmente, uma interpretação que consiga harmonizar os princípios da legalidade e da separação dos poderes com a atuação normativa autônoma desses entes autárquicos, a fim de identificar parâmetros normativos de controle da discricionariedade administrativa. Isto é, sempre sob um enfoque jurídico-normativo, observando-se os princípios da legalidade e da separação dos Poderes.
2. Poder regulamentar (características e extensão).
Em um primeiro momento, a análise ora proposta requer rápido intróito sobre as figuras da Lei, regulamento e ato regulatório, a fim de melhor analisar a questão da constitucionalidade do poder normativo das agências reguladoras.
Seguindo-se a teoria kelseniana, as leis estão quase no topo da pirâmide hierárquica das espécies normativas, encontrando-se abaixo apenas da própria constituição. Por decorrerem diretamente do texto maior, elas são consideradas atos normativos primários e fonte, por natureza, de direitos e obrigações.
Assim, as leis são as espécies normativas apropriadas para se estabelecer obrigações, sendo certo que, a princípio, não é permitido no sistema constitucional brasileiro que atos normativos infra-legais estabeleçam obrigações não previstas em lei. Trata-se do princípio da reserva legal, estabelecido no art. 5º, II, da Constituição. Ademais, em função do princípio da separação de poderes (art. 2º), compete exclusivamente ao Poder Legislativo editar leis, sendo tal competência absoluta e indelegável.
Noutra quadra, compete ao Poder Executivo expedir atos normativos abstratos para regulamentar as leis, isto é, complementar o seu conteúdo, a fim de que possam ser cumpridas. Não podem, entretanto, em função do princípio da reserva legal, inovar no ordenamento jurídico, de modo a criar ou extinguir obrigações previstas nas leis, ou ainda modificar indevidamente as suas hipóteses de incidência. O poder regulamentar é exercido essencialmente através de decretos e regulamentos, conforme art. 84, IV, da Constituição.[2] É considerado secundário, pois tira o seu suporte de validade das leis.
A esse respeito, elucidativa a definição de regulamento exarada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto:[3]
“[…] sob o aspecto material, a regulamentação é uma função política, no exercício de uma prerrogativa do pode político de impor regras secundárias, em complemento às normas legais, com o objetivo de explicitá-las e de dar-lhes execução, sem que possa definir quaisquer interesses públicos específicos nem, tampouco, criar, modificar ou extinguir direitos subjetivos. De resto, sob o aspecto formal, é uma atribuição de estritíssima previsão constitucional, por isso mesmo, geralmente cometida a chefes de estado ou de governo.”
No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles[4] aduz que, “como ato inferior à lei, o regulamento não pode contrariá-la ou ir além do que ela permite. No que o regulamento infringir ou extravasar da lei, é írrito e nulo, por caracterizar situação de ilegalidade”.
Do mesmo modo, Maria Silvia Zanella Di Pietro defende claramente os limites do regulamento:[5]
“Ele não pode inovar na ordem jurídica, criando direito, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme o artigo 5°, II, da Constituição; ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração.”
Desta feita, temos que a função regulamentar estará sempre presa a existência de uma lei anterior, ressalvado os excepcionais casos de decreto autônomo permitidos pela Constituição.
Nesse sentido, traz-se à baila esclarecedor excerto da lavra do Supremo Tribunal Federal:[6]
“A RESERVA DE LEI EM SENTIDO FORMAL QUALIFICA-SE COMO INSTRUMENTO CONSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÀO DA INTEGRIDADE DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.
O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua ‘contra legem’ ou ‘praeter legem’, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar (…)’. Doutrina. Precedentes” (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Existem, a princípio, duas espécies de regulamentos: regulamento executivo e regulamento autônomo ou independente. O primeiro complementa a lei ou lhe garante a fiel execução, (art. 84, IV, da Constituição), razão pela qual não pode inovar a ordem jurídica. Destina-se a estabelecer como os cidadãos ou a própria Administração irá cumprir o que está previsto em lei.
O segundo tipo é o regulamento autônomo, espécie até então inadmitida no sistema constitucional brasileiro em função do principio da reserva legal. Tem função inovadora na ordem jurídica em matérias não regidas por lei. Passou a ter cabimento no Brasil em função da Emenda Constitucional nº 32, que criou duas hipóteses de regulamento autônomo. Assim, o Presidente da República poderá dispor diretamente sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI, da CF). [7]
Assim, percebe-se que a doutrina é praticamente uniforme em relação às tradicionais limitações ao poder regulamentar do Executivo.
Referindo-se, agora, ao sentido do termo regulação, Maria Sylvia Zanella Di Pietro[8] afirma que:
“Regulação é vocábulo equívoco, porque tem diferentes significados. Nasceu nas ciências físicas e biológicas, com duplo aspecto: a idéia de regularidade e a idéia de mudança. Ao mesmo tempo que, pela regulação, se procura assegurar um certo grau de estabilidade no objeto da regulação, também se deixam as portas abertas para mudanças que sejam necessárias em benefício da própria estabilidade. O objeto da regulação pode ser a sociedade, algumas de suas dimensões, como a econômica, ou uma área de atividades sociais.”
Prossegue a autora dizendo que Regulação é “gênero de que a regulamentação é espécie, ou seja, regulação abrange, inclusive, a regulamentação, como ato normativo de competência do Chefe do Executivo”. Continua ela explicando que a regulação significa o simples estabelecimento de regras, independentemente do poder ou da autoridade que as edite.[9]
O seu conceito de regulação se adapta melhor à realidade nacional. Afirma ela que a função regulatória não se restringe ao âmbito econômico, mas também a outras áreas, dentre as quais a prestação de serviços públicos exclusivos e não-exclusivos do Estado:
“Para essas áreas, o conceito de regulação econômica não se adapta inteiramente, porque a finalidade não e de ordem econômica. Daí ser preferível conceito mais amplo, em que estejam presentes os dois primeiros elementos já assinalados (fixação de regras de conduta e controle), mas se amplie o terceiro elemento, referente à finalidade da regulação jurídica, que é a de organizar os vários aspectos da vida econômica e social, para proteger o interesse público.
Por essa razão, pode-se definir a regulação, no âmbito jurídico, de modo a abranger a regulação da atividade econômica (pública e privada) e a regulação social. Nesse sentido, a regulação constitui-se como o conjunto de regras de conduta e de controle da atividade econômica pública e privada e das atividades sociais não exclusivas do Estado, com a finalidade de proteger o interesse público.”[10]
Ressalte-se que a função reguladora do Estado está prevista expressamente na Constituição, em seu artigo 174, que assim dispõe:
“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
O sentido que se pretende dar neste estudo para a regulação, entretanto, é mais amplo. Decorre, grandemente, do contexto da desestatização da economia, ocasião em que foram introduzidas as agências reguladoras, com o fito de controlar, de forma descentralizada e sem a participação direta do legislativo, as diversas atividades econômicas.
Leopoldo Fontenele Teixeira[11] conceitua função regulatória como sendo:
“O dever-poder de a Administração Pública intervir, indiretamente, na ordem econômico-social, seja por meio de ente criado especialmente para essa função, seja de forma centralizada, com o objetivo de atingir o equilíbrio do sistema objeto de regulação, combatendo, por meio de exercício de ponderação de interesses dos diversos envolvidos e com uso de critérios prioritariamente técnicos, suas imperfeições.”
Valendo-se de alguns dos elementos acima transcritos, entendemos que a função regulatória consiste em uma forma de intervenção estatal no processo econômico com o escopo de se atingir o equilíbrio do sistema e de estimular práticas saudáveis de competição, através da elaboração de regras de direito e da instituição de uma estrutura de fiscalização e repressão de ilícitos, a ser desempenhada pelas agências reguladoras, em substituição à intervenção estatal tradicional. Não se exclui a hipótese de atuação da administração central, entretanto, parte-se do pressuposto que as agências foram criadas com mecanismos de autonomia destinados justamente a garantir uma atuação regulatória predominantemente técnica, com reduzida interferência de grupos de interesse.
Não se nega que a regulação da economia já vinha sendo desempenhada pelo Executivo desde longas datas, sendo certo que a mudança qualitativa observada na atualidade pode ser resumida em dois pontos principais: o primeiro consistente na atribuição desta competência para os entes autárquicos regulatórios recém-criados, os quais gozam de atributos de autonomia; e o segundo, a ampliação deste poder regulatório, a ponto de se permitir certo grau de inovação no ordenamento jurídico, respeitados os critérios e limites estabelecidos em lei.
Essa possibilidade de inovação, admitida pacificamente nos Estados Unidos, em função de peculiaridades do seu regime constitucional, merece uma profunda análise à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se verificar a sua compatibilidade com a Constituição e a legitimidade dos atos emanados pelas agências.
3. Descentralização administrativa.
O modelo regulatório adotado no Brasil após o ingresso na fase de Estado Social, implicou em um aumento progressivo da demanda legiferante decorrente, em parte, do aumento do intervencionismo estatal e da implementação crescente de prestações sociais das mais diversas.
Essa inflação normativa exacerbou-se com a fase do Estado regulador, em que, além da demanda normativa já existente, acresceu-se uma nova cobrança: a necessidade de regulação de uma série de novas atividades econômicas decorrentes da desestatização de vários setores da economia. A maioria destas atividades, inclusive, é de extrema importância estratégica para o país, o que justifica um rigoroso controle estatal, que se deu justamente por meio da regulação.
Como a Constituição veda a transferência das competências próprias do poder executivo central (poder regulamentar) e do poder legislativo (poder normativo), é necessário definir com clareza o fundamento de validade do poder normativo das agências, a fim de se afastar a hipótese de inconstitucionalidade.
Primeiramente, no que diz respeito à delegação do poder regulamentar, o Texto Maior estabelece em seu art. 84, VI, que o seu desempenho é exclusivo do Chefe do Executivo. Assim, a primeira polêmica consiste na inquirição acerca da possibilidade deste poder regulamentar ser atribuído a outras entidades da administração, por meio das figuras da desconcentração e da descentralização.
A interpretação literal e isolada do art. 84, VI, da Constituição Federal certamente não é a melhor, pois é impossível (além de politicamente desinteressante) que uma única autoridade possa concentrar a atribuição de regulamentar com todo o necessário detalhamento as matérias abrangidas pelas inúmeras leis editadas no país. E mesmo se possível fosse, essa não seria a melhor solução, pois haveria grande risco de os regulamentos serem editados de modo insuficiente, com uma abordagem superficial de diversas matérias.
José dos Santos Carvalho Filho explica que existe uma variedade de atos, além dos decretos e regulamentos, que integram a concepção de poder regulamentar:[12]
“Por esse motivo é que considerando nossa sistemática de hierarquia normativa, podemos dizer que existem graus diversos de regulamentação conforme o patamar em que se aloje o regulamentador. Os decretos e regulamentos podem ser considerados como atos de regulamentação de primeiro grau; outros atos que a eles se subordinem e que, por sua vez, os regulamentem, evidentemente com maior detalhamento, podem ser qualificados como atos de regulamentação de segundo grau, e assim por diante. Como exemplo de regulamentação de segundo grau, podemos citar as instruções expedidas pelos Ministérios de Estado, que têm por objetivo regulamentar as leis, decretos e regulamentos, possibilitando sua execução”
Na verdade, o próprio poder regulamentar exercido pelo Chefe do Executivo se dá de forma desconcentrada, pois as minutas de decretos e regulamentos são elaboradas no âmbito dos ministérios e analisadas por uma série de órgãos consultivos e de assessoria, sendo certo que a participação do presidente se dá apenas a nível gerencial e decisório.
Ademais, adota-se largamente no país a solução de descentralização do poder regulamentar do executivo, de modo a se atribuir, mediante lei, parcelas desta competência para órgãos da administração direta ou indireta, a fim de que estes expeçam atos regulamentadores específicos (atos terciários).
No mesmo sentido, Leila Cuéllar:[13]
“Reconhece-se atualmente que o poder regulamentar poder ser exercido não somente pelo Presidente da República, mas também pelos Ministros de Estado e por outros órgãos e entidades da Administração Pública, como as autarquias. Portanto, as agências examinadas, autarquias integrantes da Administração indireta, podem deter competência regulamentar”
Assim, chega-se à conclusão de que a competência normativa do chefe do executivo tem caráter não exclusivo. Alexandre Santos de Aragão, ao comentar a Constituição italiana, defende este entendimento:[14]
“O poder de baixar regulamentos, isto é, de estatuir normas jurídicas inferiores e subordinadas à lei, mas que nem por isso deixam de reger coercitivamente as relações sociais, é uma atribuição constitucional do Presidente da Republica, mas a própria lei pode conferi-la, em assuntos determinados, a um órgão da Administração Pública ou a uma dessas entidades autônomas que são as autarquias. […]
Tal como o art. 84, IV, da nossa Constituição, este é o único dispositivo da Constituição Italiana a respeito da competência para expedir regulamentos. Ambos os dispositivos devem ser entendidos como fixadores da competência do Chefe do Executivo para editar regulamentos, e, de fato, tal competência sempre existirá se a lei não dispuser em contrário. Noutras palavras, tal competência é, em princípio, do Chefe do Poder Executivo, mas não é exclusiva, podendo o Legislador conferi-las a outras autoridades públicas ou a entes descentralizados.”
Em relação à suposta delegação de poder legiferante, importa esclarecer o seguinte. No Brasil, não há delegação da competência do Poder Legislativo para as agências. Essa hipótese de delegação é absolutamente refugada pelo nosso sistema constitucional, por mais que decorra de iniciativa de lei ou mesmo de Emenda Constitucional.[15]
No direito administrativo americano, esta delegação é amplamente aceita em função de três teorias, a saber: a) conhecimento técnico, em que a delegação se fundamenta no fato da agência ter melhores condições para decidir sobre a matéria posta de forma técnica e imparcial, bem como pela inabilidade do Congresso normatizar matérias de cunho técnico; b) transmissão democrática, pois o sistema constitucional americano permite a delegação de competência legislativa para as agencies; e c) teoria do procedimento, em que a normatização emitida pelas agências se legitimaria em função da possibilidade de participação da coletividade no processo decisório.[16]
Nesse país, a legislação se limita a fixar princípios, standards (binômio diretriz-limite à atuação das agências)[17] e conceitos indeterminados (intelligible principle), cabendo às agências a função de elaborar normas para regular as atividades econômicas, observando para tal as limitações legais. Assim, no sistema americano, a regulação decorre de delegação de poder legiferante (bem como de parcela de poder jurisdicional, conforme já analisado antes) e se distingue qualitativamente da mera regulamentação.
No sistema brasileiro, entretanto, a delegação de poder legiferante é inaceitável, de modo que a solução americana é aplicável apenas parcialmente. Assim, em função do nosso direito administrativo ter sofrido ampla influência do sistema administrativo francês, onde predomina a idéia de rígida composição hierárquica, a atribuição da competência normativa às agências se pauta na descentralização administrativa e não na delegação de competência legislativa.
Desse modo, cabe ao Poder Legislativo determinar, no momento da criação da agência reguladora, normas gerais e abstratas (diretrizes e limites, conhecidas como standards) que serão, na prática, operacionalizadas pela referida entidade. Ressalte-se que o executivo influi grandemente neste processo, pois detém a prerrogativa de iniciativa de lei em matéria de organização administrativa e de criação de órgãos públicos (art. 61, §1°, “b” e “e”, da Constituição).
Em função da sua relevância, convém citar a seguinte passagem da obra de Alexandre de Moraes:[18]
“Dessa forma, a moderna Separação dos Poderes mantém a centralização governamental nos poderes políticos – Executivo e Legislativo -, que deverão fixar os preceitos básicos, as metas e as finalidades da Administração Pública, porém, exige maior descentralização administrativa, para a consecução desses objetivos […] O congresso Nacional permanecerá com a centralização governamental, pois decidirá politicamente sobre a delegação e seus limites às Agências Reguladoras, porém efetivará a descentralização administrativa, permitindo o exercício do poder normativo para a consecução das metas traçadas na lei.”
Neste mesmo sentido, o desenvolvimento de Lucas de Souza Lehfeld:[19]
“O poder normativo das agências reguladoras advém de dois processos decorrentes de uma releitura do princípio da separação dos poderes, quais sejam, centralização governamental e descentralização administrativa. O primeiro refere-se à conditio sine qua non dos Poderes Políticos – Executivo e Legislativo – em fixar preceitos básicos, metas e finalidades da Administração Pública, que para cumpri-los exige maior flexibilidade na sua estrutura organizacional, com a atribuição de autonomia e de poderes normativos a entidades reguladoras (agências).”
Explica o autor que se trata de uma releitura do princípio da separação dos poderes. A centralização governamental ocorre no âmbito dos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo), aos quais cabem as atribuições de estabelecer políticas, metas e finalidades para a Administração Pública por meio de conceitos genéricos (standards normativos). A consecução destes objetivos se dá por meio da transferência das atividades decisórias, regulatórias e fiscalizatórias às agências, por meio da descentralização administrativa.
Assim, conclui-se que, no Brasil, não há propriamente uma delegação legiferante, tal como ocorre nos Estados Unidos, mas sim uma descentralização de uma parcela das atividades administrativas do executivo. Observe-se que essas competências do Poder Executivo foram infladas ao longo do tempo em função de um processo historio de mutação constitucional do princípio da separação de poderes.
No que se refere à importação do modelo agencial, Marçal Justen Filho[20] aponta que:
“A tradição norte-americana conduziu a uma ampliação muito significativa da competência normativa das agências. Adotou-se entendimento que permite ao Legislativo estabelecer um núcleo normativo extremamente reduzido, com ampla autonomia normativa para as agências. Quando se reconhece a existência de competência normativa para as agências reguladoras, não se pretende adotar as concepções norte-americanas. O princípio da legalidade, entre nós, significa a necessidade do ato legislativo disciplinar extensamente a matéria. Os dados fundamentais da hipótese de incidência e do mandamento normativo apenas podem ser veiculados por meio de lei. Não se admite que a lei estabeleça um padrão abstrato, preenchível pelos mais variados conteúdos, e remeta à agência seu desenvolvimento autônomo.”
Assim sendo, observa-se que a delegação de poderes regulatórios no sistema brasileiro é de uma amplitude reduzida, não havendo, dentre outras, a delegação de poderes legiferantes e jurisdicionais, ao passo em que as balizas estabelecidas em lei são bem mais rígidas do que no modelo de origem.
4. Correntes doutrinárias que justificam a atividade normativa das agências.
Feitas essas considerações, cumpre verificar como, no âmbito da função regulatória estatal, se dá essa atividade normativa do Poder Executivo, notadamente por parte das agências reguladoras.
Como visto, tornou-se inegável o fenômeno do exercício da função normativa pelo Poder Executivo, tendo sido preconizado pela doutrina que tal fenômeno decorre de uma releitura do princípio da separação dos poderes, decorrente da evolução sócio-política da sociedade brasileira, no contexto do estado neoliberal e regulador.
Existem opiniões doutrinárias das mais diversas para justificar a constitucionalidade do poder regulatório da administração pública, em especial a sua vertente mais intrigante, que é justamente o exercício deste poder pelas agências reguladoras.
O pensamento dos doutrinadores pátrios se enquadra em quatro correntes majoritárias sistematizadas em estudo feito por Leopoldo Fontenele Teixeira.[21] Tais correntes não são inteiramente excludentes entre si, entretanto, a última é a mais aceita atualmente.
a) A primeira corrente é composta pelos que defendem que as agências reguladoras exercem suas atribuições de ordem normativa, por meio de uma descentralização do exercício da competência regulamentar do Presidente da República (art. 84, IV, da CF/88). Assim, o fato do constituinte ter atribuído ao Chefe de Estado a função de regulamentar as leis não significa que está proibida a possibilidade de desconcentração ou descentralização do exercício deste poder.
Conforme mencionado acima, no Brasil a desconcentração e a descentralização do poder regulamentar decorrem da participação de órgãos diversos na elaboração dos regulamentos ou mesmo em função da delegação de atribuições para que órgãos inferiores regulamentem a matéria (são os chamados regulamentos terciários).
Assim, o poder normativo das agências reguladoras decorreria do seu poder-dever de regulamentar as leis. Poder este originário de ato de descentralização da competência regulamentar do poder executivo central. Defende este entendimento, dentre outros, Sérgio Guerra.[22]
Alguns doutrinadores mais conservadores, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, posicionam-se pela impossibilidade da livre edição de atos regulatórios pelo executivo, defendendo a tese de que a criação de obrigações para os administrados só deveria advir de lei, nos termos do art. 5º, II, da Constituição[23] (cláusula da reserva legal).
Assim, defende o autor que as normas oriundas das agências devem se ater aos aspectos estritamente técnicos, não podendo se contrapor às leis ou aos princípios constitucionais, “sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e intensidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade”.[24]
Nesse contexto, conclui Celso Antônio que as agências brasileiras normalmente incorrem em inconstitucionalidade, pois extrapolam os limites puramente regulamentares e invadem a competência do Legislativo.[25]
Desse modo, seria preferível que o legislativo se adequasse à demanda de regulação das mais diversas áreas e passasse a emitir leis contento a delimitação dos direitos e obrigações dos usuários e dos prestadores de serviços públicos, deixando para as agências apenas a regulação da matéria eminentemente técnica.
Ressalte-se, todavia, que uns dos maiores argumentos para a criação das agências são justamente a necessidade de grande especialização técnica do órgão regulador e a inabilidade do poder legislativo, com a sua estrutura atual, para atender rapidamente à demanda gigantesca de produção normativa inerente aos mais variados ramos de atividades econômicas, notadamente os setores de tecnologia e de domínio econômico.
b) a segunda corrente doutrinária entende que a competência de regulamentar as leis é atribuição privativa do Presidente da República, não podendo as agências exercerem a função reguladora com base neste poder-dever, mas apenas editar atos normativos terciários (resoluções, portarias), subordinados aos regulamentos, com aplicação limitada ao âmbito interno da agência, bem como àqueles que possuam vínculo especial de sujeição[26] para com a Administração.
Como sabido, todos estão obrigados a cumprir as disposições em lei em função da determinação contida no art. 5º, II, da Constituição. Assim, independentemente da vontade dos cidadãos, todos estão compulsoriamente submetidos à lei em função do regime geral de sujeição que lhe é próprio. Por inexistir delegação de poder legiferante para as agências, os atos regulatórios por elas expedidos não possuem o mesmo atributo de obrigatoriedade das leis. Assim, somente aqueles submetidos ao regime especial de sujeição decorrente da condição de concessionário, autorizatário ou permissionário de serviço público, estariam, a princípio, obrigados a cumprir as resoluções das agências.
Ressalte-se que os delegatários se vinculam ao regime regulatório voluntariamente, no momento em que formalizam o contrato de concessão, termo de autorização ou ato correspondente. Deste modo, eles aderem ao regime regulatório, que compreende tanto as normas atuais quanto as que venham a ser criadas em relação ao serviço em questão.
Conforme o art. 5º, II, da Constituição, todos estão obrigados a cumprir as determinações contidas em lei, independentemente da concordância ou não com o texto legal. O regime de sujeição especial, por outro lado, decorre de uma adesão consciente e voluntária (e de certo modo contratual) do agente econômico a um regime próprio, decorrente da sua condição de prestador de serviços públicos.
Caso o delegatário não concorde com a hipótese de vinculação às normas da agência reguladora, poderá simplesmente retirar-se da atividade econômica. O funcionamento ao alvedrio da regulação, todavia, não é permitido, pois a lei estabelece que o exercício de certas atividades econômicas só é permitido sob a condição de vinculação ao regime normativo do ente regulatório respectivo.
Adotando-se uma interpretação elástica desta teoria, pode-se afirmar que o regime especial de sujeição também vincula os consumidores dos serviços regulados, pois estes, ao firmar contratos de prestação de serviço com os delegatários (contratos de adesão, convencionais ou mesmo tácitos ou verbais), se vinculam ao regime regulatório aplicável ao serviço.
Por fim, de se mencionar que o regime regulatório, mesmo proveniente de uma relação de sujeição especial, deve sempre se pautar nos limites e condicionantes existentes na Constituição, legislação e regulamentos, suportes diretos de validade da regulação.
Destacam-se como adeptos desta corrente Clèmerson Merlin Clève, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Marcos Juruena Villela Souto.[27]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em particular, ressalta que a competência reguladora das agências, inclusive as que têm fundamento constitucional, é limitada “aos chamados regulamentos administrativos ou de organização, só podendo dizer respeito às relações entre os particulares que estão em situação de sujeição especial ao Estado”.[28]
c) A terceira corrente defende a tese de que apenas as agências com expressa previsão constitucional, quais sejam, a ANATEL e a ANP, teriam competência normativa abstrata, em função da aplicação da teoria dos poderes implícitos.
Esta teoria desenvolveu-se no constitucionalismo norte-americano (caso Mc Culloch v. Maryland). Funda-se na idéia de que, para cada poder outorgado pela constituição a certo órgão, são implicitamente conferidos amplos poderes para possibilitar a execução do poder outorgado constitucionalmente. A atribuição de direitos constitucionais, portanto, envolve a correspondente atribuição de capacidade para o seu exercício.
Destaca-se como defensora dessa corrente Mônica Nicida Garcia, que, em breve síntese, aduz:
“De acordo com o sistema jurídico vigente no Brasil […] constituindo-se as agências reguladoras , ainda que ditas de ‘regime especial’, sua função reguladora deveria ser limitada à expedição de atos estabelecendo regras gerais e abstratas de conduta, sempre de alcance limitado ao âmbito de atuação do órgão expedidor, exceção podendo ser feita à ANP e à ANATEL, cuja previsão constitucional poderia ser interpretada como autorizadora da expedição de normas inovadoras do ordenamento jurídico.”[29]
Esta interpretação, apesar de resolver razoavelmente a problemática da legitimidade do poder normativo das agências com assento constitucional, não serve para as demais. A aplicação por analogia da teoria aos demais casos de agências reguladoras parece-nos ser uma solução completamente insustentável. E mesmo no caso da ANATEL e da ANP, a teoria não resolve definitivamente a questão, uma vez que a sua aplicação também pode ser questionada, pois no direito administrativo pátrio impera o princípio da legalidade estrita, o qual preconiza a necessidade de definição legal expressa e exaustiva das competências administrativas, não se admitindo, a princípio, competências implícitas ou por exclusão.
Dentre os autores que fazem uma interpretação contrária a esta corrente, podemos citar Marcos Juruena Villela Souto:[30]
“Todas as agências detêm um poder normativo e não apenas a ANP e a ANATEL. A previsão constitucional de um órgão regulador para telecomunicações e para o petróleo não significa que só estes teriam capacidade para editarem atos de efeitos externos. O que estes dispositivos fizeram foi afastar uma discricionariedade legislativa para criar ou não um agente regulador, discricionariedade esta que existe para os demais setores; nestes, onde existia um monopólio, se impôs a existência de um regulador para reduzir os malefícios e riscos de uma posição dominante. Nos demais segmentos de mercado, cabe ao legislador identificar, por provocação do Executivo, onde existem falhas de mercado que justifiquem a criação de um agente regulador, com poderes para a prática de intervenção do Estado na Economia.”
Não obstante, não se nega que a teoria dos poderes implícitos, contextua”lizada com outras teorias acerca do poder normativo das agências, reforça grandemente a legitimação da ANATEL e da ANP, em particular.
d) a quarta e última corrente a ser mencionada defende a possibilidade de exercício de função normativa pelas agências a partir da distinção entre regulação e regulamentação, o que requer o conhecimento do que se convencionou denominar de teoria da deslegalização.[31] Destaca-se entre os adeptos desta corrente, Alexandre Santos de Aragão.
Assim sendo, traz-se o entendimento de alguns autores acerca do tema. De acordo com Eduardo Garcia de Enterría, deslegalização é a “operação que efetua uma lei que, sem entrar na regulação material de um tema, até então regulado por lei anterior, abre tal tema à disponibilidade da potestade regulamentar da administração”.[32]
Importantíssimo citar o posicionamento de Alexandre Santos de Aragão, um dos autores que mais se destaca na defesa desta corrente:[33]
“As leis atributivas de poder normativo às entidades reguladoras independentes possuem baixa densidade normativa, a fim de propiciar o desenvolvimento de normas setoriais aptas a, com autonomia e generalidade, regular a complexa e dinâmica realidade social subjacente. Ademais, recomenda-se que propiciem à Administração a possibilidade de, medida do possível, atuar consensualmente, com alguma margem de negociação junto aos agentes econômicos e sociais implicados. […] As leis com essas características não dão maiores elementos pelos quais o administrador deva pautar sua atuação concreta ou regulamentar, referindo-se genericamente a valores morais, políticos e econômicos existentes no seio da sociedade […] Assim, confere à Administração Pública um grande poder de integração do conteúdo da vontade do legislador. O objetivo das leis assim formuladas é “introduzir uma vagueza que permita o trato dos fenômenos sociais, muito fugazes para se prestarem ao aprisionamento em uma regra precisa.”
Tratando da análise entre regulação e regulamentação, Leopoldo Fontenele Teixeira apresenta uma diferenciação adequada ao contexto. Segundo ele, regulação é a atividade de “concretização de preceitos legais genéricos, assentada em critérios técnicos e na ponderação valorativa dos diversos interesses envolvidos, destinada a propiciar o equilíbrio do setor regulado”. Já a regulamentação, seria a “atividade privativa do Chefe do Poder Executivo e consiste em possibilitar a fiel execução de uma lei, por meio de sua concretização, com base em critérios políticos e não, necessariamente, técnicos”. [34]
Marcos Juruena Villela SOUTO, em seu turno, afirma que:
“A regulação não se confunde com a regulamentação privativa do Chefe do Poder Executivo; primeiro, porque a regulação não se limita à produção de normas (envolvendo a regulação executiva e a regulação judicante); depois, porque é técnica e não política e deve ser destinada a uma coletividade e não à sociedade em geral. Mais importante, é fruto de uma decisão colegiada que pondera entre os vários interesses em jogo (e não apenas à luz de uma orientação política majoritária).”[35]
Deste modo, a atividade normativa da agência consiste, sob a ótica desta corrente, na produção de atos infralegais destinados a regular o setor econômico, e não a regulamentar lei de deslegalização.
Edmir Netto de Araújo, captando este sentido, explica que este poder normativo não se confunde com a competência regulamentadora do Executivo e muito menos com a função legiferante:[36]
“Assim, o Poder Normativo das agências reguladoras (não regulamentadoras) vincula-se às normas gerais pertinentes, sem inovar na ordem jurídica, e não é o de regulamentar leis e muito menos situações jurídicas autônomas (leis em sentido material) que criem direitos, deveres ou penalidades. […] Assim, suas normatizações deverão ser operacionais apenas, regras que, às vezes aparentemente autônomas, prendem-se a disposições legais efetivamente existentes.”
Assim, as agências, apesar de produzirem atos aparentemente autônomos, na verdade se limitam à moldura normativa estabelecida nas leis que lhe conferem tal poder (lei de deslegalização). Estas leis, no mesmo momento em que criam este poder normativo, também fixam os parâmetros e os limites para o seu exercício, bem como as metas e as políticas a serem alcançadas.
A fim de compatibilizar a teoria com o principio da separação de poderes, os doutrinadores que a defendem esclarecem que a competência normativa das agências consiste em uma função executiva, qual seja, a de praticar atos administrativos a fim de executar a lei (concretização).
A função regulatória consistiria, assim, na edição de atos normativos e concretos destinados a reger a conduta dos agentes econômicos, atos esses que devem ser editados com base nos standards legais e em critérios técnicos, com fulcro em uma ponderação dos interesses em conflito.
Destarte, sob a ótica desta corrente, a atividade normativa (executiva) das agências não consiste na regulamentação da lei de deslegalização, apesar da própria atividade de regulamentação ser, também, considerada concretização da lei.
A propósito, as leis de deslegalização possuem baixa densidade normativa, isto é, são genéricas, estabelecem valores morais, políticos e econômicos existentes no seio da sociedade, e metas a serem alcançadas. Estes valores constituem os padrões ou standards, ou seja, a moldura legal onde a produção normativa da agência deverá se encaixar. As metas, por sua vez, traduzem-se nas políticas de estado fixadas para o setor.
Dentro destes parâmetros definidos pelo legislador, compete às agências, no exercício da função de concretizar o preceito legal (complementação enriquecedora), expedir atos normativos para disciplinar as atividades econômicas que lhe são afetas, com o propósito de atingir os fins estabelecidos na lei, dentre as quais o funcionamento eficiente e equilibrado do setor regulado.
Assim, segundo Leopoldo Fontenele Teixeira, esta função regulatória, sob a ótica da teoria da deslegalização:[37]
“Representa o exercício de típica função executiva, consistente na edição de atos destinados a propiciar a aplicação das normas genéricas editadas pelo legislador, normas essas que conterão a política pública para o setor, bem como preceitos com baixa densidade normativa destinados a servir de baliza para a edição dos atos normativos regulatórios.”
Assim, a depender do tipo de teoria utilizada, o controle a ser exercido sobre as agências sofre variações, sendo que a atuação das agências sob o pálio da teoria da deslegalização certamente é mais abrangente que a outra corrente.
Pensamos que a corrente que prega a origem terciária dos atos regulatórios, com vinculação ao regime especial de sujeição, parece ser a mais compatível com o Direito Constitucional brasileiro. Alguns elementos da corrente que prega a deslegalização, entretanto, são muito válidos, notadamente aqueles que tratam da vinculação das agências à moldura das leis, regulamentos e políticas públicas (standards).
5. Posição do Supremo Tribunal Federal e da Administração Pública.
Cumpre-se analisar, neste ponto, o posicionamento adotado pelo Poder Judiciário e pela Administração Central em relação à questão da competência normativa das agências reguladoras.
Primeiramente, em relação ao posicionamento do Poder Judiciário, faz-se importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão do poder normativo das agências, quando do julgamento da medida cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1668-DF, em 1997. Em tal demanda, o STF apreciou a constitucionalidade de diversos dispositivos da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), dentre os quais o art. 19, IV e X, que prevêem a competência normativa da ANATEL. Apesar de a lei analisada ser específica para a ANATEL, o entendimento fixado pelo STF pode ser perfeitamente estendido às demais agências.
Trata-se da primeira vez que o STF manifestou-se, em sede de controle concentrado, sobre as agências reguladoras. E, ainda assim, o fez a título de medida cautelar, não tendo julgado o mérito até hoje.
Nesta ocasião, o pleno deferiu em parte medida cautelar para:
“[…] Quanto aos incisos IV e X do artigo 19, sem redução de texto, dar-lhes interpretação conforme a Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado.”[38]
Assim, conclui-se que a Suprema Corte entendeu que o poder normativo é, efetivamente, constitucional, desde que seja exercido nos limites impostos pela constituição e pelas leis e regulamentos que regem a matéria.
Note-se que, no que tange aos incisos IV e X do art. 19, os Ministros acompanharam, em sua maioria, o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, o qual evidenciou o seu alinhamento à corrente doutrinária predominante acerca da justificação do poder normativo, exposta e analisada no tópico anterior:
“[…] nada impede que a Agência tenha funções normativas, desde, porém, que absolutamente subordinadas à legislação, e, eventualmente, às normas de segundo grau, de caráter regulamentar, que o Presidente da República entenda baixar.
Assim, […] entendo que nada pode subtrair da responsabilidade do agente político, que é o Chefe do Poder Executivo, a ampla competência reguladora da lei das telecomunicações.
Dou interpretação conforme para enfatizar que os incisos IV e X referem-se a normas subordinadas à lei e, se for o caso, aos regulamentos do Poder Executivo.”[39]
Assim, em vista do julgamento acima mencionado, o Supremo Tribunal Federal se posicionou pela constitucionalidade do poder normativo das agências, tendo se alinhado à corrente mais conservadora, que encara os atos regulatórios como terciários. Deixou claro, ainda, que os atos normativos das agências poderiam ter efeitos externos. Entretanto, foi omisso no que concerne à obrigatoriedade ou não de submissão ao regime de sujeição especial, não tendo analisado tal ponto, deixando para a doutrina o desenvolvimento desta questão.
Não obstante, o posicionamento no sentido de acreditar que a sujeição é necessária nos parece mais coerente, pois, como enfatizado no próprio julgamento do Supremo, a atuação da agência deve se pautar nos preceitos constitucionais, o que inclui, evidentemente, o princípio da legalidade.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também já proferiu decisões em sede de Recurso Especial que ratificaram o poder normativo das agências reguladoras. Citam-se como exemplos os Recursos Especiais nº 572.070-PR, 985.265-RS e 986.415-RS, que abordaram a questão do poder normativo da ANATEL em assuntos relacionados com a regulação do setor das telecomunicações.
No âmbito do Poder Executivo, predomina o entendimento de que a competência regulatória das agências decorre das previsões expressas nas leis de criação, estando esta função subordinada tanto aos condicionamentos legais existentes, quanto nas disposições contidas em regulamento.
Assim, foi adotada, predominantemente a corrente que entende serem as normas das agências atos normativos terciários, subordinados aos regulamentos e aplicáveis com base no regime de sujeição especial. Ademais, as normas devem respeitar rigorosamente os standards e balizas previstos na legislação, bem como as disposições contidas nos regulamentos.
Este entendimento foi uniformizado em função do Parecer da AGU nº AC-51, de 12 de junho de 2006,[40] o qual possui caráter normativo e vincula toda a administração federal. Tal parecer, tratou principalmente da questão da sujeição das agências à supervisão ministerial, entretanto, abordou outros assuntos de interesse para este trabalho, a saber: a vinculação da produção normativa das agências aos condicionamentos e às balizas previstos na lei e no regulamento e a vinculação das políticas regulatórias às políticas públicas setoriais traçadas pelos Ministérios.
Desse modo, essas políticas públicas setoriais podem ser consideradas também como parâmetros para pautar a atuação normativa das agências (produção da política regulatória), além dos balizamentos existentes na lei (standards) e nos regulamentos, o que reforça a sujeição institucionalizada à corrente que defende que atos normativos se suportam no poder regulamentar do executivo.
Assim, em relação ao âmbito do poder normativo, o Parecer em foco reproduz, no geral, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, com o diferencial de condicionar a atuação das agências, também, às políticas públicas estabelecidas para o setor regulado.
6. Conclusão.
As leis são fontes do ordenamento jurídico que se encontram em privilegiada posição na pirâmide hierárquica das espécies normativas. São elas consideradas atos normativos primários e fontes, por natureza, de direitos e obrigações.
Em face disso, as Leis são, a princípio, as espécies normativas apropriadas para se estabelecer obrigações, razão pela qual no sistema constitucional brasileiro não se admite em um primeiro momento que atos normativos infra-legais estabeleçam obrigações não previstas em lei.
Noutra quadra, compete ao Poder Executivo expedir atos normativos abstratos para regulamentar as leis, isto é, complementar o seu conteúdo, a fim de que possam ser cumpridas.
Nessa atividade de regulamentação, acaba-se por se conceber função normativa ao Poder Executivo, tendo sido preconizado pela doutrina que tal fenômeno decorre de uma releitura do princípio da separação dos poderes, decorrente da evolução sócio-política da sociedade brasileira, no contexto do estado neoliberal e regulador.
Existem opiniões doutrinárias as mais diversas para justificar a constitucionalidade do poder regulatório da administração pública, em especial a sua vertente mais intrigante, que é justamente o exercício deste poder pelas agências reguladoras
A esse respeito quatro correntes se destacam:
A primeira delas posiciona-se no sentido de que as agências reguladoras exercem suas atribuições de ordem normativa, por meio de uma descentralização do exercício da competência regulamentar do Presidente da República (art. 84, IV, da CF/88). Assim, o fato do constituinte ter atribuído ao Chefe de Estado a função de regulamentar as leis não significa que está proibida a possibilidade de desconcentração ou descentralização do exercício deste poder.
Em contraponto à primeira, a segunda corrente entende não ser possível às agências exercer a função reguladora com base neste na desconcentração do poder regulamentar do presidente, que seria privativo, mas apenas editar atos normativos terciários (resoluções, portarias) com aplicação limitada ao âmbito interno da agência, bem como àqueles que possuam vínculo especial de sujeição para com a Administração.
A terceira corrente defende a tese de que apenas as agências com expressa previsão constitucional, quais sejam, a ANATEL e a ANP, teriam competência normativa abstrata, em função da aplicação da teoria dos poderes implícitos.
Por fim, uma última corrente se levanta e defende a possibilidade de exercício de função normativa pelas agências a partir da distinção entre regulação e regulamentação. Segundo os defensores dessa corrente doutrinária caberia às agências unicamente a prática de atos caracterizados como regulação, que seriam as atividades de concretização de preceitos legais genéricos, assentada em critérios técnicos e na ponderação valorativa dos diversos interesses envolvidos, destinada a propiciar o equilíbrio do setor regulado.
Sobre o tema também já se manifestou Supremo Tribunal Federal, entendendo que o poder normativo é, efetivamente, constitucional, desde que seja exercido nos limites impostos pela constituição e pelas leis e regulamentos que regem a matéria.
Por sua vez, a administração, através do Parecer da AGU nº AC-51, de 12 de junho de 2006, posicionou-se no sentido de que a competência regulatória das agências decorre das previsões expressas nas leis de criação, estando esta função subordinada tanto aos condicionamentos legais existentes, quanto nas disposições contidas em regulamento.
Adotou-se assim a corrente que entende serem as normas das agências atos normativos terciários, subordinados aos regulamentos e aplicáveis com base no regime de sujeição especial.
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Procurador Federal em atuação no Estado do Ceará, pesquisador e autor de livros e artigos sobre temas de Direito Administrativo e de Direitos Fundamentais
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