Resumo: O acesso à justiça é um dos valores mais fundamentais da ordem constitucional de um país, que por meio de suas diretrizes básicas foi capaz de promover significativa transformação na ciência processual, daí decorrendo uma grande afinidade entre o direito processual e a Constituição. Pela necessidade de se ter um meio de tutela processual específico dos interesses coletivos é que se criou a ação civil pública no ordenamento jurídico brasileiro, ao passo que sua propositura pela Defensoria Pública possibilita a concretização de direitos constitucionais fundamentais. No entanto, a legitimação da Defensoria Pública para propor a referida ação civil foi contestada pelo Ministério Público perante a Corte Suprema. Sendo assim, intenta-se averiguar as dificuldades de se ter o acesso à justiça, a estrutura da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, bem como a constitucionalidade da legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública, para que seja possível melhor compreender a natureza do conflito suscitado. Para esse desiderato, busca-se analisar o novo sistema processual, o surgimento dos direitos transindividuais no sistema jurídico do Brasil, assim como a necessidade de serem tutelados.
Palavras-chaves: Acesso à Justiça. Defensoria Pública. Direitos Transindividuais. Ação Civil Pública. Legitimidade.
Sumário: 1 Introdução 2 Do Acesso à Justiça 2.1 Limitações ao Acesso à Justiça 2.2 As Ondas Renovatórias de Mauro Cappelletti e Bryan Garth 2.3 A Segunda Onda: Da Defesa dos Interesses Difusos 3 Da Defensoria Pública 4 Dos Direitos Transindividuais 4.1 Ação Civil Pública como Instrumento de Tutela dos Interesses Transindividuais 4.2 Legitimidade Ativa para Propor Ação Civil Pública 5 Da Legitimidade da Defensoria Pública para Tutelar os Interesses Difusos 5.1 Discussão acerca da legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública com base na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3943 5.2 Conflito de competência entre o Ministério Público e a Defensoria Pública 6 Considerações Finais. Referências
1 INTRODUÇÃO
Como consequência dos movimentos sociais que ocorreram ao longo da história, o Direito passou a ser enxergado sob uma nova perspectiva, pois uma sociedade que vivia no reino da falta, carente de acesso à justiça, passou a exigir uma atuação positiva do Estado em prol da concretização dos direitos sociais que contribuíram para a formação da democracia atual.
Esse movimento histórico contribuiu para que o direito ao acesso à justiça, inerente a formação da cidadania, fosse considerado fundamental à dignidade do ser humano. Sendo assim, a garantia do real acesso, bem como a superação dos problemas comuns que lhe são inerentes, passou a ser objetivo almejado pelo ordenamento jurídico interno de cada Estado que visasse instaurar um sistema democrático pleno.
Visando o acesso à justiça, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, através de seu art. 5º, inciso LXXIV, criou a Defensoria Pública como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, lhe incumbindo à proteção dos direitos e interesses dos necessitados, que por insuficiência de recursos não poderiam promovê-lo.
No entanto, com uma sociedade moderna cada vez mais complexa, com intricado desenvolvimento das relações econômicas, surgem situações nas quais determinadas atividades podem trazer prejuízos aos interesses de um grande número de pessoas, fazendo surgir, portanto, problemas desconhecidos às lides meramente individuais.
Desta forma, parte deste artigo se dedicará ao estudo da maneira como a Defensoria Pública atuará na defesa não só dos necessitados individualmente identificados, mas também da coletividade, visando driblar a barreira da representatividade dos interesses difusos, bem como garantir a promoção do real acesso à justiça.
Nesse norte, o presente trabalho tem como escopo principal analisar a constitucionalidade da legitimidade ativa da Defensoria Pública na ação civil pública, concedida pela lei nº. 11.448/2007 que alterou a redação do art. 5º, inciso II da Lei nº. 7.347/85, inserindo a Defensoria no rol de legitimados.
Dito isso, em um primeiro momento, serão destacadas as principais problemáticas do acesso à justiça, bem como as soluções práticas de embate ou drible a tais barreiras sob a forma das ondas renovatórias propostas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth.
Na sequência, explanar-se-á o surgimento e evolução da assistência judiciária no Brasil até a criação da Defensoria Pública como instituição essencial à justiça em seu enfoque constitucional.
Em seguida, analisar-se-á a tutela jurídica dos direitos transindividuais pós Constituição Federal de 1988, destacando a ação civil pública como principal instrumento viabilizador deste tipo de tutela especial.
Por fim, será abordado o conflito suscitado acerca da legitimação da Defensoria Pública para propor ação civil pública através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3.943 proposta pela Associação Nacional do Ministério Público – CONAMP, momento em que serão expostos fundamentos jurisprudenciais e doutrinários que consolidam a constitucionalidade do dispositivo da Lei nº. 11.448/2007 que conferiu a legitimidade da Defensoria Pública para a defesa dos interesses difusos.
Este, portanto, é o objeto do presente trabalho: discutir a constitucionalidade do dispositivo de lei que conferiu expressamente à Defensoria Pública legitimidade ativa para defender os interesses difusos mediante a propositura da ação civil pública sob o enfoque da real garantia do acesso à justiça.
2 DO ACESSO À JUSTIÇA
Por volta do século XVIII e XIX, nos Estados liberais burgueses, o direito ao acesso à justiça era considerado um direito natural do qual não necessitava da proteção estatal. Desprovido de qualquer conteúdo sócio-político, refletia apenas em um direito formal de um indivíduo contestar ou propor uma ação judicial com a mera instrumentalização do Poder Judiciário para a sua efetiva provocação.
A atuação do Estado à época era limitada, pois não havia qualquer preocupação em garantir a efetividade desse direito. Isto porque, a concretização de atributos inerentes ao regime democrático era incialmente desempenhada pelo Poder Legislativo, onde o Poder Judiciário atuava apenas quando provocado e sempre limitado a uma interpretação literal e técnica da norma jurídica, estando estritamente adstrito a resolver conflitos privados de caráter individual, não havendo sequer espaço para reconhecimento de interesses coletivos.
MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH[1] definem esse momento como um direito formal ao acesso a uma justiça não efetiva, fazendo uma sistemática comparativa ao sistema laissez-faire[2]. Isto porque, o Estado não estava preocupado com a dificuldade da população em se fazer da justiça e suas instituições, que só eram utilizadas de forma efetiva por aqueles que pudessem arcar com as suas custas[3].
Garantir um amplo e efetivo acesso à justiça é um problema secular, que até mesmo nos dias de hoje, ante as mais modernas teorias jurídicas não foi fazê-lo satisfatoriamente, entretanto, conseguiram-se grandes avanços. O primeiro deles é encarar o acesso à justiça como um direito de todos e não de uma pessoa individualizada, isto como consequência das radicais transformações dos direitos humanos em detrimento do acelerado crescimento das sociedades modernas, que adquiriram consciência de que um Estado de Direito meramente formal pelo qual se reconhecem apenas garantias individuais é incapaz de promover realizações concretas.
Outro avanço é a percepção da necessidade de uma atuação positiva do Estado de forma a garantir não apenas os direitos fundamentais individuais, mas também os sociais, dentre eles o acesso à justiça.
Assim, ante a insuficiência do liberalismo e das correntes neoliberais em atender os anseios das sociedades, principalmente em razão do surgimento dos interesses coletivos, aos poucos, o Estado foi forçado a reconhecer que a questão social deveria receber uma resposta sua. Nesse momento, o Estado Liberal é sufragado por um Estado Social baseado em um sistema denominado welfare state, este oposto ao sistema do laissez-faire, pois nele o poder do Estado materializa-se com a participação dos cidadãos e dos organismos sociais[4].
Nessa fase de “Estado do Bem Estar Social”, um novo papel passou a ser desempenhado pelo Judiciário, que passou a intervir de forma a complementar e adaptar os comandos normativos emanados pelo Legislativo, e assim assumir o seu verdadeiro papel de construtor de políticas públicas[5].
No entanto, junto com a instituição de um Estado garantidor dos direitos fundamentais, surge a necessidade de se garantir à população uma igualdade real de oportunidades mediante instrumentos de igual natureza, bem como uma isonômica distribuição de bens, dentre os quais a justiça, pois garantir um amplo acesso individual ao judiciário e mecanismos de representação em ações coletivas significa neutralizar, em certo grau, desigualdades no exercício de direitos, bem como evitar a massificação de demandas individuais que só servem para retardar o Poder Judiciário[6].
Por tais razões, é que as questões de ordem social devem ser levadas ao Judiciário através de uma demanda coletiva, caso contrário muitas injustiças seriam consolidadas, uma vez que indivíduos que possuam maior capacidade técnica, no tocante ao acesso à informação, bem como possuam maiores recursos materiais, irão encontrar de forma mais fácil respostas que correspondam aos seus pleitos, enquanto os carentes de tais atributos são excluídos do acesso à justiça[7].
Nesse momento, exsurge a importância de se identificar as principais limitações que obstam o acesso à justiça, bem com as soluções jurídicas hábeis a neutraliza-las.
2.1 Limitações ao Acesso à Justiça
Dentro do ordenamento jurídico de cada Estado existem inúmeras dificuldades que obstam a concretização do acesso à justiça. No entanto, as principais delas foram destacadas pela pesquisa denominada Florence Access to Justice Project[8], um dos projetos estrangeiros mais bem sucedidos realizado sob a coordenação de Mauro Cappelletti.
O primeiro limitador elencado é àquele de ordem econômica, pois países com problemas sociais em que a pobreza é dominante oferecem barreiras naturais a grande parte da população que sente dificuldades em ver seus direitos defendidos, seja pela desinformação, pela falta de uma representação adequada, ou ainda pelos altos custos da manutenção de um processo, estes que são agravados pela fatigante mora processual.
O segundo limitador é de ordem organizacional, pois representa os empecilhos legislativos e institucionais à defesa dos direitos e interesses difusos ou coletivos.
O obstáculo encontra-se no resultado prático da tutela coletiva, primeiramente porque ou ninguém tem direito a uma reparação ou esta é tão ínfima que desestimula o intento de uma ação judicial. Ademais, além da questão antieconômica existe uma dificuldade na reunião das pessoas que possuem legitimidade ad causam para o ingresso com uma demanda coletiva, principalmente em consequência de todos os limitadores já expostos. Não por outro motivo que a proteção privada dos interesses difusos é quase inócua, já que é difícil estabelecer uma ação coordenada.
Portanto, é eminentemente necessário que o Estado promova este tipo de tutela, seja através do Ministério Público, da Defensoria Pública, ou de qualquer outro ente que seja legalmente legitimado para o intento, vez que o principal objetivo é a garantia de um acesso efetivo à justiça, cume este que jamais pode ter seu foco desviado em razão de interesses de natureza adversa.
Por fim, o terceiro obstáculo é de ordem processual, pois em certas áreas ou espécies de litígios, a obrigatoriedade da resolução da lide pela via judicial produz danos maiores do que um procedimento mais informal, que serviria de alternativa a esses juízos ordinários e aos procedimentos usuais[9].
2.2 As Ondas Renovatórias de Mauro Cappelletti e Bryan Garth
Esse novo conceito de Estado Social que passou a substituir requer a implantação de mecanismos que facilitem a tutela dos direitos e interesses sociais de forma a transcender as barreiras que lhe são impostas em razão dos resquícios do liberalismo que enfraquecem o acesso à justiça.
Sendo assim, as ondas renovatórias do acesso à justiça, assim definidas por CAPPELLETTI e GARTH[10], são nada mais do que três posicionamentos básicos que diagnosticam soluções para uma tentativa de atacar, ou ao menos driblar os obstáculos que dificultam o efetivo acesso. Em suma, são reformas estruturais e procedimentais que visam uma melhor promoção desse direito fundamental.
A primeira onda renovatória caracteriza-se pela criação da assistência judiciária gratuita. Esta onda abarca propostas de criação de sistemas capazes de desviar um dos grandes limitadores ao acesso, qual seja o obstáculo econômico.
Já a segunda e mais importante onda para este trabalho é a tutela jurídica dos interesses difusos, já que depois da promulgação da Carta Magna de 1988 tal modalidade de proteção passou a merecer uma atenção especial, ensejadora de reformas procedimentais relevantes no processo civil brasileiro.
E, por fim, a terceira onda trata do enfoque de acesso à justiça, em que se propõem tentativas articuladas de ataque aos obstáculos do acesso.
O presente trabalho abordará de forma breve a maneira como se projetou a segunda onda em razão desta relacionar-se ao problema da representação dos interesses difusos.
2.3 A Segunda Onda: Da Defesa dos Interesses Difusos
A tutela dos interesses difusos representa uma problemática no cerne do acesso efetivo à justiça em razão da dificuldade em se estabelecer uma ação coordenada. Desta forma, surge a extrema necessidade de se executar uma reforma no procedimento capaz de aprimorar esta modalidade de tutela coletiva.
As lições de CAPPELLETTI e GARTH[11] revelam uma visão tradicional do processo civil a partir da qual o processo era encarado como um meio de solução de litígios entre partes em prol de interesses individuais, não havendo espaço para a tutela dos interesses difusos. Contudo, ante ao clamor social de uma reforma processual em prol de uma tutela coletiva eficaz começaram a serem discutidas reformas vinculadas a políticas públicas que abarcassem grandes grupos de pessoas. A partir de então, passaram a surgir decisões judiciais permitindo indivíduos ou grupos organizados a atuarem em representação dos interesses difusos.
Nesse diapasão, surge a primeira problemática relacionada a tutela coletiva, qual seja a legitimidade ad causam dos indivíduos ou grupos para propor a ação coletiva.
Todavia, para que se alcance uma efetiva proteção desses interesses é necessária uma modificação na ideia de citação, do direito de ser ouvido e dos efeitos da coisa julgada. Primeiro porque nem todos os titulares do direito difuso podem comparecer em juízo, é necessário que seja eleito um representante para agir em benefício da coletividade mesmo que todos que a integrem não sejam citados individualmente. Da mesma forma que os efeitos da coisa julgada provenientes da decisão promulgada em sede de ação coletiva devem atingir a todos indistintamente, ou seja, deve ser dotada de efeito erga omnes, mesmo que nem todos tenham tido a oportunidade de serem ouvidos.
Nesse contexto, não é difícil notar que o devido processo judicial vem incorporando uma concepção social coletiva capaz de garantir a efetivação de direitos públicos ligados a interesses difusos. Entretanto, viabilizar uma efetiva representação de tais interesses tornou-se o foco das principais reformas discutidas para o procedimento processual. Desta forma, Cappelletti e Garth identificam três principais sistemas que compõem essa segunda onda renovatória, quais sejam, a ação governamental, a técnica do Procurador-Geral privado, e a técnica do Advogado particular do interesse público.
Dentre esses três sistemas de representação dos interesses difusos o que merece maior destaque para este trabalho é o sistema da ação governamental, que consiste em ação a ser proposta por instituições governamentais legalmente legitimadas objetivando a proteção dos interesses coletivos.
No que toca aos interesses difusos, esta configura o principal instrumento de representação a ser exercida por instituições como o Ministério Público ou outra análoga, as quais visam a proteção do interesse público.
CAPPELLETTI e GARTH[12] enfatizam que não obstante a tradicional relutância em dar-se legitimação a indivíduos ou grupos para atuarem em prol dos interesses difusos, as instituições governamentais dotadas de legitimidade ativa para o ingresso com uma demanda coletiva, atuam de forma ineficiente.
Acredita-se que essa atuação inefetiva se dá em razão dos papéis tradicionais restritos e específicos a que estas instituições estão vinculadas[13], de maneira a ficarem impossibilitadas de assumirem, por inteiro, a tutela dos direitos difusos, estes que inclusive foram regulamentados recentemente.
Além disso, lamentavelmente o Ministério Público sofre muita pressão política, já que atua como custos legis, o que de certa forma dificulta a representação dos interesses difusos como “advogado do povo”, vez que em sua maioria consubstancia-se em intentos contra o próprio Estado.
Diante das problemáticas expostas, ordenamentos jurídicos de várias partes do mundo passaram a tentar criar mecanismos governamentais hábeis a proporcionar uma melhor representação dos interesses coletivos em geral, notadamente, os interesses difusos, e, para tanto, novas instituições foram criadas.
Os Estados Unidos da América foram os pioneiros a executarem tais medidas com a criação de advogado público habilitado a representar os direitos coletivos tanto na esfera administrativa quanto na judicial.
A alternativa tomada por iniciativa dos E.U.A. e seguida por outros países, consubstancia-se tão somente na criação de instituições semelhantes as Defensorias Públicas. Ocorre que, muito embora tais instituições funcionem da melhor forma possível, possuem limitações que a elas são inerentes, e a principal delas é a falta de autonomia política que representa uma grande barreira para a execução de suas tarefas.
3 DA DEFENSORIA PÚBLICA
Em 1988, pela primeira vez a Defensoria Pública constou no texto constitucional como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados[14]”. Isto porque, os constituintes perceberam que não era suficiente tratar a assistência judiciária como uma garantia individual e coletiva, e para tanto buscaram estruturar uma instituição pública que prestasse tal função como forma de reconhecimento ao caráter de essencialidade à justiça.
Ressalte-se que, o novo texto constitucional trouxe uma mudança de paradigma, já que garante uma assistência não só dentro de um processo, mas também fora dele, e, por isso, diferente dos textos constitucionais anteriores, utiliza a terminologia assistência jurídica ao invés de assistência judiciária.
Assim sendo, de acordo com esse novo paradigma de assistência judiciária, a Defensoria Pública é o órgão responsável pela defesa e representação judicial e extrajudicial dos necessitados, tendo o Brasil adotado o sistema de assistência jurídica estatal.
Dentre as especificidades deste órgão tão importante para a sociedade é importante para este trabalho destacar de forma objetiva suas funções institucionais.
Além das funções clássicas do Estado (legislativa, executiva e judiciária), existem as funções consideradas essenciais à justiça, especialmente as desempenhadas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, instituições que tiveram as suas existências asseguradas no âmbito da administração pública para executarem a sua missão.
O art. 134 da CRFB/88 define a orientação jurídica aos necessitados como função da Defensoria Pública, ao tempo em que o art. 5º, inciso LXXIV do mesmo texto constitucional diz que tal assistência jurídica será prestada aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Contudo, os supracitados dispositivos constitucionais não devem ser interpretados sob um aspecto exclusivamente literal como forma de definir o papel da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro, pois se assim fosse suas atribuições reservar-se-iam apenas àqueles hipossuficientes de recursos econômicos ou financeiros, e, que, portanto, não podem custear as despesas processuais, bem como contratar um advogado particular.
Nessa senda, de acordo com o ilustre FREDERICO RODRIGUES VIANA DE LIMA[15] tais dispositivos constitucionais devem ser visualizados sob um enfoque jurídico-teleológico, pois diante da realidade social contemporânea, nem sempre a junção das expressões “insuficiência de recursos” e “necessitados” resultam em uma insuficiência de recursos econômicos.
De tal sorte, baseado nessa exegese teleológica, a função da Defensoria Pública se bifurca em duas vertentes: função típica e função atípica.
A Defensoria Pública desempenha as suas funções intituladas como típicas no momento em que defende os interesses dos hipossuficientes financeiros, ou seja, o deferimento da prestação de assistência jurídica ocorrerá exclusivamente em razão da capacidade econômica do cidadão. Portanto, em regra, são hipossuficientes financeiros àqueles que se enquadram nos ditames da lei federal nº. 1.060/50, sendo dever do defensor público, aquele incumbido de prestar tal assistência, exigir da parte a comprovação financeira pertinente em caso de dúvida.
Por outro lado, as atribuições da Defensoria Pública não foram descritas pelo texto constitucional de modo exaustivo, e, portanto, a defesa dos necessitados é função mínima do órgão. Desta forma, a sua atuação poderá ser ampliada pelo legislador ordinário para o exercício de outras funções, as quais são denominadas de atípicas. Neste sentido posicionou-se ADA PELLEGRINI GRINOVER[16] em parecer elaborado a pedido da ANADEP (Associação Nacional dos Defensores Públicos) a respeito da pretendida inconstitucionalidade do art. 5º da Lei nº. 7.347/85 levantada pela CONAMP, vejamos:
“O art. 134 da CF não coloca limites às atribuições da Defensoria Pública. O legislador constitucional não usou o termo exclusivamente, como fez, por exemplo, quando atribuiu ao Ministério Público a função institucional de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (art. 129, inc. I). Desse modo, as atribuições da Defensoria podem ser ampliadas por lei, como, aliás, já ocorreu com o exercício da curadoria especial, mesmo em relação a pessoas não economicamente necessitadas” (art. 4º, inc. VI, da Lei Complementar n. 80/94).
Ainda no mesmo parecer ADA PELLEGRINI[17] fundamentou que as expressões “insuficiência de recursos” e “necessitados” não devem ser interpretadas de forma restritiva, ou seja, não se pode atribuí-las como sinônimo apenas a hipossuficiência financeira. Esse enfoque deve ser o mínimo e não o limite institucional, pois se deve entender por necessidade toda e qualquer carência que se torne um óbice para o acesso do indivíduo à justiça, como exemplo, o estado de vulnerabilidade a que um ou mais cidadãos podem estar submetidos e que requer uma proteção especial do Estado independente de condições financeiras.
Nesse diapasão, a lei complementar nº. 80/94, que dispõe sobre as funções institucionais da Defensoria Pública, teve o rol de seu art. 4º estendido pela LC 132/2009, e assim passou a abranger novas áreas, que abriram caminho para o aprimoramento da instituição, traçando um perfil institucional mais adequado aos reclamos do solo e do tempo e melhor enfocando o norte do acesso à justiça substancial prometido pelo Estado brasileiro.
Assim, não há como negar que a Defensoria Pública figura como instituição essencial à justiça, de acordo com o mandamus constitucional do art. 134 da CRFB, exercendo papel de extrema notoriedade para o ordenamento jurídico brasileiro.
4 DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
Os direitos coletivos em sentido lato também são denominados direitos transindividuais e caracterizam-se por pertencer a um grupo, categoria ou classe de pessoas que tenham entre si vínculo de natureza jurídica ou fática. Constitui gênero do qual são espécies os direitos individuais homogêneos, os direitos coletivos stricto sensu, e o mais importante para este estudo os direitos difusos[18].
HUGO NIGRO MAZZILLI[19] faz a distinção acerca dos interesses coletivos em sentido lato, a partir da Lei de Ação Civil Pública com a menção do CDC quanto a sua origem: a) se o que une interessados indetermináveis é a mesma situação de fato, mas o dano é individualmente indivisível (p. ex., os que assistem pela televisão à mesma propaganda enganosa), têm-se interesses difusos; b) se o que une interessados determináveis é a circunstância de compartilharem a mesma relação jurídica indivisível (como os consumidores que se submete à mesma cláusula ilegal em contrato de adesão), têm-se interesses coletivos em sentido estrito; c) se o que une interessados determináveis, com interesses divisíveis, é a origem comum da lesão (p. ex., os consumidores que adquirem produtos fabricados em série com o mesmo defeito), têm-se interesses individuais homogêneos.
No entanto, já existe corrente doutrinária favorável a extinção dessa classificação, uma vez que na prática torna-se difícil a individualização dos institutos, devendo ser observado cada caso concreto, pois há situações em que se pode identificar a presença dos três interesses, o que acaba por confundir juristas e operadores do direito.
Por outro lado, a partir do reconhecimento desses novos direitos pelo ordenamento jurídico brasileiro, criaram-se mecanismos próprios para a sua defesa em juízo, atribuindo a determinados entes (legitimados). A partir de então, começaram a surgir controvérsias relacionadas a questão da legitimidade ativa para a defesa dos direitos transindividuais, pois dependendo do interesse a ser tutelado o legitimado será aquele que possua relação aos seus fins.
4.1 Ação Civil Pública como Instrumento de Tutela dos Interesses Transindividuais
A ação civil pública como instrumento capaz de garantir a tutela jurisdicional dos direitos coletivos ganhou uma nova roupagem principalmente depois das alterações promovidas pelo CDC, pois além de promover a defesa dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, também passou a abarcar os direitos individuais homogêneos. Figurando, portanto, como um importante instrumento viabilizador do acesso amplo à justiça.
A lei da ação civil pública e o Código de Defesa do Consumidor estão inter-relacionados no tocante a tutela dos direitos transindividuais, estabelecendo uma relação de complementaridade entre as suas disposições normativas regulamentares. Veja-se:
“CDC. Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita o inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.
CDC. Art. 117. Acrescenta-se a Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes: Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”
Nessa senda, verifica-se que as alterações trazidas pelo CDC ampliaram o espectro de direitos a serem tutelados através da instrumentalização da ação civil pública, principalmente em razão da inclusão da genérica expressão, “ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, no rol dos direitos anteriormente já previstos.
Contudo, insta ressaltar que, as inovações da lei da ação civil pública trazidas pelo código consumerista não se adstringem apenas a ampliação do seu objeto de tutela, pois também ampliou o rol dos legitimados para proteger os direitos e interesses individuais homogêneos.
O espectro de utilidade da ação civil pública também foi ampliado à luz do âmbito descrito no art. 84 do CDC, a ela aplicável, pois de nada adianta os instrumentos e as instituições necessárias à efetivação de tais direitos, mesmo que devidamente manejados, se conjuntamente não existir um esforço e idoneidade capazes de lhes conferir provimentos judiciais dotados de utilidade prática[20].
Essa nova dinâmica processual coletiva requer do judiciário uma adaptação às novas situações processuais trazidas em razão de violações a direitos coletivos, pois as demandas coletivas, principalmente quando envolvem interesses difusos, possuem um alto grau de litigiosidade, e, para serem solucionadas é necessária uma minuciosa avaliação do caso concreto pelo magistrado, que sopesará os interesses antagônicos postos em discussão, e decidirá, em muitas situações, mediante o prudente exercício de um juízo discricionário tomando como base os princípios gerais do direito.
De certa forma, se fazer de um juízo discricionário requer do magistrado um posicionamento ativista, obviamente, dentro dos limites ético-jurídicos.
Por fim, ARRUDA ALVIM[21] destaca que na medida em que a ação civil pública tutela bens indivisíveis, a sua titularidade é distribuída de forma igual, pois o que interessa é a ampla e efetiva defesa dos interesses da coletividade. Sendo, portanto, inviável estabelecer uma forma diferenciada de gozo e fruição, já que para este tipo de interesse os membros da coletividade são quantitativa e qualitativamente iguais, não sendo assim, suscetíveis de apropriação exclusiva.
4.2 Legitimidade Ativa para Propor Ação Civil Pública
A melhor técnica para a representação dos direitos transindividuais em juízo foi a denominada mista ou pluralista, trazida pela Lei da ação civil pública, consagrada pela Constituição Federal de 1988 e consolidada pelo Código de Defesa do Consumidor, a qual cumula como representantes tanto entes públicos quanto privados.
No entanto, nem sempre foi assim, pois inicialmente a lei da ação civil pública não previa esse extenso rol de legitimados para representarem os interesses da coletividade em juízo, em que pese no espaço reservado para a sua exposição de motivos tenha apontado o Ministério Público como legitimado ativo para defender os interesses difusos em conformidade com a LC nº. 40/81, a qual trata das funções institucionais do parquet e inclui a ação civil pública como uma delas.
Contudo, a partir das alterações sofridas pela Lei nº 11.448/07, a LACP passou a elencar um rol taxativo extenso de legitimados, incluindo a Defensoria Pública.
Segundo CAIO MÁRCIO LOUREIRO[22], a intenção do legislador ao estender o rol dos legitimados para propor ação civil pública foi de proporcionar a melhor, mais ampla, e efetiva proteção dos direitos coletivos, e, consequentemente melhor promover o direito fundamental ao acesso à justiça. Até porque a legitimidade de um ente não exclui a do outro, podendo um colegitimado agir sozinho, sem a anuência, intervenção ou autorização dos demais, pois todos são igualmente legítimos para propor a ação, bastando apenas atender os requisitos legais para ajuizá-la. Portanto, é forçoso concluir que não há exclusividade nem atribuição privativa de legitimidade, e, havendo um eventual litisconsórcio, será sempre facultativo[23].
5 DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA TUTELAR OS INTERESSES DIFUSOS
A Lei 7.347/85 a qual institui o instrumento processual da ação civil pública em proteção aos interesses “coletivos” não previu, no momento da sua edição, a Defensoria Pública como ente legitimado para propor ACP, também não pudera, pois muito embora no sistema jurídico nacional houvesse a previsão da prestação da assistência judiciária, apenas com a promulgação da Carta Magna de 1988 é que a Defensoria Pública passou a existir no ordenamento como órgão essencial a função jurisdicional do Estado.
Com a edição do CDC (Lei nº. 8.078/90) houve a criação dos direitos individuais homogêneos como uma nova subespécie dos direitos coletivos, bem como se estendeu o campo de incidência da LACP a todos os direitos difusos e coletivos em sentido estrito, passando a exercer uma relação de complementariedade com a mesma. No entanto, não fez qualquer menção expressa acerca da legitimidade ativa da Defensoria Pública para tutelar os direitos transindividuais.
Por outro lado, a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (LC nº. 80/94) dispôs em seu art. 4º sobre as funções institucionais do órgão, e no inciso XI estabelece como função especial o patrocínio dos direitos e interesses do consumidor lesado, porém, não previu em seu título originário a legitimidade do órgão para tutelar os interesses transindividuais.
Não por coincidência, vários são os dispositivos que estimulam a atuação da Defensoria na jurisdição coletiva do consumidor, o primeiro deles é o inciso primeiro do art. 5º do CDC, o qual aponta “a manutenção da assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente” como o primeiro instrumento da Política Nacional das Relações de Consumo. A seguir tem-se o inciso VII do art. 6º que assegura aos necessitados “proteção jurídica, administrativa e técnica” como um dos direitos básicos do consumidor e, no inciso VIII do mesmo artigo enuncia-se o princípio da facilitação da defesa dos direitos do consumidor.
Além desses, o código consumerista dota o processo do consumidor de altíssimo teor instrumentalista ao prescrever em seu art. 83 que “para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”.
Como já dito anteriormente, o CDC ofereceu um grande incentivo à tutela coletiva, e, com isso ampliou a legitimidade ativa para as ações através do seu art. 82, inciso III, o qual outorga a legitimidade para “as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código”. Esta era, portanto, a base legal utilizada pela Defensoria para atuar em defesa dos direitos coletivos do consumidor.
FREDIE DIDIER JR. E HERMES ZANETI JR.[24] ainda destacam que a premissa prevista pelo art. 82, inciso III do CDC “se insere no conjunto dos microssistemas da tutela coletiva, podendo ser estendida para todas as demais possibilidades de ajuizamento de ações civis públicas, portanto, para além do Direito do Consumidor”.
No entanto, só após a edição da Lei nº 11.448 de 15 de janeiro de 2007 é que se acrescentou um inciso II no art. 5º da LACP para dar legitimidade a Defensoria Pública para propor ação civil pública, em que pese mesmo antes da edição da referida lei, a Defensoria Pública já atuasse na defesa dos direitos coletivos, notadamente na área consumerista por intermédio de ações coletivas. No entanto, a alteração promovida pela referida lei foi essencial à Defensoria Pública, vez que o nosso ordenamento jurídico está estritamente vinculado ao princípio da legalidade.
Por outro lado, nos tempos atuais, a lei formal é apenas um topo a ser considerado, especialmente quando se trata de legitimação processual, contudo é um topo constantemente revisado e testado. E não por outro motivo, que a própria legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública, a qual está inclusive prevista no texto constitucional, sofre questionamentos.
Nesse inteire, foram previsíveis os acalorados questionamentos que surgiram após a edição da Lei nº. 11.448/07 quanto a legitimação da Defensoria Pública para propor ação civil pública.
Como já visto em sessão anterior, junto com o reconhecimento de novos direitos, dentre eles os direitos transindividuais, surgiu a necessidade de se promover uma tutela especial que abarcasse todas as peculiaridades inerentes a esta nova modalidade de interesses.
Não obstante, a necessidade de se promover uma ação coordenada suficiente a organizar a representatividade de tais direitos em juízo, notadamente os difusos, bem como de se criar ou especializar instituições voltadas a essa tutela especial sob o enfoque do real acesso à justiça foi prioridade abarcada pelas ondas renovatórias do acesso à justiça.
Desta forma, é preciso encarar a legitimação da Defensoria Pública como tão somente medida viabilizadora do acesso à justiça, que sob um enfoque ao real acesso funciona como mecanismo processual capaz de conferir efetividade a tutela coletiva independentemente de objeções formais, estas que foram flexibilizadas por influência das concepções pluralistas do direito.
Nesse cerne é que as ações coletivas também reivindicam o pluralismo, pois com a sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, surgiram demandas extremamente peculiares, merecedoras de uma tutela específica, e, a aceitação dessa especificidade é o primeiro passo para se adequar um processo civil de interesse público às questões surgidas sob os parâmetros dessa nova realidade.
Assim, um dos grandes instrumentos de pluralização da ordem jurídica como um todo, é a diversificação operada no campo da legitimação ativa, especialmente quando se trata de processo coletivo, pois só haverá acesso ao cerne do processo se ultrapassada a barreira da legitimidade de forma flexibilizada[25].
Isso foi o que a Lei nº. 11.448/07, acompanhando as novas tendências constitucionais, fez ao ampliar o rol dos legitimados para propor ação civil pública com a alteração do respectivo art. 5º da LACP, fator relevante para o desenvolvimento da tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro, bem como para a propagação do acesso plural à justiça.
5.1 Discussão Acerca da Legitimidade da Defensoria Pública para Propor ação civil pública com base na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3943
A Associação Nacional do Ministério Público ajuizou em 2007, no Supremo Tribunal Federal, ADI nº. 3943, ainda pendente de decisão, em que se pleiteia a declaração de inconstitucionalidade do inciso II do art. 5º da Lei nº. 7.347, de 24 de julho de 1985 (redação alterada pela Lei nº. 11.448/07) sob o fundamento de que tal dispositivo ao conferir legitimidade, “sem restrições” à Defensoria Pública para propor ação civil pública, estaria violando o disposto nos artigos 5º, inciso LXXIV e 134 da Constituição Federal de 1988, vez que tal atribuição configura um desvio de função do referido órgão defensório, contrariando, portanto, os requisitos necessários da ação civil pública; e, ao mesmo tempo impede que o parquet exerça de forma plena as suas atividades, pois de acordo com o ordenamento jurídico constitucional a “titularidade para propor ACP pertence ao Ministério Público”.
Em suas razões, o parquet ainda argumenta que a incumbência constitucional conferida à Defensoria Pública no momento de sua criação foi a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, considerando erroneamente, como sinônimo do termo necessidade a ideia de hipossuficiência financeira, pois enfatiza o órgão ministerial que os beneficiados pelos serviços prestados pela Defensoria Pública devem comprovar “individualmente” , insuficiência de recursos financeiros. Portanto, não há como a Defensoria Pública atuar na defesa dos direitos transindividuais, já que neste tipo de tutela os interessados não podem ser facilmente individualizados ou identificados.
Por fim, a ADI nº. 3943 pede a declaração da inconstitucionalidade da legitimação da Defensoria Pública para figurar no pólo ativo de qualquer tipo de ação de cunho coletivo, ou subsidiariamente, que ao menos, seja declarada a impossibilidade de atuação da instituição na esfera difusa de interesses.
Exposto o caso controvertido, é necessário justificar que o trabalho focará a legitimidade da Defensoria Pública para tutelar os interesses difusos, isto por acreditar que os fundamentos jurídicos que confirmam a legitimidade ad causam da Defensoria para promover essa modalidade de interesses, estendem-se automaticamente as demais, e, ademais disso, considerando o fato de que antes de ser formalmente atribuída a legitimidade ativa ao órgão defensório para promover a tutela coletiva, já existia uma atuação deste órgão voltada a proteção dos direitos individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito, em especial na seara consumerista, mesmo porque, em ambos os casos é possível a determinação dos sujeitos interessados.
Conforme se observará adiante, a doutrina e a jurisprudência majoritária refutam vilmente os argumentos utilizados pelo parquet para instruir o respectivo pleito de inconstitucionalidade.
HUGO NIGRO MAZZILLI[26] reconhece que a Defensoria Pública já poderia propor ação civil pública mesmo antes da edição da Lei nº. 11.448/07. Entretanto, considera relevantes os questionamentos acerca da legitimidade ativa atribuída ao órgão para propor ACP em defesa dos interesses transindividuais, pois comumente, este instrumento processual volta-se a defesa de interesses difusos, ou seja, a grupos indetermináveis de lesados, o que abarcaria pessoas necessitadas e não necessitadas.
Entende que, muito embora o art. 134 da Constituição Federal, a qual define a Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado destinada à prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados abarque a esfera individual e coletiva, o resultado da demanda deve necessariamente beneficiar grupo de hipossuficientes, atrelando o conceito de necessidade ao de hipossuficiência econômica no sentido trazido pelo art. 2º da Lei nº. 1.060/50 como “impossibilidade de pagamento das despesas processuais sem prejuízo do próprio sustento ou da família”.
No entanto, reconhece que fugiria do escopo jurídico do processo coletivo exigir que a Defensoria Pública defenda por meio de ação individual o interesse de cada hipossuficiente integrante de um grupo com direitos em comum violados (estejam eles ligados por um vínculo jurídico ou mediante uma situação fática), portanto, a Defensoria Pública pode propor ação civil pública em favor de pessoas que se encontrem na condição de necessitados (hipossuficiência econômica nos termos do art. 2º da Lei nº. 1.060/50), mesmo que, no caso dos interesses difusos, indiretamente sejam beneficiados sujeitos não necessitados, mas que necessariamente quando se tratar de interesses individuais homogêneos e coletivos stricto sensu, todos os beneficiários devem ser necessitados.
Dos ensinamentos do ilustre jurista e doutrinador podem ser extraídas várias lições, porém existem alguns pontos que necessariamente precisam ser destacados por serem essenciais à consolidação do posicionamento ora defendido.
O primeiro ponto a ser destacado está relacionado ao conceito de necessidade. Como já visto, o atual conceito de necessidade não pode ser entendido apenas como sinônimo de hipossuficiência de recursos financeiros, vez que diante da realidade contemporânea, a tendência é que surjam embates jurídicos que envolvam cada vez mais situações de alta complexidade, e, não por outro motivo que surgiu o instituto da tutela coletiva no ordenamento jurídico do Brasil.
Desta maneira, a necessidade pode não estar apenas atrelada a questão econômica, mas também a jurídica (como a defesa dativa no processo penal e a curadoria especial no processo civil), ou ainda a qualquer outra que exponha o cidadão a uma situação de vulnerabilidade, situações estas que necessitam da análise do caso concreto pelo defensor público que irá atuar. Casos estes, em que a condição econômica do beneficiário da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública é dispensável, isto em razão do seu vocacionado direcionamento para o bem estar social, e, daí decorre as funções atípicas do órgão já estudadas anteriormente.
Acredita-se, inclusive, que a Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre a Defensoria Pública, usa de forma genérica as terminologias “necessitados” e “insuficiência de recursos”, justamente com o intuito de flexibilizar e ampliar a possibilidade, tanto do legislador infra constitucional, quanto do intérprete, de construir o perfil mais adequado à instituição de acordo com os anseios e necessidades do seu tempo, de forma a abarcar situações que não poderiam ser previstas de maneira precisa pelo texto constitucional no momento de sua edição.
É certo que, a Constituição Federal ao garantir a integralidade da assistência jurídica pela redação do seu art. 134, não se restringe a ampliação da ideia de atuação da instituição a esfera extrajudicial, nem tão pouco a possibilidade de confronto inclusive contra pessoas jurídicas de direito privado, mas ainda, a valorização de uma atividade jurídico-preventiva iniciada desde a prestação de esclarecimentos e orientações jurídicas, ao trabalho nas esferas administrativas e judiciais dos litígios.
Assim, ao se oferecer uma interpretação ampliativa a expressão “necessitado” não se tem o intuito de afastar a Defensoria Pública do seu real papel, tão pouco de conferir-lhe uma supra legitimidade, ao contrário, deseja-se aproximá-la da sua real função, qual seja, a defesa em todas as esferas de todos aqueles considerados necessitados, sejam, eles vulneráveis econômicos, jurídicos, psíquicos, políticos, sociais, culturais ou mesmo organizacionais.
Outro ponto que merece destaque, está relacionado a condição de todos os beneficiados pelos serviços da Defensoria serem hipossuficientes financeiros quando a ação coletiva versar sobre interesses coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.
Inicialmente vale salientar que, o motivo em que se conferiu legitimidade ativa à Defensoria Pública para propor ação civil pública, mesmo em situações que versam acerca de interesses difusos, encontra respaldo no próprio escopo jurídico do processo coletivo, vez que seria inócuo exigir que a Defensoria Pública promovesse a tutela individualizada de cada interessado. Sendo assim, admite-se que por uma sequela jurídica pessoas não necessitadas (em sentido lato) sejam beneficiadas, já que não se pode admitir que a Defensoria não atue quando um hipossuficiente (lato sensu) seja atingido.
O mesmo raciocínio vale para os interesses individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito, pois em situações em que um único hipossuficiente seja lesado, ou sofra, qualquer tipo de ameaça de lesão, a Defensoria Pública automaticamente já está legitimada para atuar por meio de ação coletiva, quando cabível.
Tal raciocínio está intrínseco nos objetivos e finalidades do processo coletivo, do pluralismo jurídico, bem como no sentido em que o legislador quis dar com a edição da Lei Federal nº. 11.448/2007, vez que a ampliação do rol de legitimados para propor ação civil pública foi tão somente visando a promoção e efetivação do acesso à justiça no sistema jurídico brasileiro.
As lições de FREDIE DIDIER JR. E HERMES ZANETI JR.[27] revelam o mesmo entendimento:
“Para que a Defensoria Pública seja considerada como “legitimada adequada” para conduzir o processo coletivo, é preciso que seja demonstrado o nexo entre a demanda coletiva e o interesse de uma coletividade composta por pessoas “necessitadas”, conforme locução tradicional. Assim, por exemplo, não poderia a Defensoria Pública promover ação coletiva para a tutela dos direitos de um grupo de consumidores de PlaySatation III ou de Mercedes Benz. Não é necessário, porém, que a coletividade seja composta exclusivamente por pessoas necessitadas. Se fosse assim, praticamente estaria excluída a legitimação da Defensoria para a tutela de direitos difusos, que pertencem a uma coletividade de pessoas indeterminadas. Ainda neste sentido, não seria possível a promoção de ação coletiva pela Defensoria quando o interesse protegido fosse comum a todas as pessoas, carentes ou não.”
No mesmo sentido entendeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte ao julgar o agravo de instrumento nº. 107611, interposto pelo Ministério Público, suscitando a ilegitimidade ativa da Defensoria Pública para propor a ACP, vez que nem todos os interessados são pessoas necessitadas:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO. ALEGAÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DE ILEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA. REJEIÇÃO. DESNECESSIDADE DE QUE A COLETIVIDADE CUJOS INTERESSES SÃO DEFENDIDOS SEJA COMPOSTA EXCLUSIVAMENTE POR PESSOAS NECESSITADAS. DOCUMENTOS JUNTADOS AOS AUTOS QUE COMPROVAM A HIPOSSUFICIÊNCIA DE UM DOS CANDIDATOS, BEM COMO QUE VÁRIOS DELES SE ENCONTRAM DESEMPREGADOS. ALEGAÇÃO PELO PARQUET DE OCORRÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA COM OUTRA DEMANDA COLETIVA AJUIZADA ANTERIORMENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDOS DIVERSOS. NÃO CONFIGURAÇÃO DA LITISPENDÊNCIA. CONHECIMENTO E IMPROVIMENTO DO AGRAVO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA”. (grifou-se).
Por outro lado, a discussão acerca da constitucionalidade do art. 5º, inciso II da LACP, perde o sentido no momento da edição da LC nº. 132/09, a qual inclui no rol das funções institucionais do órgão a legitimidade para defender os direitos transindividuais por intermédio da ação civil pública.
E, não se diga ainda, como tendeu em dado momento o parquet, que a Defensoria Pública não tem estrutura para abarcar este tipo de competência, pois o próprio Ministério Público tão estruturado como é não promove de forma eficaz a tutela coletiva diante das inúmeras outras atribuições a que está especificamente incumbido.
Sendo assim, deve-se lutar pela estruturação da Defensoria Pública e não brigar para retirar-lhe uma atribuição tão importante para o acesso à justiça. Pois, como já visto na segunda sessão deste estudo, Mauro Cappelletti e Bryant Garth já destacavam o problema da legitimidade para a defesa dos direitos difusos como uma forte barreira ao acesso, apontando na segunda onda renovatória a necessidade de se criar um órgão público destinado a representar os interesses coletivos.
Nessa senda, sendo o artigo 5º, inciso II da LACP declarado inconstitucional, haverá uma violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, ao direito de ação e, ao mesmo tempo, uma restrição ao direito fundamental ao acesso à justiça, configurando um atentado ao sistema democrático do país.
5.2 Conflito de competência entre o Ministério Público e a Defensoria Pública
O argumento do Ministério Público de que a legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública afetaria diretamente a sua atuação, pois o impediria de exercer tal atribuição de forma plena, já que de acordo com o texto constitucional a titularidade da ACP pertence ao parquet, não se sustenta diante do já exposto. Pois, muito embora a Carta Magna não tenha mencionado expressamente a legitimação da Defensoria, é certo que a função institucional a que lhe foi atribuída não se adstringe apenas a esfera individual dos direitos. Nesse sentido posicionou-se o Ministro Sepúlveda Pertence[28] através do julgamento da ADI nº. 558 ao dispor que:
“A Constituição Federal impõem, sim, que os Estados prestem assistência judiciária aos necessitados. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o impedimento a que os serviços se estendam ao patrocínio de outras iniciativas processuais em que vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal”.
Por outro lado, vale destacar que a ação civil pública não é instrumento de uso privativo de ninguém, pois a própria Constituição, no § 1º do seu artigo 129, veda expressamente que o Ministério Público tenha legitimação privativa ou exclusiva para propor qualquer ação civil:
“Art. 129. …
§ 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.”
A ação civil pública pode, inclusive, ser proposta, até mesmo, em litisconsórcio ativo facultativo, com outros legitimados, por exemplo, Ministério Público e Defensoria Pública.
Sendo assim, é desarrazoado afirmar que a Defensoria Pública estaria invadindo as atribuições do Ministério Público, pois como bem afirma MAZZILLI[29] são instituições que possuem atribuições inconfundíveis, em que pese seja normal em dado momento existirem áreas de superposição entre ambas, assim como acontece entre o Ministério Público e a Procuradoria do Estado, por exemplo, sem que com isso cada qual perca a sua identidade.
Na verdade, o conflito suscitado pelo Ministério Público é aparente, pois mexe com a vaidade da instituição, que movida por interesses corporativistas esquece-se que a legitimação da Defensoria só beneficia as pessoas carentes em recursos econômicos, jurídicos, sociais ou culturais. Nesse diapasão posicionou-se ADA PELLEGRINI[30]:
“Fica claro, assim, que o verdadeiro intuito da requerente, ao propor a presente ADIN, é simplesmente o de evitar a concorrência da Defensoria Pública, como se no manejo de tão importante instrumento de acesso à justiça e de exercício da cidadania pudesse haver reserva de mercado.”
Ressalte-se que, o que interessa é a garantia do acesso efetivo à justiça, que no meio desta aparente disputa, vem perdendo o seu foco, prejudicando tão somente a coletividade.
Consigne-se que as demandas coletivas deveriam ser estimuladas ao máximo, e não recebidas com obstáculos formais. Pois, como bem afirmou o Ministro Sepúlveda Pertence através do julgamento da ADI nº. 558[31], se uma extinção sem resolução de mérito é algo a se lastimar até nos países mais desenvolvidos, nos quais não se vislumbra a carência de serviços básicos, mais absurdo ainda, aparenta ser, o encerramento prematuro de uma ação coletiva proposta no Brasil.
São no mínimo vergonhosos, os termos que fundamentam a ADI nº. 3.943, especialmente a alegação de que a legitimação da Defensoria Pública afeta diretamente as atribuições do Ministério Público, pois a provocação da Corte Suprema só deveria ocorrer em situações realmente relevantes, servindo apenas para ocupar o STF, que poderia estar voltado a outras questões de importante valor para a sociedade.
Não por outro motivo que o Congresso Nacional ao prestar suas informações, suscitou preliminarmente a ausência de pertinência temática, defendendo a legitimação irrestrita da Defensoria Pública, sendo seguido pela Presidência da República, Senado Federal e Advocacia Geral da União.
Como bem ressaltam DIDIER JR. e ZANETI JR.[32] curioso é o fato da CONAMP não ter alegado em suas razões a não recepção pela Constituição dos velhos dispositivos da LACP, que conferem legitimidade a órgãos despersonalizados e associações privadas; não estariam eles “afetando diretamente” as atribuições do Ministério Público?
É certo que todos os argumentos acima expendidos corroboram para a conclusão de que tal ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada por uma questão muito mais política do que jurídica. Isto porque a Defensoria Pública ao possuir legitimidade ativa para propor ACP ganha força como instituição de maneira que passa a ocupar concretamente o espaço que constitucionalmente lhe foi incumbido, figurando, portanto, como um incômodo a outras instituições que possuem a sua atuação na esfera dos interesses coletivos já estabelecidos.
Por fim, consigne-se que a ampliação flexibilizada da legitimação da tutela coletiva é uma tendência do direito brasileiro iniciada no ano de 1985 por influência dos ideais pluralistas, a qual visa tão somente promover a defesa dos interesses da coletividade e fortalecer a efetividade dos “novos direitos” pela jurisprudência, e não dar mais prestígio a determinada instituição.
Ademais, o próprio anteprojeto do código processual brasileiro de direitos coletivos tende a uma abertura e flexibilização destas legitimidades, conferindo mesmo ao indivíduo particularmente postular ações civis de cunho coletivo.
Assim, não assiste razão a construção hermenêutica elaborada pelo Ministério Público, pois não interessa quem promoverá a ação civil pública, importante é se garantir a efetividade da tutela coletiva, focalizando a máxima promoção do acesso à justiça. Não havendo, portanto, qualquer pretexto em se negar a legitimidade à Defensoria Pública.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo que foi explanado, percebe-se que com a implantação do Estado Social a garantia do acesso à justiça passou a ser priorizada. Contudo, ante ao surgimento de novos interesses tais como os difusos, bem como da necessidade de se promover uma forma de tutela especial diferente da tradicional tutela individual, garantir um amplo e efetivo acesso à justiça passou a ser um desafio para o novo modelo estatal, fazendo-se necessário a elaboração de políticas públicas rápidas e eficientes para se alcançar tal desiderato.
Nesse contexto é que as ondas renovatórias propuseram a criação de mecanismos hábeis a garantir um efetivo acesso e, consequentemente, proporcionar um ambiente propício ao exercício pleno da defesa garantida pelo vigente texto constitucional. Sob esses parâmetros é que foram criados diversos sistemas de assistência judiciária.
A Constituição Cidadã, ao ser promulgada no ano de 1988, previu a criação da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado destinada à prestação da assistência jurídica integral e gratuita a todos os necessitados.
Porém, Cappelletti e Garth já revelavam em suas lições que uma das principais limitações ao acesso à justiça estava relacionada à representação dos interesses difusos, abordando-os inclusive na segunda onda renovatória. Isto porque, os interesses difusos, assim como os interesses coletivos em geral são modalidades de direitos que não se coadunam com o sistema processual tradicional, carecendo, portanto, de uma tutela especial.
Desta forma, o Brasil, através da Lei nº. 7.347/85 criou a ação civil pública como instrumento processual apto a tutelar os interesses transindividuais. No entanto, a redação original desta lei não previu a Defensoria Pública como ente legitimado à propositura da respectiva ação civil.
Ocorre que, após a edição da Lei nº. 11.448/2007 houve alteração da lei original e, a Defensoria passou a figurar como ente legítimo.
No entanto, a Associação Nacional do Ministério Público, em 2007, ajuizou a ADI de nº. 3.943 objetivando declaração de inconstitucionalidade do texto legal que conferiu legitimidade à Defensoria Pública para propor ação civil pública, vez que além de ser atribuição do Ministério Público, a Defensoria Pública com tal legitimidade se desviaria de sua função constitucionalmente incumbida, já que indiretamente defenderia não necessitados.
A certeza acerca da constitucionalidade da supracitada legitimidade dá por diversos fatores legais e doutrinários, entretanto, os motivos ensejadores da tal ADI, por si só carece de argumentos plausíveis, e ainda se mostram pouco claros, pois depreendem-se de uma ideia restritiva e acanhada da necessidade do acesso à justiça.
Esclareça-se que não se deseja uma “supra legitimidade” à Defensoria, tão pouco, se é concebível o total desamparo ao direito de boa parte de necessitados, para que com isso, não seja garantidos direitos àqueles que nesta situação não se inserem.
De acordo com a interpretação plúrima do Direito, a ampliação do rol de legitimados para propor ação civil pública deve ser feita de forma flexibilizada e com vistas a garantir o efetivo acesso à justiça, sendo inviável qualquer argumento de natureza corporativa e de interesses pouco ortodoxos, ao passo que o julgamento em seu favor acarretaria um retrocesso sem tamanho tanto ao que tange a própria tutela coletiva, quanto ao que se refere ao real acesso à justiça.
Por outro lado, desvinculando-se de uma lógica social e coletiva e, partindo para uma linha de raciocínio mais lógico-sistemática, tem-se que ideia básica de isonomia e equidade não se poderia preterir do direito de uma série de necessitados para não se garantir o de alguns abonados. Ademais, em respeito a economia processual, não parece viável uma massificação de ações individuais que abarrotam e contribuem com a morosa atividade judiciária.
Em contrapartida, não deve ser conferida uma interpretação restritiva ao conceito de “necessidade” e “insuficiência de recursos” trazidos pelo texto constitucional, atrelando-os como sinônimo de tão somente hipossuficiência econômica. Isto porque, diversas situações podem levar um cidadão a um estado de vulnerabilidade que poderá resultar em uma hipossuficiência de recursos para se valer da justiça, não por outro motivo que a Constituição tratou tais terminologias de forma genérica.
Desta forma, termos como “essencial”, “necessitado”, “integral” e mesmo “insuficiência de recursos” trazem em si uma subjetividade que em nada coaduna com a higidez que os propositores da ADI 3943, querem lhe impor.
Portanto, são parcos os argumentos que motivaram a CONAMP ajuizar a referida ação direta de inconstitucionalidade, que estão mais vinculados a uma disputa essencialmente política que jurídica, e como tal tende a proteger interesses que não os de quem realmente importa, mas interesses outros, particulares e peculiares.
Ora, se a legitimação da Defensoria Pública não exclui a do Ministério, não subsiste razão jurídica lógica para a pretensa inconstitucionalidade do CONAMP, pois o que realmente interessa é a efetiva tutela dos interesses coletivos e não a pessoa que por representatividade a está promovendo, já que o foco é o acesso à justiça. Assim, seria mais coerente que o Ministério Público lutasse pela estruturação da Defensoria Pública, órgão tão importante para a sociedade, que por diversos fatores, ainda não possui uma estruturara estável.
Falar em legitimação, especialmente no âmbito das ações coletivas, é falar em participação, em cidadania, em acesso a uma função pública de grande transcendência para a sociedade brasileira. E, por isso, que a ampliação do rol de entes legitimados, abarcando a Defensoria Pública para tutelar os interesses transindividuais por intermédio da ação civil pública, ou por qualquer outro instrumento processual hábil a promover a tutela coletiva, é uma grande conquista para o acesso à justiça, e, consequentemente à efetivação dos direitos sociais, que desde tempos antigos vêm sendo o enfoque para a consolidação de um Estado Democrático de Direito.
Conclui-se, portanto, que a ação civil pública é sem dúvida um instrumento importantíssimo para se garantir um efetivo acesso à justiça, e por isso, não importa se terceiros não necessitados indiretamente serão beneficiados, vez que a demanda coletiva é indivisível, e se trata de uma sequela jurídica inerente ao instituto.
Nessa senda, a restrição hermenêutica do órgão ministerial transposta na pretensa inconstitucionalidade é descabida e atentatória ao processo democrático, ao ordenamento constitucional, e ao acesso à justiça, favorecendo apenas ao prestígio da instituição e descartando o interesse social.
Advogado
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