A Lei 12.403/11 à luz do princípio do devido processo legal

Resumo: A proposta desta pesquisa científica é analisar os dispositivos normativos, as alterações causadas pela Lei n° 12.403/11 ao Código de Processo Penal, mormente, ao sistema de medidas cautelares, sob a perspectiva do garantismo penal e do princípio do devido processo legal. Para chegarmos a esta discussão, contudo, serão tecidas algumas lições concernentes os sistemas de processo penal, e seus contornos modernos, bem como, o adotado pelo nosso ordenamento jurídico pátrio. Ademais, por oportuno, à baila da discussão serão expostos os primeiros impactos da lei em comento às jurisprudências.[1]

Palavras-chave: Devido processo legal. Sistema processual inquisitorial. Sistema processual acusatório. Constitucionalidade. Prisões cautelares.

Abstract:The purpose of this scientific research is to analyze the regulatory provisions, the changes caused by Law No. 12.403/11 Code of Criminal Procedure, in particular, the system of protective measures from the perspective of the criminal and guaranteed the principle of due process. To get to this discussion, however, will be woven some lessons concerning the systems of criminal procedure, and its modern contours, as well as the one adopted by our legal parental rights. Moreover, for appropriate, to the forefront of the discussion will show the first impacts of the law in jurisprudence to comment.

Keywords: Due process. Procedural system inquisitorial. Accusatory procedural system. Constitutionality.  Precautionary arrests.

Sumário: 1. Introdução 2. Do garantismo penal 3. O princípio do devido processo legal e os sistemas processuais 3.1. Do sistema inquisitorial 3.2 do sistema acusatório 3.3 do sistema misto 4. Do sistema processual penal adotado no Brasil 5. Das novas prisões cautelares e o devido processo legal 5.1 noções gerais e críticas 5.2 a Lei n° 12403/11 e o sistema acusatório.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho científico propõe uma análise da Lei n° 12.403/11 sob as lentes do garantismo penal e do princípio do devido processo legal.

A lei em comento trouxe fundamentais modificações ao Código de Processo Penal quanto ao sistema de medidas cautelares penais. Primordialmente devemos ter em mente que o CPP foi criado em 1941, e após dezenas de anos não atende de maneira satisfatória aos anseios sociais. Mormente, pelo fato da Carta Magna de 1988 adotar preceitos constitucionais mais avançados numa consolidação do Estado Democrático de Direito.

Antes de adentrarmos ao núcleo desta pesquisa é mister fixarmos o referencial teórico adotado neste trabalho, o qual é aceito pela maioria esmagadora da doutrina, o garantismo jurídico. Veremos do que se trata o garantismo jurídico e as razões para adotá-lo como norte para o debate ora proposto.

Por conseguinte, traçaremos algumas linhas a respeito dos sistemas de processo penal, fazendo uma espécie de linha cronológica, até chegarmos aos conceitos mais modernos e difundidos pela doutrina. Teremos oportunidade ainda de comparar os sistemas existentes em diferentes países, e explicitar qual o adotado no Brasil.

Daí, começaremos a analisar especificamente os artigos e as modificações causadas pela entrada em vigor da Lei n° 12.403/11, além de citar os primeiros entendimentos jurisprudenciais a respeito da nova lei.

2. DO GARANTISMO PENAL

Antes de tudo é necessário tecermos, em breves linhas, o referencial teórico adotado neste trabalho. Inspirado no pós-positivismo, nas idéias do Estado Democrático de Direito, na valorização dos princípios jurídicos e da Constituição, influenciado pelo jusnaturalismo, Ferrajoli com toda sua genialidade e brilhantismo, procura estabelecer limites para a liberdade do judiciário, evitando que se atente contra os direitos fundamentais do cidadão, a Teoria do Garantismo Penal.[2]

O garantismo penal é amplamente difundido em nosso ordenamento jurídico, , embora na nossa jurisprudência ainda encontramos focos de resistência ferrenha em oposição ao garantismo penal. Ferrajoli se debruçou a estudar o tema, considerando o impacto, as conseqüências que possui o Direito Penal e o Processo Penal na sociedade, uma vez que eles versam sobre os bens juridicamente mais relevantes, mormente, sobre a própria liberdade dos indivíduos.

O garantismo jurídico, não constitui apenas um conjunto de garantias individuais. Ferrajoli ergue o modelo garantista sob dez axiomas sendo eles, princípio da retributividade, princípio da estrita legalidade, princípio da lesividade, princípio da exterioridade da ação, princípio da culpabilidade, princípio da estrita jurisdicionalidade, princípio acusatório, princípio do ônus da prova para a acusação, princípio do contraditório.

Nesta senda, o garantismo penal orientará as discussões deste trabalho, por se tratar de um modelo de sistema penal, fundado no Estado Democrático de Direito, e que busca o respeito aos direitos e às garantias fundamentais do cidadão na aplicação das leis penais e processuais penais, em face do autoritarismo do Estado.

3. O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Para que possamos adentrar na problemática proposta neste trabalho se faz necessário, a priori, tecermos algumas linhas sobre o princípio do devido processo legal, previsto na Constituição Federal de 1998, em seu artigo 5°, LIV, in verbis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Visto assim, consiste basicamente em dizer que para ceifar a liberdade ambulatorial de certo indivíduo, deve-se, antes, haver um processo, não qualquer processo, mas um legal, justo e adequado. Doravante, cumpre esclarecer que o devido processo legal impõe ao Estado um dever, e garante aos cidadãos que seus direitos serão respeitados.[3] Ruy Barbosa recitava: “não há pena sem processo e nem processo senão pela Justiça”[4].

O princípio do devido processo legal pode ser entendido como exigência de um processo jurídico anterior que obedece as égides legais. Em suas lições Elmir Duclerc ensina: “Enfim, o processo justo é o processo do tipo acusatório.”.[5]

Deve-se ter em mente que o princípio do devido processo legal é um dos liames que permitirá a coerência do trinômio direito-processo-democracia. O sistema processual penal sempre refletiu(rá) a cultura da sociedade da época, ou seja, a resposta que o povo e o Estado de determinado período histórico que dar aos atos ilícitos cometidos.

3.1. DO SISTEMA INQUISITORIAL

Ocorre que para superar o sistema inquisitorial e alcançar o sistema acusatório moderno foi necessário passar por um processo evolutivo dialético e histórico. Inicialmente, o sistema inquisitivo, surgido durante as monarquias que dominaram a Europa entre os séculos XVI e XVIII, foi consolidado, durante a era medieval pela concepção do direito canônico. Esse sistema apareceu após o sistema acusatório privado do direito romano em que todo o processo, basicamente, dependia da vontade dos particulares.

O Estado, então, assume a responsabilidade da persecução penal. O antigo sistema acusatório privado romano aos poucos foi sendo substituído pelo sistema inquisitivo que vigoraria durante toda a Idade Média.

Corrobora com o sentido acima Rangel: “O Estado-juiz concentrava em suas mãos as funções de acusar e julgar, comprometendo, assim, sua imparcialidade.”[6]. O magistrado ao concentrar em suas mãos além da atividade de julgar, a atividade de persecução penal, passa a ser preponderante e absoluto, comprometendo totalmente sua imparcialidade.[7]

Dentre as principais características do sistema processual inquisitivo, além da concentração de funções do juiz acima tratada, está a inexistência de coisa julgada, não publicização do processo; o sigilo do delator; o sistema de provas legais, da tarifação dos meios probatórios, em que nenhuma prova valia mais que a confissão; e a submissão de indivíduos ás práticas de tortura para que pudesse obter as para obtenção de confissões, sob o pretexto da busca verdade real[8], nesta última que fica mais evidente a influência Igreja Católica, com sua intolerância e o seu dogmatismo obtuso.

Toda a estrutura do sistema inquisitório, foi construída em torno de uma busca utópica da verdade real, nessa perseguição se ceifa direitos, se desrespeita a dignidade do homem, o condena muitas vezes antecipadamente, a tortura e as prisões cautelares, por exemplo, passam a se constituir praticas comuns no decorrer do processo. Nas lições de Aury Lopes:

“Na busca dessa tal “verdade” real, transforma-se a prisão cautelar em regra geral, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege. De posse dele, para buscar a verdade real, pode lançar Mao da tortura, eu se for “bem” utilizada conduzirá à confissão. Uma vez obtida a confissão, o inquisidor não necessita de mais nada, pois a confissão é a rainha das provas ( sistema de hierarquia de provas)”.[9]

Ademais, nota-se que neste sistema nada é justo, ou devido, por mais que seja legal. São lesões aos direitos humanos que vão perquirir a respeito da legitimidade do sistema inquisitório. Era um sistema verdadeiramente maquiavélico.[10]

O sistema inquisitório vai durar até o início do século XIX, quando eclode na França a Revolução Francesa e os ideais iluministas, que trarão à baila novos valores, novas concepções, e, mormente, o respeito a dignidade do homem, fazendo sucumbir a inquisição. São em meio a essas mudanças no cenário europeu e a introdução de novos valores sociais, políticos e econômicos, que surgirá paulatinamente o sistema acusatório moderno.

3.2. DO SISTEMA ACUSATÓRIO

Deve-se elucidar que o sistema acusatório surgiu primeiramente na antiga Grécia e Roma, como tratado em linhas acima. Doravante, tem-se a acusação privada do direito romano em que o juiz era inerte e não podia, sem a devida provocação, iniciar o processo penal.

No sistema acusatório moderno há uma cisão dos poderes de acusar, defender e julgar, não mais pertencendo há um só órgão do Estado. Desta forma, as partes envolvidas no processo, em tese, estarão em num mesmo patamar processual.

 Com o promotor de justiça assumindo o papel principal, e concentrando as principais atividades da persecução penal, isto é, a acusação ainda permanece nas mãos do Estado, porém num órgão estatal autônomo. Essa desvinculação do juiz como acusador, acarretará em sua legitimidade popular, bem como num desenvolvimento do processo atendendo melhor às garantias dos cidadãos.

Ensina Prado: “[…] o magistrado se libera da vinculação às iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a persecução penal, que se desenvolverá conforme os princípios do contraditório, com paridade de armas, oralidade e publicidade.”[11].

A instrução probatória passa a ser orientada pelo princípio do livre convencimento do juiz. A privação da liberdade ambulatorial do acusado deixa de ser regra e passa a ser adotada apenas em situações excepcionais.

Ademais, o distanciamento do juiz em relação a demanda é fundamental, ou seja, o princípio da imparcialidade do magistrado evita julgamentos obnubilados. No entanto, este é o ponto mais criticado pela doutrina quando se fala de sistema acusatório, haja vista que neste sistema se procura vedar qualquer atividade de persecução penal do juiz.

 Observa-se que o magistrado por ele não poder diretamente produzir qualquer materialidade probatória, fica a mercê das provas produzidas pelas partes, na qual pode vim incompleta, ou viciada, enfim, a atividade probatória das partes, em sua grande maioria é defeituosa.

Com a devida vênia, cito as lições de Ludwing que apresenta uma brilhante solução para esta discussão:

“Então, como a solução para problema apresentado não pode ser solucionada concedendo poderes instrutórios ao juiz, é mister que se fortaleça a estrutura dialética do processo, para que dessa forma a atividade das partes seja cada vez mais precisa e completa e o juiz possa continuar a respeitar o princípio da imparcialidade.”[12]

Destarte, com sistema acusatório se busca um processo igualitário, digno, a fim de atender a um ideal de justiça até então inalcançável, uma vez que se busca proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.

Em vista disso, o magistrado passa a representar, ao invés de um monarca, a soberania popular. Logo, é evidente que o sistema acusatório moderno dialoga melhor com o garantismo jurídico, pois o processo penal nesses ditames caminha à procura de atender os princípios e direitos fundamentais do homem e do cidadão.

3.3. DO SISTEMA MISTO

Oriundos da soma dos ideais do sistema acusatório privado romano, inquisitivo, e das bases do Estado absolutista, o sistema misto foi adotado por alguns países da Europa. Em breves lições explanaremos a respeito desse sistema moderno de processo penal.

A priori, há de se elucidar que o sistema misto é cunhado sob a forma de uma espécie de juizado de instrução, e divide o processo em duas fases procedimentais: “uma de cunho eminentemente inquisitivo presidida por um promotor ou juiz-instrutor, escrita, sigilosa, sem possibilidade de contraditório, ou ampla defesa; e outra fase de feição acusatória, com publicidade, julgamento oral, contraditório e ampla defesa”[13].

Paulo Rangel afirma que esse sistema demonstra um avanço quanto ao sistema inquisitivo, porém, não consiste no melhor sistema a ser adotado, haja vista não superar o paradigma da competência do juiz para realizar atos de persecução penal[14].

Ademais, nos dizeres de Duclerc:

“Tal sistema, contudo, mesmo nos países em que foi implementado, tem sido alvo de duras críticas, basicamente porque, na grande maioria dos casos, a sorte do acusado acaba sendo definida mesmo, na prática, durante a fase inquisitorial, de pouco servido defesa e contraditório, na segunda fase.”[15]

Nesse sistema misto, a segunda fase nada mais seria que a repetição dos atos da primeira fase, pois a decisão do magistrado será majoritariamente fundamentada nas provas colhidas  no inquérito, constituindo assim não um sistema misto mas um preponderantemente inquisitório, sendo uma verdadeira falácia o sistema misto.[16]

Desta forma, percebe que mesmo a soma de esforços e idéias do sistema inquisitivo e acusatório, apresentando um modelo misto de processo, ainda há falhas, é claro que não se quer defender neste trabalho a utopia de um sistema perfeita, e sim de um modelo de processo que melhor garanta os direitos fundamentais do homem.

4. DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO NO BRASIL

Há muito se discuti a respeito do sistema processual penal adotado pela legislação brasileiro. Acontece que com a existência de um procedimento de investigação preliminar de natureza eminentemente inquisitiva, como o próprio nome já diz, do inquérito policial, no qual se quer tem contraditório e ampla defesa, dar-se azo a esse debate, qual o sistema  de processo penal que baliza o Código de Processo Penal?

Inicialmente, nos anteciparemos, em afirmar que no Brasil não há construção absoluta de um processo penal sob os ideais do sistema inquisitivo, embora algumas praticas processuais dêem margem a esse entendimento. No Brasil, a princípio, a competência para iniciar a ação penal é do Ministério Público, por vezes da própria vítima, mas nuca do juiz de ofício. De mais a mais, o acusado pode propor ação penal privada, nos termos dos artigos 30 a 32 do Código de Processo Penal. Não restam dúvidas, que o juiz não pode dar início a ação penal, consagrando assim o princípio do ne iudex procedat ex officio.

Então, com a adoção de uma fase princípua de investigação preliminar abalizada pelas concepções do sistema inquisitivo; que dará azo a uma fase posterior de base principiológica acusatória, poderíamos afirmar que o Brasil possui um sistema misto? A resposta é não, embora há uma parte da doutrina, que, minoritariamente, sustentam o sistema misto como o adotado no Brasil.

 Acontece que nossa fase de investigação preliminar não é de competência do juiz, e sim da polícia judiciária, e, como alguns defendem, do Ministério Público, diferente do que ocorre no sistema misto, pois mesmo com a existência do Ministério Público, as investigações preliminares são depositadas nas mãos do magistrado.

Na Espanha, país que aderiu ao sistema misto, a investigação preliminar é dividida em sumário e diligências prévias. O sumário corresponde a crimes mais graves, cujas penas são superior a 9 anos de prisão, e as diligências prévias é a espécie de investigação adotada para os crimes com pena inferior a 9 anos de prisão. Ocorre que, a exemplo, a forma sumária, isto é, a investigação preliminar, é obrigatória para os crimes com pena superior a 9 anos para que o Ministério Fiscal dê início a ação penal.[17]

No Brasil o inquérito policial não é obrigatório para que o Ministério Público possa propor a ação penal. O juízo de probabilidade, ou seja, a justa causa, pode ser alcançada por outras formas, que não além o inquérito policial. Desta forma, não há que se falar em sistema misto no Brasil.

Doravante, poderíamos afirmar que o sistema processual penal que o nosso ordenamento jurídico aderiu é o acusatório. No entanto, o sistema acusatório adotado pelo Brasil não é um sistema acusatório substancialmente puro. Vejamos por quê.

Malgrado tenhamos progredido bastante em relação ao sistema inquisitivo, em busca do sistema acusatório puro, em nossa legislação pátria ainda há resquícios de atividades terminantemente inquisitivas, presente em vários dispositivos do Código de Processo Penal. Paulo Rangel ao tratar do assunto expõe: “Assim, nosso sistema acusatório hodierno não é puro em sua essência. Traz resquícios e ranços do sistema inquisitivo; porém a Constituição deu um grande avanço ao dar ao Ministério Público privaticidade da ação penal Pública.”[18]

Por oportuno devemos informar, que a existência de um inquérito policial, como o nome já diz, regido pelo sistema inquisitorial, no qual não se tem contraditório, defesa, publicidade, já afasta a idéia de um sistema acusatório puro.

Outra razão, é que, ainda, no nosso ordenamento jurídico, insiste o legislador em atribuir ao juiz atividades de persecução penal. Inúmeros dispositivos contidos no nosso Código de Processo Penal, colidem com o sistema acusatório. Seria uma tarefa árdua esgotar todos esses confrontos nesse trabalho, a critério de exemplo, citemos os seguintes artigos Código de Processo Penal:

Art. 156.  A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Art. 311. Em qualquer fase do inquérito policial, ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial.”

Esses exemplos são apenas uma amostra da existência de inúmeros dispositivos que se distanciam do sistema acusatório, e que indicam a influência do sistema inquisitivo. Cumpre salientar, que no anteprojeto de lei do Código de Processo Penal em vigor, havia sido instituído o sistema acusatório puro, mas que fora modificado pela Lei n° 4.611/65, não sendo introduzido no nosso ordenamento jurídico o princípio acusatório em sua mais pura forma.

Nas palavras de Hamilton: “Assim, a decantada separação entre o juiz e o órgão da acusação, corolário do sistema acusatório que o Código pretendeu adotar como regra, perdeu significado em face do disposto na lei em tela.”[19]

Logo, nosso sistema de processo penal adota os princípios do sistema acusatório, ainda bastante influenciado pelo sistema inquisitivo. Talvez, seja um utopismo imaginar um sistema puramente acusatório, porém devemos sempre caminhar para atingir um modelo mais próximo do ideal, que faça valer mais as perspectivas do garantismo jurídico, e os direitos fundamentais do homem. A jurisprudência pátria hordiena, embora conservadora, em muitas ocasiões tem avançado, e aplicado a lei sob a perspectiva do garantismo e do sistema acusatório (ADIN 1570-2/2004).

5. DAS PRISÕES CAUTELARES E A GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

5.1. NOÇÕES GERAIS E CRÍTICAS

A introdução da lei n° 12.403/2011 no ordenamento jurídico pátrio trouxe várias modificações concernentes ao sistema de prisão/medida cautelar previsto no Código de Processo Penal. Com efeito, ao que este trabalho se propõe, analisaremos as mudanças trazidas por esta nova lei sob a lente do princípio do devido processo legal e do sistema acusatório, já tratado em lições acima. Contudo, para chegarmos ao núcleo desta pesquisa, é mister enfrentarmos alguns conceitos pressupostos a temática discutida.

Todo e qualquer processo cautelar tem por fim garantir o resultado útil de um processo principal seja este de natureza cognitiva ou executiva. O processo cautelar penal, viabiliza a aplicação das medidas cautelares penais. Todavia, não se deve confundir processo cautelar penal, com ação penal cautelar nem com medida cautelar.

O processo cautelar penal possui natureza acessória, e não satisfativa, constituindo um meio, cuja pretensão consiste em assegurar a efetividade da aplicação das leis penais, inclusive podendo ocorrer de forma incidental. Difere-se da ação penal cautelar, uma vez que esta é o exercício de um direito público subjetivo relacionado à liberdade ambulatorial do indivíduo; e da medida cautelar, pois esta se trata de provimento jurisdicional que busca garantir a o resultado prático do direito debatido em outro processo.

Traremos para discussão apenas as chamadas prisões cautelares, que recaem sobre o indivíduo, cerceando ou limitando sua liberdade ambulatorial, sem que ao menos haja uma sentença transitada em julgado[20], haja vista que essas foram os principais objetos de modificação da lei 12403/2011.

Insta compreender que as prisões provisórias/provimentos cautelares possuem natureza processual[21] e são utilizadas para garantir, em regra, a aplicação da lei penal dada pela sentença definitiva, pois se o sujeito não tiver sua liberdade restringida provisoriamente, pode acontecer da sentença não pode produzir seus efeitos.

A lei n° 12.403/11 ampliou o rol de medidas cautelares penais. Por enquanto, sobre a nova lei, basta sabermos que os provimentos assecuratórios penais não se resumem mais apenas às espécies de prisões cautelares, porquanto, agora também há previsão legal de provimentos acautelatórios diversos da prisão.

Outrossim as medidas cautelares possuem como característica: a jurisdicionalidade (submetidas a análise judicial); acessoriedade (submetidas ao resultado do processo principal, “o acessório segue o principal”); instrumentalidade (meio para se atingir a medida principal), provisoriedade (é precário podendo ser revogada a qualquer momento, ou ainda, dura até ser proferida a medida principal), homogeneidade ( característica trazida principalmente pela lei 12403/11; a medida deve ser necessária, adequada e proporcional)[22], excepcionalidade, e por fim, a urgência ( apenas nos casos em que houver fumus comissi delicti e o periculum libertatis.

Ainda, deve-se advertir que os provimentos assecuratórios não podem ser entendidos como antecipação da culpa, pois, segundo afirma Rangel, o juízo a decreta com base na periculosidade e não na culpabilidade.[23]

De mais a mais, há de se cumprir com alguns requisitos para que o magistrado decretar a prisão cautelar/medida cautelar do indivíduo. Como dito, uma das características das prisões cautelares é a urgência, isso é decorre da necessidade de se atender dois pressupostos: o periculum libertatis e o fumus comissi delicti.[24]

Todavia, do ponto de vista do devido processo legal, como é que poderíamos considerar constitucionais determinadas espécies de prisões/medidas cautelares que são decretadas pelo magistrado sem que haja um processo, mesmo que excepcionais? Desta forma, trazemos à baila mais uma vez o artigo 5°, inciso LIV da Constituição Federal de 1988, o qual expressamente aduz que nenhum indivíduo terá sua liberdade ceifada sem que antes haja um processo justo, legal e devido.

Ocorre que, se quer é dado o direito de defesa ao sujeito antes da designação das medidas acautelatórias, e mais, como veremos adiante, muitas vezes o próprio juiz pode decretar de ofício. Não poderíamos falar da lei 12403/11, sem antes deturparmos esse problema.

Ousamos a ir mais longe, e afirmar que os provimentos assecuratórios, para a garantia do devido processo legal, consistem numa faca de dois gumes. De um lado temos um procedimento que ceifa/restringe a liberdade ambulatorial do indivíduo, de outro, o mesmo instituto serve para garantir a efetividade deste processo.

Então, observa-se que há um conflito inerente aos fundamentos dos provimentos cautelares penais. Assim, temos um confronto principiológico que só pode ser superado pela ponderação dos preceitos envolvidos. Vemos que as medidas acautelatórias buscam proteger a coletividade do perigo que aquele indivíduo possa significar à sociedade, bem como, garantir o normal desenvolvimento e efetividade do processo penal, por outro lado, para que se possa atingir tais objetivos acabam desrespeitando direitos do  acusado.

Para superarmos tal problemática, não podemos utilizar o princípio do devido processo legal como parâmetro de solução, pois, como vimos, da mesma forma que as medidas cautelares penais ferem tal norma, nela mesmo se fundamenta. Dito isso, devemos olhar para as outras bases principiológicas que envolvem os dois lados, o da constitucionalidade das cautelares, e o de sua inconstitucionalidade.

O que antes devemos considerar que vivemos num Estado Democrático de Direito, o qual se assenta na soberania popular. Logo, se de um lado temos preceitos pautados na coletividade, na segurança pública, no interesse público; e de outro se tem razões individuais; assim entendemos que os primeiros devam prevalecer.

Portanto, chegamos a conclusão que, em geral, as medidas cautelares penais são normas constitucionais, que embora firam o devido processo legal, e nele se assentam, tais normais estão pautadas, mormente, na soberania popular, no Estado Democrático de Direito.

Feita essas considerações e críticas iniciais, nada mais obsta que agora passemos a debater sobre as modificações sofridas pelas medidas cautelares penais, decorrentes da entrada em vigor da lei n° 12.403/11, sob o prima peculiar do princípio do devido processo legal.

5.2. A LEI N° 12.403/11 E O SISTEMA ACUSATÓRIO

A Lei n°12403/2011 foi muito criticada antes mesmo de sua vigência, apelidada pela mídia brasileira de “estatuto do criminoso”, por prever, para eles, certas benesses exageradas ao acusado[25], alguns inclusive chegaram ao extremo de dizer que se estaria “legalizando o crime” com esta nova lei.

A Lei em comento apenas adequou o anacrônico Código de Processo Penal aos princípios constitucionais trazidos pela Carta Cidadã de 1988, entre eles o princípio do devido processo legal garantindo direitos inerentes a todo cidadão, embasada na doutrina cunhada no seio do garantismo penal.

Dito isso, passemos agora a comentar as alterações da Lei 12.403/11 ao Código de Processo Penal. A antiga redação do artigo 282 do Código de Processo Penal possuía um texto simplista e muito abrangente. Com a modificação trazida pela nova lei de medidas cautelares, o artigo 282 do CPP passa a vigorar com uma redação mais completa, na qual, agora, em seus incisos se têm previsto requisitos necessários para a concessão de medidas cautelares: o binômio necessidade/adequação.

 Na primeira parte do novo texto do artigo 282 do Código de Processo Penal, coaduna perfeitamente com o sistema acusatório, pois a medida cautelar para ser concedida deve atender não só aos requisitos específicos de cada provimento acautelatório, mas também tem que ser uma medida necessária e adequada ao caso concreto(HC n. 73989/SP-STF ). O que cria um óbice maior para o deferimento de certos provimentos cautelares desnecessários, e exagerados por parte do magistrado, impossibilitando um abuso jurisdicional.

Com isso o que pretendeu o legislador foi quebrar o paradigma judicial brasileiro de ceifar a liberdade dos sujeitos usando as prisões cautelares antes decretadas somente usando com critério a mera inclinação estritamente subjetiva do magistrado quanto o risco representado em cada caso concreto. Neste sentido afirma Paulo Rangel: “ Será necessária a medida cautelar quando ela for o meio menos oneroso ao investigado ou réu diante da possibilidade de prisão cautelar. […]. A adequação da medida é o equilíbrio encontrado entre o meio empregado e o fim que se persegue.”[26]

A nova redação do §1° do artigo 282, modificado pela lei em debate, aduz que as medidas cautelares são autônomas, podendo ser aplicadas mesmo que não haja uma prisão cautelar. Com essa modificação quis acertadamente o legislador harmonizar o texto da lei com o preceito contido no artigo 5, LIV da Carta Magna vigente (devido processo legal), pois a prisão de indivíduos que estejam sendo acusados de crimes com pena não superior a 4 anos deve ser a última medida a ser tomada. Dessa forma, a única hipótese do agente ser preso antes do transito em julgado do processo, é por meio de uma prisão de natureza estritamente cautelar, e ainda assim aplicada ultima ratio.

No mais, ainda no mesmo artigo, o seu §2° traz uma redação que impede a atuação de ofício do juiz antes de iniciada a ação penal, o que se harmoniza parcialmente com o sistema acusatório, quando ao menos na fase de investigação preliminar o juiz não mais pode por si só decretar qualquer medida cautelar. O magistrado deve manter um certo distanciamento das investigações preliminares, e somente se pronunciando quando provocado pelas autoridades competentes.

Entretanto, andou mal o legislador quando ainda permitiu que o magistrado pudesse agir ex officio na adoção de medidas cautelares durante a ação penal. Como já vimos atos de persecução criminal atribuídos ao magistrado viciam seu próprio julgamento, prejudicam sua imparcialidade, estaria, em muitos casos, antecipando sua própria decisão final, se inclinando a condenar aquele indivíduo. E isso acaba confrontando o sistema acusatório.

Quanto à atuação do magistrado de ofício quando há um descumprimento da medida cautelar imposta, ou até mesmo para revogar ou substituir o provimento assecuratório, entendemos cabível. No primeiro caso deve ele fazer cumprir suas próprias decisões, não podemos entender que dessa forma se colocaria em jogo a sua imparcialidade, pois já houve a decretação medida cautelar, o magistrado apenas estará utilizando alguns meios para garantir o cumprimento/execução de sua decisão. Poderíamos, a grosso modo, comparar essa previsão normativa às astreintes  presente no Código de Processo Civil, a qual o magistrado se utiliza para fazer cumprir seus provimentos jurisdicionais.

Concernente a possibilidade de o juiz revogar ou substituir o provimento sem que haja provocação, embora alguns doutrinadores possam entender que se o Ministério Público ou o querelante não possuindo interesse na revogação da medida, não deveria o juiz revogá-la.

Advogamos que o provimento cautelar deve estar de acordo com os incisos do novo artigo 282 do CPP, isto é, deve ser necessário e adequado, e em havendo uma desnecessidade, ou até mesmo uma inadequação do provimento cautelar, deve sim o magistrado de ofício atuar para garantir a liberdade do indivíduo.

Quanto ao §3° do artigo 282 do CPP, vemos que em parte coaduna com o sistema acusatório quando determina a intimação da parte contrária, dessa forma possibilita o exercício do contraditório/ampla defesa.

O que não se pode permitir é o que aduz a parte final do §5° do referido artigo,no qual profere que o juiz pode decretar novamente a medida cautelar sem provocação do MP ou do querelante, norma a qual rechaçamos, pois , como já afirmado em lições acima, esta atuação prejudicaria a imparcialidade do magistrado.

Doravante, o novo texto do artigo 283 trazido pela Lei n°12403/2011, consolida a exigência uma decisão fundamentada para que haja o cerceamento da liberdade do acusado, salvo nos casos de flagrante delito, estando de acordo com o devido processo legal, fazendo prevalecer a norma do artigo 93, IX da Constituição Federal de 1988, apenas sendo aplicada as medidas cautelares aos casos, cuja pena, de alguma forma, esteja vinculada com a privação de liberdade. Destarte, o dispositivo traz mais uma forma de se garantir que o sujeito só tenha sua prisão decretada após a tramitação de um processo devido, legal e justo.

Outra alteração importante do artigo 283 do CPP é que agora apenas existirá no curso do processo apenas uma espécie de prisão, que é a preventiva.[27] Deixa de existir portanto a prisões em flagrante no curso do processo; em decorrência da pronúncia; e prisão em decorrência de sentença condenatória recorrível.[28] Mais uma vez o legislador fez prevalecer a regra do artigo 5°, LIV da Constituição Federal de 1988.

Ainda a respeito do mesmo artigo, o legislador acabou por cometer um grave erro quanto a previsão “em decorrência e sentença condenatória transitada em julgado.”. Acontece que com esta nova posição normativa, não mais é possível a execução provisória da pena privativa de liberdade. Obviamente que o dispositivo não terá aplicação quando a sentença for absolutória, ou quando não haja uma condenação de prisão do réu, haja vista que o caput do artigo 283 do CPP refere-se tão somente a prisão.

Prima facie, para os mais desavisados pode significar um avanço, ora, um sujeito que respondia o processo em liberdade e que fora condenado há uma pena privativa de liberdade em regime fechado, não poderá ser recolhido ao estabelecimento prisional até que a decisão final transite em julgado. Entretanto, devemos analisar sobre uma ótica inversa. Vejamos, o réu que esteja preso em decorrência de um prisão preventiva já há cinco anos, e foi condenado há 5 anos de reclusão em regime fechado, pela não possibilidade de execução provisória, não poderá este réu se beneficiar da detração por exemplo, uma vez que esta exige a execução da sentença pra ser aplicada.

Em síntese, pela vedação da execução provisória da sentença condenatória o réu não poderá invocar os benefícios oferecidos pela Lei de Execuções Penais, ou seja, haverá casos em que o indivíduo permanecerá preso, até que haja o transito em julgado da sentença, que afronte o princípio do devido processo legal, e o sistema acusatório penal. Criticando esta alteração Paulo Rangel aduz:

“Acabar com a execução provisória da pena não é avanço da lei. Muito pelo contrário, é um retrocesso do sistema penal. É um prejuízo ao réu que os operadores jurídicos que elaboraram o ante projeto da lei 12.403/11 ( Projeto de Lei n° 4.208, de 2001) não se deram conta, talvez contaminados pela idéia de que “ não se executa pena que não transitou em julgado”. O réu, então, nessa visão obtusa do sistema penal, perde seu direito de, desde logo, enquanto se executam a sentença recorrível, se beneficiar dos direitos da LEP. Deverá aguardar o trânsito em julgado para requerer seus benefícios.” [29]

Podemos constatar extinção da execução provisória de pena, também, pela revogação do artigo 393 do CPP pela Lei n° 12,403/11.

A nova redação do artigo 306 não trouxe, em singela opinião, alteração tão substancial, apenas retificou uma imperfeição técnica do artigo, e ratificou que a comunicação da prisão seja feita até 24 ( vinte e quatro) horas após a realização da prisão,comunicando aos familiares do preso, a seu advogado, ou, se inexistir, a Defensoria Pública e incluiu o MP, isso também para possibilitar o exercício de defesa/contraditória por parte do acusado, estando de acordo com o sistema acusatório.

O texto do artigo 310 dado pela Lei n° 12,403/11 versa sobre as decisões possíveis a serem tomadas pelo magistrado no recebimento dos autos de prisão em flagrante. A antiga redação do referido artigo dizia que o magistrado antes de tomar qualquer decisão quanto ao recebimento dos autos de prisão em flagrante, deveria ouvir o Ministério Público. Como podemos perceber a Lei n° 12.403/11 afasta essa possibilidade, devendo o juiz adotar as medidas elencadas no artigo sem ouvir o MP, o que não afronta com o sistema acusatório, analisemos.

Quanto aos incisos I, III e ao parágrafo único do artigo 310, que prevêem medidas favoráveis ao acusado, não teria qualquer razoabilidade do juiz verificando de pronto a existência de certa irregularidade ou presente os requisitos exigidos pelo artigo, esperar ser provocado para cessar a prisão em flagrante, haja vista que as hipóteses elencadas nos dispositivos citados constituem matérias de ordem pública, as quais o julgador pode conhecer de ofício.

Além do mais os preceitos contidos incisos I, III e ao parágrafo único do artigo 310, também respeitam o acusatório também pela razão de se evitar que o acusado seja preso antes de ocorrido um processo devido. Ademais, o inciso III agora de forma acertada e de acordo com o devido processo legal, preceitua que a concessão da liberdade provisória depois de ocorrido a prisão em flagrante pode acontecer independente da natureza da infração cometida, assim, mais uma vez o legislador evitou que o individuou permanecesse preso sem ter sequer iniciada a ação penal.

Referente ao inciso II do novo texto do artigo 310 do CPP, o magistrado apenas converterá em prisão preventiva[30] quando for se pronunciar a respeito da admissibilidade da denúncia oferecida pela acusação, ou seja, apenas irá aplicar o inciso II do dispositivo retro citado depois de ter sido provocado:

“[…] o juiz, nos termos do art. 310 do CPP, somente irá se manifestar sobre a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva no momento de exercer o juízo de admissibilidade da acusação, ou seja, após a conclusão do inquérito policial no prazo de dez dias e quando o MP oferecer denúncia.”[31]

Portanto, a prisão em flagrante não será uma medida tomada a bel prazer do magistrado e não se constituirá de forma indeterminada, devendo o julgador analisar o caso concreto para daí adotar a decisão mais adequada.[32]

No tocante as modificações sofridas pelos artigos 311 e 312 ocasionadas pela Lei n° 12.403/11, que tratam, principalmente, da prisão preventiva, como já citamos, temos que esta não mais pode ser decretada de ofício pelo juiz na fase de investigação policial, apenas durante a ação penal. O legislador impedindo a atuação do magistrado de ofício na fase de inquérito policial preservou a imparcialidade do julgador e os princípios do sistema acusatório. Agora, então, o magistrado se manifestará durante a investigação apenas mediante requerimento das partes.

Embora o legislador tenha acertado quando vedou a prisão preventiva de oficio durante o inquérito policial, errou quando ainda permitiu sua decretação ex officio no curso da ação penal. Bem, vimos que qualquer atividade de persecução penal dada a bel prazer do magistrado, fere o sistema acusatório penal. Por oportuno, é importante informar que a prisão preventiva só poderá ser decretada se preenchido os pressupostos elencados no artigo 312 do CPP.

Já as novas linhas do artigo 313 do CPP tratam das hipóteses de cabimento da prisão preventiva[33]. Nota-se que o legislador modificou os critérios de admissibilidade desta espécie de prisão cautelar, reduzindo o rol contigo no antigo texto do mesmo artigo. O inciso I do artigo 313 do CPP, prevê o cabimento da prisão preventiva apenas nos casos de crimes dolosos com pena de reclusão, não mais sendo possível nos crimes culposos, ou dolosos com detenção.

Quanto ao inciso II do art. 313 do CPP, somente o réu reincidente. No inciso III é previsto quando envolver violência doméstica, familiar, a criança, adolescente, idosa, ou pessoa com deficiência. E por fim o parágrafo único, que restritamente permite a decretação quando não for possível identificar o agente, devendo ser solto logo quando identificado.

Mais uma vez, podemos perceber que a idéia por detrás dessa alteração legislativa consiste em evitar ao máximo que o sujeito fique preso antes do final de um processo devido, justo e legal, também nesse sentido foi a alteração do disposto no artigo 314 do Código de Processo Penal.

As antigas redações dos artigos 317 e 318 do CPP tratavam da apresentação espontânea do acusado. Malgrado os artigos tenham sido substancialmente modificados, ainda no CPP, à luz de uma interpretação sistemática, levando-se em conta o princípio do devido processo legal, não se permite a prisão em flagrante do agente que se apresentou às autoridades policiais espontaneamente.  Porém, se o agente mesmo que tenha se apresentado por espontaneidade vier atrapalhar o curso do processo, entendemos cabível a decretação da prisão preventiva.

Tratando dos novos textos dos artigos 317 e 318 do Código de Processo Penal, eles agora especificamente preceituam a respeito da prisão domiciliar. Inicialmente devemos expor que o rol contido no artigo 318 do CPP é taxativo, por se tratar de norma que restringe direitos. Porém, advogamos que o julgador pode aplicar o artigo 318 do CPP, combinando os preceitos contidos em cada inciso.

Com efeito um agente de 70 anos, que inicialmente não seria amparado pela nova redação do artigo 318 do CPP, mas que possui uma doença grave e que esta debilitado, aí sim se aplicaria o referido artigo. Dessa forma, estaria o dispositivo de acordo com o sistema acusatório, apenas aplicando o artigo pela inteligência de seu texto normativo.[34]

Um dos grandes acertos dessa nova lei, se não o maior, é a criação de novas medidas acautelatórias, que não mais se restringe apenas as prisões, previstas no rol descrito pelo artigo 319, cuja redação foi dada pela Lei n°12403/2011.

O antigo texto do artigo 319 do CPP, dizia respeito às hipóteses de cabimento das prisões administrativas, agora não mais cabíveis, e somente, à luz do artigo 5° LXI e o sistema acusatório, apenas as autoridades judiciárias podem determinar a prisão de certo agente infrator, o que afasta totalmente qualquer hipótese de prisão decretada por autoridade administrativa.[35]

Com a Lei n 12.403/11 o artigo 319 do CPP elenca hipóteses de medidas cautelares diversa das prisões processuais, cujo rol possui simetria com as penas alternativas/restritivas contidas no Código Penal. Tais medidas cautelares, salientamos, podem ser aplicadas cumuladas com a prisão cautelar, ou mesmo de forma autônoma.[36]

Quanto a medida de monitoração eletrônica entendemos que esta só possa ser decretada se houver consentimento do agente, haja vista que a utilização de aparelhos como pulseira ou tornozeleira eletrônicas não são bem vistas no meio social, criando assim um stigma  aos indivíduos que as usam. Diante disso, para Duclerc o monitoramento eletrônico é uma medida cautelar que não poderia ser cumulada com a prisão preventiva, sendo possível a sua adoção de forma autônoma.[37]

Nesta senda, devemos recordar que um dos alicerces da existência do princípio do devido processo legal é justamente evitar a stigmatização do indivíduo antes mesmo que se tenha uma sentença condenatória em um processo.

Ademais, a liberdade provisória e a fiança também sofreram profundas modificações com a entrada da Lei nº 12.403/11 no ordenamento jurídico pátrio. A liberdade é a regra, porém as autoridades podem lançar mão da fiança para poder garantir a efetividade de outro processo. A liberdade provisória sem a prestação da fiança, como disposto no novo artigo 321 do CPP, será concedida se ausentes os requisitos não só da prisão preventiva, ou nos casos do artigo 323 do CPP, mas, também, se não for o hipótese de medida cautelar alternativa.

Por fim, não há que se falar em inconstitucionalidade desses institutos jurídicos, uma vez que, como dissemos, pela disposição normativa a liberdade continua sendo a regra, somente sendo fixada  a fiança para garantir o resultado útil de um processo cognitivo, porquanto, in casu, deve prevalecer a supremacia do interesse popular.[38]

CONCLUSÃO

À luz da boa doutrina garantista, pudemos fazer uma leitura da Lei n°12.403/11 numa ótica do devido processo legal, e do sistema acusatório de processo penal.

Após traçarmos uma ideia geral do que seria o garantismo penal, referencial teórico deste trabalho científico, vimos que a nossa Constituição Federal de 1988 explicitamente trouxe o princípio do devido processo legal. Observamos, também, que o ordenamento jurídico pátrio adotou o sistema acusatório de processo penal, embora ainda com contorno do sistema inquisitivo. Fato  que precisa a ser superado para podermos modelar nosso ordenamento aos preceitos do Estado Democrático de Direito.

No seio desta pesquisa, notamos que o fundamento da Lei n°12.403/11 foi adequar as disposições normativas das medidas cautelares penais ao sistema acusatório. Entretanto, como pudemos perceber, o legislador, infelizmente, cometeu alguns equivocos nessa tentativa de adequar a o Código de Processo Penal aos princípios constitucionais. A exemplo, quando criticamos a permanecia de alguns atos de persecução penal de competência do julgador.

Equivocou-se também o legislador quando numa tentativa desesperada de fazer prevalecer os princípios constitucionais, acabou deslizando e afastando a possibilidade de existir execução provisório no processo penal, o que na grande maioria dos casos prejudicará o acusado, uma vez que ele não mais poderá utilizar os benefícios previstos na LEP.

Acertadamente, a Lei n°12.403/11 especificou pressupostos a serem adotados na decretação das medidas cautelares, devendo estas serem sempre necessárias e adequadas ao caso concreto. Outra importante alteração foi a impossibilidade do juiz agir de ofício durante a ivestigação preliminar para adotar medidas cautelares. Não obstante, ainda durante o processo penal pode o magistrado agir ex officio para determinar a adoção de algum provimento cautelar.

Doravante, agora durante o processo penal a única espécie de prisão cautelar possível é a prisão preventiva. Outrossim, uma das cruciais modificações da lei em comento foi a criação de medidas cautelares diversa das prisões, cuja decretação pode se dá de forma cumulativa a prisão, ou até mesmo de forma autônoma.

Em geral a Lei n° 12.403/11 representa mais um instrumento do movimento de reforma do CPP na tentativa de atualizar todo código e adequá-lo as novas disposições constitucionais. Nesta insensante busca de reformar e atualizar o ancião Código de Processo Penal, o instituto mais significativo deste movimento é a PLS 156/2009, que ainda tramita a passos lentos no Congresso Nacional.

 

Referências
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Notas
[1] Artigo elaborado sob a Orientação do Professor Elmir Duclerc, Doutor em Processo Penal, promotor de justiça do Estado da Bahia.
[2] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.25.
[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p. 4.
[4] BARBOSA, Ruy apud RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p. 4.
[5] DUCLERC, Elmir. Direito processual penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.p.38.
[6] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.48.
[7] DUCLERC, Elmir. Direito processual penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.p.38.
[8] CARVALHO, Salo de. REVISITA À DESCONSTRUÇÃO DO MODELO JURÍDICO INQUISITORIAL. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/32639-39993-1-PB.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2011.p.39.
[9] LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p.171.
[10] Faço referência a ideia de Nicolau Maquiavel, o qual aduz na sua obra ,“ O Príncipe”, que “ os fins justificam os meios”.
[11] PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p.124.
[12]RIBEIRO, Roberta Ludwig. Verdade real: verificação ou mito? Disponível em: <www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/…2/roberta_ludwig.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2011.p.10.
[13] DUCLERC, Elmir. Direito processual penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.p.39.
[14] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.53.
[15] DUCLERC, Elmir. Op.cit. p.39
[16] LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p.175-176.
[17] FERREIRA, Inessa Franco. A constitucionalidade procedimental do inquérito policial e seu controle pelo ministério público. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 520, 9 dez. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5995>. Acesso em: 25 nov. 2011. Pagina 2.
[18] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p. 54.
[19]  HAMILTON, Sergio Demoro. A forma acusatória pura, uma conquista do anteprojeto. In: Revista de Direito Penal, n° 13, Jan/Junho. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1974. p.65.
[20] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.723.
[21] As prisões cautelares são também chamadas de prisões processuais.
[22] Ibid. p.725 – 726
[23] RANGEL, Paulo. Op.cit. p. 724
[24] Ambos os conceitos são tratados por Aury Lopes Junior, em seu artigo: LOPES JR, Aury. Fundamento, requisito e principios gerais das prisões cautelares. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 0, 28/02/2000 [Internet]. Disponível em https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5060. Acesso em 05/12/2011, no qual ele crítica o uso dos termos periculum in mora e fumuns boni iuris conceitos tratados em processo civil, pois, segundo Lopes Jr.,em processo penal não se tem, respectivamente, “perigo da demora” e a “fumaça do bom direito”, e sim a perigo de fuga, ou o perigo de destruição da prova, alarme social e reiteração delitiva, assim como probabilidade da ocorrência de um delito.
[25] PIMENTEL, Fabiano. A nova ordem do sistema prisional brasileiro. [S.l.], 2011. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/40088>. Acesso em: 28 jul. 2011.p.1.
[26] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p. 841.
[27] HABEAS CORPUS Prisão cautelar que se mostra como exceção no nosso sistema Análise sob a ótica da Lei n.º 12403/11, de aplicabilidade imediata – Inexistência de elementos que, concretamente, justifiquem a prisão preventiva Parecer favorável da d. PGJ – Liberdade provisória concedida Ordem concedida – (voto n. 14102)*.12403(1723268320118260000 SP 0172326-83.2011.8.26.0000, Relator: Newton Neves, Data de Julgamento: 25/10/2011, 16ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 28/10/2011)
[28] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.762.
[29] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.855.
[30] Habeas Corpus. Furto qualificado. Arrombamento de caixa eletrônico situado no interior de agência bancária. Prisão em flagrante. Alegada ausência dos requisitos do art. 312 do cpp. Pretensa aplicação de medidas cautelares diversas da prisão (lei 12.403/11). Falta de cópia da decisão que converteu a prisão em flagrante em preventiva. Impossibilidade de análise das alegações da impetrante. Instrução deficiente. Impetração por advogado. Precedentes do stf. Não conhecimento.312cpp12.403(824198 SC 2011.082419-8, Relator: Torres Marques, Data de Julgamento: 14/12/2011, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: Habeas Corpus n. , de Joaçaba)
[31] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.758.
[32] PIMENTEL, Fabiano. A nova ordem do sistema prisional brasileiro. [S.l.], 2011. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/40088>. Acesso em: 28 jul. 2011.p.4.
[33] PRISÃO PREVENTIVA -GRAVIDADE DO CRIME.A gravidade do crime, por si só, é elemento neutro quanto à prisão preventiva, não sendo a automaticidade agasalhada pela ordem jurídica. PRISÃO PREVENTIVA -FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DE OCUPAÇÃO LÍCITA. A falta de demonstração de ocupação lícita não respalda a preventiva. PRISÃO PREVENTIVA -DISTRITO DA CULPA -AUSÊNCIA -SUPOSIÇÃO. A simples suposição de poderem os acusados deixar o distrito da culpa fica longe de ser base para a custódia preventiva, porque calcada na capacidade de imaginação.(103465 SP , Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 02/08/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-175 DIVULG 12-09-2011 PUBLIC 13-09-2011 EMENT VOL-02585-01 PP-00125)
[34] Em sentido oposto, Paulo Rangel não entende dessa forma, para ele exemplos citados nesse trabalho não seria alcançado pela norma do artigo 318 do CPP. RANGEL, Paulo.Op. cit. p.863.
[35] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 19ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011. p.788.
[36] Habeas Corpus. Tráfico de drogas. Prisão em flagrante.Sentença condenatória. Pretendida liberdade provisória.Réu primário. Fortes indícios de autoria e prova da materialidade. Necessidade de cautela estatal compatível com o grau de periculosidade apresentado pela paciente primária e de bons antecedentes. Concessão de liberdade provisória, com a imposição de medidas cautelares alternativas. Ordem concedida para esse fim. (1207687220118260000 SP 0120768-72.2011.8.26.0000, Relator: Almeida Toledo, Data de Julgamento: 16/08/2011, 16ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 01/09/2011)
[37] DUCLERC, Elmir. Direito processual penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.p.410.
[38] Questão que remetemos o leitor ao tópico 5.1 Noções gerais e Críticas, quando tratamos a respeito da constitucionalidade das medidas cautelares.


Informações Sobre o Autor

Henrique Antônio Brito Santana

Acadêmico de Direito na Faculdade Jorge Amado/BA


Equipe Âmbito Jurídico

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