A Lei da Ficha Limpa e a segurança jurídica

Resumo: Vamos analisar nesse artigo a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do recurso extraordinário n° 633 703, no qual o político Leonídio Bouças requereu que a aplicabilidade da lei complementar n° 135 de 2010, a Lei da Ficha Limpa, já nas eleições de 2010 fosse considerada inconstitucional por ferir o artigo 16 da Constituição, o princípio da anterioridade eleitoral, e, portanto, que pudesse assumir a vaga de deputado estadual que tinha conquistado no pleito do ano passado, apesar de já ter sido condenado na justiça por improbidade administrativa. Visualizamos nesse julgamento um choque entre uma concepção de segurança jurídica dogmática e a necessidade de se respeitar a soberania popular, entre o artigo 16 e a moralidade, enfim entre justiça abstrata e equidade. Diante da inquietação levantada pelo fato de o STF ter preferido o formalismo e adiado à aplicação da Lei da Ficha Limpa para 2012, nós iremos procurar então fundamentos para uma decisão mais equitativa, preocupado com uma segurança jurídica em conformidade com os anseios do povo, nas teorias de direito de Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. Acabaremos por fazer uma sucinta crítica ao nosso modelo de controle de constitucionalidade. Este trabalho foi orientado pela Prof. Dra. Maria Sueli.


Palavras – chave: Lei da Ficha Limpa; Segurança Jurídica; Direito como integridade; Auto-legislação discursiva; Controle Constitucional.


Abstract: Let’s look at this article the decision of the Supreme Court in the trial of special appeal No. 633 703, in which the politician Leonidio Bouças requested that the applicability of the supplementary law No. 135 of 2010, the Law of Clean Record, as in the 2010 election was ruled unconstitutional for violating Article 16 of the Constitution, the principle of prior election, and therefore he could take the job of state representative who had won the election last year, despite having been convicted in court for improper conduct. We visualize that this trial has a clash between a dogmatic conception of rule of law and the need to respect the sovereignty of the people, between Article 16 and morality, and finally between abstract justice and equity. Given the concern raised by the fact that the Supreme Court had preferred the formalism and postponed the implementation of the Law of Clean Record for 2012, we will then look for foundations for a more equitable decision, concerned about legal security in accordance with the desires of people in law theories of Ronald Dworkin and Jürgen Habermas. In the end, we will do a succinct critique of our model of judicial review.


Keywords: Law of Clean Record; Rule of law; law as integrity; discursive democracy; constitutional control


Sumário: 1. Introdução. 2. As interpretações do caso levantadas pelos juízes no julgamento. 3. O direito como integridade de Dworkin e a sua aplicação no caso. 4. Habermas, democracia e teoria discursiva do direito. 5. Análise do Tribunal Constitucional. 6. Conclusão.


1. Introdução       


O Supremo Tribunal Federal, no dia 23 de abril de 2011, julgou o recurso extraordinário do político Leonídio Bouças contra a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, a qual o impedia de assumir a vaga de deputado estadual na Assembléia Legislativa de Minas Gerais que ele havia conquistado nas eleições de 2010. Seus 42 mil votos foram, então, desconsiderados porque ele havia sido condenado pelo uso da máquina pública nas eleições de 2002 para ser eleito membro do legislativo mineiro e, portanto, o TSE entendeu que sobre ele recairiam, já em 2010, os efeitos da lei complementar n° 135 de 04 de junho de 2010. (HAIDAR, Rodrigo. Lei da Ficha Limpa só pode ser aplicada em 2012. 2011)


Para explicar porque essa norma, amplamente conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, impedia Leonídio de assumir uma vaga como deputado estadual  temos, então, que falar que ela é um dispositivo legal que surgiu para moralizar a política e foi elaborado a partir de uma alteração da lei complementar n° 64 de 18 de maio de 1990 que estabelecia casos de inelegibilidade aos quais foram acrescentados pela nova norma a proibição de políticos condenados na justiça por crimes contra a probidade administrativa e a moral política de concorrerem as eleições. (BRASIL. Lei Complementar nº 135 de 2010, de 04 de junho de 2010).


Entretanto, o advogado de Leonídio, Rodrigo Ribeiro Pereira, argumentou para nossa mais Alta Corte que a lei complementar n° 135, publicada no diário oficial da União apenas três dias antes das convenções partidárias, não poderia ser aplicada logo nas eleições de 2010, seja porque sua aplicabilidade imediata iria ferir o artigo 16 da Constituição, o princípio da anterioridade da lei eleitoral, ou, por ser a própria lei da Ficha Limpa inconstitucional, pois quando os seus elaboradores não colocaram em seu texto a exigência de trânsito em julgado para tornar inelegível um político corrupto, mas apenas a de condenação em primeira instância, foi desconsiderado o princípio da presunção da inocência. O bacharelado também colocou que a retroatividade dela era inadequada à nossa realidade jurídica. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011).


Todos esses argumentos já tinham sido utilizados pelos advogados de Joaquim Roriz e Jader Barbalho, dois políticos que renunciaram a seus cargos para escapar de cassação, em recursos extraordinários que eles apresentaram em 2010 junto ao STF, nos quais eles também exigiam que nossa Suprema Corte adiasse a aplicação da Lei da Ficha Limpa para as eleições municipais de 2012 ou considerasse essa regra inválida, indo, assim, contra a decisão tomada pelo TSE. (Supremo decide que Ficha só vale em 2012. 2011).


Nos julgamentos desses dois recursos o STF tentou apenas resolver o impasse da aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa em 2010, entretanto, algo inusitado ocorreu: números iguais de juízes dessa Corte Constitucional se posicionaram a favor e contra a aplicação imediata da lei complementar n° 135, o que se explica pelo fato do juiz Eros Grau ter se retirado do STF pouco tempo antes dessas sessões e não ter sido escolhido um sucessor para ele até aquela época. (Supremo decide que Ficha só vale em 2012. 2011)


A questão da aplicabilidade da supracitada lei ficou, então, sem uma resposta definitiva dessa suprema corte até o julgamento, já em 2011 e muito depois dos términos das eleições de 2010, do recurso de Bouças, quando ela contava então com um ministro a mais, Luiz Fux, o qual fora indicado pela presidente Dilma Roussef para compor o colegiado dessa corte. (Supremo decide que Ficha só vale em 2012. 2011)*


O voto de Fux foi então decisivo na resolução desse recurso e também do impasse sobre a aplicação imediata ou não da Lei da Ficha Limpa, já que nessa sessão decisiva os demais juízes decidiram manter os votos e os entendimentos que tomaram para si nos dois casos anteriores. (STF decide por 6 votos a 5 que lei da Ficha Limpa não pode ser aplicada nas eleições de 2010. 2011).


Temos que ressaltar que a lei complementar n° 135 surgiu de um projeto de iniciativa popular que reuniu 1 milhão e 800 mil assinaturas de cidadãos de todo o Brasil, (COUTTO, Pedro. Supremo, dependendo do acórdão, pode ter anulado a Ficha Limpa. 2011)  , o que demonstra que a população exige uma resposta “aos casos sistemáticos de corrupção que ela testemunhou nessas últimas décadas” de reconstrução da democracia em nosso país, uma resposta que acabasse com a imunidade que nosso sistema político dava aos governantes corruptos, como ressalva o Procurador da República Roberto Gurgel. (RECONDO, Felipe. et al. Lei da Ficha Limpa começa a valer a partir de 2012. 2011)


  Em nossa visão então, cabia ao recém chegado juiz alinhar-se a um dos dois grupos: ou àqueles que eram contra a aplicação imediata, por dizerem priorizarem a segurança jurídica, direitos das minorias e razões de técnica judiciária, ou, então àqueles que atendendo ao clamor popular, democrático e constitucional por moralidade defendiam que a Lei da Ficha Limpa valesse logo para 2010.


Fux, com uma percepção diferente da nossa, preferiu então a interpretação contra-majoritária e o STF por 6 votos a 5 decidiu então que a  lei complementar n° 135 de 2010 passaria  a valer só em 2012 (Supremo decide que Ficha só vale em 2012. 2011),  mas diante do desgosto popular, de muitos juristas e mesmo políticos em relação a tal decisão (BRAGA, Isabel; VASCONCELOS, Adriana. Decisão sobre Ficha Limpa causa dúvida  sobre quem serão os novos parlamentares. 2011) é necessário perguntar se tal decisão foi acertada, se era a única correta, se representa um avanço para a construção do sistema jurídico e democrático brasileiro em consonância com o princípio da soberania popular


Para fazer essa análise nesse artigo usaremos da teoria de Ronald Dworkin, vendo como o juiz Hércules dele, em lugar de Fux, que aceita plenamente o direito como integridade, como sendo o resultado de um longo processo de construção jurídica feita pelos juízes e legisladores que tomam decisões procurando mostrar a comunidade unida por princípios, procederia para escolher entre as duas interpretações levantadas no caso Ficha Limpa, aqui já assinaladas e que serão melhores expostas mais tarde.(DWORKIN, 2003)


Mas também aplicaremos a teoria de Jürgen Habermas para resolver o impasse, através do seu entendimento de democracia procedimental legitimadora das leis e de uma aplicação do direito que procure uma troca discursiva de argumentos entre as partes com o fundo na sociedade, já que Hércules nunca é só, nenhum juiz atua em um vazio social. (HABERMAS, 1997)


Assim, primeiramente, para cumprir o objetivo de mostrar qual decisão seria a melhor resposta para o caso, primeiramente analisaremos mais detalhadamente as posições tomadas pelos juízes no caso “Ficha Limpa”, em seguida nós vamos expor a teoria de Dworkin e a aplicaremos às interpretações dos juízes, depois complementaremos nossas análises com o entendimento de Habermas sobre o Direito para fazermos então uma pequena crítica ao nosso modelo de controle de constitucionalidade e em seguida concluirmos.


Lembremos aqui mais uma vez da importância dessa discussão porque o entendimento do STF tem conseqüências mais imediatas como permitir que vários políticos corruptos tenham a possibilidade de vir a tomar posse se os juízes desse colegiado o quiserem ao decidir, monocraticamente, os outros recursos apresentados seguindo esse entendimento. (HAIDAR, Rodrigo. Lei da Ficha Limpa só pode ser aplicada em 2012. 2011) Isto também significou privilegiar-se um discurso formalista, kelseniano, objetivador do direito, em detrimento de um mais democrático, baseado no consenso social, que nós entendemos ser o verdadeiro fundamento do direito em Habermas e Dworkin


2. As interpretações do caso levantadas pelos juízes no julgamento


Vamos agora analisar as duas interpretações que para nós podem ser visualizadas nas falas dos diferentes participantes do julgamento do recurso extraordinário de Bouças e que apontavam para diferentes formas de resolvê-lo.  A primeira, que valorizava uma segurança jurídica formalista, a qual Fux preferiu, exigia que a Lei da Ficha Limpa tivesse eficácia só em 2012, já a segunda, que prioriza a soberania popular e a moralidade, demandava a aplicação imediata da lei.


A primeira interpretação pode ser visualizada na sustentação inicial realizada pelo advogado de defesa de Bouças, Rodrigo Ribeiro Pereira, em prol de seu cliente, na qual ele defende que a aplicação imediata da Lei Complementar n° 135 de 2010 põe em cheque a segurança jurídica, pois violaria o artigo 16 da Constituição Federal, o qual tem como escopo impedir que o processo eleitoral seja vítima de ingerências arbitrárias perpetradas pelo Congresso Nacional ou órgãos do judiciário. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011)


O processo eleitoral, segundo o advogado, seria “nada mais que um processo de escolha” entre candidatos em pé de igualdade a ser realizado pela população, “mas que não se inicia nas convenções” partidárias, nas quais os partidos escolhem quais candidatos concorreram no pleito, e “sim um ano antes com as filiações partidárias.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011)


Assim, uma lei elaborada e publicada três dias antes das convenções partidárias e que instituía tantas novas condições de inelegibilidades alteraria de forma significativa a disputa eleitoral, como Rodrigo Pereira aponta em sua sustentação, quando os candidatos já exerciam a um ano os direitos que a lei eleitoral atribuía a eles. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011) A sua aplicação imediata deveria  então ser afastada com base no que diz o artigo 16 da Constituição: “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.( BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 16. 1988)


A outra interpretação sobre quais direitos as partes têm no caso, que podem ser representadas por Leonídio e a população brasileira, que o juiz Hércules vai analisar, foi levantada primeiramente, nessa sessão, pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel. Ele disse que a lei complementar n° 135 de 2010 tinha como escopo “a valorização do político” e conservar a “óbvia importância fundamental no Estado Democrático de Direito da atividade política,” tendo em vista “a freqüência tristemente enorme” de casos de corrupção testemunhados pela sociedade que vinha fazendo com que ela “se desencantasse” com a classe política. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011)


Para Gurgel, o artigo 16 da Magna Carta nem se aplicaria ao caso de criação de novas inelegibilidades por lei complementar, porque não haveria então o rompimento da igualdade de disputa entre os candidatos, já que o novo regramento se aplicaria de forma indistinta a todos os candidatos e partidos políticos. O artigo 16 no entendimento do procurador também não se aplicaria a uma lei feita pelo legislador com o propósito de proteger a moralidade do agir público, ao exigir um passado digno dos candidatos. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011)


O próprio STF para Gurgel em julgamentos anteriores afastou a aplicabilidade do artigo 16 em relação às normas que se referem a hipóteses de inelegibilidades, pois elas, no entendimento estabelecido pela Corte nesse casos,  não seriam de natureza processual, mas sim de natureza material ou mesmo constitucional. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (em 24 de março de 2011), Pleno – Lei da Ficha Limpa (1/7). 2011)


Hércules também vai achar outros argumentos para apreciar qual interpretação deve defender como aquela que melhor se adéqua a prática jurídica comunitária e a mostra em sua melhor luz nos fundamentos nas falas dos juízes do Supremo Tribunal Federal para defenderem seus votos.


Assim Gilmar Mendes defendeu a aplicação da Ficha Limpa só em 2012 por entender o artigo 16 da Constituição Federal como uma cláusula pétrea que precisa ser respeitada por garantir que determinadas minorias não tenham seus direitos políticos cerceados pelas maiorias quando o processo eleitoral já está em curso, no entendimento de Mendes iniciado um ano antes do pleito. O STF teria, portanto, de agir de forma contra-majoritária para proteger direitos das minorias e a Constituição e a lei complementar n° 135 de 2010 não teria nenhum status diferenciado por ser uma lei originada de iniciativa popular, portanto ela também deveria ser submetida à Magna Carta, segundo Mendes. (BORGES, Laryssa. Gilmar Mendes vota contra a Ficha Limpa em 2010; 4 são a favor. 2011)


Luiz Fux foi outro ministro a votar contra a aplicação imediata da norma e isso porque ela teria de se submeter à Constituição, mesmo sendo “um dos mais belos espetáculos democráticos”, para ele tudo era apenas uma questão de técnica judiciária, de submeter a norma inferior à superior.  Assim ela não poderia ser aplicada já nas eleições de 2010, pois assim geraria surpresas no processo eleitoral, “tornando incerto o que era certo”, violando a segurança jurídica que é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito, como diz Fux. (BORGES, Laryssa. Fux vota pela validade da lei da Ficha só em 2012. 2011) Os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Dias Toffoli e Cézar Peluso usaram de argumentos muito semelhantes aos de Mendes e Fux para afirmarem que a lei da Ficha-Limpa só valeria nas eleições municipais de 2012. (Idem. Op. Cit.)


O ministro Ricardo Lewandoski e a ministra Carmén Lúcia vão se alinhar ao grupo de juízes que defende a interpretação de que a Ficha Limpa fosse aplicada logo nas eleições de 2010 com o argumento de que ela foi publicada logo antes das convenções partidárias e assim não houve quebra da igualdade de disputas, porque os partidos sabiam quais candidatos seriam atingidos por ela antes de escolher quem iria disputar as eleições, além de defenderem a necessidade de moralização pública. (BORGES, Laryssa. Fux vota pela validade da lei da Ficha só em 2012. 2011)


Ainda nesse grupo de juízes, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Ellen Gracie vão cada um a seu modo enxergar a Ficha Limpa como um dispositivo que visa a execução do mandamento constitucional de moralização da vida pública, com Britto enxergando isso como um direito social mais importante que direitos individuais e Barbosa querendo afastar a possibilidade do uso do direito para amparar os desonestos e sim como instrumento para retirar de vez a corrupção da democracia brasileira. (BORGES, Laryssa. Fux vota pela validade da lei da Ficha só em 2012. 2011)


3. O direito como integridade de Dworkin e a sua aplicação no caso


Vamos agora apresentar, com mais detalhes, a teoria do “direito como integridade”, de Ronald Dworkin, para que analisemos se a decisão do STF foi acertada e se a visão que temos de Dworkin corrobora ou com a interpretação tecnicista ou com aquela que prioriza a moralidade e  a soberania popular.


Dworkin (2003) ao abordar essa concepção do que é o fazer jurídico, não o entende como um mero ato de procura no passado das normas a serem aplicadas no presente ou como estabelecimento de políticas a serem perseguidas no futuro, mas “[que] começa no presente e só se volta para o passado na medida em que o enfoque contemporâneo assim o determine”(DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 274) e pautada no reconhecimento de que “as declarações do direito são sempre construtivas”(Idem. Op. Cit. Pág.274), de que o direito é algo a ser aperfeiçoado pelos juízes no processo de aplicação das normas.


Dworkin, então, na nossa visão, não concordaria com a posição de Fux de que, para se resolver o impasse da eficácia ou não da lei complementar nº 135 já no pleito de 2010, teríamos de fazer apenas uma técnica de subsunção da norma em questão à Constituição, como se o juiz visse a Carta Magna como algo já posto e insensível as exigências sociais e morais da realidade atual.


O “direito como integridade” (DWORKIN, 2003) do autor norte-americano contradiz essa visão de direito, na verdade é uma proposta aos juízes para que esses encarem o direito como tendo sido hipoteticamente criado por um único autor, a comunidade jurídica que se une por princípios, ou seja, que um “sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o conteúdo” (DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 274) das decisões dos legisladores e juízes do passado.


Assim quando os magistrados tiverem de julgar um caso para dizer quais direitos hão de ser afirmados, ou não, para uma das partes, o farão sempre a partir de interpretações fundadas “em princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.”(DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 272)


Esse é um programa de direito “inflexivelmente interpretativo”, (Idem. Op. Cit. Pág 272) pois, para nós, recomenda aos juízes que se coloquem também como membros importantes da construção do direito, mas não de uma forma arbitrária e sim a partir dos valores defendidos socialmente, os quais embasaram as leis e decisões do passado e que apontam para um futuro melhor. Mas porque, em nossa visão, o direito como integridade se aplica no caso Ficha Limpa?


A decisão tomada pela nossa Suprema Corte, para nós nesse caso, pões os juízes dela como importantes construtores de nossa prática jurídica, seja em suas interpretações  priorizando a justiça abstrata e o devido processo legal, ou o principio da equidade.Os ministros do STF poderiam ter entendido que a comunidade unida por princípios elaborou a Ficha Limpa através do projeto de iniciativa popular por causa da necessidade de moralização da política, ou que, que nossa sociedade valorizava mais uma segurança jurídica dogmática para continuar a construção de um direito estável, não submetido a arbitrariedades, mas que dessa forma se fechava as mutações sociais.


O que foi dito acima exige também que utilizemos o modelo interpretativo judiciário defendido por Dworkin para analisar a correção da decisão do STF, o qual é semelhante a um “romance em cadeia” como ele mesmo aponta, em que um romance é escrito por vários autores, mas cada um tem que escrever sua parte da história como se a mesma fosse escrita por um único autor imaginário. (DWORKIN, 2003)


Assim quando alguém nessa cadeia receba uma parte do romance já escrita por diferentes autores, deve-se elencar diferentes interpretações sobre como deve se dá a continuidade da história.  Elas passarão por um teste de “adequação” no qual se vê qual dessas interpretações melhor se encaixa naquilo que já foi escrito e se mais de uma destas sobreviver a essa prova preliminar, o autor terá então de escolher a interpretação que, para ele, é a melhor do ponto de vista estético. (DWORKIN, 2003)


No direito, esse esquema interpretativo do “romance em cadeia” associado ao princípio da integridade se traduz no entendimento de que o juiz deve sempre procurar dar suas decisões a partir de interpretações das leis, jurisprudência e Constituição, fundadas em princípios que se adequem ao que outros antes dele colocaram como sendo o direito da comunidade, segundo Dworkin (2003). Mas em um caso difícil, no qual o juiz se depara com dois ou mais entendimentos sobre quais princípios, este deve defender que sejam satisfatoriamente adequados à prática jurídica comunitária e também antagônicos,


“[…] Ele [juiz] então deve fazer uma escolha entre as interpretações aceitáveis, perguntando-se qual delas apresenta em sua melhor luz, do ponto de vista da moral política, a estrutura das instituições e decisões da comunidade […]” (DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág.306)


Dworkin aponta um modelo de juiz que possa encarar o direito dessa maneira, o juiz Hércules, que por ser “criterioso e metódico” (DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 288), o que para nós significa que vai encontrar respostas corretas para os casos com uma intensa investigação da prática jurídica comunitária e de justificação sobre quais valores devem ser defendidos.


Substituiremos, hipoteticamente, o Ministro Fux pelo juiz Hércules,[1] com fim de utilizar o romance em cadeia para propor uma decisão adequada aos anseios de comunidade unida por princípios. Por que, então, utilizar o romance em cadeia? Por que dizemos que as razões que nos levaram a usar a teoria do direito como integridade nos faz, também, utilizar esse esquema interpretativo?


Primeiramente, o Juiz Hércules estaria diante de duas interpretações que se adequam a nossa prática jurídica passada de forma principiológica. A primeira interpretação se fundamenta não só no já supracitado artigo 16, que evita surpresas em um processo eleitoral já em andamento, mas, como diz Mendes, no entendimento de processo eleitoral defendido pelo STF, o que ficou claro no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n° 3.685. Nesse julgamento, a Corte Constitucional decidiu que emenda constitucional n° 52, que tratava da “verticalização” das coligações, não seria aplicada as eleições de 2006 por interferir no processo eleitoral e assim ir contra o artigo 16, apesar dessa emenda ter sido publicada bem antes das convenções partidárias daquele ano, o que mostra que para o STF o processo eleitoral começa bem antes delas.( Ficha Limpa, anterioridade eleitoral e o voto do ministro Gilmar Mendes no RE 633703. 2011)


O fundamento para que esse grupo dos juízes do STF tenha decidido aplicar a Lei da Ficha Limpa só em 2012 por considerar o artigo 16 da Constituição Federal uma cláusula pétrea de nossa Constituição também é encontrado, segundo Mendes, na prática jurídica brasileira a partir do julgamento da Suprema Corte da ação direta de inconstitucionalidade supracitada em que esta passou a entender tal norma, que prega o princípio da anterioridade eleitoral, uma garantia fundamental cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e do partido político. (Ficha Limpa, anterioridade eleitoral e o voto do ministro Gilmar Mendes no RE 633703. 2011)


A interpretação baseada na valoração da vontade popular e na necessidade de uma purificação da política brasileira vai encontrar se adequa também à realidade jurídica nacional por se basear no artigo 14 da Constituição que diz em seu 9° parágrafo:


“[…] Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. […]” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 14. §9º. 1988)


Esse entendimento também encontra ponto de apoio nos julgamento realizados pelos Tribunal Superior Eleitoral e STF em 1990 sobre a aplicação ou não da lei complementar n° 64 daquele ano de forma imediata para o pleito de então. Na ocasião, os dois tribunais decidiram que aquela regra que também criava novas hipóteses de inelegibilidades não alterava o processo eleitoral e deveria ser então aplicada imediatamente. (SELIGMAN, Felipe. Jurisprudência dá base para Ficha Limpa vigorar já nas eleições de 2010. 2011)


Assim, Hércules estaria diante então de um caso difícil porque as duas interpretações se adequam ambas de forma satisfatória à prática jurídica da comunidade brasileira. Isso porque ambas defendem princípios importantíssimos para o direito, tanto a segurança jurídica, a defesa dos direitos das minorias, como a necessidade de resguardar a moralidade do agir político, ainda que os juristas por formação formalista se habituem a sacralizar apenas os primeiros. Deste modo, se apresenta mais uma razão para utilizarmos a teoria do romance em cadeia, visto que estamos diante de um caso difícil, em que há o choque de dois princípios.


Estes se antagonizam no caso, para nós, porque decidir pela aplicação imediata e assim em favor da probidade significa ir contra a segurança jurídica no seu entendimento mais dogmático, enquanto adiar a aplicação da Lei da Ficha Limpa para 2012 é necessariamente também dar mais tempo para que os corruptos fiquem no poder, que continuem com seu reino de impunidade.


Em tal situação de choque de princípios independentes no caso concreto, Dworkin vai dizer que Hércules terá de “estabelecer um sistema não arbitrário de prioridade, avaliação ou acomodação entre eles [princípios], um sistema que reflita suas fontes respectivas em um nível mais profundo de moral política”. (DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 321)


Vale a pena que ressaltemos aqui, que em nossa visão, no caso Ficha Limpa, também  temos um confronto entre a justiça abstrata e a equidade, pois a primeira exigiria que Hércules, como foi levantado pela maioria dos ministros do STF, assumisse “um ponto de vista radical, não compartilhado por nenhum segmento substancial do público”, ou seja, que ele fosse contra, “os desejos do povo” (DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 299).


Dworkin vai apontar para nós a melhor maneira de resolver esse impasse, a sua “resposta correta”:


“[…] Poderia, então, decidir que a interpretação em que o Estado insiste no ponto de vista que ele considera correto, mas vai contra os desejos do povo com um todo, é a mais pobre em termos gerais. Em tais circunstâncias, estaria preferindo a equidade à justiça, e essa presença refletiria um nível superior de suas próprias convicções políticas, a saber, suas convicções sobre com um governo decente, comprometido tanto com a equidade quanto com a justiça, deveria decidir entre as duas nesse tipo de caso. […]” (DWORKIN, Ronald. Império do Direito. 2003. Pág. 299. Grifo nosso.)


Hércules então escolheria a equidade, o desejo que a população demonstrou ao apresentar o projeto de lei “Ficha Limpa” ao Congresso de necessidade de moralização da vida pública, porque só assim ele daria uma decisão que faria jus a nossa história de reconstrução democrática iniciada em 1988, pois uma democracia verdadeira só existe quando: a máquina pública não é usada para fins pessoais, o governo é transparente, o político não tem tantas maneiras de se manter impune e assim a população pode fiscalizá-lo de maneira mais eficaz.


Optando pela aplicação imediata mostraria a comunidade brasileira unida pelos melhores princípios, pelos princípios da democracia e da moralidade, que caminham lado a lado. Já a opção pela interpretação que privilegia de forma absoluta segurança jurídica é descartada, por que o formalismo excessivo no Brasil só serviu para encobrir desigualdades, manter os poderosos no poder, para a construção de modelos autoritários, ou seja, seria optar por mostrar a comunidade brasileira continuando uma história de imoralidade política e desconsideração da vontade popular.


Assim, nós utilizamos a teoria do “direito como integridade” de Dworkin para analisar a decisão do STF no caso “Ficha Limpa”, porque os juízes dessa corte a partir de tal decisão puderam se colocar como importantes construtores da nossa prática jurídica, seja pela busca da moralização da política e pelo respeito a soberania popular ou da conservação de uma segurança jurídica dogmática. Mas o mais importante é que o modelo de interpretação judiciária deduzido dessa forma de pensar o direito, “o romance em cadeia”, exige dos juízes que esses não rompam de forma brusca com o passado jurídico, mas que o procurem mostrar o direito como uma construção de uma comunidade unida pelos melhores princípios.


 Assim, para nós, se as duas interpretações levantadas no julgamento tratado encontravam fundamentos em nossa Constituição, nossas leis e  nossa jurisprudência, o juiz Hércules, colocado de forma hipotética no lugar de Fux, deveria escolher então aquela mais equitativa, que respeitasse a soberania popular, os fundamentos de nosso Estado Democrático, e assim votar pela aplicação imediata da lei complementar nº 135.


4. Habermas, democracia e teoria discursiva do direito.


Vamos agora procurar mostrar, a partir de uma análise da teoria jurídica de Jürgen Habermas compatível com aquilo já dito acima com Ronald Dworkin, que a melhor decisão, para o caso, seria que o STF determinasse a aplicação imediata da lei complementar nº135 de 2010, visto que tal resolução do impasse se fundamentaria naquilo que o direito quer proteger de forma prioritária em um Estado Democrático de Direito: o senso de justiça comunitário e a democracia. Isso porque, para nós, respeitar-se-ia a soberania ao permitir que a maioria imponha uma regra de moralização da política.


Habermas vai dizer que o direito moderno se caracteriza por nele haver uma “tensão entre facticidade e validade”, ou seja, suas normas se caracterizam por serem cumpridas pelos indivíduos através da imposição de sanções pelo Estado através dos tribunais, quanto por serem consideradas legítimas por eles e assim são aceitas voluntariamente. (HABERMAS, 1997)


A legitimidade de uma lei para Habermas se fundamenta e:


“[…] se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de elas terem surgido em um processo legislativo racional – ou o fato de que elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista pragmáticos, éticos e morais[…]” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Volume I. 1997. Pág. 50.)


O direito só tem então sentido para Habermas se originado em uma democracia discursiva, na medida em que ele mesmo é instrumento de integração social que ocorre por meio de uma troca argumentativa entre os cidadãos, que tem como pano de fundo o “mundo da vida” e na qual os melhores argumentos se impõem e eles podem afirmar sua autonomia ao “supor que eles mesmos, numa formação livre da opinião e vontade política, autorizaram as regras às quais eles estão submetidos como destinatários” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Volume I. 1997. Págs. 59 e 60)


A Ficha Limpa teria, então, uma dupla importância para esse entendimento de direito habermasiano. A primeira importância surge porque ela foi um fruto de um projeto de lei que foi apresentado ao Congresso Nacional pela população através de um grupo que procurou sempre, ao recolher o número necessário de assinaturas para ele ser aprovado, conseguir o apoio social através do convencimento pelos melhores argumentos e isso principalmente através da internet.


Uma lei, assim elaborada, faz com que nossos cidadãos percebam que eles têm espaço em nossa democracia, que nossos governantes não se fecham para as exigências da soberania popular e só se preocupam com medidas arbitrárias e coercitivas. Assim essa decisão do STF frustrou a sociedade para nós, porque quando esta entrava da forma mais direta possível no jogo democrático, o judiciário decidia colocá-la à margem deste jogo de novo.


Apontamos como a outra importância da lei complementar n° 135 para o implemento de um direito que preconize a autonomia dos cidadãos o fato de ela ter surgido com o escopo de moralizar o agir político no Brasil, já que não há verdadeira democracia aonde os representantes do povo tomem as decisões baseados em interesses pessoais, visando o sucesso pessoal. O Estado Democrático de Direito se fundamenta no fato de que o legislativo toma suas decisões sempre com base nos “melhores argumentos de cunho éticos, morais e pragmáticos” que exprimam a vontade social, como assevera Habermas.


É uma norma que também surge para impedir que interesses de grupos minoritários, mas economicamente fortes, não encontrem, em representantes corruptos, canais para se imporem. Essa é também outra faceta da tensão entre facticidade e validade no direito, o fato de que ele deve sempre procurar disciplinar as pressões externas, ilegítimas, para que elas também sejam subordinadas ao jogo democrático, segundo Habermas (1997).


Assim a Lei da Ficha Limpa surge como uma norma que permite a integração social através da democracia de uma forma mais pura, sem as máculas da corrupção,  algo que permite a um ator social assumir enfoque performativo em relação ao direito como diria Habermas, ou seja:


“[…] entender-se com outros atores sociais sobre condições a serem preenchidos em comum para que tenha sucesso em suas ações, a regra amarra a “sua vontade livre” através de uma pretensão de validade deontológica […]” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Volume I. 1997. Pág.51)


Já nossa Corte Suprema, em sua decisão, preferiu ver o direito através de um enfoque objetivador, ver a Lei Complementar 135 com um “empecilho fático”, como algo que surge pelo Congresso com fins punitivos, cerceando liberdades dos candidatos já condenados por corrupção e impedindo o sucesso deles (HABERMAS, 1997). Por isso Gilmar Mendes e Fux vão colocar o artigo 16 como uma garantia fundamental do devido processo legal eleitoral, de liberdades políticas, e no seu voto não falarem na importância de um direito que surja da discussão social.


Voltando agora ao nosso exercício do Juiz Hércules, ele entenderia, segundo a nossa visão, todas as nossas objeções até aqui levantadas a partir da teoria de Habermas contra uma decisão que priorizasse uma segurança jurídica dogmática, já que esse magistrado aceita o direito como integridade (DWORKIN, 2003), o direito como fruto de uma construção jurídica de uma comunidade e não de ingerências arbitrárias feitas pelo Estado.(HABERMAS, 1997)


Na verdade, Habermas, ao analisar a teoria de Dworkin, assevera que o juiz Hércules não pode pretender sozinho chegar às repostas corretas para os casos, não deve se colocar como um oráculo que impõe verdades absolutas para a população, mas deve privilegiar sempre aquilo que surge da argumentação social, deve entender que a integridade:


“[…]Sugere que se ancorem as exigências ideais feitas à teoria do direito no ideal político de uma “sociedade aberta dos interpretes da constituição”49, ao invés de apoiá-las no ideal da personalidade de um juiz, que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado a verdade. […] O juiz singular tem que conceber sua interpretação construtiva como um empreendimento comum, sustentado pela comunicação publica dos cidadãos. […]” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Volume I. 1997. Págs. 277-278. Nota do autor)


Habermas disse então que quando um juiz vai aplicar o direito ele deve, portanto, considerar as diferentes interpretações das partes envolvidas sobre que direitos e deveres elas tem no caso concreto, mas também deve procurar trazer a vontade social para o caso e desenvolver o jogo argumentativo entre as partes, para que, no final, apresente uma resposta correta, baseada nos melhores argumentos aduzidos durante o processo e que seja satisfatória tanto para a sociedade, o vencedor e o perdedor, já que este se convencera da força dos fundamentos da decisão.(HABERMAS, 1997)


Assim, diante de tal visão de direito, é estranho para nós que seis ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento derradeiro do caso Ficha Limpa tenham colocado bem claro que não estavam ali para atender aos anseios populares, que o tribunal era necessariamente contra – majoritário, ou seja, deixaram de ouvir os argumentos de uma das partes mais interessadas na decisão, a população brasileira, como se eles fossem necessariamente de baixa qualidade por serem da maioria, promovendo não um diálogo entre as partes, mas impondo suas visões formalistas.


É de se estranhar também, no nosso entender, que um ministro como Gilmar Mendes use o argumento de defesa das minorias como uma forma de dar uma automática e inabalável credibilidade aos fundamentos e escopos de seu voto para afastar então qualquer necessidade de avaliação dos argumentos apresentados pelo ministério público em nome do povo.


Não se pode crer que o papel do STF é defender qualquer minoria em qualquer situação, por exemplo, seria fundamento plausível dos votos de seus juízes defender a liberdade de expressão de uma minoria racista frente a uma lei que proibisse manifestações desse tipo? Não achamos plausível, então, que o STF claramente defenda o direito dos corruptos, ao serem colocados como grupo minoritário, de ficarem no poder por mais 4 anos.


Podemos também aqui, a partir do entendimento de Habermas sobre o direito, criticar o critério geral de decisão do STF: os ministros apresentam fundamentações para seus votos, muitas já pré-determinadas, mas o que determina no final o que será a palavra da Corte na questão é o simples somatório de votos.  Não há diálogo entre os ministros, não há a troca de argumentos para se chegar a um entendimento, a um posicionamento da instituição, mas para nós há uma disputa entre grupos de juízes com posições ideológicas diferentes para ver quem consegue impor seu interesse, no melhor estilo “ao vencedor, as batatas” e ao perdedor nada.


Os juízes da Suprema Corte Brasileira também apresentaram uma visão de segurança jurídica que engessa o direito, o coloca como algo já determinado, sem exceções, a qual um povo tem de se acomodar. O artigo 16 é tornado cláusula pétrea e assim se impede que o processo eleitoral evolua, se torne mais democrático  por se excluir dele as máculas da corrupção.


Mas esse não é o entendimento de segurança jurídica uma teoria como o direito como o integridade e Habermas defende, porque se o direito surge de uma comunidade princípios ou de um processo de auto-legislação racional ele tem que refletir os melhores princípios que unem a população, os quais podem se expressar pela voz da maioria.(HABERMAS, 1997)


O passado não se torna um entrave para a construção do direito no presente, mas os juízes e legisladores devem sempre procura fundamentar suas decisões naquilo que o povo soberano expressa para si e tem de entender, como diz Habermas, que não chegam a decisões infalíveis, mas elas serão corretas até que novos argumentos mais bem fundamentados que se impõe na sociedade derrubem as bases dessas decisões:


“[…] A correção dos juízos normativos não pode ser explicada no sentido de uma teoria da verdade como correspondência, pois direitos são uma construção social que não pode ser hipostasiada em fatos. Correção significa aceitabilidade apoiada em argumentos. Certamente a validade de um juízo é definida a partir do preenchimento das condições de validade. No entanto para saber se estão preenchidas, não bastar lançar mão de evidencias empíricas diretas ou de fatos dados numa visão ideal: isso só é possível através do discurso – ou seja pelo caminho de uma fundamentação que se desenrola argumentativamente. […]” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Volume I. 1997. Pág. 281. Grifo do autor.)


Concluímos então com Habermas que a lei da Ficha Limpa é de extrema importância porque surgiu da iniciativa popular, a sociedade colocou-se então como autora de seu próprio direito. Já a decisão do STF de adiar sua aplicação para as eleições municipais de 2012 vai contra a verdadeira segurança jurídica, que se reflete na aceitabilidade racional das leis e decisões judiciais, porque desse modo a nossa mais alta Corte engessou o direito e fechou seus ouvidos para os argumentos apresentados pela sociedade.


5. Análise do Tribunal Constitucional


 A partir de tudo que já foi dito, podemos, deste modo, criticar a posição antidemocrática que nossa mais Alta Corte vem assumindo frente a certos temas e isso porque:


“[…] sob a Constituição de 1988, agravou-se a crise numérica que, já sob o modelo anterior, incidia sobre o recurso extraordinário. Embora se afigure correta a tese segundo a qual o sistema direto de controle de constitucionalidade passa a ter precedência ou primazia após a Constituição de 1988, é verdade também que é exatamente após 1988 que se acentua o problema quantitativo do Supremo Tribunal Federal. Essa crise manifesta-se de forma radical no sistema difuso, com o aumento vertiginoso de recursos extraordinários. […]” (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade e Processo de Deliberação:Legitimidade, transparência e segurança jurídica nas decisões das cortes supremas. Disponível  em de 2011)


Portanto, com esse aumento do número de recursos extraordinários, alertado por Gilmar Mendes, o nosso sistema de controle de constitucionalidade, que a doutrina diz conjugar características do controle constitucional abstrato europeu com o difuso e concreto norte-americano, (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade e Processo de Deliberação: Legitimidade, transparência e segurança jurídica nas decisões das cortes supremas. 2011) vai em nossa visão cada vez mais se assemelhar citado modelo norte-americano, para nós apolítico por sua face judicial tecnicista.


Desta maneira, o caráter antidemocrático de nossa Suprema Corte mencionado por vários autores, por ela não ser eleita diretamente pelo povo, (SENGÈS, Gustavo Antunes. As Cortes Supremas: Guardiões da Constituição ou de Interesses Minoritários. 2011) se torna mais explícito, porque ela, ao julgar recursos extraordinários, como inferimos no caso analisado, pode se fechar aos anseios políticos do povo, não promover a integração social através da argumentação, o que é, para Habermas, dever de qualquer órgão judicial,(HABERMAS, 1997) para fazer análises mais técnicas da compatibilidade entre norma, Constituição e caso concreto.


Mas observamos no caso Ficha Limpa, que mesmo os juízes defensores de que o STF tem de agir de forma contra-majoritária para defender a Constituição ou os fundamentos da República, de forma curiosa, procuraram justificar seus votos frente a população, como, por exemplo, Gilmar Mendes ao asseverar que ele não estava defendendo os corruptos, mas garantias fundamentais de qualquer eleitor ou candidato. Isso pode ser explicado pelo do STF estar, cada vez mais, exposto à mídia. (BORGES, Laryssa. Gilmar Mendes vota contra a Ficha Limpa em 2010; 4 são a favor. 2011).


Para nós, fica então claro, que a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso da aplicabilidade imediata ou não da lei complementar n° 135 de 04 de junho de 2010 e em outros casos semelhantes, nos quais houvesse confronto entre equidade e justiça abstrata, poderia ser mais acertada e democrática, se ele funcionasse nos moldes do Tribunal Constitucional jurídico-político proposto por Hans Kelsen para a Áustria e lá implantado em 1920, na qual o tribunal é uma instituição que toma uma decisão de forma abstrata para si e que não faz parte do judiciário comum. (SENGÈS, Gustavo Antunes. As Cortes Supremas: Guardiões da Constituição ou de Interesses Minoritários. 2011).


Assim defendemos que se os membros de nossa mais Alta Corte tivessem procurado entrar em consenso através de um processo argumentativo no qual venceriam os melhores argumentos, isso teria permitido que esse colegiado como um todo tivesse agido como um juiz Hércules, fazendo uma análise criteriosa do impasse levantado, e não teria sido necessário que nós aqui apontássemos de que o recém-chegado ministro Luiz Fux fosse substituído hipoteticamente por Hércules para analisar a correção da decisão da Corte.


Apontamos então que se procure acentuar o caráter direto, concentrado, abstrato e político de nosso controle constitucional, para que nossos juízes não se limitem a fazer avaliações técnico-jurídicas em casos que exigem destes um posicionamento moral mais profundo. Que eles não fiquem então como os juízes americanos participando de espetáculos midiáticos, nos quais todos já conhecem as posições tomadas por cada um deles em virtude de seu apadrinhamento político.


Isso pode ser feito, em nossa visão, dando mais importância às ações diretas de inconstitucionalidade, nas quais os membros do STF decidem de forma abstrata se uma lei pode ser considerada válida ou não diante de nossa Constituição, porque assim eles não estarão submetidos às pressões do caso concreto, dos envolvidos neles, mas poderão fazer um jogo argumentativo que os levem a tomar a decisão correta.


Tudo isso se reflete, para nós, especificamente no caso Ficha Limpa pelo de que o julgamento dele se assemelhou muito a um julgamento da Suprema Corte americana, em que os juízes levam em consideração muito mais questões de técnica judiciária do que a necessidade de fazer a argumentação, sendo que só essa argumentação que leve em consideração os argumentos de todas as partes e da sociedade é que pode levar a decisão correta, o que seria então alcançado no modelo kelseniano de tribunal constitucional.


6. Conclusão


Após analisar as interpretações dos juízes do STF expostas no decorrer do artigo, concluímos que a decisão da maioria destes juízes de adiar a eficácia da lei complementar nº 135 de 2010 foi inapropriada, nas palavras de Dworkin não seria a decisão correta para um caso que envolvia um conflito entre a soberania popular e uma segurança jurídica formalista, entre direitos das minorias e os das maiorias.


Isso porque nossa interpretação da teoria de direito de Dworkin, o direito como integridade, faz nos crer que a decisão que deveria ser tomada por nossa Suprema Corte não deveria apenas estar em correspondência com o passado, mas também deve estar em concordância com os preceitos morais do presente, mostrar a prática jurídica como produto de uma comunidade unida pelos princípios mais equitativos, que para nós são os da democracia e da moralidade política.


Habermas, para nós, só corrobora essa decisão a qual um juiz Hércules hipotético chegaria no lugar de Fux, porque esse autor vai dizer que o direito tem que ser cumprido por ser legítimo, ser fruto da auto-legislação argumentativa social, e assim a Ficha Limpa não pode tornada ineficaz porque ela é tanto fruto quanto meio dessa auto-legislação, pois a purifica da corrupção. A decisão do STF é que, na verdade, foi contra a verdadeira segurança jurídica, porque se fundamentou em um direito estático, que não se adéqua aos clamores do povo e que não procura a argumentação para promover a integração social.


Analisando o modelo de tribunal constitucional de Kelsen, chegamos à conclusão de que se o STF procurasse tomar uma posição, enquanto instituição, de promover debates jurídicos-políticos nos  quais apresentar-se-ão os melhores argumentos até que se chegue a um consenso, em vez de seguir o modelo norte-americano de análise tecnicista e voltado para o espetáculo midiático, ele poderia então agir como um Juiz Hércules que promovesse a integração social.


Ressaltemos então que a segurança jurídica não pode ser encarada como um entrave para que a população adéqüe o direito as suas necessidades, mas que o descompasso entre a realidade jurídica e os anseios do povo gera um clima de insatisfação, de frustração no povo, que leva a verdadeira insegurança jurídica, porque não faz sentido seguir um direito que deixa de ser instrumento do homem para ser um fim por si.


Para nós, se fosse aplicada imediatamente a Lei da Ficha Limpa tanto se respeitaria a soberania popular quanto a Constituição, porque é nela que se prevê a necessidade de moralização da política a partir de estabelecimentos de critérios que permitam as pessoas escolherem representantes digno. Este é só o passo inicial para que se expulse a corrupção de nosso Estado Democrático de Direito, pois será ainda mais necessário uma maior transparência do governo brasileiro que permita aos cidadãos questionar os atos dos governantes.


 


Referências bibliográficas:

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DWORKIN, Ronald. Império do Direito. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2003.


Notas:

[1] Colocamos Hércules no lugar de Fux, não porque este tenha características próprias que o diferem dos outros juízes, mas porque Fux estava em uma situação privilegiada de já saber a posição dos outros ministros da Corte de antemão e que seu voto daria a palavra final, uma espécie de voto de minerva.

Informações Sobre os Autores

Lucas Thalys de Araújo Rocha

Estudante de Direito.

Lucas Souza Pereira

Estudante de Direito.


Equipe Âmbito Jurídico

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