Lauro Pais de Lima Júnior[1]
Resumo: As limitações da cognição humana são um entrave para o processo penal. À vista do que narra a denúncia, fica o Juízo adstrito a um imperfeito recorte da realidade, distante do filme da vida, mormente por ser a acusação uma versão parcial, à qual interessa ver a pretensão acusatória deduzida em juízo acolhida. Embora pintado como custus legis, demonstrar-se-á que no processo penal o membro do Ministério Público é parte acusatória interessada, a depender das pré-compreensões com que este chega ao Juízo na busca pela condenação. Verificar-se-á a necessidade de uma defesa técnica habilidosa para que o direito do réu inocente seja reconhecido. Ademais, o estudo aponta que existe uma manipulação linguística do direito por parte de seus aplicadores, com o intuito de fazer valer as decisões livremente alcançadas, o que corrobora que a retórica ainda é o cerne do direito, por mais que se busque dar precisão a essa ciência humana. Por fim, somadas a incerteza do processo penal, a sua longa duração e a aleatoriedade das ideologias dos juízes, tem-se que a sociedade não será, jamais, capaz de viver um processo penal plenamente justo, ficando essa qualidade reservada apenas à Justiça Divina.
Palavras-chave: Processo Penal. Gravidade abstrata do delito. Presunção de inocência. Erro Judicial.
Abstract: Human cognition limits are an obstacle to due process of law. According to what is told by accusation, the judge receives an imperfect layout of reality, far from what really happened, but closer to prosecution world view. That is because the parquet is interested in the condemnation of the accused, despite its custus legis function. This shows the necessity of a skillful defense, in order to avoid an innocent from being convicted. Besides, this article tries to demonstrate that rhetoric is very important in legal proceedings, sometimes much more than rationality itself, due to the uncertainties natural to human sciences. At last, it stays clear that full justice is frequently hard to achieve on the basis of criminal procedures where there is not divine omniscience.
Keywords: Criminal Procedure. Abstract Severity of Crime. Presumption of Innocence. Judicial error.
Sumário: 1. Considerações introdutórias. 2. A realidade das penitenciárias. 3. Erros, vícios e comodismos como fatores impeditivos de se construir uma sociedade livre, justa e fraterna. 3.1 Ideologia Penal e Constituição. 3.2 A falta de diálogo entre Constituição e sistema penal. 4.O Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça como última esperança de salvação contra o abuso de poder e a irracionalidade das instâncias inferiores 5. Considerações finais. 6. Referências.
As ideologias são indissociáveis do que se tem por humanidades, acompanham o gênero humano desde sempre e ainda hoje servem como amparo de toda forma de pensar[2], nas suas diferentes maneiras e vertentes. De maneira que na história das ideias o pesquisador depara-se, por uma questão cronológica, com todo a arcabouço ideológico do Mundo Antigo; mais à frente, vê-se um momento de ruptura com as ideologias babilônica e greco-romana concretizado com o surgimento do cristianismo, filosofia que moldou o modo de vida de grande parte do mundo por mais de mil anos com suas peculiares características.
Outra reviravolta ideológica se deu com o movimento Renascentista, a retomada de textos clássicos que oxigenou a maneira de se pensar o mundo. No Renascimento, por exemplo, viu-se Leonardo da Vinci reler a obra do arquiteto romano Marcos Vitrúvio Polião para desenhar o “homem vitruviano”, hoje um símbolo do ser humano como medida de todas as coisas. O Renascimento traria novos paradigmas ideológicos para a civilização, rompendo de forma dramática com as arbitrariedades de alguns dos operadores dos dogmas da cristandade.
Esse momento histórico foi o início de um verdadeiro império do saber racional, o qual passou a exigir, necessariamente, uma abordagem multidisciplinar por parte do aplicador do direito, e a reclamar do estudioso “um conhecimento que rompe as barreiras específicas de cada área[3]”.
Em nada obstante, o renascido racionalismo que acompanhou os primórdios da Era Moderna não se fincou como último paradigma ideológico aceito pela sociedade científica. No final do século XIX, se assistiu a uma revolta contra a razão, paralela à revolta contra o positivismo, a qual explica, em parte, “a nova dialética filosófica sobre a intuição, bem como a abertura de todo um mundo subjetivo novo, pelos simbolistas e expressionistas[4]”.
Esse lado oculto do homem irracional tornou-se visível definitivamente para a modernidade, e encontrou amparo na literatura, além da produção cultural. Segundo GAUER,
O conhecimento era limitado pela posição do homem na história, bem como pela sua individualidade, que vê sempre as coisas em uma única via. (…) Na pintura impressionista de Monet, temos um paralelo artístico com esse relativismo filosófico[5].
No intento de explicar e contornar os erros humanos, em especial quando estes buscam a justiça, a ciência moderna viu surgir o estudo do inconsciente com Freud. Ao lado dos estudos sobre o inconsciente, o darwinismo chamou a atenção para as origens animais, estimulando os estudos sobre o que é primitivo e instintivo no homem[6].
Contudo, mesmo com a ampliação das áreas científicas, diante da impossibilidade de êxito para absolutas explicações e eliminação de todos os erros, o próprio Direito passou a negar a possibilidade de uma verdade real, e admitiu falar em verdade apenas “processual”, quando não assume as vestes de uma mera verdade “persuasiva”.
Racionalmente, esse é o quadro do processo penal, em que o acusado, seja culpado ou inocente, vê o seu direito à mercê das retóricas muitas vezes mirabolantes do Ministério Público e de suas ilações temerárias, enquanto órgão acusador na seara penal. Nesse contexto, perde, sempre, o réu, enquanto parte hipossuficiente contra toda a aparelhagem do Estado, e em situação absolutamente desfavorável, como é a sua condição no processo-crime. Mas também perde a sociedade, nos casos em que a oratória do órgão acusador não consegue persuadir o Estado a condenar um acusado verdadeiramente culpado. Por conseguinte, as habilidades técnicas são cruciais para fazer valer o direito, considerado sempre o risco inerente à atividade processual. Nesse sentido: “afortunada coincidência é a que se verifica quando entre dois litigantes o mais justo seja também o mais habilidoso[7]”. Porém, quando não se verifica tal coincidência, as consequências podem ser desastrosas, casos em que a Justiça passa a não fazer jus à sua própria denominação.
Por tais razões, enquanto a modernidade erigiu os precedentes jurisprudenciais e a segurança jurídica como bases fundamentais do sistema jurídico, a pós-modernidade implodiu toda aquela construção dogmático-racional, e hoje se sabe que provas iguais não podem deixar de significar coisas diferentes para juízes diferentes.
De igual maneira, no livre convencimento do juiz, para além da lógica, ficam os juízos de valor que dissimulam os desejos básicos do homem de poder, que se vale da retórica e dos conceitos amplamente indeterminados do direito para fazer valer a sua ideologia e sua ideia pré-concebida sobre o julgamento.
O lado irracional do juiz, nesta nova assunção da realidade moderna, também toma forma na produção cultural. Sendo humano, e não um deus, o juiz deve realizar sua interpretação do direito ao caso concreto com as mesmas limitações de razão que possui o homem leigo, vez que ambos se submetem às comuns condições e limitações de toda a espécie humana. O que diferenciará aquele que diz o direito daquele que não é investido dessa mesma função não é mais o conhecimento senão o próprio poder em si[8], fato que derruba definitivamente o postulado positivista de que saber é poder. Não, pelo contrário, poder é saber. Confira-se:
Tradicionalmente se repete o princípio positivista, segundo o qual quanto maior é o saber, maior é o poder, que para nós se tornou “lógico”. Parecia uma verdade incontestável que o homem com mais conhecimentos científicos tinha mais poder, sobretudo considerando os êxitos tecnológicos de nossa civilização industrial. Entretanto, a estas alturas da História, o que parece inquestionável é o contrário: é o poder que condiciona o saber[9].
Essa perplexidade permitiu, na arte, que os expressionistas se desviassem do mundo exterior dos objetos, “procurando representar os estados íntimos, as origens do homem[10]”. A irracionalidade dos indivíduos e a tomada de consciência do menor papel desempenhado pela razão em comparação ao instinto e ao inconsciente tomam formas expressionistas no quadro de Munch, ‘O Grito’, de 1893[11], que se tornou, em 2012, uma das pinturas mais valorizadas da história, ao ser arrematada por quase cento e vinte milhões de dólares[12]. Assim como para o expressionismo, para o juiz de primeira instância, que lida mais diretamente com os fatos, em face das provas dos autos e das audiências de instrução e julgamento, mais peso tem para sua sentença a expressão de suas ideias que o retrato da realidade.
A ironia, contudo, é que, buscando constantemente novas ideologias[13] pessoais a fim de reverter o que se tem como injustiça derivada do fenômeno que se denomina seletividade penal, diferentes operadores do direito acabam por recair na incerteza epistemológica e na irracionalidade humana típica dos modelos consagrados na modernidade.
Atualmente, é desnecessário pintar um quadro para demonstrar a realidade das penitenciárias brasileiras, já massificada no consciente coletivo pelas inúmeras exposições midiáticas que, rotineiramente, ilustram a situação dos presos dentro das cadeias. O sistema prisional é, na atualidade, um sistema falido, que tenta se revigorar por meio da privatização.
Mesmo depois de transitada em julgado a sentença penal condenatória, reconhecida em toda a sua carga a culpabilidade concreta do condenado, este sofre mais do que o suficiente e necessário, como já denunciava Cesare Beccaria, enquanto cumpre a pena privativa de liberdade. A ressocialização, quase como regra, fica inviabilizada, porque exacerbada a retribuição. O complexo penitenciário de Pedrinhas, no Estado brasileiro do Maranhão, é o mais recente exemplo do retrato das penitenciárias do Brasil, o que faz pensar se estariam as autoridades políticas igualando-se em crueldade aos condenados à prisão, por tamanha prevaricação e abandono do sistema carcerário.
Nesse universo temido por muitos, o ser humano pode deparar-se com o último dos castigos, ao cometer um delito. Vários indivíduos que ingressam nessa instituição total experimentarão danos maiores do que, em geral, causaram a outrem[14].
Entretanto, os problemas da execução penal não são o foco desse artigo; fica apenas a reflexão: se o cumprimento da pena é absurdo para o condenado por decisão trânsita em julgado, que dizer do inocente que é lá trancafiado? Não se pode desmerecer os préstimos à sociedade de todo o sistema de segurança pública, mas o fato é que um erro apenas é capaz de colocar em xeque todo o trabalho que é feito ao longo dos anos, e por isso tais erros devem sempre ser exemplarmente punidos, em prol da sobrevivência de todo o sistema. Afinal, a justiça é para todos.
Por sua vez, as injustiças são maiores do que se pensa; cada sentença de primeiro grau que absolve ou cada decisão colegiada que reforma sentença condenatória, absolvendo o réu, representa uma barbaridade cometida pelo Estado na vida de quem teve prisão preventiva decretada. E os casos não devem ser poucos, veja-se abaixo por quê.
Cerca de um terço do total de presos de todo o país estão nessas mesmas penitenciárias cautelarmente, conforme dados publicados pelo DEPEN em 2007, em absoluta desconsideração do princípio de presunção de inocência, ainda que a prisão cautelar pressuponha somente casos muito excepcionais[15]. Mais recentemente, uma radiografia do sistema carcerário apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça aponta que o percentual de presos provisórios é de 42,97%, contra 53,03% de presos condenados, de um total de quase quinhentos mil presos em todo o Brasil[16].
A prisão preventiva, modalidade que pode ser decretada durante o inquérito policial, deveria ser utilizada como garantia e proteção dos meios e dos fins do processo penal somente em circunstâncias excepcionais. Porém, na prática, essa modalidade apresenta números crescentes, passando a ser utilizada como medida de defesa social, além de servir de elemento representativo de uma falsa eficiência do sistema penal[17].
A praxe faz deboche da excepcionalidade da prisão preventiva; enquanto o Estado não passar a ser condenado em vultosas indenizações ao indevidamente encarcerado, autoridades policiais e juízes singulares continuarão, respectivamente, solicitando e decretando prisões preventivas de olhos bem fechados, prestando um desserviço à credibilidade da justiça criminal, e fazendo pouco caso das medidas cautelares diversas da prisão, como tem ocorrido.
De todas as características já relacionadas por diversos autores, talvez a que melhor se amolde ao fenômeno dos Estados modernos seja, como já o dissera Weber, o monopólio da violência legítima. Precisamente, por deter o monopólio da violência, “o Estado é aquele que possui as maiores probabilidades de utilizá-la de modo inadequado, assim como é o que pode propiciar os resultados mais funestos, tanto em qualidade como em quantidade[18]”.
O Estado possui à sua disposição aparelhos repressivos fortemente armados e fortemente treinados, como as polícias e as forças militares. Nenhuma quadrilha ou bando de criminosos consegue igualar tal poderio, salvo quando se começa a divisar um estado paralelo prestes a iniciar a guerra civil ou a concretizar uma revolução. Leciona Silva Filho:
Na estruturação destes aparelhos se apresenta uma organização burocrática com várias e complexas ramificações, um conjunto ideológico que justifica as suas ações, um forte sentimento corporativo e uma racionalidade instrumental que perpassa todas as instâncias[19].
No cometimento de crimes por parte de agentes do Estado, condições estruturais e organizacionais se combinam com preferências individuais para gerar as ofensas, tendo lugar, novamente, a malfadada ideologia ou visão de mundo que norteia as ações do agente público. Assim, por exemplo, quando se tem uma delegada à frente de uma Delegacia da Mulher, sua pré-compreensão e situação histórica, combinados a fatores vinculados às especificidades individuais, o excesso de avidez para a proteção da mulher, mormente em casos noticiados de violência doméstica ou de estupro de vulnerável, a autoridade policial poderá ficar propensa a tornar as suspeitas em certezas antes mesmo de instauração de inquérito.
Na mesma situação hipotética, a delegada de polícia, diante de quaisquer provas circunstanciais conectando um sujeito a algum crime, tende a estar crescentemente motivada à obtenção de resultados e, nesse processo, suspeitas tendem a se tornar certezas[20]. E, de forma geral, com relação aos diversos agentes públicos, estes, acreditando estarem servindo aos melhores interesses da justiça, são motivados a pressionar testemunhas, fazer perguntas tendenciosas e realizar interrogatórios com técnicas de sugestionabilidade, a fim de confirmar, a todo custo, suas próprias hipóteses. Segundo as autoridades no assunto, “podem chegar a suprimir provas e a ignorar testemunhas favoráveis à inocência do acusado[21]”.
Infelizmente, a despeito de todos os direitos e garantias fundamentais que a Constituição assegura ao cidadão, esse é o quadro que se vê repetir com frequência nas diversas comarcas de todo o Brasil. Tome-se, por exemplo, como pesquisa de campo, caso documentado[22] de acusação de estupro de vulnerável em que a autoridade policial suprimiu depoimento totalmente a favor do indiciado, documento que, por insistência da Defesa técnica, foi “encontrado” e juntado aos autos anos depois, já na fase processual, a pedido do juiz. No mesmo caso, foi dada certidão de que não havia nenhum procedimento investigativo contra o suspeito, mas, um dia depois, policiais adentraram no apartamento do indiciado já com mandado de prisão preventiva a ser cumprido. Depois se descobriu que, a despeito da certidão, a autoridade policial já tomara todas as declarações da suposta vítima e de suas testemunhas, além de já haver requisitado laudos periciais, tudo antes mesmo da instauração de inquérito.
Dessarte, a autoridade policial, ao abandonar seu dever funcional de instaurar o competente inquérito policial para investigar o suposto crime, tão logo dele teve ciência (art. 5º, I, do CPP), atuou segundo suas preferências individuais, com nítido intuito de esconder as investigações do suspeito e de seus advogados, somente instaurando procedimento depois de coligir todas as provas possíveis para incriminação e descartando as declarações que inocentavam o suspeito. Some-se a isto o fato de que jamais se procurou ouvir o indiciado, passando-se ao largo do art. 6º, V, do CPP, que se faz transcrever: “Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá ouvir o indiciado (…)”. Então quando instaurado, finalmente, o inquérito, concomitantemente com pedidos de prisão e de busca e apreensão, ambos foram, na mesma hora, deferidos pelo juiz competente.
Como se vê, o impacto que tem a autoridade com a gravidade em abstrato do delito imputado ao suspeito gera uma impressão e provoca os brios do dever de agir. A isso se somam as conversas privadas entre autoridades policial e judicial e a versão da acusação ainda sem contraditório porque tudo incipiente em fase de investigação policial: Pronto! Essa tem sido a baliza para decretação da prisão preventiva, e não a Lei Processual Penal, e muito menos a Constituição. Esses últimos diplomas, por ser sábio o legislador, não se esquecem da realidade prisional descrita alhures. Pois, e se não for verídica a acusação? E se se tratar de calúnia, engano, denunciação caluniosa, falso testemunho etc.? Para essas eventualidades, entram em cena o princípio da presunção de inocência e as cautelas que devem ter as autoridades policiais, mas isso é apenas a lei… e não a praxe.
Diante de tal quadro, o problema do Direito Processual Penal e, por consequência, do Direito Penal que nele ganha realização, é sua total dependência da interpretação que seus operadores fazem das narrações das partes sobre o fato, das leis e da Constituição[23]. Afinal, em cada apuração, não é da coisa que se trata, mas do que se diz sobre ela. Nesse sentido:
Pense-se – para se ter tão-só um exemplo – na denúncia ou na queixa: nelas, a imputação não é o crime ou o caso penal dele decorrente, mas o que se diz sobre eles, por sinal em conformidade com o artigo 41, do CPP, o qual não deixa dúvida: “A denúncia ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias…[24]”
“Juiz pode tudo” é um chavão recorrente. Se errar, está acobertado pelo livre convencimento; que corrija o erro o advogado constituído, ora! Afinal, “todo castigo para o réu é pouco, porque outrora ele sequer tinha direito ao que se chama hoje de devido processo legal”. Tal discurso não pode ser lido na lei, mas pode ser lido nas entrelinhas dos processos, capitaneados por justiceiros implacáveis que agem ao arrepio da lei, e outra vez, ao arrepio da Constituição.
Por isso, repita-se o já exposto no introito: “as habilidades técnicas são cruciais para fazer valer o direito, considerado sempre o risco inerente à atividade processual. Nesse sentido: “afortunada coincidência é a que se verifica quando entre dois litigantes o mais justo seja também o mais habilidoso[25]”. Porém, quando não se verifica tal coincidência, as consequências podem ser desastrosas, casos em que a Justiça passa a não fazer jus à sua própria denominação”.
3.1 Ideologia Penal e Constituição
Segundo uma vertente da criminologia – a teoria criminológica crítica de modelo marxista[26] – o sistema penal é visto como instrumento de poder da classe dominante sobre os dominados. Leciona Pala Veras[27]:
Para o marxismo, o direito penal, assim como outros ramos do direito, exprime uma ideologia. Portanto, todo o discurso realizado em direito penal é produzido pela classe dominante e serve apenas para legitimar e reproduzir um sistema de desigualdade social gerada pelo binômio capital-trabalho assalariado. A igualdade formal dos indivíduos perante a lei encobre a grande desigualdade material existente. A criminologia também é uma ideologia, e não uma ciência, e os que se posicionam diante do crime de forma neutra, assumindo sua verdade como um dogma, são instrumentos dessa ideologia, e não cientistas.
Já é de conhecimento amplo o sistema de criminalização da pobreza, o que faz com que as penitenciárias sejam ocupadas majoritariamente pela população economicamente desfavorecida. Por outro lado, menos perceptível é a outra face da moeda: a consciência desse fato por parte de aplicadores do direito que perfilham a ideologia crítica marxista de retificação da seletividade penal histórica.
Outra ironia, para infortúnio da Constituição, é que os adeptos dessa ideologia são eles mesmos detentores do poder, juízes e delegados de polícia, que assumem uma posição desgarrada de qualquer neutralidade a fim de lutar pelos direitos da “classe dominada”.
As ideologias que buscam, na visão de seus adeptos, restaurar a dívida social que a sociedade mais conservadora historicamente teria para com as minorias e grupos vulneráveis, tais como os negros, mulheres, crianças e idosos, inseridos na “classe dominada”, levam, no mais das vezes, ao erro judicial. Ao menos em primeira instância, por mais que o réu da “classe dominante” negue as acusações, suas versões são recebidas com os olhos céticos das autoridades ideologicamente enviesadas, para quem o crime de denunciação caluniosa passa a não constar do Código Penal. A pré-compreensão e o pré-julgamento, a falta de neutralidade e mesmo a parcialidade se mostram tão arraigados no espírito do julgador singular que, por mais que surjam provas em contrário, sua predisposição à condenação não é desatada.
Nesta vereda ideológica de impulso ou “desejo de fazer justiça”, nos crimes contra a dignidade sexual, por exemplo, arvoram-se as autoridades na jurisprudência de que a palavra da vítima possui relevante peso, ainda que inúmeras provas dos autos apontem em direção contrária, tais como laudo pericial grafoscópico, laudo pericial do Instituto de Criminalística sobre indumentos determinados a conter vestígios criminógenos, exame pericial em câmeras digitais, cartas, envelopes, computadores, fitas de vídeo, fotos etc.
De fato, em tais crimes, a palavra da vítima ganha relevância, porém, desde que se apresente de forma segura e coerente com todo o conjunto probatório dos autos. No entanto, o autoritarismo às avessas das autoridades imbuídas de nova ideologia de seletividade penal ao contrário, faz com que, em nome de proteção da parte vulnerável – como parte do discurso de correção de injustiças históricas – ao menos em primeira instância a condenação torna-se certa, ainda que a palavra da vítima não se apresente de forma segura e coerente com o quadro fático-probatório (tal como a mudança de versão dos depoimentos nas fases de investigação e de instrução, ou mesmo a discrepância dos horários apontados para a prática do suposto crime).
Por vezes, ainda que haja um cristalino álibi em favor do acusado, limpidamente configurado nos autos, corroborado por inúmeras testemunhas de defesa, há casos em que tais testemunhos, por força do neoautoritarismo de cunho reparador, ganham pecha de falsidade testemunhal e ainda são remetidos à Central de Inquéritos para apuração de crime contra a administração da justiça, podendo as testemunhas de um álibi chegar a ser presas em flagrante, ainda que sejam várias as testemunhas, e ainda que tenham dado depoimentos coesos e seguros.
Assim, por vezes, na prática forense, até mesmo o direito de se defender é, indiretamente, negado, por força de coação judicial às testemunhas de defesa, mas tudo consoante uma suposta atuação em nome da ordem pública e do interesse da sociedade. Daí o pleno sentido das lições de GOLDSCHMIDT[28] de que a norma, enquanto tem por substância o ideal de justiça, o Direito[29], por sua vez, é uma realidade, distante do ideal. Ou seja, o Direito é apenas uma tentativa coativa de lograr a justiça; precisamente por isso advém a explicação para o direito injusto, tanto legislado (direito objetivo) quanto aplicado judicialmente (direito subjetivo).
Some-se a isso o fato de que, na imensa maioria das vezes, o acusado não tem condições de contratar um advogado com as habilidades técnicas necessárias para fazer valer o seu direito, algo indispensável no processo penal, como se viu; a Defensoria Pública vem cumprindo relevante papel na sociedade para colmatar essa lacuna ensejadora de nulidade e geradora de injustiças. Por outro lado, a familiaridade de juízes e promotores com a lei e os ritos forenses, faz com que se sintam à vontade para usar e ab-usar de seu poder-saber e, não raras vezes, por força dessa manipulação, o acusado chega a se declarar culpado, mesmo sendo inocente.
É exatamente isso. Ora, tenha-se presente que existem inúmeros casos em que, baseando-se em falsas confissões, os resultados dos processos foram condenações, todas elas documentadas.[30] Para tanto, utilizam-se as autoridades, também, do que a doutrina denomina de interrogatório com abordagens de maximização e de minimização[31]:
Maximização: é uma técnica persuasiva na qual o interrogador procura intimidar o suspeito por meio de falsas afirmações relacionadas a provas e de exageros na seriedade da ofensa e magnitude das acusações, levando-o, sob pânico, à confissão. Como exemplo, têm-se a alegação falsa da existência de uma testemunha ocular ou o teste de detecção de mentiras manipulado. Minimização: é uma técnica menos persuasiva, na qual o interrogador procura deixar o suspeito com a falsa sensação de segurança pelo oferecimento de solidariedade, tolerância, desculpas e justificativas morais, chegando, inclusive, a culpar a vítima e demais cúmplices e a desconsiderar a importância e seriedade das acusações.
Em meio a essas circunstâncias, mais ainda pela maior proximidade entre juiz/promotor em detrimento da proximidade juiz/advogado, – o que é inegável – por mais absurdas que pareçam, as ilações do Ministério Público acabam por se revestir de uma sacralidade indubitável. Relembrando CARNELUTTI,
Digamos com clareza: a experiência do advogado está sob o símbolo da humilhação. É certo que vista a toga; colabora, desde já, com a administração da justiça; mas o seu lugar é embaixo, e não no alto. Ele divide com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado. Ele está sujeito ao juiz, como está o acusado[32].
Ainda como se não bastasse, por vezes, o juiz singular toma por reais aquelas que são apenas as imagens discursivas dos membros do Ministério Público, herdadas desde o sistema inquisitorial policial, e que passam por um processo de ornamentação pela retórica do parquet, que culmina na apresentação de suas alegações finais.
São esses os vícios, os sucessivos erros e arbitrariedades que se cometem nas Comarcas Brasil afora, todos eles escondendo-se por detrás do poderio do Estado, do monopólio da violência legítima e de fórmulas retóricas inesgotáveis, tais como a “supremacia do interesse público” e outros chavões ou “componentes autoritários que fecham o discurso”. Segundo Zaffaroni,
Por “componentes autoritários que fecham o discurso” (Marcuse) se entendem expressões, que embora possam ter conteúdo, são empregadas sem conteúdo, com a mera pretensão de emudecer o oponente: o “sentimento do povo”, o “supremo interesse do Estado”, (…) a “defesa da sociedade”, a “segurança nacional” etc. Seu caráter de componente autoritário do discurso não deriva tanto da própria expressão, mas de seu emprego carente de conteúdo, como “curinga” para “terminar a questão[33]”.
O autoritarismo, destarte, encontra guarida no poder retórico e nas expressões linguísticas, ainda que não expressas e restritas à consciência do agente. Por exemplo, assim como o dolo eventual se caracteriza na doutrina[34] por expressões tais que “seja como for” ou “dê no que der”, em primeira instância – por moto-próprio das ideologias e das interpretações expressionistas dos servidores do Estado – o suspeito é indiciado, denunciado, e às vezes, inobservadas as provas e a própria dúvida que milita a seu favor, o acusado chega a ser condenado pelo livre convencimento motivado do juiz, que se vale de fórmulas parecidas àquelas para sua íntima convicção, tais como “o erro judicial são ossos do ofício”, “se quiser, recorra”, “se inocente, azar”.
O abuso do poder retórico serve como pano de fundo no discurso à restrição dos direitos e garantias constitucionais humanitárias, “chegando-se a afirmar, asninicamente, em garantismo social como antítese de garantismo do status libertais[35]”.
A supressão de provas e a indiferença com relação a testemunhos favoráveis à inocência do suspeito ou indiciado chegam a ser práticas espontâneas nas delegacias de polícia por conta do sentimento de impunidade e de falta de cobrança e fiscalização por parte da sociedade civil, de movimentos sociais, de organizações não governamentais nacionais e internacionais. Daí que, referindo-se a GREEN e WARD, Silva Filho[36] constata que
Os autores deixam aberta, portanto, uma espécie de janela sociológica para que concretamente, nos mais diferentes grupos e latitudes sociais, a sociedade civil organizada também seja um critério importante a ser levado em conta no momento de definir a ocorrência do crime do Estado.
3.2 A falta de diálogo entre Constituição e sistema penal
Outro motivo que se soma para que as autoridades policiais insistam em suprimir provas, negar vistas dos autos aos advogados a despeito de Súmula Vinculante, falsificar documentos no curso do inquérito policial, além de não observar regras explícitas do próprio Código de Processo Penal é que justamente esses crimes têm ficado de fora das preocupações científicas da criminologia.
Com efeito, a recente criminologia tem se desenvolvido na definição e nas características apenas dos crimes de colarinho branco, em especial após os estudos de Edwin Sutherland[37], o primeiro sociólogo a escrever uma obra sobre crimes cometidos por pessoas de alto status social no curso de sua atividade profissional. Segundo esses estudos[38], muitas vezes, o poder econômico, a boa reputação e a influência política dificultam a persecução desses agentes sociais. Quando os agentes sociais são as próprias autoridades policiais e os juízes, à elevada condição social e à influência política acrescentam-se todas as condições estruturais e organizacionais do Estado Leviatã, que tornam ainda mais dificultosa a persecução penal desses agentes públicos.
Eis a importância de se desenvolver a criminologia também com relação aos crimes do Estado, o que, segundo Zaffaroni, será o grande desafio das ciências criminológicas para o século XXI[39]. Os primeiros passos, no entanto, já se encontram bem consolidados na obra de ROTHE[40], e têm como colaborações cruciais estudos que passaram a ser denominados de justiça de transição[41].
Ainda consoante Zaffaroni, seria depreciável um saber criminológico desconhecedor dessa vertente de crimes, incluindo-se aí os crimes tão mais graves cometidos pelo Estado, tais como os genocídios e os crimes contra a humanidade. Tamanha lacuna na criminologia é sinal de indiferença e aceitação de atos incivilizados de quem, paradoxalmente, em primeiro lugar, deveria proteger os seus cidadãos da violação de seus direitos fundamentais.
Contudo, bom seria se a desatenção em relação aos crimes consumados pelos agentes do Estado fosse apenas da criminologia; tal já seria um grande avanço. Com efeito, observa Silva Filho[42]:
O problema maior é que na vida cotidiana tais crimes também são envolvidos pela opacidade. Na cobertura realizada pela mídia impressa e televisiva, por exemplo, o espaço reservado para o tema dos crimes do Estado é muito pequeno e, quando existe, os repórteres não são especializados na questão e não a abordam com a necessária contextualização e complexidade, o que acaba levando a uma desinformação. Aos crimes comuns se dá muito maior atenção. Esse comportamento da mídia favorece a opinião de que tais crimes são mais importantes do que os do Estado.
A invisibilidade dos crimes cometidos pelos agentes do Estado na persecução penal reside na própria complexidade acima descrita. Existe uma cultura organizacional fortemente urdida nos Estados que em não raras vezes fornece toda uma justificativa para descaracterizar como criminosas algumas das suas ações. Basta analisar o número de crimes cometidos pelos Estados em nome da segurança[43]. Ademais, é favorável à impunidade o corporativismo das respectivas Corregedorias institucionais, fato aliado à prática secular de engavetamento de processos que levam, inexoravelmente, à prescrição dos crimes cometidos pelos agentes públicos, o que por sua vez perpetua a existência de uma sociedade injusta e decadente.
Como se depreende, há a inversão das características desses crimes em relação aos crimes comuns. Enquanto nestes
…o agente geralmente procura desculpar sua conduta vendo-a como uma exceção necessária a uma regra com a qual ele mesmo concorda, o agente público que comete um crime apoiado pela própria organização estatal à qual pertence se vê, muitas vezes, como uma espécie de arauto dos valores sociais que seriam reforçados com o seu ato[44].
Assim é que, portanto, em algumas apurações de tipos penais, o processo penal corre, apesar da Constituição.
Seria um verdadeiro abuso de poder desconsiderar as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal plenamente aplicáveis ao caso, não observar os ritos processuais, negar álibis de um acusado por supostamente fazer parte da “classe dominante” ou privar-lhe de seus direitos fundamentais, mas não o é. Enquanto corre o processo-crime, antes do trânsito em julgado, o réu sempre tem a chance de reverter sua situação nas instâncias superiores; por mais arbitrária que seja a atuação do Juízo singular, dificílimo é comprovar o crime do Estado ou pelo menos a antijuridicidade do ato oficial, como já exaustivamente mencionado.
Configurar a má-fé da autoridade judicial que insiste em trancafiar um acusado, culpado ou inocente, sem antecedentes criminais, sem processo ou inquérito na vida pregressa e com inúmeras provas a seu favor insculpidas nos autos, além do direito constitucional que lhe promove a presunção de inocência até o trânsito em julgado, se mostra tarefa impossível, por força do poder do juiz em si, e por força da indeterminação jurídica para o livre convencimento motivado, pelo que a má-fé acaba por não existir. Consoante noção cediça, o que existe são as “influências pré-jurídicas sobre significados, valores e fins humanos, sociais e econômicos, ocultos (ou não) que vão inspirar a decisão judicial[45]”. Ou seja, até de ocultismo pode se valer a autoridade judicial para informar seu livre convencimento.
Por consequência, o poder-saber do juiz manipulador da linguagem para motivar sua decisão livremente alcançada, segundo sua convicção ideologicamente informada, é um lindo campo fértil para atuação de justiceiros e para o abuso de poder legalizado. Basta conferir:
Ora, no jogo da linguagem, o intérprete, com alguma habilidade (e hoje não são poucos os que sabem disso), cria a norma que quiser ou, em outras palavras, como vem sustentando Lenio Streck, diz qualquer coisa sobre qualquer coisa, o que deve ser evitado por evidente absurdo inconstitucional e antidemocrático. Mas é, infelizmente, o que se tem passado em largos espaços onde prevalece o decisionismo (Ferrajoli), vicejam os justiceiros (bem-intencionados ou não, não importa, porque atuam desprezando as leis e, sobretudo, a CR, pela manipulação que delas fazem) movidos pelo aparente apoio popular construído pela ignorância ou má-fé midiática e, também, vai-se ética[46].
Por outro lado, as autoridades policiais não possuem a mesma blindagem jurídica que os magistrados, pois devem atuar consoante a lei e não dispõem de uma ampla margem de discricionariedade para decidir conforme o livre convencimento, desde que motivado. Ainda assim, o neoautoritarismo de cunho supostamente reparador dos danos causados à sociedade por indivíduos da “classe dominante” leva a que delegados de polícia façam escutas ilegais e cheguem até mesmo a fraudar provas documentais e científicas para ocultar a verdade e levar à condenação dos “poderosos”[47].
Agora se suponha que exista um caso em que a prisão se afigura ilegal, e o acusado se furte a se apresentar para que não seja recolhido àquela situação carcerária a fim de que possa se defender. Ainda, apenas por hipótese, suponha-se que o acusado também seja inocente e que a acusação configura, por sua vez, o crime de denunciação caluniosa[48], tipo também previsto no Código Penal[49]. Certamente, a inocência, para este caso hipotético, assim como a culpabilidade, só pode restar definitivamente comprovada com o trânsito em julgado; daí a sabedoria constituinte em positivar a presunção de inocência (CF, art. 5º LVII) e a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) como postulados fundamentais, a fim de que um inocente não tenha sua dignidade corroída nas penitenciárias já descritas, até que o processo chegue a seu termo, quando, finalmente, a inocência restará provada.
Contudo, apenas o Supremo Tribunal Federal é capaz de fazer uma leitura mais racional da Constituição Federal. Ali se veem jurisprudências tais:
“AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado na gravidade do delito e consequente periculosidade presumida do réu. Inadmissibilidade. Fuga posterior do réu do distrito da culpa. Fato irrelevante. Precedentes. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido. Precedentes. É ilegal o decreto preventivo que se funda na gravidade do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Ademais, é legítima a fuga do réu para impedir prisão preventiva que considere ilegal, porque não lhe pesa o ônus de se submeter a prisão cuja ilegalidade pretenda contestar”. (STF. HC 93.296/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. 2ª T. DJ 20/04/2010)[50] (grifo do autor).
“Prisão preventiva: garantia da aplicação da lei penal: fuga posterior à decretação: irrelevância. É irrelevante para a manutenção da prisão preventiva a fuga e consequente revelia do paciente, após o decreto da prisão cautelar, cuja validade contesta em juízo. Agride à garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da sua ordem de prisão, houvesse o cidadão de submeter-se previamente à efetivação dela. Precedentes do Supremo Tribunal.” (HC 85.900 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 25/11/2005)[51](sem grifos no original).
Observe-se que, até que o Supremo Tribunal Federal venha a se manifestar, o réu já terá percorrido anos de processo penal, estando preso ou com um mandado de prisão em seu desfavor, portanto, vivendo indignamente e à mercê das arbitrariedades das instâncias inferiores, ciente de que não pode, sob pena da supressão de instância, levar sua causa diretamente à Corte Suprema. Por outro lado, enquanto não se tornam Súmulas Vinculantes, tais jurisprudências parecem nada representar, o que deixa o réu, culpado ou inocente, ao puro arbítrio dos demais tribunais e juízes singulares, como na época de Cesare Beccaria:
Veríamos, desse modo, a sorte de um cidadão mudar de face ao transferir-se para outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria à mercê de um errôneo raciocínio ou da bile de um juiz. Constataríamos que o juiz interpreta apressadamente as leis, segundo as ideias vagas e obscuras que estivessem, no momento, em seu espírito. Veríamos os mesmos delitos punidos diferentemente em épocas diversas, pelo mesmo tribunal, porque, em vez de ouvir a voz constante e invariável das leis, ele se entregaria à instabilidade enganadora das interpretações ocasionais[52].
Portanto, um método tópico-hermenêutico de interpretação e aplicação do direito ao caso concreto apenas pode ser vislumbrado, na atualidade, no Supremo Tribunal Federal, pois suas decisões se fundam em um raciocínio mais elaborado e trabalhoso, e que tem a Constituição, dotada de unidade de significado, como baliza entre a lei e a situação de direito ou de fato, independentemente de as partes pertencerem a esta ou àquela classe social[53].
Nas demais instâncias, em contrapartida, a aplicação concreta das leis ficam assemelhadas a um lance de sorte, porque os julgamentos fincam-se nas paixões ideológicas dos julgadores, na pressão da mídia e na técnica autista do silogismo nu, um autismo jurídico sem comunicação com a Lei Maior e com as demais ciências, o que, no direito penal, acaba por encerrar a narrativa da denúncia e a tese da acusação, firmada pelo parquet em suas alegações finais, em um mundo próprio, alheio à realidade dos fatos.
A falta de sensibilidade política, essa falta da prudência tão querida aos antigos romanos, também leva ao que Zaffaroni denomina de alienação política dos técnicos, pari passu à alienação técnica dos políticos. Leciona o citado jurista que
as mais perigosas combinações têm lugar entre fenômenos de alienação técnica dos políticos com outros de alienação política dos técnicos, pois geram um vazio que permitem dar forma técnica a qualquer discurso político[54].
Consequentemente, a irracionalidade das instâncias ordinárias do Poder Judiciário gera inúmeros dissabores para a vida de milhares de réus inocentes e de seus familiares; os tribunais persistem em se valer das próprias decisões denegatórias destoantes da interpretação constitucional concretizada nas jurisprudências do órgão guardião da Constituição. Atuam sob o rito da tecnicidade repetitiva e irrefletida, a qual chega a ser aceita, pelos desolados réus e seus familiares, como uma necessidade, em decorrência do discurso inegável da sobrecarga de processos.
Assim, dissociadas da Constituição, essas decisões judiciais insistem em manter os acusados naquelas condições carcerárias descritas, ainda em sede cautelar, ao lado de condenados com trânsito em julgado pelos diversos crimes, até mesmo os mais hediondos.
Por outro enfoque, não existe apenas uma criminologia crítica de cunho marxista que busca amparar a classe dominada e punir a ferro e fogo os historicamente privilegiados, sempre que haja para isso oportunidade, através da denúncia recebida. Também é fato que existe a criminalização da pobreza, por meio de teses tais como a das “vidraças quebradas[55]”, segundo a qual se deve punir com máximo rigor o menor dos crimes, com fins de prevenir a prática dos maiores delitos. Nesta seara também milita a criminologia crítica que carrega consigo a perspectiva da reação social[56]. Segundo essa teoria, no mais das vezes, as instâncias de controle selecionam e definem as condutas típicas das “classes dominadas” como sendo condutas criminosas, o que permite que as penitenciárias sejam destinadas especialmente para os menos favorecidos socialmente.
Seja por uma ideologia ou por outra, atuam as instâncias inferiores sob o manto das já apontadas fórmulas retóricas, sem a menor consideração para a existência do erro judicial, porque se amparam na possibilidade de reforma do injusto pronunciamento, que pode se dar através dos recursos do réu.
O erro judicial não se concretiza apenas com o trânsito em julgado da decisão. Ocorre que, para o acusado, ele pode ser decorrente de qualquer decisão injusta. Ademais, erro judiciário, para o réu inocente começa desde o recebimento da denúncia, quiçá com a instauração do inquérito; mas para esse fato, o habeas corpus, por não ser vidente, raramente pode trazer a solução justa e esperada. Então lá vai ele, o réu inocente, responder a todo o processo, e se a acusação for grave, invariavelmente trancafiado nas hediondas penitenciárias brasileiras.
O resultado da limitação humana para a justa cognição, além da cediça irracionalidade presente na sociedade moderna, não poderia ser outro senão as inúmeras injustiças concretas – ainda que transitórias ou temporárias -, ladeadas pelo fato de que a decisão do juiz singular raramente contém a verdade[57]. Daí as lições de CARNELUTTI:
Por pouco que se reflita, parece claro que os erros judiciários, ainda que de grande importância, são muito mais numerosos do que se acredita. Todas as sentenças de absolvição, excluídas aquelas por insuficiência de provas, implicam a existência de um erro judiciário[58].
Esse mesmo processualista também relembra o caso de um italiano diplomata que, após ser acusado de matar a esposa na Tailândia, passou quatorze anos preso preventivamente antes que, com a absolvição pronunciada pela Corte de Apelação de Bolonha, tivesse reconhecida sua inocência[59].
Infelizmente, hoje sempre mais, sob esta multiplicidade ideológica, a função judiciária está “ameaçada pelos opostos perigos da indiferença ou do clamor[60]: indiferença pelos processos pequenos, clamor pelos processos célebres[61]”[62].
Como se viu, o pensamento jurídico moderno, paralelamente às demais ciências, exige uma abordagem multidisciplinar por parte do aplicador do direito e reclama de seus operadores um conhecimento que rompe as barreiras específicas de cada área. O problema é que, na esmagadora maioria das vezes, o conhecimento do operador do direito fica restrito à sua própria área de atuação, e o que é ainda mais grave, a abordagem multidisciplinar não ocorre nem mesmo entre os diversos ramos do Direito. Por tais razões, v.g., juízes criminais analisam o direito ao caso concreto apenas por uma perspectiva penal e processual penal, sem a menor capacidade de fazer uma leitura constitucional desses diplomas, deixando esse encargo para o Supremo Tribunal Federal.
Cumpre observar, portanto, que a Suprema Corte não se mostra um Tribunal Constitucional apenas porque assim se encontra definida no quadrante do Poder Judiciário; mais além disso, é um Tribunal Constitucional porque atua como a única instância capaz de aplicar o direito ao caso concreto segundo uma interpretação conforme à Lei Maior, ao passo que as demais instâncias, em especial os juízos singulares criminais e as autoridades policiais, persistem em negar os direitos fundamentais aos acusados e indiciados, sejam culpados ou inocentes, porque aplicam cegamente a perspectiva repressora dos diplomas penais, como se não tivessem eles nenhum vínculo com a Constituição.
Verdade seja, isto leva à existência de um paleodireito penal, isto é, um direito penal errático desprovido de segurança jurídica[63], como o eram as Ordenações portuguesas aplicadas no Brasil colonial, portanto, bem antes da concepção de existência de uma norma que pudesse ser fundamental, como formulada por Hans Kelsen[64], da qual todas as demais normas tirariam seu fundamento de validade.
Somente a partir da compreensão da superação da racionalidade moderna é que se pode observar o destino do réu no processo penal, deixando de lado as ilusões de segurança jurídica e, principalmente, “abandonando a ingênua crença na “bondade dos bons”[65]”.
A bem da verdade, até que a Suprema Corte se pronuncie, o que se veem nas instâncias ordinárias, não raras vezes, são os cerceamentos de defesa, ainda que de forma indireta, as causas prejulgadas e sentenças singulares que apenas conferem contornos de verdade às teses fantasmagóricas do órgão acusador, o Ministério Público. Não atuando conforme a imparcialidade e o distanciamento que a lei e o direito técnico exigem, juízes singulares e tribunais inferiores somam-se a um órgão acusatório raivoso para expressarem a voz do povo por uma sociedade mais segura, em tempos de banalidade do crime.
Por isso, não se vislumbra um Direito Penal Constitucional nem nos mais longínquos horizontes, o que configura um estado crítico da atualidade, uma época de corrosão e falência final do otimismo constitucionalista; seguramente, vivem-se tempos patológicos[66], de desrespeito aos precedentes jurisprudenciais, de insegurança jurídica consectária das interpretações impressionistas dos juízes singulares, de arbitrariedades e diligências egoístas nas repartições policiais e de abuso de poder retórico dos membros do Ministério Público, tudo em detrimento dos réus que se encontram em situação desfavorável no processo penal que, por si só, já constitui pena.
Ainda que culpados, cada um dos perseguidos em Juízo não são desprovidos de direitos constitucionais, mas é como se o fossem, em nome de chavões jurídicos dissociados da realidade constitucional, tais como “interesse da sociedade”. Assim, o indivíduo só possui garantias enquanto não é acusado de crime, enquanto não há conflito social entre o interesse público e a liberdade individual. A partir do momento em que se instaura inquérito, a culpa é presumida em nítida leitura avessa à constituição, e o peregrino inicia seu calvário desvestido de seus – antes existentes – direitos, porque nas comarcas brasileiras, onde atuam as autoridades do local em que se noticia o crime, um suposto interesse da sociedade e a alegada ordem pública falam mais alto que a Constituição, diploma legal que ganha vida como protagonista da ordem jurídica apenas nos Tribunais Superiores, quando não, exclusivamente no Supremo Tribunal Federal.
As praxes policiais e as instâncias judiciais ordinárias já possuem seus hábitos seculares e seus próprios ritos, dentre os quais não se encontram a leitura atenta da Constituição e a ética que evita os próprios crimes de Estado.
Quanto aos acusados inocentes, estes sim as verdadeiras vítimas, para eles a vida segue. E, por uma questão de adaptação humana, passam a viver um absurdo que, com o passar dos anos, já não se mostra tão absurdo quanto parecia ser; o inocente, vítima do erro judicial, mergulha em uma nova Hiper-realidade[67], em um novo quadro de manifestação da vida, intolerável, embora inegável, no qual a aceitação com o tempo se impõe, para fins de mera sobrevivência.
Em síntese e em especial, nas delegacias de polícia e nas primeiras instâncias, os servidores, às vezes incipientes, por vezes ainda em estágio probatório e sem o necessário tempo histórico de experimentação da própria ideologia dentre as inúmeras existentes, crescentemente se motivam à obtenção de resultados, de que depende a ascensão funcional e o ingresso nas demais entrâncias -inclusive no tribunal- e, nesse processo, acreditando estar servindo aos melhores interesses da justiça, reproduzem as injustiças e os autoritarismos históricos, em que o sistema de poder funciona como verdadeiro álibi para manifestações ideologicamente comprometidas[68].
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[1]Pós-Graduado em Ciências Criminais.
[2] Veja-se o célebre refrão do cantor nacional Cazuza: “Ideologia! Eu quero uma prá viver…”
[3] HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 11.
[4] GAUER, Ruth Maria Chittó. Crítica à Racionalidade: Metamorfoses e Ilusões do Progresso. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 19.
[5] Ibid., p. 21.
[6] Ibid., p. 19.
[7] LOPES JÚNIOR, Aury; SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Breves apontamentos in memoriam a James Goldschmidt e a incompreendida concepção de processo como ‘situação jurídica’. In:GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010, p. 190.
[8] Em especial devido à Era da Informação que se vive, na qual o conhecimento se encontra democraticamente acessível nos aparelhos tecnológicos que erigiram as revolucionárias redes sociais da WEB 2.0. Contrariamente, o poder continua sendo privilégio de apenas alguns.
[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 62.
[10] GAUER, Ruth Maria Chittó, op. cit,. p. 21.
[11] STRICKLAND, Carol. Arte Comentada: da pré-história ao pós-moderno. Trad. Angela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 123.
[12] DN.pt e agências. ‘O Grito’ de Munch bate recorde mundial em leilão. 03 maio 2012. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/artes/interior.aspx. Acesso em: 01 nov. 2012.
[13] Tais como a do movimento ‘Luta pela Justiça’, http://www.luta.pelajustica.nom.br/. Ora, até hoje não se definiu o que é a Justiça, apesar dos tratados de Platão a Kelsen e Perelman sobre o conceito. O lema do movimento, um aforisma de E. Couture, inclusive, incita à negação do Direito, em prol daquilo que se entenda por “Justiça”.
[14] GAUER, Ruth Maria Chittó, op. cit,. p. 90.
[15] CRUZ, Rogério S. Machado. Prisão Cautelar: Dramas, Princípios e Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Júris, 2006, p.1.
[16] Agência CNJ de Notícias. Radiografia do sistema carcerário revela número desproporcional de presos provisórios. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/eventos/encontros-nacionais/2-encontro-nacional-do-judiciario/96-noticias/6105-radiografia-do-sistema-carcerario-revela-numero-desproporcional-de-presos-provisorios. Acesso em: 14. nov. 2012.
[17] AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti. Punição e democracia em busca de novas possibilidades para lidar com o delito e a exclusão social. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 71.
[18] SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 45.
[19] Ibid., p. 45.
[20] CATALDO NETO, Alfredo; FONTES, Angelo Ricardo. Confissões falsas e comportamento autodestrutivo. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 111.
[21] CATALDO NETO, Alfredo; FONTES, Angelo Ricardo. Confissões falsas e comportamento autodestrutivo. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 112.
[22] Até a presente data, janeiro de2014, correndo sob segredo de Justiça.
[23] Os melhores intérpretes já se ocupam das cadeiras no Supremo Tribunal Federal.
[24] Prefácio do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. In: BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
[25] LOPES JÚNIOR, Aury; SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Breves apontamentos in memoriam a James Goldschmidt e a incompreendida concepção de processo como ‘situação jurídica’. In:GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010, p. 190.
[26] VERAS, Ryanna Pala. Nova Criminologia e os crimes do colarinho branco. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 21.
[27] Ibid., p. 22.
[28] GOLDSCMIDT, James. Problemas Generales del Derecho. Buenos Aires: Depalma, 1944, p.19.
[29] Direito como mera interferência do Poder que, atuando pelos processos legitimados, faz dos costumes leis.
[30] CATALDO NETO, Alfredo; FONTES, Angelo Ricardo. Confissões falsas e comportamento autodestrutivo. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 109.
[31] KASSIN, Saul M; MCNALL, Karlyn. Apud CATALDO NETO, Alfredo; FONTES, Angelo Ricardo. Confissões falsas e comportamento autodestrutivo. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 108.
[32] CARNELUTTI, Francisco. As misérias do processo penal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 1. ed. Campinas: Russel Editors, 2008, p. 32.
[33] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 166.
[34] Por exemplo, ver BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 159.
[35] GIACOMOLLI, Nereu José. Exigências e perspectivas do Processo Penal na contemporaneidade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010, p. 292.
[36] SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 48.
[37] SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crime: the Uncut Version. Yale: Yale University, Press, 1983.
[38] VERAS, Ryanna Pala. Nova Criminologia e os crimes do colarinho branco. São Paulo: Martins Fontes, 2010, passim.
[39] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El crimen de Estado como objeto de la Criminología, 2006. Disponível em: http://www.bibliojuridica.org/libros/6/2506/4.pdf. Acesso em 08.01.2011.
[40] ROTHE, Dawn L. State criminality – the crime of all crimes. Plymouth: Lexington Books, 2009.
[41] Com vistas à desconstrução político-jurídica do legado autoritário no Brasil, aborda aspectos como o direito à verdade e à memória, a reparação, a justiça e o fortalecimento das instituições democráticas. Ver NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p. 320-351, jan.-jun. 2009.
[42] SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Crimes do Estado e Justiça de Transição. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 51.
[43] Ibid., p. 52.
[44] Ibid., p. 52.
[45] PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.17.
[46] Prefácio do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. In: BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
[47] Veja-se, por exemplo, o delegado de polícia federal, de índole marxista, eleito ao cargo de deputado federal pelo Partido Comunista, e que foi acusado pelo Ministério Público Federal de violação de sigilo funcional e de fraude processual nas investigações contra o banqueiro Daniel Dantas. Condenado a três anos e onze meses pela Justiça Federal, se os tribunais superiores mantiverem a sentença, perderá o cargo de deputado federal e ficará proibido de exercer o cargo de delegado. In: Folha de São Paulo. Protógenes é condenado a três anos e onze meses de prisão por crimes na Satiagraha. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/828466-protogenes-e-condenado-a-tres-anos-e-onze-meses-de-prisao-por-crimes-na-satiagraha.shtml. Acesso em: 04. nov. 2012.
[48] Por uma perspectiva marxista, o pobre é sempre virtuoso e incapaz de ser o algoz. Contrário disso, por ser sempre uma vítima do “sistema”, necessitaria da força da decisão judicial reparadora dos seus direitos historicamente negados. Assim, v.g., em um suposto crime de estupro, no qual as testemunhas apenas repetem o que a vítima lhes contou, o Juízo ideologizado se apega à palavra da ofendida, ainda que vacilante. A inversão de valores leva o juiz a se convencer de que a mesma suposta vítima que pede milhões de dólares como indenização, antes mesmo do trânsito em julgado, apenas exerce mais um direito constitucional, o de ter o seu dano reparado. A criminologia crítica de modelo marxista, portanto, é cegamente reparadora dos direitos e até dos pseudodireitos da “classe dominada”. Por vezes, aliás, o ódio que a doutrina marxista gera na “classe dominada” contra a “classe dominante” é tão intenso que chega a deflagrar a guerra civil. Na Rússia czarista, pré-Revolução de 1917, o mero fato de possuir um pedaço de terra era motivo suficiente para o fuzilamento.
[49] Art. 339 – Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (anos), e multa.
[50] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 93.296-SP. 2ª T. Relator: Ministro Cezar Peluso. DJ. 20. abr. 2010. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 04 jun. 2011.
[51] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 85.900-MG. 1ª T. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. DJ. 25 nov. 2005. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 04 jun. 2011.
[52] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 23.
[53] O julgamento da AP 470, de que resultaram expressivas condenações a prisões em regime fechado de importantes figuras da política nacional, é um marco histórico que corrobora a maior independência e imparcialidade do Supremo Tribunal Federal.
[54] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En torno de la cuestión penal. Apud BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 9.
[55] WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2001.
[56] VERAS, Ryanna Pala. Nova Criminologia e os crimes do colarinho branco. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 86.
[57] D’URSO, Luíz Flávio Borges (coord). Advocacia e justiça criminal. São Paulo: Oliveira Mendes, 1997, p. 107.
[58] CARNELUTTI, Francisco. As misérias do processo penal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 1. ed. Campinas: Russel Editors, 2008, p. 66.
[59] Ibid., p. 67.
[60] Os Tribunais Estaduais, na quase totalidade das vezes, mantêm a prisão cautelar com base na gravidade do delito, em tese, cometido, com fulcro na sucinta expressão “ordem pública” do art. 312 do CPP. Ou seja, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal apenas ganham relevância quando se revestem de caráter vinculante na Suprema Corte. Definitivamente, Direito Penal Constitucional apenas existe em tese para a parte ré, e a garantia de concretizar-se se dá somente quando o réu tem os meios de chegar, por seu causídico, ao Supremo Tribunal Federal. Nas demais instâncias, vigora um paleodireito penal, isto é, aquele direito penal errático das Ordens Afonsinas, anterior à formulação da norma fundamental kelseniana.
[61] CARNELUTTI, Francisco. As misérias do processo penal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 1. ed. Campinas: Russel Editors, 2008, p. 20.
[62] Caso célebre, digno de nota, foi o de Maria Nicolaevna Tarnowska. Ela se envolveu em um escândalo ressoante ocorrido nos primeiros anos de 1900 e ficou conhecida como a verdadeira “mulher fatal”. Envolvida em traições e homicídios após se casar com um aristocrata, aos tempos da belle époque europeia, o processualista Francesco Carnelutti, à época um jovem advogado, estava presente no seu julgamento e definiu o comportamento de Maria Tarnowska como sendo cobiça porque: “não a paixão, não o ódio, mas só o desejo vil do dinheiro a tinha impelido, causando a morte de um pai de família e levando à perdição um jovem que, até então, tinha sido honesto”. Sem dúvida, motivações financeiras sempre foram fortes motivos para os crimes; há categorias de delitos que apenas se fundam neles, tais como o roubo. Há outras categorias de crimes, como a denunciação caluniosa, em que a motivação financeira pode ser o móvel do crime; nesses casos em que a relação é menos imediata, devido à dificuldade probatória, a Justiça fica muitas vezes mais suscetível ao erro. In: CARNELUTTI, Francisco. As misérias do processo penal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 1. ed. Campinas: Russel Editors, 2008, p. 20.
[63] Para Zaffaroni e Pierangeli, “A dogmática não se concilia com as ideologias que conduzem à insegurança jurídica na aplicação do direito”. In: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 166. O problema, como se viu, é que a dogmática é inseparável das diversas ideologias, e por isso o processo penal acaba por se tornar um jogo de azar em que cada processo distribuído é como uma nova roleta girada que pode parar na ideologia mais branda e conservadora até a mais radical e crítica.
[64] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[65] LOPES JÚNIOR, Aury; SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Breves apontamentos in memoriam a James Goldschmidt e a incompreendida concepção de processo como ‘situação jurídica’. In:GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010, p. 194.
[66] SOUZA, Ricardo Timm de. Metamorfose e Extinção – Sobre Kafka e a patologia do tempo. Caxias do Sul: EDUCS, 2000.
[67] Hiper-realidade: realidade que condensa em si uma pluralidade de sentidos complementares ou contraditórios e uma variedade de vivências; se à realidade se podem eventualmente contrapor a “fantasia” e o “sonho”, a memória e as dimensões de contraste entre um indivíduo e um mundo social, a hiper-realidade não poderia ser concebida sem cada um desses aspectos em sua especificidade e plenitude, em sua vida própria, em um todo que tomará em certos momentos a aparência do mero absurdo. SOUZA, Ricardo Timm de. Kafka: Totalidade, Crise, Ruptura. In: Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 29.
[68] Ver CASARA, Rubens R. R. Interpretação Retrospectiva: Sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
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