Resumo: A pesquisa aqui relatada trata do princípio da reserva do possível, traduzindo-o como uma forma de se limitar a responsabilidade civil do Estado, no que tange especificamente à implementação de políticas públicas responsáveis pela efetivação dos direitos sociais. Além disso, discorre-se sobre o referido princípio e se especula acerca de em que casos e como ele deve ser aplicado, buscando-se traçar, para tanto, balizas interpretativas. Saliente-se, por oportuno, que a presente pesquisa adota o método analítico, pois o instituto do princípio da reserva do possível é abordado de forma fracionada a fim de se promover maior aprofundamento do seu valor axiológico. Por fim, visa-se explorar o assunto em comento com o objetivo de demonstrar que é possível a aplicação da reserva do possível a par da Constituição Federal.
Palavras-chave: direitos sociais, princípio da reserva do possível, responsabilidade do Estado, direitos fundamentais.
Résumé: La recherche présentée ici porte sur le principe de la réserve du possible, en le traduisant comme un moyen de limiter la responsabilité de l'Etat, en particulier en ce qui concerne la mise en œuvre des politiques publiques responsables de la réalisation des droits sociaux. En outre, on discourt sur le principe cité ci-dessus et s'interroge sur les cas dans lesquels et comment il devrait être appliqué, de telle façon que l'on essaie d'en tracer les balises interprétatives. À la fois, il convient de noter que, dans cette étude, on a adopté la méthode d'analyse, car l'institut du principe de la réserve du possible est examiné par étapes, afin de favoriser une meilleure compréhension de sa valeur axiologique. Enfin, on vise à explorer l'objet en discussion, avec l'objectif de démontrer qu'il est possible d'appliquer la réserve du possible de pair avec la Constitution Fédérale.
Mots clés : droits sociaux, principe de la réserve du possible, responsabilité de l'Etat, droits fondamentaux.
Sumário: 1 Introdução; 2 Dos direitos sociais e a responsabilidade estatal; 2.1 Os direitos fundamentais e suas gerações; 2.2 Os direitos sociais na Constituição Federal de 1988; 2.3 A proteção constitucional dos direitos sociais; 2.3.1 Os direitos sociais como cláusula pétrea; 2.3.2 Do princípio da proibição do retrocesso social; 2.4 A responsabilidade estatal na Constituição Federal de 1988; 3 O princípio da reserva do possível; 3.1 Dos princípios e suas interpretações; 3.2 O princípio da reserva do possível no Direito Comparado; 3.3 A razoabilidade e a proporcionalidade na aplicação do princípio da reserva do possível; 3.4 O mínimo existencial e a reserva do possível; 4 Das posições doutrinárias sobre o princípio da reserva do possível; 4.1 Das principais críticas ao princípio da reserva do possível; 4.1.1. A antinomia aparente entre a reserva do possível e a responsabilidade estatal; 4.1.2 O papel do Estado em assegurar o mínimo existencial; 4.2 Da posição favorável à adoção do princípio da reserva do possível e a sua perspectiva; Conclusão
1 INTRODUÇÃO:
Passados vinte e quatro anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, assegurando um rol infindável de direitos sociais cuja observância impôs, sobretudo, ao Estado custos elevados, vem se tornando cada vez mais freqüente a invocação do princípio da reserva do possível como forma de se restringir a responsabilidade estatal.
Sucede que, por se um princípio com uma densidade axiológica muito grande, mostra-se imperativo buscar uma conciliação entre o que se pode esperar do Estado sob o prisma da razoabilidade e a efetividade dos direitos sociais. Tal fato ocorre, pois não se deve banalizar a responsabilidade estatal para albergar casos que fogem ao seu controle, o que inviabilizaria a sua própria existência. Nem, por outro lado, pode admitir imunizar o Estado do cumprimento de seus deveres constitucionais.
De outro norte, não há dúvida de que não só os direitos sociais, mas também todos direitos impõem custos ao erário. Todo direito implica de alguma forma algum custo, menor ou maior conforme o caso. Sobre tal assertiva, Holmes e Sunstein[1] sintetizam: “Rights are costly because remedies are costly (…) Almost every right implies a correlative duty, adn duties are taken seriosly only when dereliction is punished by the public Power drawing on the public purse”[2].
O presente trabalho, entretanto, foca apenas a responsabilidade estatal em relação aos direitos sociais e mais precisamente como se enquadra o princípio da reserva do possível com a necessidade da busca da máxima efetividade dos direitos sociais. Para o deslinde desse dilema, mister se faz tecer breves considerações sobre os direitos sociais e a responsabilidade estatal, o que passa a ser feito logo adiante.
2 DOS DIREITOS SOCIAIS E A RESPONSABILIDADE ESTATAL
Para a compreensão de um princípio, é imperioso o conhecimento dos principais problemas responsáveis pela sua criação e pelo seu desenvolvimento, o que evidencia a finalidade deste capítulo. Frise-se, por oportuno, que o princípio da reserva do possível impõe uma limitação à responsabilização estatal dentro dos critérios de razoabilidade e exequibilidade, motivo pelo qual importa traçar um breve paralelo sobre os direitos sociais e a responsabilidade civil.
Convém esclarecer, ademais, que este capítulo não faz uma análise exauriente e minuciosa dos direitos sociais e muito menos sobre a responsabilidade civil do Estado. O que se procura aqui é meramente situar o leitor, a fim de que, nos capítulos posteriores, possa abordar efetivamente o princípio da reserva do possível com uma melhor compreensão técnica. Imbuído dessa pretensão, passa-se a discorrer sobre os direitos fundamentais e suas gerações.
2.1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS GERAÇÕES.
Gilmar Ferreira Mendes (2004) e George Marmelstein (2009) ensinam que os direitos fundamentais seriam aqueles que salvaguardam a dignidade humana. Em outras palavras, tais direitos são responsáveis por resguardar um patamar mínimo civilizatório de dignidade, fazendo com que o ser humano tenha direitos mínimos a serem protegidos, distinguindo-o dos demais seres vivos.
Nesse diapasão, Norberto Bobbio (2004) aborda a questão dos direitos fundamentais, distinguindo-o em três categorias diferentes. A primeira categoria ou geração é composta pelos direitos civis e políticos que implicam um dever de abstenção por parte do ente estatal, motivo pelo qual são também conhecidos como direitos negativos.
A segunda geração, por seu turno, ao contrário da primeira, revela-se nos direitos culturais, sociais e econômicos. Se, na perspectiva histórica, a primeira geração se destacou pelo fato de que o Estado deveria se abster de determinadas práticas; na segunda geração, exige-se um papel ativo do Estado, razão pela qual ela é denominada de direitos positivos dentro do rol dos direitos fundamentais.
Já, na terceira geração, há um nítido caráter transcendente e que se sobressai no sentido de que determinados direitos não pertencem apenas a um determinado indivíduo, mas também a grupos ou até mesmo à coletividade. Imbuído desse espírito, emergiram-se os direitos coletivo, individual homogêneo e difuso. Há autores que sustentam a existência de até uma quarta geração e que se referiria ao direito à informática, porém, não há muita aceitação doutrinária.
Ademais, não se pode olvidar que os direitos fundamentais se caracterizam por serem históricos, ou seja, nasceram pela história e se acumulam nesse interregno; não são alternativos. As gerações apenas somam direitos, de sorte que todos os indivíduos, independentemente de sexo, religião, origem ou condição social, fazem jus a eles, em tese.
Obviamente, apesar de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2005) muito bem destacarem que os direitos fundamentais são universais, tal assertiva deve ser vista com ressalvas. Com efeito, tais direitos são universais no sentido de que todos os seres humanos são titulares, entretanto, a releitura que cada grupo social faz deles imprime determinado efeito que pode diferir de grupo a grupo, de País a País.
Como o presente estudo busca abordar o princípio da reserva do possível e em razão de este concernir in casu à limitação da responsabilidade estatal quanto aos direitos de segunda geração, é oportuno descrever como a atual dinâmica constitucional a inseriu dentro do texto constitucional, conforme se pode verificar logo abaixo.
2.2 OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
Analisando-se os textos das Constituições anteriores, percebe-se um grande avanço dentro do constitucionalismo brasileiro e que foi inaugurado com a Constituição Federal de 1988, refletindo-se por meio da inserção de um rol meramente exemplificativo de direitos e garantias fundamentais dentro do texto constitucional. Previu o Constituinte Originário o Título II, sob a rubrica “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
Pois bem. O fato foi que o Constituinte Originário também inseriu dentro dos direitos fundamentais os direitos sociais, os de segunda geração. Exemplificando, pode-se citar o Art. 6º, caput, da CF, estabelecendo como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social. Frise-se que a norma é suficientemente clara em prever a existência de tais direitos e seus titulares, impondo-se, portanto, ao Estado um dever de assegurá-los.
O Des. Fernando Luiz Ximenes Rocha[3] (1999) muito bem lembra que a CF/88 inovou ao ampliar o rol dos direitos e das garantias fundamentais para nele inserir o catálogo referente aos direitos sociais, os quais, nas Constituições anteriores se encontravam dispersos nas normas programáticas dentro da órbita da ordem econômica e social. Ocorre que, dentro da evolução do constitucionalismo, desenvolveu-se a idéia do que veio a se denominar de normas programáticas, dentro das quais muitos direitos sociais nelas se encaixam. Estas, segundo os ensinamentos de Pontes de Miranda, seriam:
“aquelas normas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses ditames. que são programas dados à sua função”[4].
Em outras palavras, as normas programáticas seriam normas cujo conteúdo funcionaria como programa a ser perseguido pelo Estado, emergindo-se daí uma alta carga de abstrativização, segundo a doutrina mais tradicional sobre o assunto, colocando-se em xeque, inclusive, o caráter normativo dessas espécies e, por conseguinte, a sua efetividade. Importante notar que, apesar de as normas programáticas estabelecerem nortes a serem perseguidos, não se pode entendê-las como se fossem despidas de sua normatividade, porquanto se deve atentar em tal caso o papel da força normativa da Constituição e que não pode ser olvidado em momento nenhum.
De fato, a força normativa da constituição possui a pretensão de maximizar a eficácia das normas constitucionais e tornar mais amiúde a efetivação, bem como a aplicação delas. Enfim, trata-se de tornar a Constituição escrita uma realidade, ou melhor, fazer com que a Constituição real corresponda à Constituição jurídica, conforme os ensinamentos de Konrad Hesse (2009).
Aliás, o fato de determinada norma ser classificada como programática não pode servir para eximir o Estado de suas responsabilidades, muito menos no que concerne aos direitos sociais. Nessa esteira, convém esclarecer que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa inconstitucional inconseqüente”[5]. Assim sendo, a força normativa da Constituição espalha determinada eficácia progressiva às normas programáticas, in verbis:
“[…] Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas como as outras que exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais.”[6].
Insta considerar que a própria Constituição Federal, no seu Art. 5º, § 1º, estabelece que as normas definidoras de direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata. Esta, então, é a regra, qual seja, a de aplicabilidade imediata, podendo existir exceções a ela dependendo da situação e da redação que se imprimir ao dispositivo legal a ser confrontado. Sobre o dispositivo legal mencionado, Ingo Sarlet ensina:
“[…] há como sustentar a aplicabilidade imediata (por força do art. 5, § 1º, de nossa Lei Fundamental) de todos os direitos fundamentais constantes do Catálogo (art.5º a 17), bem como dos localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. Aliás, a extensão do regime material da aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não encontra qualquer óbice no texto constitucional, harmonizando, para além disso, com a concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais, consagrada, entre nós, no art. 5º, § 2º, da CF […].
Ademais, mister tecer algumas considerações sobre o alcance e o significado do multicitado dispositivo para os direitos fundamentais. Ora, é iniludível que uma vez consagrada no texto constitucional a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais tem-se que o Estado, representado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, deve procurar todas as formas de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos.”[7]
Ademais, obviamente, que nem todas as normas de direitos sociais possuem eficácia imediata, como pode dar a entender o Art. 5º, § 1º, da CF. A regra é que as normas em que se consubstanciem direitos fundamentais tenham eficácia imediata, mas nada impede que dependam de outros instrumentos para produzir seus efeitos oportunamente ou que elas tenham de ser efetivadas paulatinamente. Nesse sentido, Marcos André Couto Santos leciona:
“[…] há, entretanto, outros direitos sociais como o direito ao lazer que são carentes de uma complementação sintática, não passando de meras intenções do constituinte para implementação no futuro. São as chamadas normas programas ou normas constitucionais programáticas”[8].
Apesar da complexidade que a discussão dos direitos sociais enseja, o fato indiscutível foi que a Constituição Federal de 1988 trouxe expressamente no seu âmago direitos sociais, os quais devem ser observados pelo Estado. Nessa esteira, não há como despojar esses direitos de sua eficácia normativa, visto que, a vingar a premissa contrária, equivaleria a fulminar os direitos mais essenciais e caros à dignidade humana, como, por exemplo, os direitos à saúde e à moradia.
Insta ainda não olvidar que, segundo a classificação de José Afonso da Silva (2003), mesmo nas normas constitucionais limitada há uma eficácia negativa normativa que não pode ser menosprezada. Tal eficácia impede o legislador de retirar a normatividade de tais direitos ao seu talante e se dirige, sobretudo, ao Estado. Sobre o assunto Victor Abramovich e Courtis Christian resumem:
“En sentido simétrico, los derechos sociales tampoco se agotan em obligaciones positivas: al igual que em el caso de los derechos civiles, cuando los titulares hayan ya accedido al bien que constituye el objeto de esos derechos – salud, vivenda, educación, sguridad social – el Estado tiene la obligación de abstenerse de realizar conductas que lo afecten”[9].
Destarte, chega-se à ilação de que, quanto aos efeitos práticos, a interpretação de que determinada norma constitucional possui eficácia limitada, programática no âmbito dos direitos sociais deve ser feita cum grano sallis. De fato, ainda que padeça de utilidade positiva incondicionada determinada norma constitucional em virtude de depender de normatização infraconstitucional ou por impor programas norteadores, irradia esta imediatamente um efeito negativo que submete o ente estatal de forma plena, consoante o excerto acima colacionado.
Feita, então, essa breve descrição dos direitos fundamentais, sobretudo, no que concerne aos direitos sociais, imperioso tecer sucintamente os principais pontos da responsabilidade civil e extracontratual do Estado para fazer análises ulteriores sobre o princípio da reserva do possível.
2.3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS
Como explanado no tópico anterior, os direitos sociais impõem ao Estado um dever muito penoso e custoso na maioria das vezes. Então, seria o caso de se questionar do porquê de não se abolir os direitos sociais do nosso sistema jurídico.
A proposta aparentemente pode ser muito tentadora, porém, no Brasil, qualquer tentativa de se extinguir ou diminuir a amplitude das normas relativas aos direitos sociais está fadada a ser inconstitucional, porquanto há uma defesa orgânica da própria Constituição realizada por meio da cláusula pétrea prevista no Art. 60, §4º, IV, da CF.
Além disso, cabe observar que é uma tendência mundial o reconhecimento do princípio da proibição do retrocesso social, o que é plenamente aplicável no caso dos direitos sociais. A proibição do retrocesso social serve assim, portanto, para limitar a atividade legislativa frente aos direitos sociais já assegurados, salvaguardando-se a dignidade humana.
Diante de tal constatação, impõe-se a realização de breves apontamentos ao leitor no sentido de como funciona a defesa dos direitos sociais implementada como um sistema de cláusula pétrea, bem como a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso social ao caso em questão.
2.3.1. Os direitos sociais como cláusula pétrea
Cláusulas pétreas, segundo a lição de Lammêgo Bulos[10], são cláusulas das quais emanam uma supereficácia, a qual consiste numa eficácia absoluta, por conter uma força paralisante total de toda legislação que vier de encontro, quer implícita, quer explicitamente. Seria, em resumo, um núcleo limitador da atividade legiferante em razão da importância de tais matérias.
Nessa esteira, as cláusulas pétreas da CF/88 encontram-se inseridas materialmente nos incisos do Art. 60, §4º, da CF. São apenas quatro, mas com uma densidade alta, de sorte que ao legislador não é dado diminuir a amplitude ou simplesmente abolir os direitos ali previstos. Trata-se de um núcleo rígido, o qual, gize-se, não impede que o legislador amplie a extensão e a amplitude daquelas normas, o que se veda é legislar-se de encontro ao referido núcleo basilar.
Para o presente estudo, foca-se justamente a questão do Art. 60, §4º, IV, da CF que dispõe como uma das cláusulas pétreas explícitas “os direitos e as garantias individuais”. A questão que merece debate é no sentido de se seria admissível ampliar a amplitude do referido mandamento constitucional para albergar os direitos sociais.
Ora, a interpretação mais consentânea a respeito dispõe que não é possível abolir ou diminuir a amplitude dos direitos sociais. Apesar de o Art. 60, §4º, IV da CF referir-se aos direitos individuais, tal proteção deve ser estendida também aos direitos sociais. Paulo Bonavides leciona que:
“[…] em obediência aos princípios fundamentais que emergem do Título II da Lei Maior, faz-se mister, em boa doutrina, interpretar a garantia dos direitos sociais como cláusula pétrea e matéria que requer, ao mesmo passo, um entendimento adequado dos direitos e garantias individuais do Art. 60 […]”[11].
Fundamenta ainda o insigne jurista que tanto lei ordinária quanto emenda constitucional que tentem a afetar a essência protetora dos direitos sociais estaria eivada pelo vício de inconstitucionalidade, uma vez que há uma linha ética responsável ser o elo entre os direitos sociais e o princípio da dignidade da pessoa humana. Não há como dissociar, portanto, os direitos sociais da própria noção da dignidade humana.
Evidente, portanto, que o Art. 60, §4º, IV, da CF deve ser interpretado no sentido de albergar também os direitos sociais. Poderia, então, diante dessa proteção ampliativa, o legislador ficar tentado para promover a alteração literal do Art. 60, § 4º, IV, da CF, porém, se vier a fazê-lo para diminuir a amplitude ou tentar abolir a blindagem constitucional conferida aos direitos individuais (aí incluído também os direitos sociais), haverá uma inconstitucionalidade em tal emenda.
É sabido que constitui cláusula pétrea não só a redação do Art. 60, § 4º, mas também as cláusulas pétreas implícitas ao sistema constitucional, responsável por manter a higidez da imutabilidade de tais normas. Nessa esteira, há uma cláusula pétrea implícita que impossibilita que se legisle de modo a reduzir a amplitude ou até mesmo abolir os limites estipulados no §4º, do Art. 60. Admitir-se posição contrária equivaleria permitir que o legislador pudesse legislar livremente, inclusive, desvinculando-se a sua atividade das balizas constitucionais, como o Art. 60, §4º, da CF.
Se se permitisse ainda ao legislador simplesmente legislar sem uma proteção implícita das cláusulas pétreas explícitas, poderia ocorrer a extinção destas, uma vez que formalmente seria extremamente conveniente derrubar as balizar à atividade legiferente por meio da própria atividade legiferante. Seria uma incongruência lógica ao próprio sistema constitucional e que comprometeria a intenção do Constituinte Originário para se resguardar um núcleo essencial rígido.
Feita, então, a consideração de que o sistema constitucional blindou os direitos sociais como cláusulas pétreas, imperioso também discorrer sobre o princípio da proibição do retrocesso social, o qual é plenamente aplicável na proteção aos direitos sociais em razão da própria historicidade deles.
2.3.2. Do princípio da proibição do retrocesso social.
O princípio da proibição do retrocesso social, como o próprio nome sugere, impede que o legislador exerça o seu mister de forma a eximir o Estado de seus deveres. Assim, portanto, parte-se da premissa da conquista de um patamar mínimo social e que não pode ser suprimido ou tolhido pelo ao alvedrio do legislador. Não remanesce qualquer dúvida de que se trata de um princípio que limita o exercício legiferante; contudo, visa assegurar uma segurança jurídica para os direitos até hoje conquistados. A respeito do assunto, Canotilho averbera:
“O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança social’, lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios se traduzam na prática numa ‘anulação, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial”[12].
Evidente, portanto, que o princípio do retrocesso social estabelece uma nítida influência quanto ao fato de que o legislador não pode legislar de forma absoluta com vistas a se eximir no implemento, ainda que paulatino, dos direitos sociais. Tal ideia, gize-se, consolida a própria segurança jurídica de um patamar mínimo a que a ordem constitucional deve proteger. Imbuído dessa premissa, mostra-se oportuno delinear alguns pontos acerca da responsabilidade estatal.
2.4 A RESPONSABILIDADE ESTATAL COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988.
A diretriz da responsabilidade civil estatal atualmente gravita em torno do Art. 37, §6º, da CF, de sorte que vem se consagrando a responsabilidade objetiva desde a Constituição Federal de 1946, das pessoas jurídicas de direito público, bem como das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Nessa esteira, Márcio Fernando Elias Rosa leciona que:
“[…] Tem-se, pois, a responsabilidade civil do Estado: a) por atos e fatos administrativos praticados por qualquer das pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Territórios, autarquias e a maioria das fundações) e por pessoas jurídicas de direito privado (empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações regidas pelo direito civil) que prestem serviços públicos em regime de concessão ou permissão (concessionários, permissionários); b) nos casos em que haja nexo de causalidade entre o ato ou fato administrativo executado e o dano dele resultante; c) quando o dano tenha sido praticado por agente público (em sentido amplo), no exercício de suas funções”[13].
Não se pode olvidar que a responsabilidade objetiva adotada no dispositivo constitucional mencionado alhures representou um grande passo no campo da responsabilidade civil estatal, uma vez que é prescindível verificar a ocorrência de culpa lato sensu do ente estatal. O que terá que estar presente é a conduta responsável por causar o prejuízo em discussão, o nexo causal entre a conduta e o resultado e o prejuízo sofrido, seja ele moral ou material.
Ademais, há uma controvérsia em torno da questão de se, em relação às omissões, o Estado poderia ou não ser responsabilizado objetivamente. Celso Antônio Bandeira de Melo (1989) defende que não, pois nesses casos o Estado não seria o causador ativo do dano; entretanto, o Supremo Tribunal Federal já vem dirimindo a questão pela aplicabilidade da teoria da responsabilidade objetiva em alguns casos, in verbis:
“RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – ELEMENTOS ESTRUTURAIS – PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – INFECÇÃO POR CITOMEGALOVÍRUS – FATO DANOSO PARA O OFENDIDO (MENOR IMPÚBERE) RESULTANTE DA EXPOSIÇÃO DE SUA MÃE, QUANDO GESTANTE, A AGENTES INFECCIOSOS, POR EFEITO DO DESEMPENHO, POR ELA, DE ATIVIDADES DESENVOLVIDAS EM HOSPITAL PÚBLICO, A SERVIÇO DA ADMINISTRAÇÃO ESTATAL – PRESTAÇÃO DEFICIENTE, PELO DISTRITO FEDERAL, DE ACOMPANHAMENTO PRÉ-NATAL – PARTO TARDIO – SÍNDROME DE WEST – DANOS MORAIS E MATERIAIS – RESSARCIBILIDADE – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o ‘eventus damni’ e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes. A omissão do Poder Público, quando lesiva aos direitos de qualquer pessoa, induz à responsabilidade civil objetiva do Estado, desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam a obrigação de indenizar os prejuízos que os seus agentes, nessa condição, hajam causado a terceiros.”[14]
Seja como for, convém esclarecer que a responsabilidade objetiva, gize,se, apenas faz com que o prejudicado não tenha que comprovar em juízo a culpa lato sensu da Administração Pública. Assim sendo, continuará o requerente, que pretende ver o seu prejuízo devidamente ressarcido por meio de uma sentença judicial, com o ônus de comprovar o fato constitutivo de seu direito (Art. 333, I, do CPC), ou seja, os requisitos da responsabilidade civil, exceto a culpa.
Feita resumida e pontualmente as considerações sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado, mostra-se oportuno abordá-la em face do dever estatal de se buscar o cumprimento dos direitos sociais, de segunda geração, conforme estipulado constitucionalmente e descrito alhures.
2.5A RESPONSABILIDADE DO ESTADO EM RELAÇÃO AOS DIREITOS SOCIAIS.
Pois bem. Se a própria CF assegurou um rol meramente exemplificativo de direitos fundamentais, de outro lado, por uma conseqüência lógica, impôs-se um dever ao Estado, seja para se abster e propiciar ao particular a realização de seu direito, seja para se manifestar de forma ativa para assegurar ao mesmo particular direitos que lhes são caros e que foram determinados pela própria CF.
Nesse sentido, oportuno destacar as eficácias dos direitos fundamentais, conforme ensina Pedro Lenza (2004). De um lado, há a constitucionalização da própria relação jurídica estabelecida entre os particulares, cuja autonomia da vontade jamais poderá se sobrepor aos ditames constitucionais, o que se destaca como a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Por exemplo, a expressão da autonomia da vontade nos contratos civis que, limitados pela dimensão horizontal dos direitos fundamentais, proíbem à escravização da parte inadimplente.
Nessa mesma esteira, mostra-se oportuno também não se esquecer da eficácia vertical dos direitos fundamentais, o que se aventa em relação aos particulares e o Estado. Com efeito, os direitos fundamentais não só atingem a relação jurídica estabelecida entre os particulares, mas também a relação estabelecida entre indivíduos e Estado. Assim sendo, observa-se isso, por exemplo, na proibição à pena de morte, como regra, ou de caráter perpétuo no direito interno, conforme preceitua o Art. 5º, XLVII, a, b.
Não se pode olvidar que, quanto aos direitos sociais, a Constituição Federal foi incisiva ao prever, no bojo do Art. 6º, alguns deles, sendo que no Título VIII, ao se abordar a ordem social, o Constituinte os estabeleceu expressamente como deveres do Estado, tal como em relação ao direito à saúde, à educação e à cultura, segundo o que preveem os Art. 196, 205 e 215 da CF.
Insta considerar que “dever”, segundo a lição de José Oliveira Netto, é: ”Tudo aquilo que a lei ou a convenção, positiva ou negativamente, exige, correspondente a um direito, também, da determinação da vontade, imposta pelo direito, pela lei, pela razão ou pela moral”[15]. Observa-se, então, que a um dever contrapõe-se um direito; no presente caso, a um dever do Estado descerra-se um direito fundamental, seja de esfera individual ou social.
Ora, por um lado, é impossível se defender a concepção da irresponsabilidade do Estado em sua plenitude, havendo um dever estabelecido a ele. É latente a presença dos requisitos da responsabilidade civil em tal caso, quais sejam, a conduta, o prejuízo e o nexo causal. A conduta plasmada na própria inércia do ente estatal, transcorrido um interregno razoável de tempo para a concretude do seu dever, enquanto o prejuízo e o nexo causal são evidentes.
Ocorre que também, em outro norte, há que se observar que os direitos sociais não são finitos em sua extensão. Por mais que o Estado seja prestativo e empenhado em cumprir os direitos sociais, não os esgotará pela infinitude extensiva deles. Para melhor compreensão, oportuno mencionar o direito à moradia. De fato, o Estado pode empreender ações para diminuir o índice estatístico de moradores de rua, mas não conseguirá jamais zerá-lo.
Tal fato ocorre por uma questão complexa, mas que pode ser traduzida na fórmula segundo a qual se os direitos sociais necessitam de uma eterna e ampla consecução, por outro lado o Estado se assenta em limites de recursos e de ações, que precisam ser finitos até mesmo para se resguardar a transparência na condução de suas atividades. Isso, sem dúvida nenhuma, tem de ser considerado para se responsabilizar o Estado.
De um lado, então, há os direitos sociais, que conservam em seu bojo um poder axiológico grande e até mesmo que impõem outros deveres coligados a eles e infinitos em sua extensão; em outro campo, há a limitação do ente estatal, seja política ou economicamente. No meio, resta ao intérprete sopesar tal fato para se averiguar se em um determinado caso o Estado poderá ou não ser responsabilizado, bem como a extensão dessa responsabilidade, o que não raro é muito tênue.
Ademais, oportuno salientar, no que tange à consecução dos direitos sociais, a legitimidade do Judiciário para se imiscuir na aplicação de recursos financeiros mediatamente. Com efeito, ventila-se a falta de legitimidade política do Judiciário em determinar a aplicação dos recursos financeiros, quanto à efetivação dos direitos sociais, por não ser formado democraticamente e pelo fato de que a atividade administrativa cabe, a princípio, ao Executivo.
Não assiste razão a tal posição, eis que, do contrário, haveria o primado da irresponsabilidade do Estado em detrimento da efetividade dos direitos sociais. É latente que o Judiciário, como um dos Poderes da República, tem sim legitimidade para determinar o cumprimento de atos que impliquem na consecução dos direitos sociais. Obviamente, em tal caso não se atua imediatamente na alocação de recursos, o que seria ilegítimo e inconstitucional.
O que se observa em outro prisma não é simplesmente o fato de o Judiciário se imiscuir no Executivo ao determinar, por meio de decisões judiciais, a prática de atos que impliquem em onerar o Poder Público. Aqui, gize-se, o foco não é a ingerência quanto à aplicação de recursos financeiros; isso é tratado mediatamente, é um efeito, porquanto o assunto principal é o cumprimento dos direitos sociais. Nessa esteira, colha-se, por oportuno, o seguinte julgado:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA – EDUCAÇÃO INFANTIL – DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) – COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO – DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – RECURSO IMPROVIDO. – A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – (…)- Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina”[16].
É evidente que se a própria CF delineou alguns dos direitos sociais como dever do Estado, obviamente tem legitimidade o Judiciário em apreciar as políticas públicas existentes sobre o assunto de forma excepcional. Não se trata de se imiscuir nos assuntos do Executivo em relação à aprovação e à aplicação de recursos públicos ao arrepio do plano orçamentário. O que se foca no decisum é a efetividade dos direitos sociais e, por conseguinte, em tais casos, o Judiciário pode e deve intervir.
Nesse diapasão, oportuno lembrar que Mauro Cappelleti muito bem delineou a possibilidade da ingerência e a legitimidade do Judiciário na proteção dos direitos sociais face à inércia do Estado, conforme se observa no trecho abaixo:
“[…] Na proteção de tais direitos, o papel do juiz não pode, absolutamente, limitar-se a decidir de maneira estática o que é agora legítimo ou ilegítimo, justo ou injusto; ao contrário, constitui freqüente responsabilidade do juiz decidir se determinada atividade estatal, mesmo quando largamente discricional – ou a inércia, ou em geral dado comportamento dos órgãos públicos -, está alinhada com os programas prescritos, frequentemente de maneira um tanto vaga, pela legislação social e pelos direitos sociais”[17].
Demonstrado, portanto, a legitimidade do Judiciário em se imiscuir nos casos de cumprimento dos direitos sociais e demonstrado o embate valorativo existente, imperioso depurar o princípio da reserva do possível, que, por sua vez, procura limitar a responsabilidade estatal na consecução dos direitos sociais, segundo o parâmetro da razoabilidade e da proporcionalidade.
3 O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL.
No presente capítulo, adentra-se ao tema que é objeto da presente trabalho, que é o princípio da reserva do possível e suas peculiaridades formais. Para tanto, analisa-se o instituto ora tratado em relação ao Direito Comparado de forma pontual. Além disso, importante mencionar que, neste capítulo, trata-se do instituto em comento em consonância com o princípio da razoabilidade, para, posteriormente, abordá-lo em relação à garantia ao mínimo existencial.
Antes de tratar efetivamente do princípio mencionado alhures, porém, é imperioso abordar as questões introdutórias referentes aos princípios em geral, bem como a dificuldade em interpretá-los e buscar a sua efetiva extensão para que o leitor tenha uma melhor compreensão sobre o tema, o que é feito no tópico adiante.
3.1 DOS PRINCÍPIOS E SUAS INTERPRETAÇÕES
Sobre os princípios em geral, a lição de Celso Antônio Bandeira de Melo é a que mais se destaca, conforme a transcrição abaixo:
“[…] princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome de sistema jurídico positivo”[18].
Princípio, portanto, seria o pilar, algo abstrato em relação à sua real extensão, dentro do ordenamento jurídico. Ocorre que daí surge a questão relativa à diferenciação das regras de direito dos princípios. Pela definição extraída alhures, não é difícil prever que os princípios, em razão de sua função nuclear, preponderam sobre as regras de direito. Assim sendo, mostra-se oportuno e primordial buscar diferenciar o princípio da regra, o que pode ser feito segundo a Teoria desenvolvida por Robert Alexy (2008).
Segundo o autor mencionado no parágrafo acima, os princípios seriam mandamentos de otimização, sendo que, quanto à normatividade, possuiriam o mesmo caráter normativo das regras. Parte-se, portanto, da premissa de que tanto os princípios quanto as regras são normas para todos os efeitos. O que irá diferenciá-los é que as regras são normas que são ou não cumpridas em uma perspectiva mais restritiva; enquanto isso, os princípios estipulam metas que preveem que determinadas ações sejam levadas a efeito, maximizando os resultados, segundo os critérios da exequibilidade.
Outra questão que merece abordagem no presente estudo se refere à interpretação principiológica. Não raro haverá situações de conflito entre os princípios ou entre um princípio e as regras. Pois bem, no último caso, não há muitos problemas, haja vista que, em razão de tudo o que foi escrito, não há dúvida de que deverão preponderar os princípios, logicamente, dentro de uma interpretação factível que lhes possa ser atribuída. O grande problema certamente reside no caso de se identificar o conflito de princípios.
Constatado o conflito principiológico, não há nenhuma fórmula doutrinária ou jurisprudencial para dirimir a questão, caberá, então, ao julgador tomar a decisão segundo as peculiaridades que o caso expuser. Vale salientar, nesse diapasão, que o que se impõe é se fazer o uso do princípio da concordância prática ou da harmonização cuja valoração para o deslinde do problema caberá ao magistrado, in verbis:
“O princípio da concordância prática é aquele que, diante das situações de conflito ou concorrência, preconiza em confronto, sem que a aplicação de um imprima a supressão de outro. Diz-se, no caso, que deve haver cedência recíproca, de parte a parte, para que se encontre um ponto de convivência entre esses direitos.”[19]
Ademais, no campo da interpretação principiológica, deve-se ter muita cautela nas ponderações feitas, sobretudo, quando ausentes regras que as assentem. Eis que os princípios, por possuírem uma alta densidade de abstração, podem dar azo a interpretações que, olhadas mais de perto, mostram-se discrepantes à Constituição Federal, daí a razão pela qual remanescer a interpretação sistemática, como bem lembram Carlos Maximiliano (1993) e Rui Limongi França (1995).
Destaque-se, por oportuno, que os princípios devem ser lidos dentro da sistemática da própria Constituição como um todo. Eles não se encerram em si próprios como unidades independentes. Tecido o texto constitucional, tornam-se interdependentes e formam, nesse contexto, uma amálgama principiológica, responsável pela coerência, coesão e unidade que blindam e garantem a higidez e coerência do próprio texto constitucional.
O grande problema que não se menosprezado e que merece especial destaque é a mania de se interpretar um princípio de forma a lhe dar configurações abusivas, o que não encontra guarida, gize-se, nem na própria Constituição. Um exemplo encontra-se na esfera penal em relação ao princípio da insignificância ou bagatela. Não é difícil encontrar operadores do direito que defendam que o princípio mencionado deve ser aplicado segundo o valor do objeto subtraído em função da condição econômica da vítima, erigindo-se outras interpretações a partir de premissas inverossímeis, conforme se observa abaixo:
“(…)furtar um alfinete não tem significação jurídico-penal (…)O que eles pretendem é transformar essa bagatela em princípio, indo do alfinete à agulha, desta ao dedal, deste à linha, da linha à tesoura, para finalmente abarcar toda a caixa de costura e, com isso, provar que o furto não é condenável”[20] .
Veja-se que, no referido exemplo, o problema não se encontra no princípio da bagatela, mas sim nas interpretações que buscam estendê-lo de acordo com a conveniência. O mesmo se aplica ao princípio da reserva do possível. Por se tratar de um princípio, obviamente, tem uma densidade de abstrativização grande, entretanto, deve ser interpretado sistematicamente com a Constituição e com os demais princípios que gravitam na ordem jurídica.
Tecido, portanto, as considerações sobre os princípios, entre os quais, gize-se, encaixa-se o princípio da reserva do possível, bem como descrita a necessidade de se interpretá-los sistematicamente, mostra-se oportuno discutir as raízes do objeto de estudo do presente trabalho.
3.2 O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL NO DIREITO COMPARADO.
A origem do princípio da reserva do possível, conforme ensinamento de Andreas Krell (2002), corporificou-se na Alemanha, mais especificamente em um caso julgado na Corte Constitucional (BverfGE n.º 33, S. 333), na qual determinado indivíduo reivindicava uma vaga no ensino superior público sem passar pelo processo seletivo. Aduzia o requerente, para tanto, que a Lei Federal alemã lhe garantia liberdade na escolha de ofício e profissão, razão pela qual não podia o Estado lhe restringir tal direito, fazendo-o passar por um processo seletivo.
A Corte Constitucional desenvolveu, para o julgamento daquele caso, “Des Vorbehalt des Möglechen”, que é o próprio princípio da reserva do possível no Brasil. Decidiu a Corte que a implementação de determinados serviços públicos se encontra condicionada à própria disponibilidade de recursos e de meios do próprio Estado, motivo pelo qual não se mostra crível exigir prestações inexeqüíveis e que discrepam da razoabilidade, o que fez com a pretensão do requerente fosse rechaçada.
Aliás, naquele julgamento, a reserva do possível foi inserida como um limite ao direito à participação política do indivíduo, conforme ensina Céline Fercot[21]: “This reserve is the main limit fixed to the ‘rights to political participation’ […], that is to what the individual has the right to ‘reasonably’ expected to the collectivity”[22]. Entenda-se aqui a limitação à participação política no que tange ao cumprimento dos direitos sociais em função da própria escassez orgânica e financeira estatal, bem como coletividade no sentido de Estado.
Em outro norte, constata-se, ademais, que o princípio em comento foi importado do próprio Direito Alemão e, como é cediço, em razão da grande influência dos juristas alemães na formação dos juristas brasileiros, logo, tendeu-se pela adoção e pela aplicação do referido princípio. Não se pode, contudo, deduzir que os impactos da decisão da Corte Alemã recaiu só no Brasil; foi-se muito além disso.
O Conselho de Estado francês, por exemplo, desenvolveu mais ainda a aplicação do princípio mencionado alhures, sendo que vários doutrinadores daquele País escreveram sobre o tema. Didier Ribes[23], ao abordar os limites do poder normativo dos juízes constitucionais, reafirma o papel do princípio da reserva do possível, descrevendo a sua aplicação na África do Sul, na Espanha e no Canadá, alvitrando a sua observância caso a caso:
“Dans chaque affaire, le juge constitutionnel se doit de confronter les implications de la protection des normes constitution- nelles avec les contraintes financières et économiques. Alors sa décision permet d'établir le prix de la constitutionnalité”[24].
Destarte, é evidente a difusão do referido princípio pelo mundo, sempre mantendo, contudo, a coerência com o princípio da razoabilidade em decorrência da limitação material estatal, razão pela qual mister se faz descrever o impacto do princípio da razoabilidade e a sua correlação com o sentido da reserva do possível.
3.3 A ADOÇÃO DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL NO DIREITO NACIONAL E A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
Conforme explanado no tópico anterior, o princípio da reserva do possível foi assimilado pelo Direito brasileiro. Responsável por limitar a responsabilidade estatal conforme a possibilidade material do ente político, serviu para justificar o atraso do Estado no cumprimento de alguns de seus misteres constitucionais, sobretudo, aqueles concernentes aos direitos sociais, cujo implemento, gize-se, encontra-se em um processo de incipiência em nosso País.
Insta considerar que o princípio da reserva do possível representa uma releitura da responsabilidade estatal, visto que leva em consideração a limitação material, orçamentária e orgânica do próprio Estado. Com efeito, os direitos sociais são extensos e se perpetuam no tempo e espaço, sendo implementados por meio de políticas públicas paulatinas; enquanto isso, o Estado é pautado pela lei, pela legalidade, inclusive, o seu orçamento e a disponibilidade de suas ações.
Diante do exposto, é inevitável observar que o princípio da reserva do princípio sofreu grande influência do princípio da razoabilidade, porquanto em nenhum momento se busca reviver a teoria da irresponsabilidade absoluta do Estado, segundo o qual “O rei não erra”. O que se busca é conciliar a responsabilidade do Estado com a limitação orçamentária, econômica e orgânica do ente político, conforme ensinam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo:
“É diante de situações concretas, sempre no contexto de uma relação meio-fim, que devem ser aferidos os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, podendo o Poder Judiciário, desde que provocado, apreciar se as restrições impostas pela Administração Públicas são adequadas, necessárias e justificadas pelo interesse público; se o ato implicar limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (além da medida) deverá ser anulado”[25].
É latente, pois a correlação entre o princípio da proporcionalidade com o princípio em comento. Do contrário, a vingar a tese segundo a qual o Estado é um eterno devedor na busca da concretude dos direitos sociais, estabelecer-se-ia um hiato insustentável, qual seja, a de que o ente estatal poderia ser acionado judicial e individualmente por sua omissão, o que o conduziria a um descalabro.
O fato é que os recursos dos quais dispõe o Estado são escassos e a harmonização disso com a responsabilidade estatal é o que mostrará no caso concreto se o princípio da reserva do possível deve ser aplicado ou não, o que evidencia a idéia de razoabilidade e proporcionalidade. Nessa esteira, colha-se, por oportuno, o paradigmático julgado abaixo que muito bem elucida o tema aqui abordado:
“ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – ACESSO À CRECHE AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS – DIREITO SUBJETIVO – RESERVA DO POSSÍVEL -TEORIZAÇÃO E CABIMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO COMO TESE ABSTRATA DE DEFESA – ESCASSEZ DE RECURSOS COMO O RESULTADO DE UMA DECISÃO POLÍTICA – PRIORIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – CONTEÚDO DO MÍNIMO EXISTENCIAL – ESSENCIALIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO – PRECEDENTES DO STF E STJ. 1. A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est – Celso, D. 50, 17, 185). Por tal motivo, a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia. 2. Todavia, observa-se que a dimensão fática da reserva do possível é questão intrinsecamente vinculada ao problema da escassez. Esta pode ser compreendida como "sinônimo" de desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos e, justamente por isso, devem ser distribuídos segundo regras que pressupõe o direito igual ao bem e a impossibilidade do uso igual e simultâneo. 3. Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade. 4. É por esse motivo que, em um primeiro momento, a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preteri-los em suas escolhas. Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a Democracia. 5. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial. 6. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na "vida" social. (…) 8. A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu traço característico, o relacionamento com os demais em um espaço público – onde todos são, in abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da capacidade para a ação e o discurso do que em virtude de atributos biológicos – é que torna a educação um valor ímpar. No espaço público – onde se travam as relações comerciais, profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce a cidadania – a ausência de educação, de conhecimento, em regra, relega o indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das forças físicas para continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias. 9. Eis a razão pela qual o art. 227 da CF e o art. 4º da Lei n. 8.069/90 dispõem que a educação deve ser tratada pelo Estado com absoluta prioridade. No mesmo sentido, o art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve que é dever do Estado assegurar às crianças de zero a seis anos de idade o atendimento em creche e pré-escola. Portanto, o pleito do Ministério Público encontra respaldo legal e jurisprudencial. Precedentes: REsp 511.645/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 18.8.2009, DJe 27.8.2009; RE 410.715 AgR / SP – Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 22.11.2005, DJ 3.2.2006, p. 76.10. Porém é preciso fazer uma ressalva no sentido de que mesmo com a alocação dos recursos no atendimento do mínimo existencial persista a carência orçamentária para atender a todas as demandas. Nesse caso, a escassez não seria fruto da escolha de atividades não prioritárias, mas sim da real insuficiência orçamentária. Em situações limítrofes como essa, não há como o Poder Judiciário imiscuir-se nos planos governamentais, pois estes, dentro do que é possível, estão de acordo com a Constituição, não havendo omissão injustificável. 11. Todavia, a real insuficiência de recursos deve ser demonstrada pelo Poder Público, não sendo admitido que a tese seja utilizada como uma desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os de cunho social (…)”[26].
É necessário tecer certos comentários sobre o julgado acima transcrito por abordar questões de direito material e processual com uma singular riqueza e precisão. No que tange ao direito material, o relator bem salientou o conflito existente entre de um lado os direitos fundamentais, cujo implemento não pode ser relegado ao bel-prazer do administrador; enquanto que em sentido contrário, há a limitação, a escassez de recursos, restando, então, conciliar tais valores, o que é feito no caso concreto.
No campo do direito processual, também o mesmo julgado faz uma referência extremamente importante, qual seja, a de que a real insuficiência de recursos, alegada pelo Poder Público, sob o manto protetivo do princípio da reserva do possível, deve ser provada por ele. Em outras palavras, o ônus da prova é do ente político, não aplicando aqui qualquer benesse em relação à matéria probatória nem mesmo em decorrência da supremacia do interesse público. Aqui há uma nítida paridade na distribuição do ônus probatório, aplicando-se a regra do que dispõem os incisos do Art. 333 do CPC.
Evidente, portanto, que, promovida a ação judicial em face do Estado, se este quiser apresentar a sua defesa assentada no princípio da reserva do possível deverá já instruir a contestação apresentar logicamente o porquê da aplicação da reserva do possível, comprovando a limitação de recursos estatais para aquele caso especificamente. Se apenas alegar, mas não provar na primeira instância, terá de suportar o ônus de sua inércia, qual seja, a de não ser acolhido o seu argumento.
Em contrapartida, outra questão que merece tratamento se refere à própria dimensão da reserva do possível. De fato, não se pode estabelecer limites rígidos à sua aplicação, entretanto, há uma diferença muito grande da aplicação de tal princípio quando analisado em relação ao Direito Comparado. Isso porque as limitações do Estado e a disponibilidade de recursos, bem como a própria dimensão da concretude das políticas públicas em relação aos direitos sociais diferem segundo o País analisado.
Ora, é evidente, por exemplo, que a disponibilidade de recursos da Alemanha é superior ao Brasil; as políticas públicas alemãs para salvaguardar os direitos sociais são bem mais avançadas do que no Brasil. Destarte, não há como fixar limites estreitos à aplicação do princípio da reserva do possível. Há que se aplicá-lo, obviamente, com base na razoabilidade e na proporcionalidade. Nessa esteira, Wellington Pereira pondera:
“O Brasil, com toda sua diversidade cultural e sua desigualdade social, não pode importar conceitos jurídicos de uma sociedade desenvolvida como a alemã sem a devida adaptação. O próprio significado de ‘possível’ no contexto alemão tem outra conotação comparada com o contexto brasileiro. Naquele país, o desenvolvimento humano atingiu um estágio ainda não experimentado pelo Brasil”.[27]
O limite que se fixa é o que se encontra dentro do parâmetro da própria razoabilidade. Além do que, não se pode olvidar que o próprio Estado encontra balizas na própria lei. Na seara pública, é imprescindível a noção da legalidade, ou seja, as condutas estatais têm, salvo raras exceções previstas em lei, amparo legal expressamente. Não há espaço para conjecturas nem suposições, observa-se a legalidade.
Aliás, importante observar que a grande questão que deve ser conciliada, no que tange ao princípio da reserva do possível, concerne justamente, de um lado, garantir os direitos sociais, protegendo-se um mínimo existencial, enquanto que, em outro lado, deve-se ver as possibilidades do próprio Estado em implementar determinada política ou conduta. Eis o conflito a ser dirimido no tópico seguinte.
3.4 O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL.
Inicialmente, convém salientar o que venha a ser o mínimo existencial. Por mínimo existencial, deve-se entender direitos essenciais, imprescindíveis ao ser humano. Em outras palavras, refere-se: “aquele grupo de direitos sociais imprescindíveis à vida digna, não se submetendo de forma alguma às necessidades do Estado, nem muito menos aos movimentos cambiantes dos mercados, cuja realização é – mais que uma necessidade – um imperativo”[28].
Partindo da referida premissa, pode-se constatar que o mínimo existencial guarda peculiar e íntima relação com o princípio da dignidade humana, porquanto resguarda um patamar mínimo civilizatório, responsável este por distinguir o homem dos demais animais existentes no planeta. Aliás, Rubens Miranda de Carvalho (2005) muito bem se refere ao princípio da dignidade humana não como tal, mas como um superprincípio do qual derivam todos os demais.
Seja como for, o fato é que, por preservar um núcleo essencial e vital, o mínimo existencial deve ser protegido. Nesse sentido, não há como afirmar que os direitos sociais não constituem esse círculo mínimo, eis que direitos, como os de moradia, à saúde, ao lazer, resguardam a própria dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme o Art. 1º, III, da CF.
O problema que permeia o presente estudo consiste justamente no referido ponto de como conciliar o mínimo existencial com a reserva do possível. De fato, só o caso em concreto poderá revelar como harmonizá-los e se o instituto analisado será ou não utilizado no caso sub judice. Cite-se, por exemplo, os direitos à saúde e à moradia, os quais podem se apresentar sob diversas nuances.
Um caso é determinada pessoa pleitear que o Estado custeie o seu tratamento de comprovada eficácia e que realmente funcione no combate de sua enfermidade. Negar o tratamento, em tal caso, seria notadamente desumano. Outro caso é querer que o Estado custeie o tratamento de eficácia duvidosa ou que sequer foi experimentado. Se, por um lado, é incensurável o indivíduo que queira fazer uso desse tratamento, o Estado, contudo, não pode arcá-lo como se fosse uma loteria.
No que se refere ao direito à moradia, é observável o mesmo dilema que deve ser enfrentado pelo intérprete sob o crivo da razoabilidade. Há políticas públicas, ainda que se apresentem de forma muitas vezes escusas, no sentido de dar casas a pessoas necessitadas. Nesse caso, há a preocupação, em tese, do responsável pela Administração Pública em garantir o direito à moradia. Há também a proteção legislativa conferida ao bem de família que o tornou impenhorável.
De outro lado, não é crível que o exercício do direito à moradia implique simplesmente na concessão de um teto a todos, o que é inviável econômica e financeiramente para o Estado. Há restrições legítimas ao direito constitucional de moradia; há limites, como bem arremata o Conselheiro Alves Correia, do Tribunal Constitucional de Portugal, in verbis:
“O ‘direito à habitação’, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, […] é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado […] Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada ‘reserva do possível’, em termos políticos, económicos e sociais. […]. O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão, não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo”[29]
Ora, no Brasil, se o indivíduo não pagar os impostos de sua propriedade imóvel, a Fazenda Pública poderá ajuizar a execução e conseguir atingir o bem dele. Se o indivíduo for fiador em contrato de locação, seu bem de família poderá vir a ser penhorado e a pagar a dívida devida pelo contratante originário. Trata-se, conforme se pode ver, de caso a caso. Não há como estabelecer qualquer fórmula para a interpretação, pois o que tem de ser feito é uma ponderação valorativa, segundo critérios de razoabilidade e de verossimilhança.
Diante de tais exemplos, constatam-se duas balizas que servem de norte ao princípio da reserva do possível: a) não há direitos fundamentais absolutos, sejam eles de qualquer natureza (individual ou social), motivo pelo qual a sua exigibilidade individual e imediata deve passar pelo crivo da razoabilidade (a reserva do possível); b) a tarefa de aplicar os direitos fundamentais, dentro dos quais se encontram os direitos sociais, deve ser realizada de forma conciliatória com o sistema constitucional e sempre se protegendo um patamar mínimo civilizatório.
Nessa esteira, oportuno destacar a diferenciação entre o mínimo existencial aqui abordado com a teoria de patrimônio mínimo. O primeiro é bem mais amplo que a idéia de patrimônio mínimo. Gize-se que o mínimo existencial decorre do próprio princípio da dignidade humana, resguardando um círculo mínimo para preservar a condição do homem enquanto ser humano.
Em outro norte, a teoria do patrimônio mínimo também é impregnada em preservar um determinado número de bens que possibilitem ao indivíduo ser uma existência digna. Frise-se, todavia, que o mínimo existencial alberga não apenas um patrimônio mínimo, mas também aspectos que transcendem a esfera material, como, por exemplo, uma liberdade mínima. O fato de se assegurar o mínimo existencial, todavia, não implica em penalizar o Estado com o cumprimento imediato de todos os direitos sociais.
Abordados, então, os principais pontos do princípio da reserva do possível, mostra-se imprescindível tratar das posições doutrinárias sobre o assunto, sobretudo, as críticas doutrinárias na sua aplicação, o que será feito no capítulo subseqüente, bem como discorrer sobre a perspectiva do princípio em comento na sua utilização futura.
4.0 DAS POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
Há várias posições doutrinárias sobre o princípio da reserva do possível cuja controvérsia se reflete jurisprudencialmente. No presente capítulo, então, busca-se discorrer sobre as principais críticas na adoção e aplicação do princípio da reserva do possível, bem como traçar as perspectivas para a sua implementação. Para tanto, descrevem-se primeiramente os fundamentos da posição contrária à adoção do princípio da reserva do possível, realizando-se também uma crítica a cada um desses argumentos.
Ademais, no segundo tópico do presente capítulo, aborda-se a perspectiva da aplicação do princípio da reserva do possível, delineando-se também como fica a questão atinente à efetivação dos direitos sociais. No referido tópico, descreve-se o dilema entre a aplicação da reserva do possível e, do outro lado, a necessidade de se efetivar os direitos sociais.
Feitas tais considerações, portanto, passa-se a tratar das críticas doutrinárias em relação ao princípio da reserva do possível, bem como os principais argumentos que sustentam a tese contrária à sua adoção, realizando-se uma releitura em relação a essa posição.
4.1 DAS PRINCIPAIS CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
As principais críticas em relação ao princípio da reserva do possível consistem, em resumo, em dois argumentos centrais: a) a incompatibilidade entre tal princípio e o atual estágio da teoria da responsabilidade civil estatal; b) o Estado deve assegurar o mínimo existencial em relação aos direitos sociais. Para melhor compreensão, importa tratá-los de forma individual a fim de que se possa, após as ponderações necessárias, tecer as críticas à posição negativa, o que passa a ser feito adiante.
4.1.1. A antinomia aparente entre a reserva do possível e a responsabilidade estatal
Os que criticam o princípio da reserva do possível o relacionam com a Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado, sendo que esta, por seu turno, não foi adotada com a CF/88, segundo o que previu o § 6º, do Art. 37 da CF. Aduzem os defensores de tal posição que o princípio da reserva do possível serviria para o Estado usá-lo para se escusar do cumprimento de seus misteres legais e constitucionais, o que ressuscitaria a irresponsabilidade total do Estado.
Quanto ao argumento delineado, crê-se que não pode vingar. Com efeito, não há dúvida de que o Estado atualmente pode ser responsabilizado pela sua conduta, aqui entendida como comissiva ou omissiva, prescindindo da demonstração de culpa lato sensu em razão da teoria objetiva. O que tem que ser bem explicado é a extensão da Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado.
A Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado, como é cediço, é a fórmula desenvolvida tipicamente nos Países Absolutistas. Tal fato se deve em razão de se concentrar um enorme Poder Decisório e Político nas mãos de um tirano ou soberano, que muitas vezes se prelibava de um prestígio religioso determinista, razão pela qual não seria concebível se responsabilizar o Estado: primeiro em razão de que o Estado se confundia com a figura do ditador ou soberano; segundo pelo fato das origens divinas da figura central detentora do poder.
Vale salientar que até nos locais onde foi adotada tal teoria não implicava num desamparo total dos administrados. De fato, Diógenes Gaparini (1993) leciona que o hermetismo da referida teoria era muitas vezes excepcionado por leis esparsas que previam em casos específicos a obrigação de se indenizar. Nesse sentido, aquele autor destaca as leis francesas que dispunham da recomposição patrimonial em razão de danos de obras públicas. Gize-se, entretanto, que era necessário o advento de uma lei esparsa que previsse tal direito.
No Brasil, no período colonial, em razão da vinculação com Portugal, obviamente vingou a Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado. Com o advento da República, admitia-se, ainda que tímida e incipiente, a responsabilidade do Estado solidariamente com o agente público. Assim sendo, processaram-se várias mudanças históricas e jurídicas até se chegar à atual forma de responsabilidade estatal.
Pois bem. Evidencia-se claramente que a aplicação da reserva do possível não guarda relação com a Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado. De fato, não há controvérsia no sentido de que o referido princípio limita sim a responsabilidade do Estado, levando-se em conta as próprias limitações orgânicas e financeiras do ente político, porém há uma grande distância entre a limitação e a irresponsabilidade total e absoluta.
Cogitar na existência da irresponsabilidade absoluta, como frisado alhures, equivale a dizer que a regra é não haver responsabilidade do Estado e, excepcionalmente, havê-la, necessitando-se, para tanto, a formulação de uma lei que a previsse expressamente por se tratar de uma exceção à regra. Agora, limitar a responsabilidade estatal, segundo os critérios da razoabilidade, é totalmente legítimo e factível.
Limitar está longe de ser sinônimo de abolir. Não se cogita jamais na abolição da responsabilidade estatal. O que o princípio da reserva do possível propõe é discutir a responsabilidade estatal em função da razoabilidade e dentro do parâmetro orgânico e financeiro de que dispõe o Estado. Este será sim responsabilizado pela consecução dos direitos sociais, porém, deverá haver razoabilidade do caso concreto com as estruturas do próprio Estado.
Ademais, importante lembrar que as limitações à responsabilidade civil do Estado são legítimas, porquanto estabelecem balizas para a sua configuração. Exemplificando, no Brasil, não se adota a Teoria do Risco Integral, que poderia ser traduzida da seguinte forma: “[…] Segundo esta teoria, basta a existência do evento danoso e do nexo causal para que surja a obrigação a indenizar para a Administração, mesmo que o dano decorra de culpa exclusiva do particular”[30].
Destaque-se assim que o fato de o Brasil não adotar a Teoria do Risco Integral resulta da existência de limitações legítimas para se constatar a responsabilidade estatal. Essas limitações, além de estarem nos requisitos da própria responsabilidade civil estatal, quais sejam, a conduta, o nexo de causalidade e o prejuízo, encontram-se também na própria inexistência das excludentes da responsabilidade estatal ao caso concreto, como é o caso de culpa exclusiva da vítima. É evidente, portanto, que podem sim existir limitações à responsabilidade estatal.
Diante das razões aqui delineadas, resta evidenciado que a aplicação do princípio da reserva do possível não ressuscita a Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado; faz-se apenas uma releitura da responsabilidade civil do Estado, balizando-a em função de suas estruturas limitadas, o que é plenamente legítimo.
4.1.2. O papel do Estado em assegurar o mínimo existencial
Outra questão que urge abordar, sobretudo, por ser um supedâneo acerca da aplicabilidade ou não do princípio da reserva do possível, concerne ao papel do Estado em assegurar o mínimo existencial, o que decorre do próprio princípio da dignidade humana, um dos pilares da República do País, consoante dispõe o Art. 1º, III, da CF.
Ora, de fato os direitos sociais constituem um núcleo essencial e que distanciam os seres humanos dos demais seres vivos existentes no mundo. Não se pode olvidar, nesse sentido, que os direitos sociais coexistem com a idéia de um mínimo existencial. Agora, isso não quer dizer que o Estado é absolutamente responsável pela consecução e execução de todas as políticas públicas relativas aos direitos sociais.
Como foi frisado ao se abordar no presente estudo os direitos sociais, estes possuem uma extensão vasta, enquanto o Estado possui rédeas orgânicas impostas pela própria lei. Oportuno não olvidar que os direitos sociais também estão inseridos como norte, daí o desenvolvimento da idéia de programas a serem feitos pelo Estado, ou seja, a existência de normas programáticas. Destaque-se, então, a seguinte lição de Jean-Jacques Pardini[31]:
“Le législateur, dans la réalisation des normes constitutionnelles consacrant des droits sociaux, se heurte donc inévitablement à la « réserve du possible ». En bref, il fait ce qu'il peut en fonction de ce dont il dispose et s'il ne peut pas tout faire aujourd'hui, il lui faut attendre des jours meilleurs (en espérant qu'ils le soient)[32].
É possível vislumbrar do trecho do artigo acima transcrito que os direitos sociais são metas. Nunca serão atingidos inteiramente, eis que, mesmo nos Países desenvolvidos, há pessoas sem moradia, há desempregados, etc. O que diferencia um País do outro é o nível de cumprimento e execução dos direitos sociais. Assim sendo, o estágio de desenvolvimento das políticas públicas voltadas aos direitos sociais no Canadá, por exemplo, é um; enquanto isso, no Brasil, o estágio é outro. Não há lugar algum do mundo que conseguiu plasmar em sua plenitude todos os direitos sociais à sua realidade.
O que é de difícil explicação é o papel do Estado diante disso tudo, ou seja, como ficaria o Estado se as normas estabelecem programas cujo cumprimento total nunca será possível. Diante de tal constatação, cabe lembrar que programas, no sentido de metas, como um instrumento norteador, impõem que o Estado tenha de satisfazer uma determinação legal. Veja que jamais significa que o Estado pode ficar inerte em razão de os direitos sociais terem sido inseridos como programas, metas.
Quando se verifica a existência de determinada meta ou programa, pode sê-la até feérico ou inexeqüível por completo, entretanto, deverá se impor o máximo de esforço para se conseguir atingir ou pelo menos chegar perto desse objetivo. Nesse sentido, o Estado deve se esforçar o máximo possível para que os direitos sociais se tornem uma realidade de todos. Dentro desse contexto, é oportuno conciliar essa possibilidade financeira e orgânica estatal.
Por responsabilidade estatal, deve-se lembrar que o Estado possui limites legais; sua ação se processa diante da legalidade, suas rédeas são limitadas, inclusive, constitucionalmente, com o intuito de se evitar abusos, bem como para coibir que particulares se aproveitem do ente político a seu bel-prazer. Pois bem, se os direitos sociais prevêem metas, o Estado possui recursos limitados, o que deve ser levado em conta quando se discute a responsabilidade civil estatal nesse enfoque.
O princípio da reserva do possível, então, apenas reflete a responsabilidade civil do ente político no que tange à persecução dos direitos sociais, segundo os critérios de razoabilidade e de exeqüibilidade. Preserva-se, na aplicação de tal princípio, o papel do Estado de se empenhar para o implemento dos direitos de segunda geração, porém, tal fato é visto sob o parâmetro da razoabilidade e da exequibilidade. Parte-se, então, da premissa de que o Estado possui recursos financeiros escassos, o que se coaduna com a lógica e com o sistema constitucional.
Diante do exposto, resta evidenciado que o princípio da reserva do possível concilia o papel do Estado na consecução dos direitos de segunda geração com os limites estatais e que, por conseguinte, não se destoa com o sistema constitucional vigente ao promover uma discussão conciliatória da responsabilidade civil estatal nesses casos diante da razoabilidade e da realidade estatal.
4.2 DA POSIÇÃO FAVORÁVEL À ADOÇÃO DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL E A SUA PERSPECTIVA
O princípio da reserva do possível vem sendo utilizado e aplicado pelo Judiciário, mas sempre buscando o julgador apreciar os valores dos bens jurídicos que estão em jogo para daí se verificar se o referido princípio é ou não aplicado ao caso concreto que lhe é submetido. Dependerá, conforme se pode observar, das nuances e peculiaridades que cada caso submetido a julgamento revela, bem como da valoração que o julgador fizer dos valores em jogo dentro do processo.
Insta salientar, em outro norte, que o nível de desenvolvimento econômico e social, bem como a distribuição de renda do Brasil está bem longe de ser o ideal. Nesse sentido, seria inexeqüível exigir do Estado que arque de uma vez com todos os gastos oriundos de políticas públicas que visem ao implemento dos direitos sociais, o que inviabilizaria a própria existência do ente político. Nesse diapasão, oportuno extrair o seguinte julgado:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA – RESSARCIMENTO POR DANOS MORAIS SOFRIDOS EM DECORRÊNCIA DA SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL– ESTADO QUE ESTÁ BUSCANDO MELHORAR O SISTEMA PRISIONAL DENTRO DOS LIMITES DE SUA CAPACIDADE FINANCEIRA – SUPOSTO ATO OMISSIVO DO ESTADO – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA – AUSÊNCIA DE DOLO OU CULPA – RECURSO DO ESTADO PROVIDO. I- Por força do princípio da reserva do possível, não há como impor ao Estado a construção de presídios e dele exigir que ofereça aos detentos, todas as garantias previstas na Lei de Execução Penal. II -Por se tratar de suposta omissão do Estado em por em prática o direito à dignidade humana do preso, imprescindível a prova do dolo ou culpa do Poder Público, por força da teoria da responsabilidade subjetiva”[33].
No julgado acima transcrito, observa-se que o princípio da reserva do possível foi ampliado até para se discutir a concretude dos direitos dos presos, previstos na Lei de Execução Penal, concluindo-se pela impossibilidade de o Estado implementá-los na sua plenitude. A única crítica que mereceria o referido acórdão tange ao segundo item, no qual se arrematou que a responsabilidade do Estado por atos omissivos seria apurada sob a égide da teoria da responsabilidade subjetiva; corrente esta minoritária a respeito de tal assunto.
Ademais, o princípio da reserva do possível se mostra eficaz para que o Estado não seja responsabilizado pela concretude das políticas públicas de forma desarrazoada. Ao propiciar uma releitura do dever estatal, no que concerne aos direitos sociais, sob o prisma da razoabilidade e da exeqüibilidade, busca-se sopesar os valores que se encontram plasmados no feito e tornar mais real a discussão acerca da responsabilidade estatal nesse panorama especificamente.
Insta salientar que o princípio da reserva do possível muitas vezes é aplicado, entretanto, não se faz menção ao seu nomen juris especificamente. Em tal caso, cabe lembrar que o que caracteriza o instituto é a sua essência, o que o destacará como o princípio da reserva do possível, independentemente do nome ou da falta deste na apreciação dos casos submetidos ao Judiciário. Veja, por exemplo, os acórdãos abaixo:
“CONSTITUCIONAL – MANDADO DE SEGURANÇA – MATRÍCULA EM CRECHE – DIREITO À EDUCAÇÃO – OBRIGATORIEDADE APENAS DO ENSINO FUNDAMENTAL E NÃO INFANTIL – DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA – De acordo com o artigo 208, § 1º, da CF/88, é direito público subjetivo o acesso apenas ao ensino fundamental, que é o único obrigatório, não se estendendo tal garantia à educação infantil, relativa à matrícula em creche de menor de 5 (cinco) anos. – Não é dado ao Judiciário imiscuir-se na esfera de competência do Legislativo e do Executivo, interferindo no orçamento dos entes estatais e até mesmo na política pública de atendimento aos direitos dos cidadãos, priorizando a pretensão de uns em detrimento da de muitos”[34].
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DISPONIBILIZAÇÃO IMEDIATA DE VAGAS EM HOSPITAIS PÚBLICOS OU PARTICULARES ÁS EXPENSAS DO ESTADO A TODOS OS HABITANTES DA COMARCA DE CASSILÂNDIA – PEDIDO GENÉRICO E ALEATÓRIO – RECURSO PROVIDO. I- Não se pode impor ao Poder Executivo o fornecimento aleatório e indiscriminado de vagas em hospitais públicos ou particulares às suas expensas, ou medicamentos a todos os habitantes de determinado Município, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes e inviabilizar o sistema único de saúde”[35].
Nos casos a que se referem os acórdãos transcritos alhures, evidencia-se que em nenhum momento se aludiu expressamente ao princípio da reserva do possível, mas se tratava dele. Assim, portanto, poderá haver casos em que não se expressará o nomen juris do instituto, entretanto, na realidade, ele será aplicado ao caso em comento. Para se constatar a sua aplicação, é imperioso analisar o fundamento da decisão e se se baseia na escassez de recursos do Estado, de forma imediata ou até mesmo mediatamente.
Não se pode olvidar que, em relação à perspectiva de aplicação do princípio mencionado, cabe destacar que os julgados transcritos por todo este trabalho, bem como pela análise da jurisprudência traçaram alguns pontos em comuns: a) há uma grande inclinação para a desconsideração do princípio da reserva do possível quando se estiver diante de feito cujo pedido seja o fornecimento de medicamento pelo Estado; b) quando se discutir a matrícula de crianças em creche, bem como a responsabilidade do Estado por assegurar todos os direitos dos presos em sua plenitude (sobretudo, no que se refere à coibição da lotação carcerária), o princípio da reserva do possível é aplicável; c) o princípio da reserva do possível é aplicável somente quando se tem a escassez orçamentária do Estado em jogo, o que deve ser efetivamente comprovado nos autos; não beneficiando particulares; d) quando se estiver diante de direito líquido e certo, a reserva do possível não pode ser oposta simplesmente.
Importante frisar que há uma grande inclinação na desconsideração do princípio da reserva do possível quando se está diante do direito à saúde, ou melhor, em relação ao fornecimento gratuito de medicamento pelo ente político, porquanto se trata de um direito cuja importância é latente. Se se retirar a vida, obviamente, esvaziar-se-ão toda a proteção jurídica conferida à tutela do patrimônio, da honra e até mesmo da dignidade humana, eis que, para se cogitar na existência de uma vida humana digna, primeiramente, deve-se ter uma vida. Diante disso, é latente que tal direito impõe um abrandamento ao princípio da reserva do possível.
Aliás, convém salientar que muitas vezes o princípio da reserva do possível não é aplicado nos casos que envolvem o fornecimento gratuito de medicamentos, sob o fundamento de que “[…] O princípio da reserva do possível não se aplica quando se está diante de direitos fundamentais, em que se busca preservar a dignidade da vida humana […]”[36], o que, em relação especificamente ao argumento, particularmente parece ser um equívoco.
Com efeito, não há dúvida de que, pela importância do direito à saúde, deve o Estado fornecer o medicamento em casos extremos, entretanto, o fundamento transcrito alhures não é crível. De fato, o princípio da reserva do possível não pode ser relegado ao esquecimento quando se está simplesmente perante um direito fundamental que busca resguardar a dignidade da vida humana.
É evidente que os direitos ao trabalho, ao lazer, à moradia, dentre outros, são fundamentais, porquanto se encontram sob a rubrica “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e, além disso, conferem uma vida digna ao ser humano. Isso não quer dizer, por outro lado, que o particular pode reivindicar tais direitos de forma absoluta e sem parâmetros em face do Estado, o que o levaria ao descalabro. Assim sendo, o fundamento utilizado não merece vingar por desconsiderar os direitos sociais como fundamentais ao ser humano.
O que, gize-se, justifica o fornecimento gratuito de medicamentos por parte do Estado, sobretudo, para se garantir a vida humana, aponta no sentido de que o direito à vida humana, apesar de não ser absoluto, é a base e pilar para os demais direitos e princípios. Sem a vida humana, não há que se cogitar, inclusive, na própria dignidade humana. Jamais haverá dignidade humana sem a vida humana. Esta precede àquela, de sorte que isso é o que fundamenta a não aplicação do princípio da reserva do possível a esses casos.
Ademais, o princípio da reserva do possível tende a ser aplicado até mesmo para se justificar o patamar precário em que se encontra o cumprimento das políticas públicas na execução dos direitos sociais nos demais assuntos alheios à saúde. Assim sendo, a sua aplicação, apesar da recalcitrância de se aceitá-lo, tende a se tornar mais amiúde, salvo em casos extremos, até porque senão o Estado poderia vir a ser demandado judicial e individualmente para indenizar os seus administrados por não lhes oferecer saúde, educação, moradia, trabalho de forma digna e decente.
Por fim, é extremamente oportuno lembrar que o princípio da reserva do possível jamais buscou ressuscitar a Teoria da Irresponsabilidade Absoluta do Estado, o que se propõe é uma releitura da responsabilidade estatal no cumprimento dos direitos sociais. Essa releitura, por seu turno, é feita por meio do próprio princípio da razoabilidade e da exeqüibilidade, ou seja, busca trazer a discussão da responsabilidade do Estado, nesses assuntos, numa perspectiva real e concreta; não meramente onírica.
CONCLUSÃO
Pelo que foi elaborado, é possível concluir que a aplicação do princípio da reserva do possível é uma tendência cuja aplicação se tornará mais amiúde até mesmo para se justificar o sistema precário de cumprimento das políticas sociais que visem a assegurar os direitos sociais. Por outro lado, isso não significa que o Estado poderá utilizá-lo para albergar situações esdrúxulas, de forma a torná-lo irresponsável absolutamente.
O que o princípio da reserva do possível faz é buscar limitar sim a responsabilidade estatal, porém, tais balizas são estipuladas até mesmo pelos próprios limites orgânicos e financeiros de que dispõe o Estado. Assim, portanto, pode-se concluir que no referido princípio prevalece a apreciação da realidade mediante a razoabilidade dos valores que estão em jogo na causa a ser julgada.
Não há regras absolutas a serem estabelecidas na aplicação da reserva do possível, porquanto dependerá das peculiaridades que envolverem o caso concreto. Obviamente em determinados casos não poderá ser utilizado, sobretudo, quando se se tratar realmente de casos em que o direito à vida se encontra ameaçado imediata ou mediatamente. Em outros casos, entretanto, há uma grande tendência que sua adoção seja ampliada, sobretudo, pelo estágio de deficiência em que sempre se encontraram as políticas públicas de implemento dos direitos sociais.
Conclui-se, ademais, que apesar de se resguardar um núcleo do princípio da reserva do possível, não se alterando de País a País, ele é constituído de uma parte mutável segundo o nível de desenvolvimento do País em que o indivíduo se insere. Assim sendo, tal parte mais maleável faz com que o mínimo existencial se altere, o que se constata, por exemplo, com o fato de que o que para os alemães em sua terra é o básico; aqui pode ser traduzido como um supérfluo.
Por fim, pode-se observar que o princípio da reserva do possível jamais alberga o absolutismo da irresponsabilidade do Estado. O que se faz, gize-se, é dirimir essa responsabilização estatal quando entram em jogo a concretude dos direitos fundamentais, observando-se, para tanto, dois ou mais valores jurídicos, sem se olvidar de que o Estado é limitado orgânica e financeiramente, de sorte que o que se prega, finalmente, não é senão o primado da razoabilidade e da realidade.
Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul e Especialista em Direito Público pela Uniderp/Anhanguera
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