Considerações iniciais
A Operação Lava-Jato tem impulsionado o crescimento de várias delações premiadasfeitas por investigados, denunciados ou condenados na esfera penal, sempre com o objetivo de diminuição de suas penalidades.
Apesar de ter sido introduzida em nosso ordenamento jurídico em 1603, pelas Ordenações Filipinas, no Título VI, item 12 e Título CXVI, o instituto da delação premiada ficou esquecido por muitos séculos em nosso país.
Apesar da Lei nº 8.072, de 26 de julho de 1990, ao dispor sobre crimes hediondos, em seu artigo 8º, parágrafo único, ter previsto a delação premiada como forma do imputado colaborar com a justiça, obtendo a diminuição da sua penalidade, ainda não seria o momento de tal instituto “decolar”, não despertando grande interesse por parte dos investigados ou acusados em ação penal.
Após o “mensalão”, onde foi questionada a aplicação de graves e sérias penalidades para os condenados que não foram inseridos no núcleo político, gerou-se oincentivo à utilização da delação premiada como fórmula de possibilitar ao delator a diminuição da pena.
Muito se questionou que, se o instituto da delação premiada fosse utilizado no “mensalão”, com certeza os condenados tidos como operadores do núcleo de corrupção não teriam contra si a aplicação de sérias sanções, além da possibilidade de outros culpados serem descobertos.
Surgiu a sensibilidade no meio jurídico de que se fosse levado a efeito o instituto da delação premiada para determinados condenados, no intuito de se buscar a punição dos verdadeiros “mentores”, também beneficiários de tal esquema de corrupção, havendo drástica diminuição de penalidades para determinados condenados que efetivamente colaborassem com a justiça.
Com essa visão jurídica, vários operadores do direito passaram a questionar o silêncio de alguns dos condenados na esfera penal.
Quando exsurgiu a “Operação Lava-Jato”, não houve mais a menor dúvida de que a saída de vários acusados seria a adesão ao instituto da delação premiada, com a finalidade de reduzir tempo na prisão e diminuir a aplicação de penalidade e de condenação em futuro ressarcimento ao erário.
Como, necessariamente, a situação de desvio de recursos para abastecer a corrupção político-partidária envolve lesão ao erário, há o necessário desdobramento para a improbidade administrativa a que alude a Lei nº 8.429/92.
Nesse ponto, pelo fato da improbidade administrativa não ser direito disponível, não havia a menor possibilidade de ser admitida a transação, como permitido na delação premiada para fins penais, como forma de abrandamento da responsabilidade do agente público ou do terceiro beneficiário.
Aliás, essa era a dicção da redação embrionária do artigo 17, do § 1º, da Lei nº 8.429/92, que vedava expressamente a transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa.
Apesar de ser expressa tal determinação, a doutrina não havia se atentado para os efeitos legais da delação premiada feita no juízo penal ou administrativo, para fins de repercussão perante a Lei nº 8.429/92, em face da determinante vedação legal já declinada alhures.
Pensando nessa lacuna, tivemos a oportunidade de elaborar estudo jurídico denominado “Delação Premiada não serve para fins de admissibilidade de ação de improbidade administrativa”.[1]
Nosso posicionamento foi no sentido de que a petição inicial da ação de improbidade administrativa que tão somente se baseia na delação como meio de prova, não cumpria o requisito formal a que se impunha o artigo 17, § 6º da Lei nº 8.429/92.
Diante de tal realidade, onde o direito administrativo geralmente veda por serem indisponíveis transações em desvios de recursos públicos, foi editada a Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015, com a finalidade de flexibilizar a ocorrência de acordo de leniência previsto na lei anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), permitindo que a Administração Pública possa também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável por atos e fatos investigados previstos em normas de licitações e contratos administrativos, com vistas à isenção ou atenuação das sanções restritivas ou impeditivas ao direito de licitar e contratar, dentre outros benefícios, bem como a revogação do § 1º, do art. 17, da Lei nº 8.429/92.
Em face da revogação do dispositivo legal que impedia a transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa (§ 1º, art. 17, da Lei nº 8.429/92), pela Medida Provisória nº 703/2015, pergunta-se: é possível celebrar delação premiada para fins de apuração de improbidade administrativa? Em caso positivo, a delação premiada caracteriza indício suficiente para fins de admissibilidade de ação de improbidade administrativa?
Esse é o cerne do nosso estudo. E as respostas serão explicitadas e justificadas nos tópicos que se seguem
Medida provisória nº 703/2015 não permite acordo em ações de improbidade administrativa
Se na delação premiada a lei penal permite que o acusado ou indiciado possa colaborar para identificar coautores, partícipes ou terceiros vinculados ao objeto da apuração penal, na ação de improbidade administrativa não há espaço para a transação ou conciliação, não sendo admitida a utilização analógica do aludido instituto para fins da Lei n.º 8.429/92.
Aliás, essa era a dicção do § 1º, do artigo 17, da Lei n.º 8.429/92, verbis:
“Art. 17 -A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
§ 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.”
A transação é a convenção em que, mediante concessões recíprocas, as partes ajustam certas cláusulas e condições para prevenirem litígios, que possam suscitar entre elas, ou ponham fim a litígio já suscitado.
Como o direito explicitado na Lei n.º 8.429/92 é indisponível, o legislador expressamente proibiu acordo, conciliação ou transação.
Por ser indisponível, o titular da ação de improbidade não pode aplicá-la, ou transacionar redução de punibilidade, em face da colaboração ou da delação premiada, diferentemente da regra adotada no direito penal.
Sucede que a Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015, no inciso I, do seu artigo 2º, revogou o § 1º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92.
Ao revogar o dispositivo contido no § 1º, do art. 17, da Lei nº 8.429/92, a Medida Provisória nº 703/2015, por si só, não permitiu a utilização da transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa.
Na verdade, para permitir que pudesse haver acordo ou transação nas ações a que alude a Lei nº 8.429/92, não só teria que ser revogada a redação anterior do § 1º, art. 17, da citada norma (como foi), mas também, por dever legal, deveria a norma explicitar a permissão para tais situações jurídicas, por envolver direito público, onde há a obrigatoriedade de lei dispor sobre tal fato.
Isso porque, no direito público vige o princípio da legalidade, onde “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”[2]
Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado, onde a ausência de lei significa para o particular “pode fazer”. Já para o Estado a ausência de lei significa “não pode fazer”, por ser direito indisponível, consoante clássica lição de Hely Lopes Meirelles.
Sem lei que determine expressamente a possibilidade de transação ou acordo em sede de ação de improbidade administrativa, não há como se admitir a mesma como base de prova, ou de indícios de prática do ato ímprobo.
Isso porque, os efeitos da revogação do § 1º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92, pela MP nº 703/2015, não se prestam para permitir a utilização da transação ou acordo perante as ações de improbidade administrativa, por não ter expressamente declarado tal possibilidade jurídica.
Para que fosse admitida tal hipótese jurídica (acordo ou transação) perante os termos da Lei nº 8.429/92, seria obrigatório que a Medida Provisória nº 703/2015, ao revogar o texto anterior (§ 1º, art. 17), fizesse constar dispositivo expresso que regulasse inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior, e não simplesmente revogá-la, sem trazer qualquer alternativa ou possibilidade (norma) à celebração de acordo ou transação
A respeito do assunto, expressa é a determinação do artigo 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, verbis:
“Art. 2º – Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor que até outra a modifique ou revogue.
§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que trata a lei anterior.”
Como visto, a MP nº 703/15 revogou o § 1º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92, sem determinar que fosse permitida a transação ou o acordo para fins de delação premiada nas ações de improbidade administrativa. A simples revogação de uma vedação, sem que haja regulação da matéria tratada na lei anterior, não permite ao intérprete uma interpretação extensiva ou elástica, ainda mais quando se trata de direito sancionador, onde não se permite o uso de analogias para o fim de suprir possíveis lacunas.
No presente caso, não há lacunas, pois ao tempo em que a MP nº 703/15 revogou a proibição de transação ou acordo perante a lei de improbidade administrativa, não trouxe qualquer comando ou preceito normativo que legitimasse a prática da delação premiada.
A indisponibilidade do direito vinculado na Lei n.º 8.429/92 não permite a flexibilização de transação ou acordo para fins de diminuição de penalidade criminal ou de meio de prova isolada perante a lei de improbidade administrativa.
Isso porque, em se tratando de ação com a finalidade de apuração de atos de improbidade administrativa, a prova ganha relevância fundamental, na medida em que se faz necessário identificar as condutas e o nexo de causalidade dos atos praticados e o poder de ofensividade à Lei n.º 8.429/92. Ou seja, é de se provar, através da produção de meios diretos e robustos, o dolo do agente público ou do particular nos casos elencados no artigo 9º e 11, da Lei n.º 8.429/92, e a culpa precedida de má-fé no tipo descrito no artigo 10 da citada lei de improbidade administrativa.
Por isso a prova válida é fundamental para a caracterização do elemento subjetivo dos tipos descritos na Lei de Improbidade Administrativa.
A relevância do termo de colaboração do direito penal somente confere efeitos jurídicos para aquela esfera do direito, não podendo ser transportado para fins de juízo de admissibilidade ou de condenação da prática do ato de improbidade administrativa, em face da expressa vedação a que aduz o artigo 17, § 1º, da Lei n.º 8.429/92.
O Código de ritos autoriza a divisibilidade da confissão para evitar que o confidente use a confissão complexa como um instrumento simulado, produzido única e exclusivamente em seu próprio interesse, com o objetivo de desviar o rumo da investigação, ou prejudicar terceiros de forma irresponsável ou desatrelada de materialidade e de autoria.
Da mesma forma, à guisa de ilustração, destaque-se que outros institutos do direito penal, como por exemplo o princípio da bagatela ou da insignificância, também não são aplicadosna Lei de Improbidade Administrativa, justamente por permitir a mitigação à violação ao princípio da moralidade qualificada, para fins de excludente de responsabilidade.
Justamente contra a aplicação do princípio da insignificância perante a Lei de Improbidade Administrativa, seguem os seguintes arestos: STJ, AGA 1320840, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª T., DJ de 2.02.2011; STJ, REsp 892.818/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., DJ de 10.02.2010; TRF – 1ª Reg., Ap. Cível 528386, Rel. Des. Fed. Maximiliano Cavalcanti, 3ª T., DJ de 30.11.2012, p. 266; TRF – 1ª Reg., Ap. Cível 200333000275408, Rel. Juiz Fed. Conv. Saulo Casali Bahia, 3ª T., DJ de 9.11.2007, p. 70; TRF – 1ª Reg., Rel. Juiz Fed. Conv. Marcus Vinícius Reis Bastos, 4ª T., DJ de 16.10.2012, p. 181.
Mesmo não sendo aplicado o princípio da insignificância do direito penal, a baixa potencialidade de ofensa à Lei n.º 8.429/92 possui eficácia quando da fixação da penalidade, visto que terá que se basear na proporcionalidade/razoabilidade, isso porque a extensão (poder de ofensividade) da lesão deverá guardar correlação com a condenação na lei de improbidade administrativa.
Dessa forma, pode-se concluir, com toda certeza, que não são todos os institutos do Direito Penal que se projetam perante a Lei n.º 8.429/92, sendo que um deles é o da delação premiada ou colaboração, como já dito alhures, por total vedação e incompatibilidade do mesmo quando aplicado fora da esfera do direito criminal.
Importante destacar que, apesar de alguns juristas defenderem que a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, que dispõe sobre mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, permite a transação ou acordo nas ações de improbidade administrativa, não nos filiamos a esta corrente doutrinária.
Não só pelos fundamentos já declinados, mas também pela interpretação do artigo 36, § 4º, da citada Lei nº 13.140/15, assim disposta:
“Art. 36 – No caso de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a Administração Pública Federal, a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União.(…)
§ 4º – Nas hipóteses em que a matéria objeto do litígio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, a conciliação de que trata o caput dependerá da anuência expressa do juiz da causa ou do Ministro Relator.”
Ora, o caput do artigo 36, da Lei nº 13.140/15 é cristalino ao dispor sobre controvérsia jurídica entre órgãos ou entidade de direito público, que litiguem entre si, não abrangendo os particulares ou agentes públicos nesse contexto legal.
Portanto, a conciliação de que trata o § 4º, do citado artigo, vincula apenas e tão somente os órgãos ou entidades de direito público, quando litigam entre si.
Não há que se confundir situações distintas, onde a Lei nº 13.140/2015 disciplina composição extrajudicial de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que litigam em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União.
Resta claro que se trata de norma de eficácia plena somente para a administração pública federal, onde a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, por ser a responsável pela defesa dos interesses públicos federais, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União.
Por essa razão, não há a participação do Ministério Público Federal e nem a possibilidade de inserir-se nesse contexto o agente público ou o terceiro particular, investigado na prática de ato ímprobo.
Tampouco foi aberta a possibilidade do Ministério Público dos Estados ou as decisões dos Tribunais de Contas estaduais se ingerirem no citado contexto do artigo 36, da Lei nº 13.140/15.
Delação premiada não serve como juízo de admissibilidade de ação de improbidade administrativa – ausência de materialidade do ato ímprobo
Como visto, o instituto da delação premiada não se aplica ao contexto da Lei n.º 8.429/92 por ser incompatível, e também por não haver a possibilidade da celebração de transação ou de acordos perante a Lei de improbidade administrativa.
Se os benefícios da obtenção da delação premiada não são extensíveis ao contexto da lei de improbidade administrativa, por óbvio que os seus efeitos também não possuem validade de meio de prova idôneo capaz de gerar indício do ato ímprobo.
O artigo 17, § 6º, da Lei n.º 8.429/92, estabelece que a ação de improbidade administrativa será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.
A delação premiada não é prova de um delito, mas início da busca de provas, que irão confirmar ou rejeitar os termos do conteúdo da mesma.
Não sendo admitido o instituto da delação premiada no direito administrativo sancionador, por razões lógicas não há como admiti-lo como demonstração da ocorrência de indícios da prática de ato de improbidade administrativa para fins de admissibilidade da petição inicial.
É que no direito administrativo sancionador, vinculado diretamente aos princípios da legalidade e da tipicidade, como fundamento das garantias constitucionais, não se admite a utilização de analogia ao instituto da delação premiada, aplicado única e exclusivamente ao direito penal e sob condições específicas.
Inexistindo, na hipótese sub oculis, o necessário elemento normativo legitimador da aplicação da delação premiada perante a Lei n.º 8.429/92, a sua admissibilidade, como prova emprestada, inclusive, implica em grave transgressão, por parte do órgão julgador, ao princípio da reserva constitucional de lei formal em tema de punições disciplinares.[3] Isso porque, a “confissão” e a “denúncia” levada a efeito através da delação premiada, deve ser aprofundada/confirmada por outro meio idôneo de prova, visto que ela não se materializa em prova, e pode ter sido produzida pelo seu interlocutor como instrumento simulado, erigido única e exclusivamente em seu próprio interesse, em detrimento da verdade real.
Para embasar a fumaça do bom direito em relação à ocorrência dos atos de improbidade administrativa, o Ministério Público possui o dever de demonstrar, mesmo através de indícios, que os depoimentos do colaborador possuem lastro de plausibilidade indiciária perante o escopo da Lei n.º 8.429/92.
A petição inicial que é lastreada tão somente no “depoimento” do beneficiado pelo instituto da delação premiada em sede criminal não serve como demonstração de indício de autoria e de materialidade perante a Lei n.º 8.429/92, não se prestando para o fim de recebimento da petição inicial da ação de improbidade administrativa.
A autoria de ato ilícito geralmente é verificada pela pessoa que comete determinado fato vedado pelo ordenamento jurídico. Havendo indícios de autoria, instaura-se a suspeita de prática de ato ilícito pelo investigado.
Já a materialidade do fato é a demonstração, através de provas válidas, da existência de ato ilícito.
Havendo indício[4] de autoria e de materialidade da prática de ato ímprobo, em tese, haverá legitimidade de propositura da ação de improbidade administrativa, visto que esse é o requisito legal estabelecido na lei como pressuposto de admissibilidade de ações de improbidade administrativa.
A validade da “palavra” ou da confissão da pessoa que faz delação premiada, por si só, não possui o condão de afastar a presunção de inocência de outros interlocutores, indicados pelo mesmo como responsáveis pela prática de atos ilícitos, bem como não se presta para substituir a apresentação de indícios da prática do ato ímprobo.
Não resta dúvida que apesar da presunção de inocência ser relativa, podendo ser elidida por acervo probatório robusto, o depoimento levado à efeito em outros processos de natureza criminal, motivados pelo interesse na obtenção do benefício da delação premiada, não se presta para demonstrar a existência de indícios de autoria da prática de ato de improbidade administrativa. Os indícios de autoria da prática de ato ímprobo devem vir fundamentados em provas testemunhais ou documentais que levem a conclusão que existem “rastros” ou indicativos da prática do ato de improbidade, em tese.
Como o depoimento do colaborador deve vir agregado de outras provas que lhe tragam suporte de veracidade, a sua confissão ou depoimento isolado não se presta para gerar indício de autoria de infração disciplinar contra outrem, pois não se afigura como prova propriamente dita o conteúdo firmado na delação.
Não é necessária prova incontestável da prática do ato de improbidade administrativa, mas, para o ingresso da competente ação, o seu autor não poderá lastrear suas razões no “ouviu dizer” ou em notícias isoladas e sem fundamento, pois é necessário para o exercício lídimo do direito de acionar que haja indícios ou justa causa capazes de embasar o ingresso no Judiciário, sem que ocorra abuso de direito, por parte do autor da demanda.
Se, de um lado, o depoimento tomado da pessoa que faz delação premiada não possui valor de prova suficiente para gerar indício de autoria, também não se coaduna com a demonstração de indícios de materialidade da prática de ato ímprobo.
As ações sancionatórias, como é o caso da improbidade administrativa, exigem requisitos legais mais completos do que as condições genéricas das demandas judiciais (legitimidade das partes e a possibilidade jurídica do pedido). Por isso, a inicial deve, logo de plano, demonstrar a presença de justa causa, consubstanciada em elementos indiciários que demonstrem, pelo menos em tese, a tipicidade da conduta e a viabilidade da acusação.
Essa viabilidade da acusação capaz de ensejar a justa causa liga-se à demonstração indiciária de autoria e de materialidade.
Sem indícios revelados pela prova pré-constituída é retirado o interesse de agir do autor da ação de improbidade administrativa, por falta de justa causa.
Sobre o tema deixamos averbado anteriormente: [5]
“A atual Constituição Federal estabelece limites à atuação do Estado, conferindo ao cidadão direitos e garantias fundamentais contra abusos ou excessos de poder. Qualquer agente público só poderá sermolestado em sua honra e intimidade se houver um justo motivo, reveladopor uma possibilidade jurídica, extraída de indícios de cometimentos, em
tese, de ilícitos reprimidos pelo ordenamento legal utilizado como suportelegal.
A ação de improbidade administrativa envolve um conflito de interesses indisponíveis, em que de um lado o interesse primitivo do Estado,lastreado no combate a uma ilicitude cometida pelo agente público, de
outro, os interesses de dignidade e do bom nome por parte do acusado.
Por isso mesmo, em razão do perigo de sanções tão severas, exige-se a justa causa para toda e qualquer ação de improbidade administrativa, consubstanciada em documentos ou justificações que contenham indícios suficientes do ato ímprobo.”
Por conseguinte, para que seja legitimado o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, é necessário que os possíveis atos infracionais atribuídos ao agente público, estejam configurados, por seguros elementos que apontam para a existência de indícios de improbidade: esses elementos são a tipicidade, a lesividade, a antijuridicidade e a culpabilidade.
Dessa forma, quando a jurisdição atua na esfera do direito sancionador, a atenção dos julgadores há de concentrar-se em todos esses detalhes, que podem ser agrupados, apenas para efeito de sua melhor apreensão, sob a denominação de justa causa.
Conclusão
O ingresso da ação de improbidade administrativa não pode ser lastreado no “ouviu dizer” ou embasado em depoimento ou confissão, objeto de delação premiada, como já dito alhures.
Necessita a petição inicial de regularidade formal, onde o ilícito imputado aos acusados deve vir precedido de viabilidade jurídica, a fim de se evitar o manejo de natimortas ações de improbidade administrativas.
O rigor é total, pois sendo a Lei n.º 8.429/92 uma norma vaga e aberta, o legislador exigiu que fossem, desde o início, demonstrados os índicos da prática do ato ímprobo, como condição mínima de seu manejo.
Isso significa dizer, que a autoria e a materialidade devem estar invencivelmente demonstrados nas provas que carreiam a referida ação de improbidade administrativa, para que ela seja a subsistente ou temerária.
Deve ser indeferida, via de consequencia, a petição inicial que não demonstre, com precisão, a prática do ato de improbidade, porquanto a demonstração do elemento subjetivo que conecte a conduta do agente ao fim ímprobo, não é aquela demonstrada revelada em uma delação premiada, que somente se baseia na “palavra” livre do acusado ou suspeito que faz a aludida transação penal e sim, em outros idôneos meios de prova que atestem a existência de que há autoria e materialidade na prática do ato de improbidade administrativa.
Consoante o disposto no artigo 17, § 8º, da Lei n.º 8.429/92, a rejeição da ação de improbidade administrativa está vinculada ao convencimento motivado do juízo quanto à inexistência do ato de improbidade, a improcedência da ação ou à inadequação da via processual eleita.
Por isso o contexto fático-probatório deve ser suficientemente explicitado na petição inicial, capaz de comprovar a prática de ato de improbidade, tendo em vista, que a delação premiada, como objeto de transação entre o Estado acusado, não serve isoladamente como elemento de base de prova capaz de induzir a admissibilidade da ação de improbidade da ação de improbidade administrativa.
Há que se ter a efetiva caracterização dos elementos subjetivos e objetivos indispensáveis à tipificação e à punibilidade de atos de improbidade, revelados por outros confiáveis tipos de provas (documentos, perícias, provas testemunhais, etc.)
Portanto, deve ser inadmitida a ação de improbidade administrativa que se revele carente do seu dever de demonstrar, logo em sua petição inicial, da existência de provas que conduzam a plausibilidade do direito invocado.
Como é recente, e ainda pouco explicitado o presente tema sob o prisma da improbidade administrativa, resolvemos estudar o impacto da delação premiada sob o âmbito de uma possível admissibilidade da petição inicial, para que não haja graves e injustas ações, manejadas sem um mínimo de plausibilidade jurídica e movidas por insubsistentes meios de acusação.
A delação premiada surte o efeito desejado no âmbito criminal, sendo importante para desarticular quadrilhas e revelar detalhes de possíveis crimes ou esquemas inescrupulosos.
Não somos contra o referido instituto para os fins que a lei o destinar. Pelo contrário, através da delação premiada muitas verdades virão à tona, e “esquemas” de corrupção poderão ser coibidos ou punidos, após a devida investigação e comprovação das imputações.
Contudo, o que é aplicado no direito penal apesar de quase sempre balizar o direito sancionador, quando transposto para a improbidade administrativa, deve se compatibilizar com a presente esfera, para que não seja aplicado por analogia, trazendo graves conseqüências injustificadas para a parte acusada ilegítima ou irresponsavelmente.
Por isso todo o cuidado e zelo ao direito é pouco, quando se trata de direito sancionador e a sua efetiva aplicação nos diversos ramos do direito.
Deve o Ministério Público aprofundar-se no objeto da delação e produzir provas indiciárias robustas, que de plano demonstrem que a ação de improbidade administrativa possui viabilidade perante a Lei n.º 8.429/92.
E matéria de prova, e na dúvida acerca da oportunidade da sua produção, deve-se, num juízo de razoabilidade, optar pelo deferimento, dentro dos padrões da ampla defesa, especialmente no caso, onde se investiga a prática do ato de improbidade administrativa, permitir que haja uma investigação mais técnica e robusta, não necessariamente exauriente, com a finalidade de embasar a futura petição inicial do Ministério Público.
Não resta dúvida que a delação premiada serve como ponto de partida de uma investigação cível, através do inquérito civil, mas jamais possui o requisito legal elencado pela Lei n.º 8.429/92, para dar início à ação de improbidade administrativa.
Em sendo assim, a petição inicial que somente traga a delação premiada como meio de prova, não cumpre o requisito formal a que impõe o artigo 17, § 6º, da Lei n.º 8.429/92, salientando-se que não se aplica ao caso o princípio da analogia.
Advogado no Rio de Janeiro-RJ. Autor de inúmeras Obras Jurídicas. Vice Presidente do Instituto Ibero-Americano de Direito Público (Capítulo Brasileiro) – IADP; Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Membro do IFA – International Fiscal Association; Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Co-Coordenador da Revista Ibero-Americana de Direito Público – RIADP (Órgão de Divulgação Oficial do IADP).
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