A microempresa e a empresa de pequeno porte nas licitações: Questões polêmicas envolvendo a Lei Complementar nº 123/2006 e o Decreto nº 6.204/2007

Resumo: Trata-se de artigo que busca demonstrar e trazer benefícios para a solução de questões decorrentes da aplicação da Lei Complementar n º 123/06 e do Decreto n º 6.204/07 às micro e pequenas empresas nas licitações, especialmente para as questões ligadas ao tratamento favorecido, simplificado e diferenciado que atualmente elas conquistaram.


Palavras-Chave: Licitação. Microempresa e empresa de pequeno porte. Questões polêmicas. Lei Complementar nº 123/06. Decreto nº 6.204/07.


Abstract: This is an article that demonstrates and brings benefits to the solution of issues arising from the application of Complementary Law No. 123/06 and the Decree No. 6.204/07 to micro and small enterprises in the bidding, especially on issues related to the favorable treatment, Simplified and differential that currently they conquered.


Keywords: Bidding. Microenterprise and Small Company of Porte. Polemic Questions. Complementary Law nº 123/06. Decree nº 6.204/07.


Sumário: I) Introdução. II) O tratamento Constitucional relativo à participação das microempresas e empresas de pequeno porte; III) A forma e o momento adequados para qualificação da licitante como microempresa ou empresa de pequeno porte; IV) O deferimento de prorrogação de prazo para a comprovação da regularidade fiscal; V) A convocação dos licitantes remanescentes. VI) O tipo menor preço definido pelo Decreto nº 6.204/07; VII) As licitações diferenciadas e simplificadas; VII.1) Licitações exclusivas até R$ 80 mil; VII.2) A possibilidade de subcontratação; VII.3) A Licitação por cota reservada; IX) Conclusão; X) Referências Bibliográficas.


I) Introdução


O presente ensaio possui como tema a identificação das questões polêmicas relativas à aplicabilidade da Lei Complementar nº 123/06 (Capítulo V – Do Acesso aos Mercados – artigos 42 a 49) e do Decreto nº 6.204/2007, que dispõem acerca do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado à participação das Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP) nos procedimentos licitatórios.


A presente temática ganha maior relevo diante de recente trabalho desenvolvido pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão[1], que demonstra o aumento substancial de participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos procedimento licitatórios, o que certamente demandará do gestor maior preparo na aplicabilidade do tratamento conferido recentemente pelo legislador ordinário.


Como é de curial sabença, o tratamento atribuído pelos referidos diplomas legislativos decorre da previsão da Carta Magna de 1988 que, ao tratar em seu Título VII (Da ordem econômica e financeira), previu no artigo 170, inciso IX, e, de forma mais específica, no artigo 179, do tratamento favorecido e diferenciado para fins tributários, previdenciários, administrativos e creditícios, ou pela eliminação ou redução destas obrigações relativamente às microempresas e empresas de pequeno porte (daqui em diante, denominadas de ME e EPP apenas para fins de simplificação).


Dentro deste tratamento conferido pelo Estatuto Nacional da ME e da EPP (LC nº 123/06), diversas questões polêmicas emergem no tocante à sua aplicabilidade, adicionadas pelo surgimento do Decreto nº 6.204, de 05 de setembro de 2007, tais como a forma e o momento corretos de qualificação do licitante como ME ou EPP; o deferimento de prorrogação do prazo para a comprovação da regularidade fiscal; o tratamento a ser conferido aos licitantes remanescentes em caso de não-saneamento da regularidade fiscal pelo primeiro classificado; o tipo menor preço definido pelo Decreto nº 6.204/07; e, as licitações diferenciadas e simplificadas previstas (exclusividade para licitações até R$ 80 mil, a subcontratação em favor da ME e da EPP e a licitação por cota reservada).


II) O tratamento Constitucional relativo à participação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte


Uma primeira questão polêmica que o caro leitor pode estar pensando neste momento, diz respeito à própria constitucionalidade deste tratamento dito favorecido e diferenciado em matéria de contratações públicas, atribuído pela Carta Magna de 1988 (artigos 171, inciso IX, e 179). Não haveria violação ao princípio da isonomia neste tratamento? Muito embora a doutrina se apresente esparsa a respeito do tema, visto ser matéria incipiente, nem mesmo haver solidificada jurisprudência neste sentido, ousamos tecer alguns comentários.


Nas palavras profícuas de Marçal Justen Filho[2]:


“É essencial ter em mente que a LC nº 123/06 não foi orientada a promover contratações desastrosas para a Administração Pública. A preferência assegurada às pequenas empresas não abrange a prerrogativa de deixar de cumprir as obrigações contratuais no tempo, no lugar e no modo devidos. O que se pretende é que a Administração Pública obtenha a melhor contratação possível, com a execução plenamente satisfatória pelo particular das obrigações assumidas. A única peculiaridade reside na fixação de regras que facilitem a vitória de empresas de pequeno porte nas licitações”.


O que se aduz, na verdade, reside no fato de que à Administração Pública não se lhe confere a prerrogativa de celebrar contratações apenas para assegurar preferência em favor de uma ME ou EPP, de forma a cumprir os mandamentos constitucionais, invertendo-se a ratio normativa, o que renderia ensejo à violação do próprio princípio constitucional da isonomia (artigo 37, inciso XXI, CRFB/88), visto que os recursos públicos seriam direcionados a este nicho de mercado, em desacordo com o caráter competitivo dos procedimentos licitatório; assim como, ao princípio da República, consubstanciado na eficiência que deve ser atribuída aos gastos públicos, havendo grave ofensa à proteção dos recursos públicos, com o dispêndio de recursos superiores à plena satisfação das necessidades coletivas.


Assim, deve o Poder Público buscar a melhor contratação possível, em homenagem ao princípio da República, com a observância do princípio da isonomia material, que se transmuda no tratamento desigual aos desiguais, compensando desta forma as desigualdades existentes na prática, no caso em comento, o tratamento favorecido e diferenciado às pequenas empresas.


Ainda que não se ratifique tal entendimento, fato é que, de acordo com o princípio da constitucionalidade das leis, a balizada opinião de Marçal Justen Filho[3] e pelo Acórdão nº 702/2007 –TCU- Plenário, entende-se que esta Administração Pública está obrigada a incluir, em seus instrumentos convocatórios, cláusulas que favoreçam a contratação destas empresas, o que depõe favoravelmente ao tratamento à aplicabilidade do tratamento favorecido e diferenciado às ME e EPP.


III) A forma e momento adequados para qualificação da licitante como ME ou EPP


Inicialmente, há que se registrar a existência de independência entre a qualificação dos benefícios fiscais como condição para fruir das preferências nas licitações. O que se exige isto sim, é a própria qualificação geral para fins de configuração como ME ou EPP, ex vi do artigo 3º, LC 123/07, a primeira com receita bruta igual ou inferior a R$240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e a segunda, desde que aufira receita bruta superior a R$240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais), ambas relativas à cada ano-calendário.


Relativamente à qualificação da ME ou EPP no certame licitatório, quanto ao momento desta qualificação, o parágrafo único do artigo 11 do Decreto nº 6.204/07 expressamente prevê, no caso do pregão eletrônico, que a identificação “só deve ocorrer após o encerramento dos lances, de modo a dificultar a possibilidade de conluio ou fraude no procedimento.” (g.n.). Diante desta previsão na norma regulamentar, não se vislumbram muitos problemas no que tange às outras modalidades: no pregão presencial, esta qualificação deve ocorrer no momento do credenciamento e nas demais modalidades da Lei 8.666/93, fará parte integrante do envelope de habilitação.


Especificamente no que se limita à esta questão, fixa o artigo 4º, inciso VII, da Lei nº 10.520/02 (Lei do pregão), que os interessados apresentarão declaração de que cumprem plenamente os requisitos de habilitação, sob pena de incorrerem na sanção do artigo 7º da mesma Lei. Logo, a declaração como ME ou EPP também compreende um requisito de habilitação, devendo ser apresentada no momento de credenciamento (excetua-se e com esta não se confunde a regularidade fazendária que somente será exigida para efeito de assinatura do contrato, nos termos do artigo 42, LC nº 123/06). A LC nº 123/06 não dispensa a ME ou a EPP do dever de apresentar toda a documentação pertinente à habilitação. Semelhante raciocínio também deve ser aplicado quanto às modalidades concorrência, tomada de preços e convite, previstas na Lei nº 8.666/93.


Quanto ao critério forma, o referido artigo 11, Decreto nº 6.204/07, em seu caput, disciplina que deve ser exigido das empresas “a declaração, sob as penas da lei, de que cumprem os requisitos legais para a qualificação como microempresa ou empresa de pequeno porte, estando aptas a usufruir o tratamento favorecido estabelecido nos arts. 42 a 49 da Lei Complementar.”


Analisando esta temática, argumenta Marçal Justen Filho[4] que:


“Em princípio, o ônus da prova do preenchimento do benefício dos requisitos para fruição do benefício é do interessado. Aquele que pretende valer-se das preferências contempladas na LC nº 123/06 deverá comprovar a titularidade dos requisitos necessários. Já o ônus dos fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do terceiro fruir os referidos benefícios recairá sobre quem argüir a existência de tais fatos”.


Adotamos o posicionamento no sentido de que esta forma de comprovação da qualificação da licitante como ME ou EPP, instrumentalizada numa simples declaração, não a exime de responder por qualquer conduta que implique em falsidade da declaração (artigo 299, CP), conluio ou qualquer prática danosa à competitividade no certame (artigo 7º, Lei nº 10.520/02).


IV) O deferimento de prorrogação de prazo para a comprovação da regularidade fiscal


Novidade trazida pelo Decreto nº 6.204/07 diz respeito às situações excepcionais relativas à possibilidade de prorrogação do prazo para a comprovação de regularidade fiscal. Conquanto o artigo 43, parágrafo 1º, do Estatuto, preveja o prazo de 02 (dois) dias úteis, somente o Decreto nº 6.204/07 as previu em seu artigo 4º, parágrafo 3º – urgência na contratação ou prazo insuficiente para o empenho.


Um primeira observação que se faz necessária, alcança a previsão de tais situações no instrumento convocatório. Parece-nos que, diante da existência de motivos que podem render ensejo à caracterização destas situações excepcionais, aconselha-se que estas venham expressas no edital, de forma a bem garantir o andamento do procedimento, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, e prevenindo futuras demandas e administrativas e judiciais. Aliás, não se pode olvidar que a concessão do prazo de dois úteis para a regularização da situação fiscal é direito da ME ou EPP, conforme se extrai do já referido artigo 43, §1º, do Estatuto.


Neste contexto, comenta o insigne professor Jessé Torres[5] que “a urgência de contratação constitui conceito jurídico indeterminado, a ser avaliado nas circunstâncias do caso. Se a Administração concluir pela urgência, terá o motivo necessário e suficiente para indeferir o pedido de prorrogação. Caso contrário, motivo não haverá para o indeferimento e a prorrogação se impõe, sob pena de invalidade da decisão que a indeferisse. Não há solução intermediária, nos termos da norma”.


V) A Convocação dos licitantes remanescentes


Acerca deste tema, cuja previsão envolve a aplicação dos artigos 43, parágrafo 2º, da LC nº 123/07 e do artigo 4º, parágrafo 4º, do Decreto nº 6.204/07, indubitavelmente, este é um dos assuntos mais polêmicos, inclusive com a existência de posicionamentos doutrinários divergentes.


Verifica-se que a celeuma na doutrina decorre da própria ausência de tratamento quanto aos licitantes remanescentes, em caso de inércia do primeiro colocado, tanto pela LC nº 123/06 quanto pelo Decreto nº 6.204/07. Diante disto, indaga-se: é cabível a adoção do artigo 64, parágrafo 2º, da Lei 8.666/93 aos licitantes remanescentes, isto é, devem aceitar o prazo e as condições do primeiro classificado?


Da análise da esparsa doutrina que trata do tema, atesta-se que relativamente à hipótese do pregão, há entendimento uníssono acerca do tratamento a ser atribuído aos convocados remanescentes, uma vez que o artigo 4º, incisos XVI e XVII estabelecem a possibilidade de, em caso de desatendimento das exigências habilitatórias pelo licitante classificado em primeiro lugar, o pregoeiro negociar com o proponente para que seja obtido preço melhor[6].


Exemplificando esta assentada, manifesta-se Jessé Torres Pereira Júnior[7]:


“Logo, quando a participação da micro ou pequena empresa se der em licitação mediante pregão, e ocorrer a situação descrita no art.43, §2º, da LC Nº 123/06, estar-se-á diante de conflito de normas de igual hierarquia (recorde-se que o Supremo Tribunal Federal, na ADC nº 1/DF, DJU de 16.06.95, já afastou a suposição, que alguns sustentavam, de que lei complementar ocuparia status superior ao da lei ordinária, na pirâmide do direito positivo brasileiro).


Para ao final, arrematar:


“Mais uma questão, enfim, para cujo esclarecimento doutrina e jurisprudência deverão suprir a obscuridade da lei”


A divergência doutrinária se instaura de fato quando da análise das modalidades concorrência, da tomada de preços e do convite. Atesta-se que o preclaro publicista Jair Santana em artigo específico sobre este ponto, revendo sua opinião inicial, posiciona-se favoravelmente à aplicação, posicionando-se favoravelmente a aplicaçPinto Coelho Motta trazido pela DALC/SCI, verificamos que o publicista Jair Santana  do limite do artigo 64, §2º nas modalidades acima mencionadas. Eis as razões apresentadas, as quais corroboram-se:


A LC nº 123/06, quando tratou da convocação de remanescente, não só pretendeu racionalizar o certame, mas também (e como motivo de sua razão de ser) desejou que outro microempresário ou empresário de pequeno porte tivesse a mesma oportunidade que teve aquele que não logrou êxito na finalização do certame.


O convocado remanescente se já habilitado (o que ocorreria em todas as modalidades que não o pregão), o será para assinar o contrato; e então ele será considerado adjudicatário. E se já ostentará a condição de adjudicatário, parece-nos que deve se submeter às restrições do art. 64, § 2º, da Lei nº 8.666/93.


Em tal caso, a aceitação da posição (assume o lugar de quem originariamente seria o contratado) deve obrigatoriamente se dar pelas melhores condições reveladas pelo procedimento licitatório até então. Ou seja, o remanescente convocado (nas licitações tradicionais ou convencionais) deve assumir a proposta feita em igualdade de condições, inclusive em relação ao preço. (g.n.).


Realmente, posicionamo-nos ser esta a melhor solução para o deslinde da controvérsia, uma vez que, sob o critério formal, conforme consignou o ilustre professor Jessé Torres Pereira Junior, nada obsta a própria aplicação da Lei nº 8.666/93, bem como pelo critério material, em que, ao assegurar a incidência do artigo 64, §2º daquela Lei, estar-se-á possibilitando a prevalência da supremacia do interesse público, princípio informador do procedimento licitatório.


VI) O Tipo menor preço definido pelo Decreto nº 6.204/07


Ao disciplinar sobre o critério de desempate, com preferência para a ME ou EPP (artigos 44 e 45, LC nº 123/06 e artigo 5º do Decreto 6.204/07), com a regra obrigatória na condução do certame licitatório (10% para as demais modalidades e 5% para o pregão), a inovação ao ordenamento veio à lume com o artigo 5º, Decreto 6.204/07, com a fixação do tipo menor preço.


Acerca dos demais tipos de licitação, não nos parece que se possa afirmar veementemente que a estes também não se aplicam o critério de preferência mencionado no tópico anterior. O fato de a LC nº 123/06 ter se silenciado quanto a este aspecto, vindo o Decreto nº 6.204 a estabelecer o tipo menor preço, não garante que somente a este é aplicada a previsão regulamentar, uma vez que nos tipos técnica e preço e melhor técnica, o fator “preço” continua sendo relevante para selecionar a proposta vencedora.


Robustece este posicionamento, o professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes[8] ao comentar este aspecto do Decreto n.º 6.204/07:


O Decreto prefere a linha mais ortodoxa, que a aplicação dos benefícios se faça nas licitações de menor preço.


A inovação do decreto merece maior reflexão: primeiro por que a LC nº 123 é o omissa a respeito?; segundo, por que o inciso III do art.1º do decreto, repetindo a lei, declara que o objetivo do tratamento favorecido é, também o incentivo à inovação tecnológica?


A norma deveria, pois, ter dado espaço às licitações dos tipos técnica e preço e melhor preço. A doutrina deu bom substrato de apoio a esta tese, que lamentavelmente não foi considerada pelo Executivo.” (g.n.).


Reforçando-se a auto-aplicabilidade do benefício previsto nos artigos 44 e 45, da LC nº 123/06, devendo ser observados automaticamente pela Administração Pública, independentemente de qualquer provocação do interessado, colhemos a precisa lição de Marçal Justen Filho[9]:


“Não há cabimento em exigir que a pequena empresa requeira a incidência do regime em questão. Cabe à Administração Pública, verificando que a proposta formulada por uma pequena empresa é superior à proposta vencedora em até 10% (ou 5%, em caso de pregão), reconhecer a ocorrência do empate ficto e propiciar a oportunidade para a aplicação das regras de preferência previstas na LC nº 123”.


Da análise dos dispositivos, apura-se que o artigo 5º, do Decreto nº 6.204/07, trouxe no parágrafo 5º norma não prevista na LC nº 123/06, mas que se substancia em imperioso implemento pela Administração para as outras modalidades que não a do pregão, devendo constar nos editais, ex vi:


Artigo 5º. Nas licitações do tipo menor preço, será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte (…)


§ 5º Não se aplica o sorteio disposto no inciso III do § 4o quando, por sua natureza, o procedimento não admitir o empate real, como acontece na fase de lances do pregão, em que os lances equivalentes não são considerados iguais, sendo classificados conforme a ordem de apresentação pelos licitantes.” 


VII) As licitações diferenciadas e simplificadas


 No que se refere às licitações ditas diferenciadas e simplificadas (arts. 47 e 48 da LC 123/06 e artigos 6º a 8º do Decreto nº 6.204/07), da análise dos dispositivos, verifica-se inicialmente quanto às exclusivas licitações de até R$ 80 mil, a disparidade entre os comandos da LC nº 123/06 e do Decreto nº 6.204/07 – faculdade versus “poder-dever” (artigo 48, inciso I, LC nº 123/06); a discricionariedade administrativa de licitação para a subcontratação de pequenas empresas pelas médias e grandes empresas, desde que respeitado o limite de 30% do total licitado (art.48, inciso II, LC 123/06); e, a prudência na adoção da reserva de cotas para aquisição de bens e serviços de natureza divisível, estabelecido o teto de 25% (vinte e cinco por cento), cabendo-nos tecer considerações relevantes.


Há que se ter em vista que os benefícios previstos no artigo 48 são vinculados à realização das finalidades previstas no artigo 47. Pretendeu o legislador, por intermédio destes, conferir concretude aos fins do artigo 47 (promoção do desenvolvimento econômico e social em âmbito municipal e regional, ampliação da eficiência das políticas públicas e incentivo à inovação tecnológica).


Interessante análise realiza Marçal Justen Filho[10] entre a compatibilidade dos meios e fins, ao aduzir que ausente esta, configurar-se-á a inconstitucionalidade da restrição, por ofensa ao princípio da proporcionalidade:


“Somente haverá validade na regulamentação da hipótese se for possível evidenciar que a solução prevista for apta a respeitar a dupla instrumentalização referida, de modo a que o meio (preferência em favor de pequenas empresas) seja adequado e proporcionado à realização dos fins indicados no art.47.”(g.n.).


VII.1) Licitações exclusivas até R$ 80 mil


Para a utilização desta primeira forma de restrição permitida (exclusividade para pequenas empresas em certames de até R$80 mil), no dizer do pré-citado ilustre publicista[11], “será preciso evidenciar a necessidade e a adequação da restrição, eis que potencialmente incompatível com um dos postulados fundamentais da licitação (o acesso mais amplo dos interessados em participar do certame”).


Além do critério acima mencionado – compatibilidade da necessidade e adequação da restrição-, mister que se observe também o artigo 49 da Lei, ao prescrever que não se aplicará este dispositivo quando não houver previsão no instrumento convocatório (art. 49, inciso I, LC nº 123/06), bem como os demais critérios dos incisos II a IV. Portanto, conclui-se que nem sempre a regra das licitações exclusivas para pequenas empresas, em razão do valor, será aplicada.


VII.2) A possibilidade de subcontratação


À segunda hipótese de restrição permitida (art.48, inciso II, LC nº 123/06), relativa à exigência de que o futuro contratado promova a subcontratação em favor da pequena empresa, evidencia Jonas Lima[12] que a “própria Lei 8.666/93 já estabelecia a figura da subcontratação, a teor do disposto no artigo 72”, acrescentando que:


“O antigo mecanismo da subcontratação sempre sofreu rejeição, em razão de casos de irregularidades, especialmente em obras públicas. Mas a idéia da nova Lei, diz respeito à possibilidade de uma pequena empresa começar a entrar no mercado governamental abrigada ou amparada em um contrato de uma maior, até chegar ao ponto em que tenha condições de competir sozinha, ou seja, ‘andar com seus próprios pés’”. (g.n).


 Na aplicação desta hipótese de contratação, problema que poderia ser aventado pelo aplicador da lei complementar e de sua norma regulamentadora diz respeito aos riscos na subcontratação, isto é, a assunção de responsabilidades por inexecução ou falhas na execução contratual. De forma a prevenir tal problema, o artigo 7º do Decreto nº 6.204/07 adotou uma série de regras, que deverão ser estabelecidas nos instrumentos convocatórios sob pena de desclassificação, a saber (as principais):


Art.7º (…)


II – que as microempresas e empresas de pequeno porte a serem subcontratadas deverão estar indicadas e qualificadas pelos licitantes com a descrição dos bens e serviços a serem fornecidos e seus respectivos valores;


III – que, no momento da habilitação, deverá ser apresentada a documentação da regularidade fiscal e trabalhista das microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas, bem como ao longo da vigência contratual, sob pena de rescisão, aplicando-se o prazo para regularização previsto no § 1º do art. 4º;


 IV – que a empresa contratada compromete-se a substituir a subcontratada, no prazo máximo de trinta dias, na hipótese de extinção da subcontratação, mantendo o percentual originalmente subcontratado até a sua execução total, notificando o órgão ou entidade contratante, sob pena de rescisão, sem prejuízo das sanções cabíveis, ou demonstrar a inviabilidade da substituição, em que ficará responsável pela execução da parcela originalmente subcontratada;” (grifou-se).


Portanto, conclui-se que a contratação nesta hipótese se revela facultativa. Contudo, em se decidindo adotá-la, as regras contidas no artigo 7º, Decreto 6.204/07, deverão ser observadas tanto na licitação como na execução contratual, como forma de se evitar prejuízos ao interesse público.


VII.3) A licitação por cota reservada


Afigura-nos que, quanto à terceira hipótese (divisão do objeto licitado em cota de até 25% do total), prevista nos artigos 48, III, LC 123/06 e 8º, Decreto nº 6.204/07, como bem observa Marçal Justen Filho, “essa alternativa não pode conduzir à eliminação da licitação nem modificação da modalidade cabível em vista do valor global da contratação”[13].


Ilustra Joel Menezes Niebuhr[14] que conclui ser contrário ao princípio da eficiência a possibilidade de ocorrência de preços diferentes para o mesmo objeto em decorrência da existência de cota reservada e principal concomitantemente, ressaltando o autor que, como nas demais hipóteses de restrição permitida, não será realizado este tipo de contratação caso não haja previsão no instrumento convocatório (art.49, inciso I, LC 123/06). Acresça-se que não será possível quando incidentes os outros limites (art.49, II a IV, LC 123/06).


Reforça ainda o supramencionado publicista que, contrariamente à primeira hipótese, tanto o artigo 48, inciso III, da LC nº 123/06, quanto o artigo 8º, do Decreto nº 6.204/07, conferem à Administração uma faculdade na realização deste tipo de contratação, pelo que de acordo com os critérios de conveniência e oportunidade, a decisão relativamente à sua adoção compete ao gestor do órgão, posicionamento que entendemos ser mais consentâneo com os fins deste tipo de licitação diferenciada.


VIII) Conclusão


Após todos os aspectos enfrentados ao longo deste trabalho, pode-se asseverar que o complexo de normas a que estão submetidos os que operam diretamente com licitações, contratos e compras governamentais vem aumentando ao longo do tempo, o que demanda o surgimento de controvérsias infindáveis, cujas soluções muitas vezes dependerão da prática e da expertise dos gestores públicos.


Neste contexto, na aplicação das inovações da Lei Complementar nº 123/06 e do Decreto nº 6.204/07, assiste-se ao surgimento de novas questões, que aqui se denominou de “polêmicas”, mas sem a pretensão de esgotá-las, visto que certamente outras surgirão, para as quais, confia-se que esta iniciativa possa ter trazido subsídios para melhor enfrentamento das questões.


 Por fim, avista-se a possibilidade a edição de outros diplomas normativos que melhor atribuam concretude aos mandamentos constitucionais, conferindo tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às ME e EPP, bem como se resguardando sempre o interesse público primário na obtenção de melhores contratações, o que beneficiará toda a sociedade.


 


Referências bibliográficas

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Notas:

[1] Para maiores detalhes, recomenda-se acessar o endereço: http://www.esaf.fazenda.gov.br/cursos/IV-semana-AOFP-2007/oficina.html. Acesso em maio de 2008.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p.11.

[3] O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p. 49.

[4] O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p.37.

[5] JUNIOR, Jessé Torres Pereira. O Tratamento diferenciado às Microempresas, Empresas de Pequeno Porte e Sociedades Cooperativas nas Contratações Públicas, segundo as Cláusulas Gerais e os Conceitos Jurídicos Indeterminados acolhidos na Lei Complementar 123/06 e no Decreto Federal 6.204/. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, n. 74, ano 7 fev. 2008, pag. 7 a 38. Disponível em:


[6] SANTANA, Jair Eduardo. Estatuto das Microempresas e Licitação – Ensaio sobre a interpretação do § 2º do art. 43 da LC Nº 123/06 – A convocação de remanescentes derivada da inabilitação pelo não-saneamento da regularidade fiscal. Em http://www.zenite.com.br, acesso em 30/06/2008.

[7] PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei de licitações e contratações da administração pública, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.387.

[8] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Regulamento do Estatuto da Pequena e Microempresa – Decreto nº 6.204/07. Fórum Administrativo – Direito Público – FADM, Belo Horizonte, n.80, ano 7 out. 2007. Disponível em http://www.ediforum.com.br/sist/conteudo/lista_conteudo.asp? FIDT_CONTEUDO=47771. Acesso em 29/11/2007.

[9] O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p.68.

[10] O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p.82/83.

[11] O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p.84.

[12] LIMA, Jonas. Lei Complementar 123/06 – Aplicações in Coleção 10 anos de Pregão, Curitiba, 2008, p.53.

[13] O Estatuto da Microempresa e as Licitações Públicas, São Paulo: Dialética, p.84.

[14] NIEBUHR, Joel de Menezes. Tratamento Diferenciado e Simplificado para Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. Disponível em www.zenite.com.br. Acesso em 03/06/2008.

Informações Sobre o Autor

Leonardo Ayres Santiago

Assistente Jurídico da Presidência do TRT/RJ – Analista Judiciário; Especialista em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense e em Direito Processual Civil pela UVA; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Equipe Âmbito Jurídico

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