Sumário: 1. Introdução. 2. Princípios jurídicos e seus limites objetivos. 3. PIS/COFINS: a não-cumulatividade das contribuições. 3.1. Breve histórico. 3.2. O conceito de “não-cumulatividade” do PIS/COFINS. 3.3. A não-cumulatividade do PIS e da COFINS como um princípio constitucional após a EC nº 42/03. 3.4. As inconstitucionalidades das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03. 3.4.1. Violação à plenitude da não-cumulatividade. 3.4.2. Violação à capacidade contributiva, à isonomia constitucional e à vedação ao confisco em relação aos prestadores de serviços. 3.4.3. Inconstitucionalidades formais das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
Desde as suas respectivas criações, as contribuições ao PIS e à COFINS já suscitaram incontáveis questionamentos. E não é por menos, afinal, em razão de referidas contribuições gerarem receitas ao Erário que não precisam ser repartidas com os demais entes federativos, a União Federal sempre pretendeu aumentar a arrecadação do PIS/COFINS mediante sucessivas alterações na legislação que, não raras vezes, esbarraram em ilegalidades e/ou inconstitucionalidades.
Neste contexto se insere a transição do regime de apuração das contribuições (de cumulativo para não-cumulativo) veiculada ao PIS pela Lei no. 10.637/02 e à COFINS pela Lei no. 10.833/03. Segundo essas leis, o sistema legal de abatimento de créditos (a pretensa “não-cumulatividade”) instituído ao PIS/COFINS se refere apenas a algumas despesas suportadas pelos contribuintes no desenvolvimento de suas atividades e, ainda, apenas a alguns contribuintes.
Afigura-se relevante examinar, então, se esta sistemática é válida em face do princípio da não-cumulatividade do PIS/COFINS, previsto no artigo 195, §12, bem como do princípio da isonomia, previsto nos artigos 5º e 150, II, todos da Constituição Federal.
O exame desse questionamento demanda análise acurada dos princípios jurídicos, seus valores e seus limites objetivos, mormente dos dispositivos que regulam a não-cumulatividade das contribuições no plano constitucional, em cotejo com as prescrições infraconstitucionais sobre o mesmo tema.
Assim sendo, o estudo abaixo formulado analisará inicialmente como os princípios jurídicos influenciam a obtenção da significação subjetiva extraída dos textos legais (normas jurídicas). Após, os esforços serão no sentido de caracterizar a não-cumulatividade não só como um princípio jurídico, mas também como limite objetivo do PIS/COFINS, cuja observância é obrigatória pela União ao instituí-lo e cobrá-lo.
A partir desse momento, será possível visualizar com mais clareza como a não-cumulatividade afeta a regra matriz desses tributos, além de determinar quais os limites da regulamentação infraconstitucional da não-cumulatividade.
O assento dessas premissas nos permitirá concluir se a forma como a qual a não-cumulatividade das contribuições foi disposta pelas Leis no. 10.637/02 e 10.833/03 obedece, ou não, às determinações constitucionais sobre a matéria, bem como ao princípio da isonomia.
Por fim, analisaremos se as Leis no. 10.637/02 e 10.833/03 podem ser consideradas constitucionais do ponto de vista formal.
Calha ressaltar, nessa vereda, que o estudo abaixo formulado não abordará tantos outros pontos que foram ou ainda estão sendo questionados no Poder Judiciário, a exemplo do alargamento da base de cálculo das contribuições veiculada pela Lei nº 9.718/98, cujo julgamento já foi levado a termo pelo Supremo Tribunal Federal, ou mesmo da exclusão da base de cálculo das contribuições dos valores faturados, entretanto, inadimplidos nas vendas realizadas pelos contribuintes do PIS e da COFINS, que vem sendo defendida pelo TRF – 1ª Região.
Avancemos aos argumentos.
2. OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS E SEUS LIMITES OBJETIVOS
Segundo a língua portuguesa, princípio quer dizer começo, início, primeiro momento da existência de algo ou de uma ação ou processo[1]. Mas para o Direito, consoante a lição de Paulo de Barros Carvalho[2], “(…) os princípios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhe caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas (…)”.
Mas é possível sustentar que princípios jurídicos são normas jurídicas? Para responder esta questão é necessário examinar, antes, o que são “normas jurídicas”.
Normas jurídicas são significações obtidas pelo intérprete a partir da leitura de uma linguagem prescritiva válida no ordenamento jurídico em vigor, imbuída de enunciados e significados capazes de instalar uma relação jurídica nos termos dos modais deônticos “permitido”, “obrigado” ou “proibido”.
Tais normas, consoante a lição de Paulo de Barros Carvalho[3], estão sempre impregnadas de valores que, por sua vez, exercem influências sobre o ordenamento. Estes valores são justamente os “princípios”. Mas, segundo ele, além de meros valores, os “princípios” também podem denotar os limites objetivos da norma, que são postos para “(…) atingir certas metas, certos fins (…)”.
O professor Cristiano Carvalho[4] também aborda a questão e a esclarece. Segundo ele, o núcleo do ordenamento são os princípios constitucionais. Os princípios que enunciam valores são aqueles que fundamentam o sistema jurídico. Já os enunciados que determinam limites objetivos para que se busque esses valores são as ferramentas de sua instrumentalização. Uma fórmula bastante útil para se estabelecer a diferença entre valores e limites objetivos é, segundo o autor, identificar elementos de mensuração e exaurimento: se se encontrar comensurabilidade, estar-se-á diante de limites objetivos; do contrário serão valores obtidos pelo exame desses limites objetivos.
Parece ser assente, portanto, que à doutrina os princípios jurídico-tributários não seriam normas jurídicas propriamente, mas sim valores que podem ser alcançados pelos limites objetivos, que se afiguram como mecanismos práticos a sua instrumentalização.
Este não é o entendimento, entretanto, de Roque Antonio Carrazza[5]. Para ele, princípios são normas qualificadas que exibem excepcional valor aglutinante e indicam como devem aplicar-se as normas jurídicas, seu alcance, como combiná-las e quando outorgar precedência a algumas delas.
Não perfilhamos este entendimento. É que, conforme já afirmamos, as normas jurídicas são na verdade significações obtidas pelo intérprete a partir de um enunciado prescritivo válido perante um sistema. Esta validez se dá pela análise da enunciação da norma.
Mas o que é “enunciação”? Deste conceito decorrem outros? Cremos que sim. Vemo-nos, então, impelidos a fazer digressões aos conceitos de “enunciado”, “enunciação” e “enunciação-enunciada”, propostos de maneira proeminente pelo professor Tárek Moysés Moussallem[6].
“Enunciados” são os símbolos lingüísticos documentados em um suporte físico estruturado frasicamente de acordo com as regras gramaticais, que tenha sentido e seja capaz de transmitir uma mensagem. “Enunciação”, por sua vez, é o ato de enunciar. E, como um ato que é, a enunciação se esgota no tempo, especificamente no momento em que o autor do enunciado termina de redigir os símbolos gráficos que os compõem, de modo que não é mais possível dizer quem, como, onde e quando o enunciado foi produzido.
A “enunciação-enunciada” vem a resolver esta celeuma. Este termo designa as marcas de tempo, espaço, procedimento e pessoa que possibilitam o intérprete a reconstruir mentalmente o ato de enunciação. Em um texto normativo, é a “enunciação enunciada” que permite ao jurista identificar quando o texto foi produzido, onde o foi, o procedimento adotado para sua produção, bem como que autoridades o introduziram no sistema.
Normas jurídicas obtidas dos textos legais carregam consigo a “enunciação-enunciada”, e por isso é possível verificar se as normas de estrutura que a precedem foram observadas. E se assim o é, como de fato assim parece ser, então as normas jurídicas são necessariamente precedidas de uma outra norma que delimite os meios de sua produção.
Tal não ocorre com os princípios, afinal, conforme afirmado inclusive por Roque Antonio Carrazza[7], do ponto de vista etimológico, “princípio” quer dizer começo, alicerce, ponto de partida, sendo, em razão disto, “(…) a pedra angular de qualquer sistema (…)”, ou seja, que não é precedido por qualquer norma de produção.
Portanto, entendemos que a razão caminha com Paulo de Barros Carvalho[8], para quem, conforme já transcrevemos anteriormente, “(…) os princípios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhe caráter de unidade relativa e servindo de fato de agregação num dado feixe de normas (…)”.
Logo, não há semelhança entre princípios e normas jurídicas. O que há, e isto é certo, são limites objetivos firmando, a partir de enunciados prescritivos, o ponto de partida normativo ao intérprete aferir o valor decorrente e, com isto, alcançar o princípio respectivo.
Fixados esses conceitos, passemos ao enfrentamento das questões que nos propomos a desbravar.
3. PIS/COFINS: A Não-Cumulatividade das Contribuições
3.1. Breve Histórico
A não-cumulatividade do PIS e da COFINS não foi inicialmente prevista pela Constituição Federal, mas sim pela legislação infraconstitucional. Por essa razão, urge um breve histórico sobre o tema para que tenhamos visão completa das questões que envolverão as respostas das questões a que nos propusemos enfrentar.
Vamos a ele.
O artigo 149, da Constituição Federal, conferiu à União Federal a competência para instituir contribuições sociais, que devem ter como hipóteses de incidência possíveis aquelas arroladas no artigo 195, também da Constituição Federal.
Esta competência foi exercida pela União em relação à COFINS com a Lei Complementar nº. 70/91, que a instituiu. Segundo esta legislação, a COFINS era então calculada pela alíquota de 2% sobre o “faturamento mensal, assim considerada a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de quaisquer natureza”.
O PIS, por sua vez, já havia sido instituído pela Lei Complementar nº. 7/70 e foi recepcionado pelo atual ordenamento por meio do artigo 239 da Constituição Federal. Naquele tempo, o PIS era calculado pela alíquota de 0,75% sobre o faturamento. Com a Lei nº. 9.715/98, este percentual foi minorado a 0,65%.
Posteriormente veio a Lei nº 9.718/98, que alargou a base de cálculo de ambas as contribuições e aumentou a alíquota da COFINS para 3%. Até então, a cobrança do PIS e da COFINS eram cumulativas.
Este cenário foi mantido até as Leis nº. 10.637/02 e 10.833/03, que em suma modificaram o regime de apuração das contribuições de cumulativo para não-cumulativo. Em contrapartida, suas alíquotas foram majoradas para 9,25% (1,65% relativo ao PIS e 7,6% à COFINS).
Essa não-cumulatividade foi desenhada segundo o alvedrio do legislador ordinário porque não havia, até então, qualquer preceito constitucional impondo a sistemática na apuração dos tributos. Restringiu-se, portanto, a um sistema legal de abatimento de créditos apropriados em razão das despesas e aquisições de bens e serviços relacionadas no artigo 3º de ambas as leis[9].
Posteriormente, a Emenda Constitucional (EC) nº 42/03 inseriu o §12 ao artigo 195[10], conferindo status constitucional à não-cumulatividade do PIS/COFINS.
A partir desse momento, a não-cumulatividade não pôde mais ser interpretada exclusivamente pelas prescrições das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03. Passou a ser imprescindível verificar a conformação dessas disposições ao artigo 195, §12, da Constituição Federal.
E, de acordo com ele, à legislação infraconstitucional cabia apenas definir os setores da economia que se sujeitam ao regime não-cumulativo do PIS e da COFINS, nada mais. Disto decorre que, segundo a própria Constituição Federal, a não-cumulatividade das contribuições deveria ser plena às atividades econômicas inseridas neste regime pela legislação infraconstitucional.
Mas como é possível aferir a plenitude da não-cumulatividade do PIS e da COFINS se a Constituição Federal não traçou regras claras em seu texto? É o que investigaremos nas linhas seguintes.
3.2. O Conceito de “Não-Cumulatividade” do PIS e da COFINS
Se por um lado o constituinte acertou em dispor sobre a não-cumulatividade no texto constitucional, por outro errou ao não estabelecer claramente suas regras. Este silêncio, no entanto, não indica que o legislador tem liberdade para disciplinar livremente o tema, porquanto a mera menção à não-cumulatividade denota a existência de certos preceitos que devem ser seguidos.
Socorrer-nos-emos às previsões dos artigos 155, §2º, e 153, §3º, inciso II, da Constituição Federal, para extrair o conceito constitucional da não-cumulatividade, muito embora reconheçamos desde já que a sistemática não-cumulativa do ICMS e IPI, que utiliza o método “imposto contra imposto” difere naturalmente da não-cumulatividade do PIS/COFINS, que se vale do Método Subtrativo Indireto, ou simplesmente “base contra base”, conforme comentamos brevemente na nota de rodapé nº 10.
Pois bem.
De acordo com referidos dispositivos, a não-cumulatividade é o princípio constitucional que garante ao contribuinte o direito de compensar em cada operação o montante de IPI e ICMS relativo às operações anteriores.
O valor imiscuído neste princípio ao ICMS e ao IPI é a desoneração da circulação de mercadorias e industrialização de produtos, razão pela qual esses impostos (ICMS e IPI) incidem apenas sobre o valor agregado às mercadorias e produtos ao longo das várias etapas da cadeia econômica. José Eduardo Soares de Melo tem a mesma conclusão[11].
Ora, se o valor constitucional é desonerar o preço das mercadorias pela extinção do efeito cascata dos impostos, então fica claro que “desoneração” é a palavra-chave do conceito de não-cumulatividade que se extrai da Constituição Federal.
Este conceito deve ser empregado também à sistemática de apuração do PIS/COFINS prescrita do já mencionado artigo 195, §12, da Constituição Federal. Evidentemente, a não-cumulatividade das contribuições não tem o escopo de desonerar a circulação/produção de mercadorias (como o é no ICMS e IPI), mas sim o faturamento dos contribuintes, como corrobora o entendimento de Waldir Luiz Braga e Valdirene Lopes Franhani[12].
À perfeita realização do artigo 195, §12, a legislação infraconstitucional deveria eleger os setores da economia que fariam jus ao regime não-cumulativo e, aos contribuintes destes setores, viabilizar a completa e irrestrita desoneração de seus faturamentos.
E mais. Esta regra não se caracteriza como uma mera recomendação do constituinte, mas sim como um princípio constitucional de observância obrigatória. Vejamos.
3.3. A Não-Cumulatividade do PIS e da COFINS como um Princípio Constitucional após a EC no 42/03
Conforme a lição do professor Luciano Amaro[13], a Constituição Federal não cria tributos, mas sim outorga competências tributárias aos entes políticos para fazê-lo. Realmente, o que o constituinte fez foi, após delinear os contornos da regras matrizes de cada tributo, autorizar que as pessoas jurídicas de direito público da administração pública direta, ao exerceram suas atividades legislativas, instituam os tributos que lhes competem.
E, muito embora a Constituição Federal não crie tributos, mas apenas outorgue competência às pessoas políticas para fazê-lo, a regra matriz da norma tributária deve estar prevista no texto constitucional, e de fato o é.
O professor Luis César Souza de Queiroz[14] ensina que a regra matriz é a fórmula lógica do condicional que se apresenta como sendo a adequada a revelar a estrutura das normas jurídicas. Por força da norma jurídica, tem-se que, necessariamente, se ocorrer um determinado fato, isso implicará um certo efeito jurídico.
Este exame já nos autoriza dizer que a norma jurídica tem estrutura bipartida: uma implicante, também denominada antecedente, que irá discriminar a hipótese de incidência por meio do “descritor”; outra implicada, também chamada de conseqüente, que irá estatuir pelo “prescritor” os efeitos jurídicos deflagrados pela tomada de conduta prevista no antecedente.
Nossa análise irá estabelecer relação direta entre o implicante, ou seja, o antecedente da norma jurídica tributária, com seu conseqüente.
A doutrina mais credenciada identificou 03 (três) elementos que compõem o antecedente da regra matriz da norma jurídica tributária: critério espacial, critério temporal e critério material.
O critério espacial é aquele que indica o lugar e/ou região onde a norma tributária incide. O professor Paulo de Barros Carvalho[15] nota que há regras jurídicas que trazem expressos os locais em que o fato deve ocorrer, a fim de que irradie os efeitos que lhe são característicos, mas outras, porém, nada mencionam, carregando implícitos os indícios que nos permitem saber onde nasceu o laço obrigacional. É o caso, por exemplo, do IPTU e do ITBI, cuja norma tributária irá alcançar somente os imóveis localizados no perímetro urbano do município que instituiu o imposto.
Já o critério temporal é o marco de tempo em que se dá por ocorrido o fato, possibilitando ao sujeito da relação jurídica o conhecimento do momento em que se iniciam seus direitos e obrigações.
Quanto ao critério material, o professor José Eduardo Soares de Melo[16] leciona que este consiste em determinados negócios jurídicos, estados, situações, serviços e obras públicas, dispostos na Constituição, que representam fenômeno revelador de riqueza (aspecto econômico), sejam praticados ou pertinentes ao próprio contribuinte ou exercidos pelo poder público.
Em complemento a esta definição, Luis César Souza de Queiroz[17], afirma que o critério material informa o núcleo da conduta descrita no antecedente das normas tributárias, representado por um verbo pessoal e um complemento.
Portanto, o aspecto material do antecedente da norma impositiva deve descrever a conduta de um sujeito de direito e também identificar o complemento desta conduta. Tome-se como exemplo o imposto previsto no artigo 156, inciso II, da Constituição Federal: conforme ali delineado, o Município poderá instituir imposto sobre transmissões de bens imóveis e de direitos reais por ato oneroso. Tem-se, então, o verbo pessoal “transmitir” acompanhado do complemento “bens imóveis e de direitos reais por ato oneroso”.
E, efetivando-se o fato relatado no antecedente, projetam-se os efeitos prescritos no conseqüente, conforme a lição de Paulo de Barros Carvalho[18]. Quer dizer que o conseqüente normativo é, na verdade, uma proposição de relação que envolve 02 (dois) ou mais sujeitos de direito a uma relação jurídica tida como obrigatória, permitida ou proibida, sendo o núcleo desta relação a função “dever-ser” (dado um fato F, deve ser uma conduta C do sujeito S1 perante o sujeito S2).
Muito bem.
Conforme já dissemos, a não-cumulatividade do PIS/COFINS está prevista no artigo 195, §12, da Constituição Federal. De sua análise, extrai-se a seguinte norma jurídica: “dada a competência tributária da União para impor o PIS/COFINS sobre o faturamento, deve ser observada a não-cumulatividade das contribuições”.
A Constituição Federal vedou, portanto, a cumulação do PIS e da COFINS do faturamento dos contribuintes ao longo das várias cadeias de comercialização de determinada mercadoria, de modo a expurgar o efeito cascata das contribuições.
Esse valor se afigura como um princípio constitucional e também como um limite objetivo do referido princípio, i.e., prescrições normativas que viabilizam sua instrumentalização. E não se verifica na norma do artigo 195, §12, da Constituição Federal, qualquer vedação à não-cumulatividade do PIS/COFINS.
Mas as Leis no 10.637/02 e 10.833/03, ao preverem restrições a este regime, incorrem em inconstitucionalidades notórias, conforme será analisado exaustivamente no tópico seguinte.
3.4. As Inconstitucionalidades das Leis no. 10.637/02 e 10.833/03
3.4.1. Violação à Plenitude da Não-Cumulatividade
Segundo vimos, a não-cumulatividade constitucional do PIS/COFINS visa a desoneração do faturamento dos contribuintes. Esse preceito constitui um princípio jurídico livre de limitações e, portanto, não poderia ser de modo algum amesquinhado pela legislação infraconstitucional.
Pois bem.
A pretexto de introduzir a não-cumulatividade do PIS/COFINS, as Leis no. 10.637/02 e 10.833/03 criaram um sistema legal de créditos para posterior abatimento com débitos das contribuições. A apropriação desses créditos se dá em razão de certas despesas taxativamente descritos no artigo 3º de ambas as legislações[19].
Deste dispositivo, verifica-se que inicialmente a regra contida no artigo 195, §12, da Constituição Federal foi cumprida porque foram eleitos os setores da economia que se beneficiam do regime não-cumulativo das contribuições, afinal: (i) pelos incisos I, VIII e IX, os comerciantes foram incluídos na não-cumulatividade; (ii) pelos incisos II e VI, também o setor industrial foi incluído no regime; e (iii) pelos incisos III, IV, V e VII, os prestadores de serviços podem se beneficiar da não-cumulatividade porque, nestes incisos, estão previstas despesas que podem ser suportadas por eles.
Entretanto, o artigo 3º, ao estabelecer restrições à apropriação de créditos, milita em flagrante inconstitucionalidade, porquanto não há no texto constitucional autorização a essas restrições.
E as restrições são muitas.
Conforme o inciso II, apenas os insumos empregados no processo fabril conferem ao contribuinte o direito ao crédito, excluindo assim os insumos suportados por comerciantes (por exemplo, sacolas plásticas utilizadas por consumidores para transportar as mercadorias adquiridas e bobinas de papel utilizadas nas máquinas registradoras) e prestadores de serviços (a exemplo dos valores de mão-de-obra pagos a pessoa física, cuja vedação ao crédito é expresso no inciso I, §2º, do artigo 3º).
Mas, conforme aponta Natanael Martins[20], “o conceito léxico de insumo pode ser definido como um conjunto de fatores necessários para que a empresa desenvolva sua atividade”, o que obviamente não se restringe aos insumos empregados exclusivamente na atividade fabril da pessoa jurídica.
Logo, após a EC no 42/03, deveria a legislação prever o direito ao crédito a todos os insumos suportados pelos contribuintes do PIS/COFINS, independentemente de serem eles industriais, comerciantes ou prestadores de serviços, até porque, deve-se considerar que, além do princípio da não-cumulatividade plena do PIS/COFINS, que não prevê quaisquer restrições à tomada de créditos, está em jogo também o artigo 110 do CTN[21], segundo o qual os conceitos de direito privado não podem ser modificados para manejar a incidência de determinada norma de cunho tributário.
Não é só. O inciso VI também restringe o crédito sobre máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado à sua utilização na produção de bens ou na prestação de serviços. Aqui, a legislação beneficia apenas os industriais e prestadores de serviços em detrimento dos comerciantes.
Ora, mas se todos estes setores (industriais, comerciantes e prestadores de serviços) foram incluídos no regime não-cumulativo das contribuições, por que a legislação infraconstitucional estabelece vedações/restrições à apropriação de créditos se esta prerrogativa não lhe foi dada pela Constituição Federal?
A única resposta possível a esta indagação é a de que as Leis no 10.637/02 e 10.833/03 simplesmente não estavam autorizadas a estabelecer estas vedações e, por isso, incorrem em inconstitucionalidade incontestável.
3.4.2. Violação à Capacidade Contributiva, à Isonomia Constitucional e à Vedação ao Confisco em Relação aos Prestadores de Serviços
Conforme vimos, pelos termos do §2º, inciso I, do artigo 3º[22], os valores pagos à contratação de mão-de-obra que, frise-se, representam a maior despesa dos prestadores de serviços, não dão direito a crédito das contribuições.
Por isso, especialmente para os prestadores de serviços, a introdução do sistema não-cumulativo do PIS/COFINS representou apenas aumento das alíquotas das contribuições, uma vez que têm pouquíssimos créditos passíveis de apropriação.
Essa situação representa clara violação aos artigos 145, §1º, 150, II e IV, da Constituição Federal, que garantem, respectivamente: (i) a incidência fiscal de acordo com a capacidade contributiva do contribuinte; (ii) a igualdade fiscal entre os contribuintes que se encontrem em situações equivalentes; e (iii) a vedação do efeito confiscatório das exações tributárias.
Esta situação é ainda agravada pelo fato de que a exclusão de apenas alguns seguimentos do setor de prestação de serviços pelos artigos 8º da Lei nº 10.637/02 e 10 da Lei nº 10.833/03 potencializa ainda mais a desigualdade na tributação do PIS/COFINS: se todos os prestadores de serviços contam com poucos créditos passíveis de aproveitamento, então todos eles deveriam ser excluídos do regime não-cumulativo, não apenas alguns.
Esta desigualdade na tributação do PIS/COFINS vai contra inclusive a própria intenção do legislador que, ao instituir o regime não-cumulativo das contribuições, pretendia redistribuir a carga tributária entre os setores da economia e evitar a desigualdade fiscal que existia quando vigia o regime cumulativo para todos indistintamente[23].
Com base nesses argumentos, o TRF – 4º Região proferiu decisão determinando o retorno de determinado contribuinte prestador de serviços ao regime cumulativo do PIS/COFINS[24].
Não se tem notícia de quaisquer decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, sejam elas a favor ou contra da inconstitucionalidade defendida pelo TRF – 4º Região. Mas, levando-se em conta os argumentos em torno da matéria, é possível augurar que a declaração de inconstitucionalidade vingará também nos tribunais superiores.
3.4.3. Inconstitucionalidades Formais das Leis no 10.637/02 e 10.833/03
De acordo com o artigo 246 da Constituição Federal é vedada a regulamentação, por MP, de disposição constitucional cuja redação tenha sido alterada por meio de Emenda Constitucional promulgada entre 1º/01/95 até 11/09/01[25].
Diante disso, verifica-se o seguinte:
(i) a Emenda Constitucional nº 20/98 alterou em parte o regime do PIS/COFINS.
De fato, foi a partir da Emenda Constitucional nº 20/98 que passou a se permitir a incidência das contribuições sobre a totalidade das receitas dos contribuintes (seu faturamento), independentemente de suas respectivas classificações contábeis, incluindo-se aí receitas operacionais e não operacionais.
(ii) as Medidas Provisórias nos 66/02 e 135/03 (que originaram as Leis nº 10.637/02 e 10.833/03) foram editadas entre 1º/01/95 e 11/09/01.
Logo, tais Medidas Provisórias, de acordo com a Emenda Constitucional nº 20/98, jamais poderiam dispor sobre o PIS e a COFINS, inclusive modificando seus regimes de apuração (de cumulativo para não-cumulativo).
4. CONCLUSÃO
No atual sistema constitucional, os princípios jurídicos têm a função de orientar o intérprete na obtenção de normas jurídicas extraídas a partir da significação dos elementos textuais de determinados diplomas legislativos. São valores que, embora sejam subjetivos, podem ser obtidos por meio de seus limites objetivos, dos quais é possível construir uma norma jurídica, propriamente dita.
O valor que se pode obter do princípio constitucional da não-cumulatividade do PIS e da COFINS é a não cumulação das contribuições sobre o faturamento dos contribuintes.
Esse valor é construído em norma jurídica por meio dos limites objetivos da não-cumulatividade que, invariavelmente, moldam a forma como o PIS/COFINS deverá ser apurado e finalmente recolhido ao Erário. Segundo estes limites objetivos: (i) o mecanismo de apropriação de créditos ao abatimento de débitos não encontra quaisquer óbices na Constituição Federal, sendo sua aplicação ampla, plena e irrestrita; e (ii) em decorrência, não poderia a legislação infraconstitucional impor vedações à apropriação de créditos pelos contribuintes.
Por essas razões, do ponto de vista constitucional, os contribuintes do PIS e da COFINS carregam consigo o direito de apropriar créditos das contribuições sobre a totalidade de suas despesas após a Emenda Constitucional nº 42/03, independentemente da relação de despesas passíveis de créditos lançada no artigo 3º das Leis nº. 10.637/02 e 10.833/03, bem como de serem eles (os contribuintes) industriais, comerciantes e/ou prestadores de serviços.
Mais ainda: em relação aos prestadores de serviços, as Leis nº. 10.637/02 e 10.833/03 militam em flagrante inconstitucionalidade ao incluir apenas alguns prestadores de serviços no regime não-cumulativo e os demais no regime cumulativo das contribuições.
Isto porque: (i) ao excluírem o direito ao crédito sobre as despesas com mão-de-obra pagas a pessoas físicas, as Leis nº. 10.637/02 e 10.833/03 vedaram a “não-cumulatividade” sobre o maior encargo dos prestadores de serviços; (ii) consequentemente, a “não-cumulatividade” aos prestadores de serviços resultou apenas em majoração de carga tributária (de 0,65% para 1,65% referente ao PIS, e de 3% para 7,6% referente à COFINS); (iii) mas este aumento de carga tributária se aplicou a apenas alguns prestadores de serviços, já que outros tantos foram expressamente excluídos do regime não-cumulativo.
Houve, com isto, expressa e inquestionável ofensa aos artigos 145, §1º, 150, II e IV, da Constituição Federal, que contextualizam, respectivamente, os princípios da capacidade contributiva do contribuinte, da igualdade fiscal entre contribuintes que se encontram em situações equivalentes e da vedação do efeito confiscatório das exações tributárias.
Há, por fim, inconstitucionalidades formais na instituição do PIS e da COFINS não-cumulativas, porquanto o veículo introdutor eleito (Medidas Provisórias) não poderia ter sido utilizado a este fim, em razão da expressa vedação contida no artigo 246 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 42/03.
Advogado. Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP/COGEAE e em Tributação do Setor Industrial pel FGV (GVlaw). Membro do Conselho Consultivo da APET. Membro da Comissão dos Novos Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo, coordenador da Subcomissão de Direito Tributário e Financeiro. Professor dos Cursos de Especialização “Gestão Tributária & Contabilidade” e “Impostos Indiretos e PIS/COFINS”, ministrados pela APET.
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