A necessidade da tutela jurídica do superendividamento como forma de política pública de proteção ao consumidor

Resumo: Trata o presente trabalho da necessidade de positivação do fenômeno do superendividamento, tendo em vista o processo de complexização das relações de consumo em face do aumento da publicidade de massa. Nesse sentido, é notório que a indústria da publicidade visa a seduzir cada vez mais o consumidor/cliente diante da multiplicidade de produtos e serviços atualmente disponíveis a todos. Por conseqüência, o consumidor muitas vezes acaba comprando mais do que pode e, por óbvio, endivida-se, sem, no entanto, agir com a má-fé da pré-indisponibilidade ao adimplemento das dívidas. Sendo assim, o presente trabalho se dispõe não só a caracterizar a situação do superendividamento e a classificar os tipos de consumidor superendividados, mas acima de tudo, a defender a necessidade da criação de lei ou instrumento de política pública que possibilite ao consumidor a sua recuperação e reestruturação econômico-financeira.


Palavras chave: Direito do Consumidor. Superendividamento. Política Pública. Positivização. Relação de Consumo.


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Abstract: The present article is the need of positive phenomenon of over-indebtedness, bearing in mind the cumbersome process of consumer relations in the face of increased mass advertising. It is clear that the advertising industry increasingly aims to entice the consumer / customer before the multitude of products and services currently available to all. Consequently, consumers often end up buying more than you can and, obviously, indebtedness, without, however, act in bad of the unavailability of debt. Therefore, this paper is available not only to characterize the situation of over-indebtedness and classify the types of consumers heavily in debt, but above all, to advocate the creation of law or public policy instrument that allows the consumer to recover and economic and financial restructuring.


Keywords: Consumer Law. Debts. Public Policy. Positiveness. Value of consumption.


1.INTRODUÇÃO


Hodiernamente, a sociedade consumerista moderna tem se caracterizado pelo fornecimento irresponsável de créditos pelos fornecedores sem verificar as reais condições do reembolso futuro paralelamente ao consumo de bens e serviços pelo consumidor de maneira desenfreada. A publicidade, o marketing e os meios de comunicação de massa têm sido instrumentos utilizados pelos fornecedores para criar necessidades ao consumidor, e este, por sua vez acaba por aderir às irresistíveis propagandas estimuladoras de consumo. Este círculo vicioso, dentre outros motivos, tem levado muitos consumidores à falência, eis que se utilizam de créditos imensamente superiores ao que de fato poderiam solver posteriormente. As conseqüências do mau uso do sistema de crédito dirigido ao consumo tem sido drásticas no sentido do comprometimento da vida econômica do consumidor.


Aliados a esta realidade, somam-se outros fatores supervenientes que acabam por dificultar ainda mais o adimplemento da obrigação ou ainda até mesmo impossibilitá-lo de um todo. Tratam-se de situações inesperadas e indesejadas pelo consumidor a exemplo de doença, morte, divórcios, nascimento de filho, desemprego, que flagrantemente não são previstas por ele no momento da aquisição do crédito.


A soma destes fatores poderá dar origem ao fenômeno do superendividamento, o qual se caracteriza pela condição em que se encontra o indivíduo que possui um passivo (dívidas) maior que o ativo (renda e patrimônio pessoal) e precisa de auxílio para reconstruir sua vida econômico-fienceira.[1]


Na tentativa de reversão do quadro financeiro, reorganização da vida econômica e quitação total das dívidas, muitos consumidores têm comprometido todo seu patrimônio e renda e mesmo assim não tem obtido resultados satisfatórios quanto ao alcance de um equilíbrio econômico-financeiro.  A decretação insolvência civil, que visa apenas liquidar o patrimônio penhorável do devedor para satisfazer créditos pendentes tem sido a derradeira conseqüência na maior parte das situações.


Desse modo, verifica-se que a principal preocupação dos credores é apenas com a quitação dos débitos, não interessando se o consumidor possui meios para isso ou se terá que disponibilizar do seu mínimo vital para tanto.  Porém, o crédito não está prioritária e hierarquicamente à frente da dignidade do ser humano. Tal princípio fundamental deve ser fortemente invocado, pois deve permear, necessariamente, todas as relações jurídicas, uma vez que tem consagração constitucional e, portanto, não pode estar sendo abnegada nas situações em que se configura o superendividamento.


Há de se considerar, ainda, a vulnerabilidade como princípio norteador das relações consumeristas. A intenção do legislador quando da criação do Código de Defesa do Consumidor foi de promover um equilíbrio jurídico entre consumidor e fornecedor, dada a presumível desigualdade que caracteriza a relação de consumo. De um lado, o fornecedor que detém de meios persuasivos para induzir ao consumo e de outro, o consumidor que é a todo tempo estudado para melhor ser explorado quanto à instigação ao consumo. Neste sentido, para evitar o prejuízo do consumidor, o CDC confere instrumentos para a facilitação de sua defesa.


Dessa forma, surge a crítica quanto ao descaso do legislador por omitir-se na urgente regulamentação jurídica necessária à garantia tutelar ao consumidor superendividado quanto ao adimplemento do crédito. A consagração dos princípios da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor se presta a ratificar o entendimento de que é urgente a criação de uma lei específica que confira ao consumidor de boa-fé a condição de adimplir seu crédito pendente de maneira viável a manutenção de sua vida digna. Se no Brasil, a pessoa jurídica possui auxílio legal para recuperação enquanto falida, haja vista a observação do princípio da função social da empresa, à pessoa física devem ser asseguradas as mesmas garantias, porém, obviamente, adequadas as suas condições específicas.


Para a melhor compreensão do tema, propõe-se a explanação através de conceitos e caracterizações que venham a coadunar-se às preliminares expostas.


2 CONCEITUAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO


Embora não haja uma lei que defina o superendividamento, a doutrina tem se mostrado empenhada em adiantar e definir conceitos, classificações e caracterizações com base no direito comparado europeu que já está mais avançado se comparado ao direito brasileiro. A caracterização do superendividado é de suma relevância, pois nem todo consumidor excessivamente endividado poderá ser auxiliado pelo Estado quando do reembolso do crédito. Necessário será que, a priori, o mesmo se enquadre na definição de superendividado e satisfaça os pressupostos e critérios doutrinários.


 Assim, antes de adentrar em ponderações mais complexas, conceitua-se o superendividamento como a condição do indivíduo que possui um passivo (dívidas) maior que o ativo (renda e patrimônio pessoal) e precisa de auxílio para reestruturar sua vida econômico-financeira[2].


De acordo com a legislação francesa, que tem sido a base de fomento do tema no Brasil, por já estar mais evoluída quanto ao tratamento do assunto, no art. L.330-1 do Code de la Consommation, superendividamento é definido como sendo:


“A situação de superendividamento das pessoas físicas se caracteriza pela impossibilidade manifesta para o devedor de boa-fé de honrar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas, ou no orginal: La situation de surendettement des personnes physiques est caractérisée par l’impossibilité manifeste pour lê débiteur de bonne foi de faire face à l’ensemble de sés dettes non professionnelles exigibles et à échoir”[3] .


Não há, portanto, uma quantia exata a ser estabelecida para fins da caracterização da condição do consumidor superendividado, uma vez que isto dependerá das particularidades de cada caso. O correto é analisar a renda e o patrimônio do devedor e de sua família e fazer um comparativo quanto aos seus débitos. Se estes forem consideravelmente maiores que aqueles, restará caracterizado o superendividamento. Da mesma forma, não se pode generalizar o descumprimento da obrigação creditícia como sendo uma situação de superendividamento, pois a inadimplência poderá resultar de vários outros fatores influentes diferentes da incapacidade de pagamento, como por exemplo, um lapso por parte do devedor[4].


Sendo assim, o superendividamento “diz respeito aos casos em que o devedor está impossibilitado, de forma duradoura ou estrutural, de proceder ao pagamento de uma ou mais dívidas[5]”.


Há de se ressaltar ainda, que parte da doutrina configura como sendo caso de superendividamento as situações em que mesmo o consumidor estando com dificuldades de cumprir com seus compromissos, ainda assim o faz, mesmo que para isso enfrente uma série de dificuldades[6].


O Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra faz três classificações para o tema, quais sejam o modelo subjetivo, objetivo e administrativo. É interessante para nós, brasileiros, que vivemos em um Estado Democrático de Direito, que consagra a dignidade da pessoa humana como um dos principais direitos, ressaltar a classificação subjetiva que define superendividamento como sendo “a situação em que o devedor se ache impossibilitado de cumprir com seus compromissos financeiros, sem pôr em risco a subsistência do agregado familiar[7]”.


O conceito que define o consumidor superendividado, leva a concluir que o mesmo se encontra em uma situação de risco referente à sua dignidade, tendo em vista a exorbitância de dívidas que contraiu em relação ao patrimônio que possui. Alia-se a tal que o sistema processual vigente carrega ínsito benefícios ao credor, o que acaba por dificultar ainda mais a situação do consumidor superendividado.


Portanto, a caracterização do devedor superendividado torna-se importante, pois é através dela que serão estabelecidos critérios para a sua proteção, sob pena de se gerar um “paternalismo exacerbado ao mais fraco em detrimento completo do fornecedor”, como bem preleciona Karen Bertoncello, que gerará “uma nova ótica sobre a confiança e a lealdade das relações, para a qual será necessário questionarmos até que ponto estaremos dispostos a comprometer a visão atual que destinamos a atuação responsável e diligente dos indivíduos nas relações sociais” [8].


Alguns pressupostos são necessariamente delineados. Um deles é ser o devedor pessoa física, pois à pessoa jurídica reserva-se o amparo da legislação falimentar. Outro seria a “impossibilidade manifesta” de reembolso do crédito[9].  Portanto, não basta apenas um desequilíbrio econômico financeiro momentâneo. Por isso, na análise do ativo não basta considerar apenas a renda familiar, mas toda a esfera patrimonial. Se do balanço entre ativo e passivo resultar que não há como o endividado saldar todas as suas dívidas, sem que seja afetado o seu mínimo vital, caracterizar-se-á a situação.


A legislação francesa não delimita a natureza do crédito, podendo envolver tanto débitos contratuais quanto legais, exceto os de natureza alimentar e multas penais reparatórias. As dívidas fiscais eram excluídas antes de 2003, mas a reforma francesa em seu diploma legal incluiu essa possibilidade[10].


Uma última característica fundamental para que o consumidor endividado receba os benefícios da tutela é a boa-fé[11]. O Estado somente deverá conferir auxílio aquele que demonstrar que o seu excessivo endividamento não resulta de ato intencional, regado de má-fé, mas de decorrência de fatores supervenientes que o conduziram, inevitavelmente, à situação de fato e que possui interesse preponderante em saldar seus débitos, só que não encontra meios para fazê-lo.


Não há uma faixa etária, sexo, profissão, estado civil que definam o perfil do consumidor superendividado. Karen Bertoncello e Clarissa Lima elaboraram um estudo de caso resultante da aplicação do projeto “Tratamento das situações de superendividamento do consumidor”, desenvolvido pelo Poder Judiciário no Estado do Rio Grande do Sul, uma vez que o poder judiciário tem buscado implementar políticas de atuação que visam uma alternativa mais adequada às peculiaridades do consumidor superendividado[12].


De acordo com 10 casos narrados, pode-se observar que dentre eles estão tanto casados quanto solteiros, jovens, pessoas de média idade e idosas, com filhos ou sem, de analfabetos a nível superior, com as mais variadas rendas. Disso, depreende-se que ninguém está a salvo das indesejadas surpresas negativas da vida. Todas as classes, idades, tipos de pessoas na sua mais ampla diversidade está propensa à condição de superendividado, pois indiscutivelmente todos são consumidores que ao estabelecerem relação de consumo com o fornecedor, expõe-se necessariamente a esse risco, uma vez que se prevê a possibilidade de adimplir o crédito, porém não se pode garanti-lo na sua mais absoluta certeza.


Sendo assim, estima-se abrangente e em crescimento a classe consumidora superendividada, necessitada de políticas de regulamentação pontual ao sistema de crédito, para evitar o mau uso do mesmo, assim como o alcance de auxílio para aqueles que já se enquadram no conceito do superendividamento.


3  CLASSIFICAÇÃO DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO


Após ter feito de forma exauriente a conceituação e caracterização do consumidor superendividado, partamos para a sua classificação.


Dois são os tipos de superendividado: o ativo e o passivo[13]. O ativo, de forma irresponsável se endivida intencionalmente, conduzido por um elemento volitivo e (in)consciente em relação a proporcionalidade da sua condição financeira em detrimento dos excessivos gastos. Se deixa levar pela manipulação estratégica do marketing, da publicidade adotada pelos fornecedores e cede às irresistíveis e tentadoras propagandas, terminando por gastar muito além daquilo que efetivamente ganha.


O passivo, por sua vez, utiliza o crédito de forma responsável, porém é surpreendido por fatores externos e alheios à sua vontade. São caracterizados por situações de desemprego, divórcio, morte, nascimento, empréstimos necessários, dentre outras. Estas situações afetam diretamente a vida econômica do indivíduo, tornando a situação por muitas vezes insustentável, impossibilitando o mesmo de adimplir com as obrigações contraídas e ao mesmo tempo manter uma margem mínima necessária a sua subsistência e de sua família.


A classificação do consumidor ativo, por sua vez, subdivide-se em superendividado ativo consciente e inconsciente[14]. O consciente age baseado flagrantemente por má-fé, pois se utiliza do crédito já sabendo que não o poderá reembolsar o credor em momento posteriormente. Busca enganar o fornecedor. Já comprou e de antemão determinou-se a não pagar. É importante definir bem cada caso, pois a este, o Estado não alcançará auxílio, uma vez que age de má-fé, não possuindo intenção de pagar suas dívidas, e de acordo com as caracterizações realizadas anteriormente, sequer se enquadra no conceito de superendividado.


Já o inconsciente age impulsivamente e de acordo com suas atitudes configura um estado de má administração de seus gastos em detrimento do patrimônio e renda que possui à sua disposição. Gasta além do que ganha, mas o faz por gerir mal sua vida econômica, ainda que inicialmente houvesse a intenção de pagar. Acaba, por fim, falido por sua irresponsabilidade e imprudência, embora não tenha sido vítima de nenhum fator externo superveniente.


Quanto a este caso, o conceito de superendividamento acaba por abarcá-lo, uma vez que quanto mais passam os dias, mais as ofertas de crédito são agressivas e persuasivas em relação ao consumidor vulnerável e a oferta do crédito, cada vez mais facilitado, incentiva os indivíduos a criarem necessidades supérfulas ou até mesmo que nem existam para as poderem suprir. Dessa maneira, cria-se um círculo vicioso relacionado a essa prática, ocasionando um endividamento crônico que dificilmente poderá posteriormente ser revertido sem o auxílio de um ente maior, que administre a causa para si.


Assim, define-se que o superendividado ativo consciente não terá o benefício da tutela por parte do Estado. O superendividado passivo receberá a tutela. O superendividado ativo inconsciente ficará no limbo, ou seja, o julgador decidirá conforme o caso concreto e o seu subjetivismo. Até porque o consumidor é tido por vulnerável e não pode ser tratado de forma diferenciada a isto porque agiu imprevidentemente.


Conforme Geraldo Costa e Karen Bertoncello, a dificuldade está em identificar as duas modalidades de consumidor superendividado ativo, pois se diferenciam pela presença ou não de boa-fé, que por ser elemento subjetivo, dificulta tal constatação[15].


Ocorre que a compra hoje tomou outras funções além de satisfazer reais necessidades. A compra pode combater a tristeza, ansiedade, solidão, frustração, raiva proporcionando uma simples sensação de prazer até mesmo a configurar-se como um comportamento patológico.


A compra compulsiva e descontrolada pode parecer vantajosa para os comerciantes, porém isto não é verdade, pois a compra conduzida por tais elementos, na maioria das vezes resulta em inadimplência e prejuízo para o fornecedor[16].


É importante ainda mencionar, que por vezes o analfabetismo funcional pode ser um caso que se configure em superendividamento ativo inconsciente, pois o nível cultural ou de conhecimento que possui, não lhe oferece subsídios para estabelecer uma relação social de consumo segura[17].


Já o superendividado passivo é aquele que acaba por ser vítima de situações negativas inesperadas que lhe impossibilite de ao mesmo tempo, honrar seus compromissos frente ao fornecedor e ao mesmo tempo manter o seu mínimo vital. Ao mesmo tempo, não foi um mau gestor nem agiu acobertado por má-fé. Conforme Rosângela Cavallazzi, este talvez seja o mais vulnerável, pois por estar em uma situação econômica caótica, precisa do crédito e não possui opção de escolha, acabando por acatar a empréstimos persuasivos que objetivam captar exatamente este tipo de consumidor, que lhe será inadimplente obviamente, mas seu eterno devedor de juros abusivos[18].


Cláudia Lima Marques realizou pesquisa elaborada no Rio Grande do Sul, que findou por concluir: dos 100 casos pesquisados, 70% são superendividados passivos[19].Karen Bertoncello e Clarissa Lima, em sua respectiva pesquisa, afirmam a ocorrência de 84,5% dos superendividados como sendo passivos[20].Isso nos leva a concluir que a maioria dos endividados não agem de má-fé, o que nos leva a flexibilizar o olhar em relação  a eles para propor um meio de auxílio, até mesmo, pelo fato de que como já mencionado, qualquer um poderá encontrar-se  em uma condição semelhante por ser consumidor, fator suficiente de exposição ao advento do superendividamento.


4 A VULNERABILIDADE DO SUPERENDIVIDADO : DEVER DE PROTEÇÃO POR PARTE DO ESTADO ATRAVÉS DA POSITIVAÇÃO


A intenção do legislador quando editou o CDC foi de ampliar os instrumentos de defesa e proteção do consumidor. Tal regulamentação era necessária, tendo em vista a flagrante desproporcionalidade entre consumidor e fornecedor nas relações de consumo. Nesse sentido, a Lei n.º 8.078/90 delimitou as posturas por parte dos sujeitos na relação consumerista, ora sendo a de respeito aos direitos do consumidor por parte do fornecedor e do consumidor quanto a manejar melhor sua defesa quando sentir-se de alguma maneira violado.[21]


O princípio da vulnerabilidade veio a ratificar esse entendimento, em sua redação no art. 4º, inciso I, do CDC. Este se prestou a demonstrar a fragilidade do consumidor frente ao consumidor na relação de consumo e por isso se torna sujeito de uma amplitude de direitos. Para tanto, acabou por facilitar ao consumidor que seja evitado, de forma profilática, a lesão de seus direitos, assim como quanto à sua defesa quando os mesmos já restarem atingidos[22].


Portanto, o objetivo maior do princípio da vulnerabilidade não é outro, senão conferir uma igualdade jurídica de partes entre fornecedor e consumidor que naturalmente não existe, tendo em vista que aquele possui um conhecimento muito maior podendo persuadir facilmente o consumidor. Assim, o legislador possibilitou alguns benefícios ao consumidor, como sendo a inversão do ônus da prova, a responsabilidade objetiva do fornecedor, possibilidade de ação coletiva dentre outros como mecanismos de compensação em relação ao fornecedor que naturalmente possui uma posição privilegiada na relação de consumo.


Cabe-nos aqui ressaltar alguns aspectos em que de fato o consumidor torna-se vulnerável. O primeiro deles é no aspecto econômico, pois o fornecedor impõe sua vontade através dos contratos de adesão que não deixam margem de escolha ao consumidor, assim como a manipulação de preços. O segundo seria quanto ao aspecto jurídico no que tange principalmente à interpretação de cláusulas contratuais. O terceiro é o aspecto técnico, sendo que o fornecedor possui vantagem por melhor conhecer o seu produto, manejo e funcionamento e quanto ao consumidor esse conhecimento é precário.


O aspecto fático decorre da pouca variabilidade de mercado que por vezes não oferece opções de escolha ao consumidor, ficando obrigado a adquirir determinado bem ou serviço por ser o único disponível. E ainda, em um último aspecto, seria quanto à informação, pois esta, quem detém em maior amplitude, sem dúvida alguma é o fornecedor, pois como já foi anteriormente abordado, o fornecedor possui uma gama maior de informações a respeito do seu produto.[23]


Nesse sentido, através do princípio da isonomia, tratam-se os desiguais, consumidor e fornecedor, na medida de sua desigualdade. Com isso, pode-se inclusive afirmar que “o fornecedor existe para servir o consumidor e não o contrário” [24]. Mas isso só é possível devido à intervenção estatal que se efetivou. É por isso, que se invoca uma lei que regulamente a questão do superendividamento, pois já se tem um princípio de tutela ao consumidor consagrado e este precisa prevalecer em todas as relações em que o mesmo fizer parte, até mesmo quando encontrar-se impossibilitado dignamente de reembolsar o crédito auferido. Mas sabe-se que a tutela só possui eficácia quando assegurada pelo Poder Público.


A proteção assegurada ao consumidor é de extrema relevância, pois não apenas consta nos dispositivos legais do CDC, mas também se assenta no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal e, portanto, de interesse público e social. Nesse sentido, intitula-se o Estado como sendo mais ainda obrigado a agir para a realização desses direitos, o que inclui medidas destinadas à sua proteção. Marcelo Duque assim preleciona:


“Todas as pessoas, independente de origem, raça, sexo, cor, idade ou de usa condição econômica têm em comum também o fato de serem consumidores ativos ou em potencial. Em outras palavras, não se vive em sociedade sem ser consumidor. Trata-se de pressuposto lógico não apenas da condição de sobrevivência física, como também da necessidade de circulação de riqueza. Nada mais adequado, portanto, do que proteger constitucionalmente essa condição. Essa é, justamente, a função do direito fundamental de proteção do consumidor, na forma de um dever de proteção estatal.”[25]


Encontrando-se a vulnerabilidade do consumidor, assim como a sua proteção assentada na legislação civil e constitucional, confere-nos a legitimidade para afirmar que a regulamentação a respeito do superendividamento se faz urgente, pois esta lacuna existente tem negado ao consumidor um direito que é assegurado em princípio constitucional. O devedor tem sofrido os reflexos de não ter um direito seu assegurado pelo Poder Público, a exemplo de ter em jogo a sua própria dignidade, tendo em vista de ver-se obrigado a optar por preservá-la ou então utilizar seu patrimônio, que não é suficiente para saldar a sua dívida.


Não se pode valorizar o crédito em detrimento da vida de um ser humano. Mas para que tal premissa se concretize, o Estado precisa intervir de maneira sobressalente, através da instituição de políticas públicas que confiram ao consumidor superendividado, através de regulamentação legal, a proteção e manutenção de sua vida digna quando do reembolso do crédito pendente.  É preciso possibilitar ao consumidor que obtenha por parte do Estado um auxílio efetivo para reembolsar o crédito pendente, uma vez que se encontrando na condição de superendividado não o poderá fazer sozinho.


A matéria de Direito Empresarial, prevê na Lei n.º 11.101/05 a possibilidade de o empresário falido auferir facilitações, auxílio e benefícios perante seus credores e até mesmo do poder público para cooperar na sua reabilitação. De forma alguma se pretende aqui julgar desnecessário o oferecimento de tais recursos, fazendo-se menção, principalmente ao princípio da função social da empresa, por entender-se que ela não obtém vantagens próprias apenas, mas que proporciona riqueza e crescimento ao local onde ela está designada assim como oferta de empregos, melhoria de renda a muitas famílias, concretizando o que o princípio preconiza.


Mas por outro lado, surge a critica no sentido de que se a pessoa jurídica possui amparo legal para facilitar-lhe a recuperação quando falida, não seria a pessoa física também carecedora de tutela jurídica para tanto? Pois parece que ambas as situações são argüidas com base também no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, tanto a proteção da empresa quanto do indivíduo superendividado. Se argumentos convincentes são encontrados e albergados pela legislação para conferir tutela ao empresário, sem dúvida, por analogia, a mesma proteção deve ser alcançada ao devedor superendividado, com o objetivo de facilitar-lhe o reembolso do crédito sem ferir-lhe sua condição de manutenção do mínimo existencial, modificando o quadro em que a única solução a lhe ser apresentada seja a entrega de todo seu patrimônio penhorável aos credores e a conseqüente mendicância de toda uma família.


Por não haver um sistema consolidado e positivado que confira proteção a este consumidor, muitos têm sido submetidos a processos de execuções que visam simplesmente liquidar o patrimônio penhorável do devedor para satisfazer os créditos pendentes, sem a mínima preocupação com a mantença de condições de vivência digna do ser humano e de sua família que se encontram por trás destes débitos.


O direito estrangeiro tem se mostrado mais evoluído quanto ao tema, até mesmo pela política de correção ao mau uso do crédito visualizado na Europa e Estado Unidos. O direito francês, por sua vez, tem sido a base de fomento para as discussões sobre superedividamento no Brasil, tendo em vista que já possuem legislação positivada que regulamenta a matéria e tem demonstrado ótimos resultados nas negociações relativas aos créditos.


O judiciário, por sua vez, tem buscado encontrar uma solução alternativa para a situação de fato, uma vez que tem buscado auxiliar os devedores a adimplir suas dívidas por meio das conciliações. Nestas, há uma preocupação por parte do conciliador em homologar uma proposta que seja viável ao consumidor superendividado, ou seja, que ele possa saldar sua dívida respeitando ao limite daquilo que lhe é possível, sem afetar a sua subsistência e de sua família e a partir de então, passar a gozar dos benefícios de uma reorganização da sua vida econômico-financeira.


Nesse sentido, buscam-se soluções paliativas que proporcionem auxílio ao consumidor endividado enquanto aguarda-se por uma postura do Poder Público que confira tutela efetiva ao consumidor enquanto na condição de superendividado. O que se pretende, com a regulamentação legal, é que o consumidor que deseja pagar seus credores, mas não o consegue fazer sozinho, receba tratamento diferenciado, assegurando-lhe uma vida digna através do apoio estatal. Por enquanto tem-se buscado atingir estes objetivos por medidas alternativas, mas somente se terá uma real, segura e eficaz efetividade e, quando tiver peso de determinação legal.


5. CONCLUSÃO


O entendimento a respeito do tema “consumidor superendividado” nos faz concluir que a atual sociedade de consumo tem incentivado a concessão de crédito com uma considerável carga de irresponsabilidade tanto por parte do fornecedor que investe na massificação dos meios de comunicação para persuadir o consumidor a adquirir seus produtos, sem a mínima garantia de retorno desse crédito quanto por parte do consumidor, que tem deixado se envolver pelos veículos de propaganda e marcketing.


Essa concessão desmedida tem provocado a falência de muitos consumidores, que de certa forma tem tomado proporções maiores, inclusive de âmbito social.  Além de gerar um problema jurídico pela insolvência, também se desencadeia um problema social devido à situação em que se encontrará o devedor em ter restrições ao crédito e levando-se em consideração de que na sociedade capitalista em que vivemos dificilmente se sobrevive sem crédito. Sem falar ainda, que muitos devedores para buscar solucionar este estado de falência, passam a dispor de seu mínimo existencial e passam, muitas vezes a viver em uma situação de miserabilidade com sua família.


Embora o legislador brasileiro ainda mantenha-se silente a respeito da matéria, os doutrinadores e até mesmo o judiciário tem buscado uma solução alternativa para as questões do superendividamento com base no direito comparado europeu. A partir de então, extrai-se o conceito de superendividamento, buscando dar uma pontual caracterização do indivíduo superendividado, assim como estabelecer uma classificação que se torna relevante no momento de definir que poderá receber auxílio do Estado para recompor o crédito auferido. Neste sentido, observa-se que a boa-fé é elemento de fundamental presença.


Por ora, também se visualiza que a vulnerabilidade do consumidor, consagrada pela Carta Magna e CDC junto ao princípio da dignidade da pessoa humana, só vem a ratificar o entendimento de que se faz necessário uma lei específica que venha trazer auxílio e proteção ao consumidor, proporcionando ao mesmo uma reinserção social, que recebe auxílio por parte dos fornecedores para a quitação de suas dívidas, para que possa adimplir sua obrigação de forma a não ferir a sua dignidade. Assim como o consumidor deve pagar sua dívida, pelo princípio da vulnerabilidade o fornecedor deve facilitar a negociação, pois não se pode preferir o crédito às condições dignas de vivência do indivíduo.


Mas, sobretudo, sabe-se que a efetividade plena da proteção do consumidor superendividado virá, à medida que o Poder Publico se dispuser a positivar através da lei medidas tutelares. Até lá, as medidas alternativas que tem surgido como alternativas esforçam-se por atribuir essa frágil garantia a quem a elas se socorre.


 


Referências

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SIMONETTI, Thiago Galvão. A vulnerabilidade como princípio norteador nas relações de consumo. Disponível em http://www.ffadvogados.adv.br/detalhes.php?ID=29. Acesso em: 13.05.10


Notas:

[1]CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo empírico e perspectiva de regulação. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Superendividado e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006, p.329.

[2]CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo empírico e perspectivas de regulação. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006, p. 329.

[3]SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do Consumidor: conceito, pressupostos e classificação. In: MARQUES, Cláudia Lima. Revista de Direito do Consumidor 71. São Paulo: Ed. RT, jul- set  2009, p. 11-12.

[4]MARQUES, Maria Manuel Leitão; FRADE, Catarina. Regular o sobreendividamento. P 3-4. Disponível em: www.gplp.mj.pt Acesso em: 12.12.09

[5]Ibid, p.4.

[6]Ibid, p.4.

[7]CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Endividamento e sobreendividamento das famílias conceitos e estatísticas para a sua avaliação. P. 15-20. Disponível em: www.oec.fe.uc.pt Acesso em 12.12.09.

[8]BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento e dever de negociação. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre, UFRGS, 2006, p.54.

[9]Ibidem, p. 48.

[10]SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do Consumidor: conceito, pressupostos e classificação. In: MARQUES, Cláudia Lima. Revista de Direito do Consumidor 71. São Paulo: Ed. RT,  jul-set 2009, p. 17.

[11]CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Superendividamento: propostas para um estudo empírico e perspectivas de regulação. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006, p. 74.

[12]BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz; LIMA, Clarissa Costa de. Conciliação aplicada ao superendividamento: estudos de casos. In: MARQUES, Cláudia Lima. Revista de Direito do Consumidor 71. São Paulo: Ed. RT,  jul-set 2009, p. 109-138.

[13]MARQUES, Maria Manuel Leitão; NEVES, Vitor; FRADE, Catarina; LOBO, Flora; PINTO, Paula; CRUZ, Cristina. Regular o sobreendividamento. p. 2. Disponível em: www.gplp.mj.pt. Acesso em 13.12.09

[14]Ibid. p. 21

[15]COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor de crédito em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 118. BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento e dever de negociação. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre, UFRGS, 2006, p.57.

[16]SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do Consumidor: conceito, pressupostos e classificação. In: MARQUES, Cláudia Lima. Revista de Direito do Consumidor  71. São Paulo: Ed. RT,jul-set  2009, p. 25.

[17]BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento e dever de negociação. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre, UFRGS, 2006, p.58.

[18]CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. O Perfil do superendividamento: referências no Brasil. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006, pg. 394.

[19]MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de créditos de consumo: suposições  com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: Ibid.

[20]BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz; LIMA, Clarissa Costa de. Adesão ao projeto conciliar é legal – CNJ: Projeto Piloto: tratamento das situações de superendividamento do consumidor: RDC 63/197, São Paulo: Ed. RT, jul-set 2007.

[21]SIMOETTI, Thiago Galvão. A vulnerabilidade como princípio norteador nas relações de consumo. Disponível em http://www.ffadvogados.adv.br/detalhes.php?ID=29. Acesso em: 13.05.10

[22]Ibid.

[23]Ibid.

[24]Ibid.

[25]DUQUE, Marcelo Schenk. A proteção do consumidor como dever de proteção  estatal de hierarquia constitucional. In:MARQUES, Cláudia Lima. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009. Pg. 149.

Informações Sobre os Autores

Áquila de Paula Postiguilhone

Acadêmica de Direito do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA

Francini Feversani

Especialista em Gestão e Direito Tributário e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul/UNISC; Professora do Centro Universitário Franciscano; Advogada

Marcos Vinícius Ast de Almeida


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Equipe Âmbito Jurídico

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