A necessidade do Direito de repensar o Bullying: Uma reflexão do caso Realengo

Resumo: Até então as chacinas em escolas eram fenômeno inédito no Brasil. Nunca o fenômeno bullying esteve em tamanha evidência e discussão. Quando Wellington Menezes adentrou na escola, sacou a arma e começou a atirar em crianças inocentes, veio às manchetes nacionais e internacionais quem era esse cidadão até então anônimo para o mundo, protagonista do conhecido como “Massacre de Realengo”. Deixara apenas uma carta suicida e um vídeo, onde fala coisas aparentemente desconexas. Mostrou sua face cruel, mas os depoimentos de ex-colegas e familiares mostram a face do garoto pisado, humilhado, que se sentia abandonado e que sofria de perturbações psíquicas. Afinal, tal fenômeno faz surgir um monstro? Como se combate esse verdadeiro câncer instalado nas escolas? Como responsabilizar? Criminalizar é a solução? O presente artigo pretende abordar não apenas a importância do assunto, mas ensaiar as saídas jurídicas (legislativas, sociais, políticas e judiciárias) necessárias ao combate deste mal.


Palavras-chave: Massacre de Realengo. Bullying. Responsabilidade Civil. Poder Parental.


Sumário: Introdução. 1. Síntese do caso da Tragédia de Realengo. 1.1 O retrato do atirador: O monstro. 1.2 O retrato do agredido que sofria de problemas mentais.  2. Bullying e cyberbullying – A realidade social em causas e efeitos. 2.1 Bullying e a condição humana. 3. Dos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana. 3.1 Da Responsabilidade Civil. 3.1.1 Da responsabilidade civil da escola. 3.1.1.1 O Bullying e a escola na jurisprudência brasileira 3.1.2. Da responsabilidade civil dos pais do agressor e o punitive damages.  3.1.3. Das obrigações dos pais do agredido em face ao melhor interesse da criança. 4. Da criminalização do bullying – Problemas entre a realidade e a fantasia. Considerações finais. Referências bibliográficas.


Introdução


O bullying, termo que vem do inglês “bully”, que significa “Valentão”, é um termo que foi popularizado desde a década de 70, criado pelo sueco Dan Olweus, que constatou em seus estudos a relação direta entre as agressões e o aumento de transtornos psicológicos em estudantes.


Sempre foram comuns os relatos de Bullying nas escolas, entendido como quaisquer “atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidentes, adotadas por um ou mais estudantes contra outro (s), causando angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder, tornando possível a intimidação da vítima”[1], atitudes estas que podem surgir entre os alunos ou até mesmo por parte dos próprios professores.[2]


Sua característica básica é o abuso de poder, a intimidação, a humilhação e vexação, bem como a manipulação dos sentimentos e do comportamento de um indivíduo sobre outro[3]. O ponto principal, diferenciador, por exemplo, de outros tipos de abusos de poder como o assédio moral, é que o bullying ocorre nas escolas, na constância da formação de um indivíduo.[4]


O poder sobre a pessoa foco do bullying é tão forte que poderá desencadear uma série de violações a sua dignidade, como o desenvolvimento de quadros de ansiedade, depressão, tensão, medo, angústia, desgosto, podendo ocasionar até mesmo o suicídio[5], e porque não tragédias? Como deve ser parar uma pessoa que não se importa de perder a própria vida?


Assim, não apenas os pais, como os educadores e colaboradores com a educação, e até mesmo os colegas de classe, detém poder sob a esfera de um indivíduo, dentro de uma relação social, desde as suas bases mais remotas, em uma influência direta sobre sua liberdade e suas escolhas na vida na persecução de sua felicidade e integralidade de seus direitos da personalidade.


Que se diga hoje a questão maciça em relação ao desenvolvimento comunicação em rede, especialmente da internet. Os ataques deliberados, oriundos do exercício desmoderado da liberdade do ser humano, confere o poder de dispor até mesmo da vida privada de outras pessoas.


Links em sites de relacionamentos, com perfis falsos, montagens e ridicularizações diretas sobre determinadas pessoas, escondidas sob o anonimato permitiram a exposição da imagem, da honra, e demais direitos da personalidade de pessoas que por vezes sequer teriam condições de saber que suas vidas estavam veiculadas de maneira disforme em um dos maiores meios de comunicação da atualidade.[6]


Há bem pouco tempo, em uma palestra sobre “violência nas escolas e o Direito”, a autora do presente artigo comentou que a tragédia que se passou em casos como o de Columbine mais cedo ou mais tarde iria ocorrer no Brasil. Apenas ela não pensou que fosse tão próximo. Chegou a falar aos estudantes que o Brasil caminhava para um “Tiros em Columbine made in Brasil”, como se passou em Realengo, a maior tragédia ocorrida em uma escola no Brasil, em um fenômeno sangrento que até então era inédito no Brasil.


O Direito não poderá fechar os olhos para a realidade social. Há toda uma série de teorias relacionadas ao caso: Bullying, problemas mentais, afastamento da família, uso de vídeo games violentos. Toda uma mente perturbada, sem freios, sem cuidados, sem a atenção que necessitava para que uma tragédia ao menos fosse cogitada de ser evitada.


De fato é um tema bastante delicado, e que não possui respostas fechadas. Mas a questão primordial é focar que o Bullying deve ser combatido, pois claro está que ele serviu como a última gota de um copo transbordante, um copo saturado de uma cólera doentia!


1. Síntese do caso da Tragédia de Realengo


1.1 O retrato do atirador: O monstro


É fácil visualizar a figura do monstro, protagonista de uma cena injustificável. Apenas basta pensar em um rapaz de 23 anos, que adentra em uma escola onde havia estudado, e na sala 1803 da mesma, emana um sorriso afirmando que irá ministrar uma palestra, quando de repente, saca duas armas de uma bolsa e dá um tiro na cabeça de uma menina. Inicia-se um massacre.


Tendo o criminoso avançado atirando à sala 1801, um dos alunos suplicou para que poupasse sua vida e o mesmo lhe respondeu “fica tranqüilo gordinho, que eu não vou fazer isso”, e o menino continuou vivo. Logo em seguida, uma menina estava sentada no chão tentando avisar o pai pelo celular quando foi alvejada na cabeça.[7]


Após a chegada da polícia, o atirador foi encurralado e levou um tiro no abdômen de um dos policiais. Caiu sobre os degraus da escada da escola e atirou contra a própria cabeça. Acabara a tragédia com um total de 12 mortos e outros tantos feridos.


Das doze vítimas, dez eram meninas, que por sinal, com as mesmas características físicas. Todas muito bonitas, com mesmo tipo físico esbelto, mesmo tipo de cabelo, comprido, quase mesmo formato de rosto. Stephany da Silva, de 14 anos, contudo, teve a arma apontada para sua cabeça, contudo simplesmente ouviu “hoje não é seu dia de morrer”, desviando a pistola e atirando na cabeça da garota ao lado.[8]


A tragédia de Realengo, como ficou conhecida, em muito semelhante com o ocorrido em Columbine em 1999 ou outros casos de carnificinas semelhantes em outras escolas no mundo, parecia uma tragédia quase que anunciada. Pontos em comum? Os “monstros atiradores” e suas histórias.


O rapaz, logo identificado como Wellington Menezes de Oliveira, deixou uma espécie de carta-testamento (onde apresentou como e onde desejava ser enterrado) e um vídeo, onde tentava justificar a barbárie que havia cometido e onde dizia coisas que até então soavam desconexas. Um quebra cabeça digno de um filme hollywoodiano, tal qual “Seven”, “Ressurreição” ou o documentário “Tiros em Columbine”. Em seus depoimentos, visivelmente o rapaz aparentava ter problemas psicológicos, como a dificuldade na sua expressão oral.


Cerca de dois anos antes da tragédia, parentes alegam que o rapaz obsessivamente começou a pesquisar sobre armas e organizações terroristas islâmicas, começando a usar roupas pretas e a usar barba. Na fábrica onde trabalhou, segundo relatos de antigos colegas de trabalho, desenhava bonecos os quais dizia serem homens bomba. Segundo um primo, chegou a dizer que jogaria um avião no Cristo Redentor.[9]


No computador de Wellington, a perícia da Polícia Federal recuperou dados do HD que o atirador aparentemente tentou esconder: tentou atear fogo contra o seu computador. Dentre os dados recuperados, fotos do atirador segurando armas, posando com turbante e uma carta suicida, em que pede um estranho ritual de sepultamento, requerendo oração pedindo o perdão de Deus pelo que fez, rogando para que sua vinda a Jesus o despertasse do sono eterno para a vida.[10]


1.2 O retrato do agredido que sofria de problemas mentais


Neste tópico, pretende-se resgatar a imagem humana daquele unicamente visto como “monstro” ou como “louco”. Pretende-se neste tópico apenas resgatar o retrato do ser humano que um dia foi o do assassino.


Wellington poderia ter escolhido duas escolas públicas vizinhas a casa para onde se mudou em Sepetiba depois da morte de sua mãe adotiva, mas percorreu 33 kilômetros, mais especificadamente para a Rua do Jequitinhonha, para transformar no palco da sua carnificina o colégio que havia estudado e de onde não guardava recordações nada agradáveis.


Em um dos vídeos, afirma ter sido alvo de bullying, falando frases aparentemente desconexas, onde chamava de “irmãos” aqueles que, como ele, eram vítimas de bullying, aduzindo que fora “fraco”, mas que se tornara um “combatente”, forte e corajoso, em defesa aos que ainda se encontravam incapazes de se defender, arrematando que “se tivessem descruzado os braços antes e feito algo sério no combate a esse tipo de prática, provavelmente eu estaria vivo; todos os que matei estariam vivos”.[11]


Wellington era um menino típico alvo fácil de bullying: franzino, orelhas “de abano”, óculos de aro grosso e dentes separados, conforme se pode visualizar em uma foto de uma reportagem da revista ISTOÉ de março de 2011. Muito fechado, era rotulado “quieto demais”, “que nunca olhava nos olhos” e que “falava muito baixo”[12].


Os ex-colegas de Wellington declararam que ele “não tinha amigos e era alvo de piadas e humilhações na classe. Aos 10 anos, foi lançado a uma lixeira pelos colegas. Era apelidado de Sherman, uma referência ao personagem nerd do filme American Pie. ‘A gente xingava de tudo, zoava até cansar’, diz um colega”.[13] Também possuía o apelido de “Suingue”, por mancar de uma perna e andar como se estivesse dançando[14]


Ainda com tais depoimentos colhidos em jornais e revistas, ainda houve ex-colega de Wellington que negasse que o mesmo tenha sofrido Bullying, chegando a declarar que “Ninguém mexia com ele ou provocava. A gente respeitava o jeitão dele”[15]


Por outro lado, o empresário Wesley Yamasaki, em entrevista para o jornal “Fantástico”, disse que certa vez no colégio em que estudava, Wellington foi colocado de cabeça para baixo pelos colegas, que o botaram dentro da privada e deram a descarga, enquanto algumas pessoas instigavam as meninas: “vai lá, mexe com ele.” Ou até incentivo delas mesmo: “Vamos brincar com ele, vamos sacanear”.  De acordo com o empresário, as meninas passavam a mão nele, e logo em seguida o ridicularizavam.[16]


Outro ex-colega de Wellington afirmara que “sofria gozações de meninas na época em que estudou no colégio, palco da tragédia. A afirmação é de um ex-colega de classe de Wellington Menezes, que relatou ao portal UOL como as garotas agiam com o assassino: “As meninas, além de zoarem o jeito dele andar e se vestir, fingiam ‘dar mole’ pra ele e depois o ridicularizavam”.[17]


A situação daquele que posteriormente seria rotulado de monstro de Realengo, agravou-se aos 17 anos, quando começou a investigar a vida de sua mãe biológica, e, dentre outras informações, soube que a mesma tentara suicídio ainda no início da gravidez, após descobrir que o pai de seu filho tinha outra família. Em resumo: um ser que se sentia rejeitado desde o útero materno. De acordo com o irmão de Wellington, “ele teve acompanhamento psicológico. Em cinco sessões, diagnosticaram-no como antissocial, mas não foi diagnosticada esquizofrenia”[18]


Com a morte da mãe adotiva, como quem era muito apegado, “mergulhou em um mundo só seu, de ausência e indiferença […] A tecnologia foi ganhando cada vez mais espaço em sua vida […] Órfão de pai e mãe, no ano passado, pediu demissão da empresa do setor alimentício na qual trabalhava, no almoxarifado, e foi morar sozinho em Sepetiba, bairro na zona oeste do Rio.


Mesmo após sua morte, ao traçar o perfil psicológico do conhecido como “atirador de Realengo”, ex-colegas se utilizavam de termos pejorativos, tais quais “maluco” e “bobão”, como se pode observar de trechos de reportagens:


“Não dá para acreditar que um garoto que era o bobo da sala se tornou um criminoso”. Ainda incrédulo com o massacre na escola municipal Tasso da Silveira e a caminho do velório de Larissa dos Santos Atanásio, uma das 12 crianças que morreram no ataque de quinta-feira (7), o estudante Bruno Linhares de Almeida, de 23 anos, falou com o G1, na manhã desta sexta-feira (8).


Ele estudou com Wellington Menezes durante dois anos, nas 7ª e 8ª séries, na mesma escola onde houve o tiroteio. Onze baleados seguem internados nesta sexta-feira, em seis hospitais do Rio.


“Eu me lembro muito, o Wellington era o ‘bundão’ da turma, era um cara totalmente tranqüilo, um bobão. Implicavam bastante com ele, zuavam ele de tudo o que é nome”, contou Bruno. Mas depois o jovem ressaltou: “Ele apesar de ser bundão, ele tinha um sorriso assustador”.[19] (grifo nosso).


O próprio governador do Estado depôs que o assassino era um “animal”, como o depoimento colhido da revista ISTOÉ, transcrito em tais palavras: “Temos a obrigação de dar solidariedade e apoio às vítimas desse psicopata, desse animal”[20]. O prefeito da cidade, Eduardo Paes, depôs à mesma revista que “A escola é um lugar feito para construir sonhos e educar as crianças e foi transformada num inferno”. Pense-se bem: Inferno também sofrem as vítimas de bullying, muito embora isso não justifique um massacre. Deste modo, embora tenha razão o prefeito da cidade, o mesmo também cai em contradição.


Wellington foi sepultado duas semanas após o crime, em cova rasa sem lápide, sem nenhum parente presente sequer para liberar o corpo do IML. Seu pedido de ser enterrado junto com sua mãe adotiva não foi atendido e foi enterrado sem a presença de nenhum conhecido, apenas dos coveiros, já que não tinha amigos e vivia longe da família.[21]


Obviamente não se justifica, é importante repetir, o que foi protagonizado pelo conhecido como “atirador de Realengo”, e muito menos se pode afirmar que todos aqueles que sofrem bullying se tornarão assassinos frios e cruéis. Além de temerário, seria instalar o terror nas escolas do tipo “não mexa com seu colega, pois um dia ele poderá ficar com ódio e retornar com uma arma matando a todos nós para expurgar as humilhações que passa/passou”.


Mas, da mesma forma, não se posse simplesmente esquecer ou deixar de reconhecer tudo aquilo o que Wellington, criança e adolescente, como ser humano, antes de tornar-se um monstro, foi submetido desde a sua formação.


De fato o caso é preocupante, pois a conduta do atirador, juntando com a grande facilidade de obter armas, de fogo ou brancas (não esquecer que na China, Wu Huanmin matou 9 pessoas e feriu 11 no jardim de infância apenas com uma faca[22]), acabe sendo copiada por outras mentes perturbadas, que vierem a ser estimuladas em sua violência interna, com constantes humilhações e agressões físicas ou verbais.


Não se trata aqui de uma defesa leviana a um crime bárbaro injustificável, com muitas vidas aniquiladas de modo bárbaro e cruel, cujas famílias merecem toda a solidariedade possível, por toda a dor da perda e da brutalidade como ela ocorrera.


Mas ponto nodal do problema do presente trabalho basicamente se bifurca em dois grandes alvos: o primeiro, de que ao lidarmos com seres humanos não sabemos quando iremos topar com uma mente problemática e perturbada por afetações mentais ou histórico de violência; e principalmente, a maneira com que o Direito lida com este problema já tão antigo, porém tão agravado nos últimos anos, mediante um Estatuto da Criança e do Adolescente tão pródigo, e ao mesmo tempo tão ainda insuficiente em algumas situações, a ponto de colocar cabeças atordoadas em gritos internos lascinantes, desesperados pelas torturas cotidianas que sofrem as vítimas de bullying.


2. Bullying e cyberbullying – A realidade social em causas e efeitos


O problema é bastante antigo nas escolas, especialmente as americanas. Com o Brasil não poderia ser diferente, a ponto de se ouvir nas ruas que o bullying é um grande “exagero” e que hoje se faz “espalhafato” por conta dele, ou que se queira justificar o que os agredidos, que passam a agressores, possam vir a fazer, como no caso da tragédia de Realengo.


Quem assim se manifesta muito provavelmente nunca passou por uma situação parecida ou nunca teve um parente próximo que tenha vivido tal situação. O bullying é muito além de meras brincadeiras repetitivas, mas sim todo o tipo de tortura física e psicológica que uma criança possa passar nas mãos de seus colegas e até mesmo de professores.


É como no filme “Tempo de matar”, em que um homem negro matou dois homens brancos que haviam pegado sua filha de dez anos, espancado, estuprado, jogado latas na menina, pendurado a mesma sob uma árvore ainda se debatendo, atirado-a de um muro de onde desabou de dez metros, e, após urinarem em sua face, abandonaram-na para morrer. A opinião da cidade americana em que se passa o filme, racista, firmou opinião de que aquele pai desesperado e tomado pelo ódio mereceria pena de morte. O advogado narrou toda a cena de horror e pediu para que os jurados apenas imaginassem que essa menina fosse branca. O homem foi absolvido.


Obviamente não se está comparando crimes com isso. Trata-se de um crime passional, e como crime, passível de culpabilidade. Mas observe-se o ápice da discussão: Pensar no bullying como uma “bobagem” ou mera “brincadeira”, é não se conseguir imaginar no lugar do torturado, é menosprezar o sofrimento humano e até ser conivente com o que é classificado apenas como “brincadeiras de mau gosto”. É extremamente fácil afirmar que iria estar tudo bem psicológica e socialmente se fosse consigo, mas na prática, não é bem assim que se pode deduzir.


“Brincadeiras”, utilizando-se muito além do eufemismo, de chegar a até mesmo agressões sexuais (como o apalpamento de órgãos genitais); a agressão física (como o ato de arrastar uma pessoa, carregá-la de cabeça para baixo ou colocá-la dentro de uma privada para depois dar a descarga, ou até mesmo alguns relatos de colegas que seguram o outro, o agredido, e urinam no mesmo ou o obrigam a beber urina ou comer alimentos apodrecidos).[23]


O Bullying também é influenciado pela televisão, principalmente em filmes americanos, em que crianças e adolescentes “populares” são justamente os que se enquadram no padrão de beleza do período, e quase sempre estão perseguindo os que, classificados como “certinhos”, ou fora dos padrões de beleza (em geral estigmatizados com óculos, aparelho dental, obesidade, acnes, etc.), que sofrem as mais diversas formas de humilhação. Nos filmes, poderão até ser classificadas como “cenas engraçadas”, e que, ao final, todos acabam felizes. Mas não é bem assim o que ocorre na realidade.


As escolas e os próprios pais dos agredidos e dos agressores muitas vezes negligenciam o que ocorre. Muitas das vezes, a escola nada faz além de classificar como “brincadeiras” ou “brigas” de crianças e adolescentes, ou seja, nada mais “normal” dentro do convívio humano em desenvolvimento. Isso quando os próprios professores não influenciam as condutas discriminatórias, privilegiando mais um aluno, exaltando-o, em detrimento de outros.


Por muitas vezes, os pais dos agredidos não sabem do que se passa com seus filhos, que agredidos na escola ou até mesmo pela internet, sentem vergonha de comentar o que com eles se passa. Pior é quando os pais passam a afirmar para o filho agredido de que tem culpa do que ocorre, de que ele “de fato deveria mudar”, ou a aparência, ou a conduta, ou que deveria revidar, dentre outros tantos absurdos que são influenciados por esse tipo de incentivo que em nada beneficia a criança ou adolescente vítima desta violência.


Quanto aos agressores, muitas vezes se vangloriam de seus feitos, como no depoimento de um ex-estudante em São Paulo de 25 anos de idade, que, não tendo se identificado em uma entrevista, limitou-se a relatar que “humilhar os outros era uma forma de ganhar poder no grupo”.[24] A situação é ainda agravada quando os próprios pais, por seu próprio preconceito, acabam por, direta ou indiretamente, incentivar o filho a ter tal comportamento, não importa se racista, não importa se afirmando que pessoas acima do peso são destituídas de sentimentos ou até de discernimento. Qualquer forma de preconceito é nociva, e pode ser transmitida através do exemplo que a criança ou adolescente vêem em casa.


Quanto às reações dos agredidos, são das mais variadas. Basta conversar com algumas dessas crianças ou adolescentes (e até mesmo os que hoje são adultos) que sofrem ou sofreram com o bullying escolar para notar as mais variadas formas de reação esboçadas por eles.


Alguns desenvolveram distúrbios alimentares: Bulimia, anorexia, compulsão alimentar; outros que possuíam mais condições começaram a se modificar em plásticas, outros mesmo a se mutilar; outros nos consultórios psiquiátricos chegaram a se questionar da própria sexualidade por serem tidos como homossexuais pelos colegas; outros ficaram o estigma de esquisito; outros desenvolveram Transtorno Obsessivo Compulsivo; outros se tornaram apenas inseguros, revoltados e amargurados.


Mas e aqueles os quais a revolta se transformou em ódio? Como saber quando temos pequenos “Hitlers” os quais desenvolvem ódio à humanidade e declaram abertamente que gostariam de ver mortos todos aqueles indivíduos que, tendo as mesmas características daqueles que tanto os machucaram? E o pior de tudo: Destes classificados como “revoltados”, quantos tem “coragem” (sem usar termos de medicina ou psicologia) de ver seu ódio realizado? De acordo com Cleodelice:


“”Essa é uma dinâmica escolar cada vez maior, que está virando uma epidemia porque o aluno que é vítima se transforma em agressor e reproduz a violência sofrida”,.  As vítimas geralmente são pessoas tímidas, com características físicas marcantes (usam óculos, são obesas, muito magras, ou têm orelha grande) e não costumam reagir às agressões sofridas. Caladas, preferem guardar a mágoa de maneira silenciosa. Já os agressores -a maioria do sexo masculino- gostam de mostrar poder e encontram nos mais tímidos o “alvo fácil” para chacotas”.[25]


 Para José Augusto Pedra, psicólogo especialista na área, a prática do bullying é mais comum do que as pessoas pensam, sendo que


“[…] há outros transtornos psicológicos que atingem as vítimas de bullying, que ficam deprimidas, com desejo de vingança. O que poucas pessoas sabem é que muitas vítimas de bullying acabam se suicidando em vez de atacar outras pessoas”.[26][27]


Nunca se pode subestimar o ser humano. A norma positivada nunca poderá abarcar todo e qualquer comportamento ou reação humana. A questão ainda piora quando se encontra em uma era da “banalização do mal”, usurpando-se das palavras de Hanna Arendt, em relação ao caso Eichmann, famoso algoz nazista.[28]


Para quem está fora da situação poderá parecer um exagero, uma criança ou adolescente chorando após uma turma inteira ficar lhe ofendendo após o recreio. Literalmente uma turma inteira, trinta, quarenta alunos em coro lhe ofendendo. A vergonha de sair da sala com outras turmas tendo ouvido ou parado em sala de aula não parece absurda quando se pensa em se colocar no lugar do agredido.


Surgem então os problemas de relacionamento fora dos portões dos colégios. A criança ou o adolescente, inseguro e fazendo de si próprio a imagem daquele que se encontra fora dos padrões, incapaz de fazer alguém gostar de sua pessoa, é vulnerável a qualquer tipo de riscos, como a depressão, o isolamento causado pela incompreensão das pessoas que a rotulam como “estranho” ou “chato”, doenças somáticas, ser atraído ao mundo das drogas, ser enganado por aqueles que apenas querem se divertir até mesmo sexualmente, e até mesmo, acabar sendo dominado por um grande ódio, reflexo de uma violência banalizada, sendo capaz até mesmo de um crime bárbaro.


Para agravar ainda mais a situação e o sentimento de humilhação da exposição, a internet e os meios de gravação das violências físicas e psíquicas, montagens, ridicularizações, comunidades em sites de relacionamento, vieram como um fato desesperador ainda pior das vítimas.


Relatos como os do menor L.B, que possui deformidade no rosto, que se queixa de “humilhações quando os professores não estão olhando”; de C.J, que, taxado de “bonzinho demais”, mudara três vezes de colégio e ao esbarrar com alguém que sabia o seu histórico, o horror recomeçava, a ponto de até hoje, após tratamentos psicológicos, achar que estão rindo dele quando há pessoas rindo em grupo.[29]


2.1 Bullying e a condição humana


O bullying, como dito por um dos agressores entrevistados, é uma forma de exaltação do poder no grupo em que está inserido. Como dito por Hanna Arendt[30] ,


“O poder é sempre, como diríamos hoje, um potencial de poder, não uma entidade imutável, mensurável e confiável como a força. Enquanto a força é a qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam.”


Em As origens do totalitarismo, a autora salienta que uma perseguição marcada pelo ódio nunca vem do nada. O próprio nazismo se embasou em um repúdio aos judeus que já existia na Europa e que foi aproveitado pelos algozes que almejavam o poder e a dominação. Os próprios historiadores judeus afirmavam ter sido o judaísmo superior a outras religiões, criando inclusive “irritantes estereótipos”, formadores de conceitos errôneos, tais como a figura daqueles que não gostariam de se misturar com “povos inferiores” ou ainda, do agiota que empresta dinheiro em troca de mais dinheiro, em uma situação muito pior do que o do burguês que ao menos concede a mais valia ao proletário.[31]


Em suma, nesta visão, a segregação causada por tal estereótipo, causou ódio em massa de tamanha monta, capaz de, com a ascensão do nazismo, os seguidores de Hitler tivessem apoio social suficiente para a realização do massacre.[32]


Juntado com os ideais de “higiene” do diferente, como destacado por Zygmunt Bauman, em sua obra mal estar da pós-modernidade,


“[…] o interesse pela pureza e a obsessão com a luta contra a sujeira emergem como características universais dos seres humanos: os modelos de pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para a outra, de uma cultura para a outra – mas cada época e cada cultura tem um certo modelo de pureza e um certo padrão ideal a serem mantidos intactos e incólumes às disparidades. (…) Varrer o assoalho e estigmatizar os traidores ou expulsar os estranhos parecem provir do mesmo motivo de preservação da ordem, de tornar ou conservar o ambiente compreensível e propício à ação sensata”[33]


A humanidade sempre esteve inclinada não para uma isonomia, para a igualdade das pessoas enquanto seres humanos, mas para a uniformidade da própria humanidade, para o aniquilamento do que é plural. Assim, a idéia da “poluição”, da presença de pessoas que “não se ajustam” ou que “estragam o quadro”, que possam ofender a harmonia daquele ideal de padronização por muito tempo foi a justificativa para a matança de loucos na idade média, assim como foi na solução final nazista.


O vírus mais destrutivo da humanidade é a idéia, pois como destacado por Bauman[34], “os grandes crimes, freqüentemente, partem de grandes idéias”. De acordo com o autor polonês, assim como doenças são passadas de geração em geração, e quando infecta um grande número de pessoas e as fazem entrar em estado de “febre psicótica”, eis que surge mais uma vez o fanatismo aniquilador do pluralismo da humanidade, fazendo com que todas as sociedades, dentro da nova desordem do mundo, em que tudo é descartável, produzem “estranhos”, e, ao mesmo tempo em que os cria, deseja anulá-los.


Sejam os estranhos modernos ou pós modernos, o caminho do que chama de “humanidade partilhada” é sinuoso e cheio de percalços, devendo ocorrer ressonância e harmonia entre a maneira como se ocupa os problemas de identidade e diferenciação do mundo, quando o mundo é culturalmente modelado na perda dos valores de aceitação.[35] Somada essa situação com a crescente “banalização do mal” já prevista por Hanna Arendt, talvez pelo endurecimento provocado pelas constantes notícias exploradas na mídia de mortes violentas, torturas, estupros e tantos outros crimes hediondos que garantem o ibope para as redes de comunicação.


O discurso pós moderno, portanto, deve ser direcionado para não se tornar hipócrita. O discurso do pluralismo deve ser direcionado para a tolerância inclusiva, humanitária, e não a mera tolerância excludente, que nada mais é do que uma outra forma de aniquilação do ser humano, desintegrado e desentranhado de sua necessidade de convívio social pleno.


3. Dos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana no bullying


O bullying ainda não é devidamente tratado no Brasil, sob os mais amplos aspectos. Se para a população, para a escola e famílias o fenômeno não tem o reconhecimento de sua gravidade entre os alunos, no âmbito jurídico ainda mais não é sequer reconhecido no mais das vezes, sendo classificado como condutas de “pequeno potencial ofensivo”. Na verdade,


“Falta ao Brasil uma lei Federal destinada a castigar os autores desse crime. Quando chegam à Justiça, os casos são enquadrados em infrações previstas no Código Penal, como injúria, difamação e lesão corporal. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pode ser acionado, mas, na prática, é pouco eficaz. “Os juízes das varas da Infância e Juventude muitas vezes não dão prioridade aos casos de Bullying por julgá-los de menor gravidade, diz o advogado Marcelo Leonardi” […][36]


Ao contrário do Brasil, no âmbito internacional (palco, inclusive, de inúmeras barbáries similares a de Realengo, um fenômeno até então “inédito” no Brasil), por exemplo, Inglaterra as escolas se protegem com seguro, sendo que as seguradoras só aceitam segurar as escolas que mantém um programa de prevenção do bullying.[37]


Juridicamente, ainda que não previsto expressamente em leis específicas, pode ser considerado uma espécie de dano moral. O dano moral, ou mais propriamente dito “dano imaterial” ou “dano não patrimonial” é uma das mais graves violações dos direitos humanos, pois atinge o bem mais precioso que um ser humano pode ter: Sua dignidade.


O dano moral atinge bens integrantes da personalidade, bem muito mais precioso que o patrimônio. Entende-se como direitos da personalidade a imagem, o nome, a reputação, os sentimentos, relações afetivas, aspirações, hábitos, gostos, convicções políticas, religiosas, filosóficas, direitos autorais. Não se restringe mais o dano moral à dor, humilhação, tristeza, vexação e sofrimento como se entendia outrora.[38]


Destarte, basta a violação dos direitos da personalidade, que configuram uma afronta à dignidade da pessoa humana, e via, de conseqüência, uma gravíssima violação aos direitos humanos. Será que se faria necessária de fato, uma legislação específica para tratar do dano moral sob esse aspecto? O Brasil, o país das leis que em regra sequer são cumpridas?


Hoje, não resta mais dúvida, com a consagração dos direitos das crianças e adolescentes como direitos fundamentais, configura-se direito da personalidade especial a este ser que, em desenvolvimento, encontra-se em estado de vulnerabilidade. Tais atributos da personalidade da criança e do adolescente asseguram-lhes a vida, saúde, alimentação, educação (que não é o simples ato de garantir-lhes uma diplomação), lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão.[39]


Como bem destacado por Sergio Cavalieri Filho, para configurar o dano moral, a conseqüência deve ser analisada pela lógica do razoável, dentro da violação grave de um direito da personalidade, de maneira que


“Só deverá ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações ao são tão intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo.”[40]


Note-se bem que não se trata de dano moral a “sensibilidade exacerbada”, argumento muito utilizado pela defesa daquele que é cobrado a reparar um dano moral que cometera em relação à vítima. Basta pensar, no caso do bullying, a diferença entre uma briga isolada, ou pequenas implicâncias que partem apenas de uma ou duas pessoas, apelidos dados, mexidas, risadas com brincadeiras de mau gosto como colocar chiclete na cadeira do colega.


Toma-se, por exemplo, uma criança a quem um colega apelida como “formiga atômica” por ser um colega baixo, que logo ganha outros apelidos como “lenhador de bonsai”, “Tarzan de samambáia” ou “surfista de microondas”. Mesmo que a criança se incomode com os apelidos, não está além da normalidade de um pequeno dissabor de crianças. Ou ainda, o gordinho, cujo apelido “bola”, não lhe afeta, e ao se perguntar o nome ele indica sorrindo “… mas pode me chamar de bola”.


Agora se imagine uma turma inteira em coro ofendendo, puxando as coisas da criança ou adolescente, rasgando-lhes ou inutilizando-lhes o material escolar, proferindo-lhes golpes, ofensas (até mesmo das mais obscenas), dizendo-lhes coisas, como por exemplo, de que “só serve para estudar”, “é tão feio (a) e ridículo (a) que ninguém irá lhe querer na vida”, que “todo gordo é estúpido” ou que “é tão burro (a) que não serve para nada”, e em seguida apalpando-lhes, puxando-lhes, menosprezando-os, ou mesmo, golpeando-lhes.


Todos esses são exemplos reais. Os resultados são crianças totalmente desestruturadas, a partir do seu direito de proteção integral. Muitas conseguem auxílio e, na troca de colégio, têm sorte de parar totalmente com medicamentos e/ou tratamento e levar uma vida normal. Outras, quando mudam de ambiente escolar, ao ter apenas uma pessoa que saiba do que se passara, principalmente por conta da rede mundial de computadores, acaba repetindo todas as ações praticadas, por conta de um estigma, formando um círculo vicioso. As vítimas que se enquadram nessa situação em regra carregam consigo uma carga que deixará marcas para o resto de suas vidas.


De acordo com o promotor de Justiça de Minas Gerais Lélio Braga Calhau,


“o fenômeno estimula a delinqüência, induzindo a outras formas de violência explícita aptas a produzir, em larga escala, “cidadãos estressados, deprimidos e com baixa autoestima, capacidade de autoafirmação e de autoexpressão, além de propiciar o desenvolvimento de sintomatologias de estresse, de doenças psicossomáticas, de transtornos mentais e de psicopatologias graves”.[41]


Desta forma, se acaso se tivesse tratado o conhecido “monstro de Realengo” a tempo, se acaso o bullying tivesse sido parado a tempo, talvez o massacre nunca teria ocorrido. A mente humana é imprevisível.


3.1 Da Responsabilidade Civil


3.1.1 Da responsabilidade civil da escola


De acordo com uma pesquisa realizada pela Unesco e pelo Ministério da Educação, cerca de 35% dos estudantes brasileiros já viram armas, dentro da escola onde estudam! Doze por cento já viram armas de fogo![42]


A falta de atenção das escolas não pára neste preocupante dado. De acordo com o estudo da ONG Plan, 58% das escolas não acionam os pais das vítimas nem dos agressores; 80% delas não punem os autores do Bullying.[43]


Pior ainda é quando, na prática, a escola que possui serviço de acompanhamento psicológico, apenas foca para o agredido, fazendo com que o agressor, impune, fique do lado de fora apenas rindo e continuando seguro de suas ameaças e ridicularizações.


Outro grande problema gerado com isso é a sensação de insegurança das vítimas, que, com medo de represálias, acabam por não denunciar o que está ocorrendo de maneira adequada, ou pior, quando há um “fingir não ver” o que está acontecendo, virando as costas enquanto o tais atos ocorrem.


3.1.1.1 O Bullying e a escola na jurisprudência brasileira


Timidamente, os casos de bullying estão sendo levados ao Judiciário, e raros não são os casos em que são repelidos pelos magistrados, enquadrados como “brincadeiras de crianças”, ou lesões de “pequeníssimo grau de ofensividade”, isso quando não demonstrado total ausência de conhecimento sobre o assunto por parte dos magistrados. O recente caso da estudante Julia Affonso, hoje com 15 anos, embasado no art.186 CC, é um dos casos emblemáticos que se pode exemplificar como um dos pioneiros no reconhecimento de como o bullying pode ser danoso a criança:


“O TJ/RJ confirmou a decisão da primeira instância que condenava a Sociedade de Ensino e Beneficência Nossa Senhora da Piedade a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 35 mil à família de uma ex-aluna. A estudante, representada por seus pais E.B. e R.A., entrou com ação contra a escola na 7ª vara Cível do Méier, na zona norte do RJ, relatando que desde o início de março de 2003 vinha sofrendo agressões físicas e verbais por parte de colegas de classe.


Segundo os autos, a autora, à época com sete anos de idade, foi vítima de bullying. Dentre as agressões, alega que teria sido espetada na cabeça com um lápis, arrastada, sofrido arranhões, além de socos, chutes, gritos no ouvido, palavrões e xingamentos. A autora afirmou ainda que “outras crianças da escola também sofreram agressões e que um grupo de mães entregou um oficio à vice-diretora da escola solicitando providências, mas não houve resposta pedagógica ao problema”.


Por causa do ocorrido, a criança teria adquirido fobia de ir à escola, passou a ter insônia, terror noturno e sintomas psicossomáticos, como enxaqueca e dores abdominais, tendo que se submeter a tratamento com antidepressivos e, no fim do ano letivo, mudou de escola.


A entidade de ensino defendeu-se alegando que o colégio “não ficou inerte ante as reclamações e que tomou todas as medidas pedagógicas que o caso mereceu”. Porém, não entendeu ser conveniente o afastamento dos alunos da escola, sendo os mesmos acompanhados por psicólogos, bem como os responsáveis chamados ao colégio. Documentos comprovam reclamações formuladas não só pelos pais da menina como de outros alunos, que também sofriam o bullying.


O desembargador Ademir Paulo Pimentel, relator do processo, afirmou que “os fatos relatados e provados fogem da normalidade e não podem ser tratados como simples desentendimentos entre alunos”. Estando configurado o dano moral e a responsabilidade da escola, que detém o dever de manutenção da integridade física e psíquica de seus alunos, a 13ª Câmara Cível, por unanimidade de votos, acordou em negar os recursos, o agravo retido e a apelação.”


Processo : 0003372-37.2005.8.19.0208[44]


O Tribunal de Justiça do Distrito Federal foi mais além, e, por unanimidade, além de condenar a instituição escolar ao pagamento de indenização por dano moral, o classificou como ofensa dignidade da pessoa humana:


“ABALOS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DE VIOLÊNCIA ESCOLAR – BULLYING – OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA. (…) Na espécie, restou demonstrado nos autos que o recorrente sofreu agressões físicas e verbais de alguns colegas de turma que iam muito além de pequenos atritos entre crianças daquela idade, no interior do estabelecimento do réu, durante todo o ano letivo de 2005. É certo que tais agressões, por si só, configuram dano moral cuja responsabilidade de indenização seria do Colégio em razão de sua responsabilidade objetiva. Com efeito, o Colégio réu tomou algumas medidas na tentativa de contornar a situação, contudo, tais providências foram inócuas para solucionar o problema, tendo em vista que as agressões se perpetuaram pelo ano letivo. Talvez porque o estabelecimento de ensino apelado não atentou para o papel da escola como instrumento de inclusão social, sobretudo no caso de crianças tidas como “diferentes”. Nesse ponto, vale registrar que o ingresso no mundo adulto requer a apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. A interiorização de tais conhecimentos e experiências vividas se processa, primeiro, no interior da família e do grupo em que este indivíduo se insere, e, depois, em instituições como a escola. No dizer de Helder Baruffi, “Neste processo de socialização ou de inserção do indivíduo na sociedade, a educação tem papel estratégico, principalmente na construção da cidadania.” (TJ-DFT – Ap. Civ. 2006.03.1.008331-2 – Rel. Des. Waldir Leôncio Júnior – Julg. em 7-8-2008)[45]


Ainda que a escola seja pública, seja estadual ou municipal, o dever de indenizar será exatamente o mesmo, pois não poderá o Estado se eximir de indenizar a criança, dentro da prestação do serviço educacional, que tenha sofrido tamanho dano a sua personalidade, senão vejamos:


“RESPONSABILIDADE DO ESTADO. O Município é responsável por danos sofridos por aluno, decorrentes de mau comportamento de outro aluno, durante o período de aulas de escola municipal. O descaso com que atendido o autor quando procurou receber tratamento para sua filha se constitui em dano moral que deve ser indenizado’. (TJ-SP – Ap. 7109185000 – Rel. Des. Barreto Fonseca – Julg. em 11-8-2008)[46]


Do que se pode notar, timidamente os magistrados estão se interando acerca das verdadeiras atrocidades cometidas por alunos para com outros alunos, de maneira a combater ostensivamente, pesando nos bolsos dos responsáveis daqueles que poderiam cessar o dano com medidas sócio-educativas e nada fazem, ou se equivocam nas medidas tomadas, no mais das vezes apenas direcionadas a vítima, fazendo com que o estigma da “criança problema” seja perpetuado.


3.1.2 Da responsabilidade civil dos pais do agressor e o punitive damages.


Além da responsabilidade do estabelecimento de ensino onde a criança vítima de Bullying sofre as agressões, pode-se cogitar da responsabilidade direta e indireta dos pais do menor agressor, dentro de nossa legislação pátria.


A responsabilidade direta, ou por fato próprio, pode ser cogitada quando a própria família do agressor incita a violência no âmbito familiar. Mais que isso, quando repassa valores discriminatórios aos seus filhos, tornando-os meros reprodutores daquilo que apreendem em casa.


Mas a mais importante, e pedra angular a ser melhor analisada, é a responsabilidade indireta, também chamada de responsabilidade por fato de outrem, que ocorre quando a responsabilidade daquele que é obrigado a reparar desborde do autor material do dano, havendo a necessidade de haver um vínculo jurídico entre o autor do ato ilícito e o responsável, de sorte a resultar-lhe, daí, um dever de guarda, vigilância ou de custódia.[47]  Daí se falar em “responsabilidade objetiva dos responsáveis”.


O art. 933 do Código Civil Brasileiro dispõe que responderão, ainda que não haja culpa de sua parte, pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos, configurando hipótese de responsabilidade objetiva aos pais em relação aos atos danosos de seus filhos, uma vez que detêm o dever de guarda e vigilância dos mesmos, que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia. Nesse sentido, Sérgio Cavalieri Filho:


“Não se olvide, entretanto, que objetiva é a responsabilidade civil dos pais, tutor, curador e empregador, e não das pessoas pelas quais são responsáveis. Em qualquer dessas hipóteses será preciso a prova de uma situação que, em tese, em condições normais, configure a culpa do filho menor, do pupilo, do curatelado, como também do empregado (se for o caso de responsabilidade subjetiva). […] O que pretendemos dizer é que o ato deve ser tal que, se praticado por alguém imputável, configuraria a violação de um dever; a culpa estaria caracterizada se o ato ilícito fosse praticado por alguém imputável.”[48]


Assim, nos termos do art. 932, I do Código Civil de 2002, os pais são responsáveis pela reparação civil dos danos causados pelos filhos menores. Todavia, os pais apenas são responsáveis pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia.


Desta forma, assim que a criança ou adolescente saírem da escola, nas conhecidas como “te pego na saída”, ou, mais modernamente, na prática de atos como o já classificado como “cyberbullying”, a escola não mais estará responsabilizada por aquilo que ocorre com a vítima, mas sim os pais do agressor, que deveriam estar exercendo seu poder familiar (dentre eles o de educação, orientação e vigilância) sobre o mesmo, de modo a evitar que pratique dano contra uma determinada pessoa.


Como bem destacado por Maria Berenice Dias,


“A responsabilidade parental não decorre da guarda, mas do poder familiar, que é exercido por ambos os genitores. Dentre os seus deveres encontra-se o de ter o filho em sua companhia e guarda […]. Mesmo que não esteja em sua companhia, está sob sua autoridade.


[…]


Como se trata de responsabilidade objetiva, é indireta quanto aos pais, presumindo-se a culpa dos deveres de educação e “vigilância ativa”, que compreende a formação de hábitos e comportamentos adequados à convivência social do filho, especialmente na rua, onde se acha ausente a natural proteção dos genitores. Quando os atos danosos praticados pelos filhos decorrem da falta de estruturação familiar, cabe responsabilizar os pais. Esse novo viés de responsabilidade parental consagrado na Argentina tem despertado a atenção doutrinária pátria”.[49]


Janaína Guimarães[50] realiza estudo profundo sobre o tema, tendo citado a seguinte jurisprudência


“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – COMUNIDADE VIRTUAL DO ORKUT – MENSAGENS DEPRECIATIVAS A PROFESSOR – RESPONSABILIDADE DOS PAIS. Os danos morais causados por divulgação, em comunidade virtual – orkut – de mensagens depreciativas, denegrindo a imagem de professor – identificado por nome –, mediante linguagem chula e de baixo calão, e com ameaças de depredação a seu patrimônio, devem ser ressarcidos. Incumbe aos pais, por dever legal de vigilância, a responsabilidade pelos ilícitos cometidos por filhos incapazes sob sua guarda. (TJ-RO – Acórdão COAD 126721 – Ap. Civ. 100.007.2006.011349-2 – Rel. Convocado Juiz Edenir Sebastião Albuquerque da Rosa – Public. em 19-9-2008) […]


 “A meu ver, tais condutas ultrapassam, em muito, o que pode ser considerado brincadeira, pois não é a pretexto de brincadeira que se justifica ofender a honra alheia ou se ameaça depredar o patrimônio alheio. Caso não saibam os apelantes, a brincadeira, quando ocorre, tem o consentimento e a empatia das partes envolvidas, e não foi assim que os fatos se deram. Quanto à função punitiva da reparação, esta se dirige diretamente aos pais, que têm o dever de vigilância e educação, de forma que o cumprimento de medida socioeducativa pelos filhos não tem o condão de, por si só, afastá-la. Saliento que o dever de vigilância é uma incumbência legal dos pais, enquanto responsáveis pelos filhos. Trata-se de um dever legal objetivo do qual não pode o responsável se escusar, ao argumento de ser impossível a vigilância do filho por vinte e quatro horas ao dia. Noutras palavras, o argumento trazido pelos apelantes é por demais frágil e não afasta os consectários do descumprimento do dever legal. Quanto à repercussão dos comentários lesivos, é fato notório que as comunidades virtuais do orkut têm ampla divulgação aos cadastrados via internet, não sendo crível que os dados ali postados tenham-se restringido aos vinte e nove membros participantes do grupo. Portanto, não há como afastar a responsabilidade dos apelantes, sendo devida a reparação pelos danos deflagrados.”


Logicamente, se a responsabilização dos pais em relação às ofensas proferidas pelos filhos são perfeitamente cabíveis perante professores, quiçá se dirá em relação a outros alunos, tão crianças ou adolescentes quanto os agressores, seres que estão em formação e que necessitam de ainda mais cuidado.


3.1.3 Das obrigações dos pais do agredido em face ao melhor interesse da criança


A formação dos princípios norteadores da índole e caráter do ser humano, que lhe seguirá por toda a vida, inicia-se desde criança, de forma a esculpir sua personalidade. Aos pais que detém o poder familiar, cabe a proteção integral da criança, e dentre outros deveres, o dever de formação e cuidados.


O acompanhamento é extremamente necessário em relação ao bullying, bem como a compreensão de que seu filho não tem culpa do que está acontecendo, e que ele deve ter orientação em relação a sua auto-estima e comportamento. Se necessário, ser conduzido a tratamento psicológico.


De acordo com Dias[51], cabe aos pais, ou a quem detiver o poder familiar, dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, em ajudá-los na construção de sua própria liberdade, garantindo-lhes a sua proteção integral, condicionando o interesse dos pais ao interesse dos filhos, previstos não apenas na legislação civil, como na própria Constituição da República, como no estatuto minorista (ECA).


Desta forma, os pais não poderão fazer com que seu filho sinta-se pior, culpado do ocorrido, e muito menos ser estimulado a revidar, o que poderá fazê-lo inclusive com maior violência, e o pior: achando que tem aval dos próprios pais. O sentimento de vingança deve ser desestimulado.


Cobrar da escola que a mesma tome atitudes com maior firmeza na sua ausência também é papel dos pais, que não devem se contentar apenas em ver seu filho, agredido, ser conduzido à coordenação e ao serviço pedagógico, enquanto que ao agredido não seja tomada nenhuma medida.


A tolerância do (novo) discurso de que não há de se falar em afastamento dos agressores devido a interesses do lucro da escola, que não quer ver um cliente a menos em sua folha de pagamento, ou o discurso de que a criança (agressor) não poderá mais ser expulso do colégio, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente não permitem mais tais constrangimentos formam argumentos tolos e tacanhos que devem ser controlados pelos pais do agredido, que não podem simplesmente retirar seus filhos de um colégio, ensinando-os simplesmente a fugir de problemas ao invés de resolvê-los da maneira correta.


Como estabelecido no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 70, “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”, sendo que “A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade da pessoa física ou jurídica”, nos termos da lei. Quando se estabelece “todos”, não se está apenas versando sobre dever do Estado em realizar o direito fundamental, como também uma tutela direcionada aos sujeitos de direito privado. Aos pais não se foge à regra, para quem devem, mais do que ninguém, fazer o valer os direitos de seus filhos.


Aos pais do agredido cabe o acompanhamento psicológico do mesmo, a conscientização de que não está errado, devendo-se trabalhar para que seja um adulto normal, sem tantas amarguras, sem ódio, sem desejo de vingança. A preservação da dignidade da pessoa humana não é apenas para o agredido, mas para o adulto que será formado e para as pessoas que com ele conviverão no futuro. É mais uma segurança de que o caso Realengo não se repita no futuro do país.


4. Da criminalização do bullying – Problemas entre a realidade e a fantasia


Em face a realidade enfrentada nos dias hodiernos, a seara jurídica ganha adeptos no sentido de criminalizar o bullying. Promotores da vara de infância e juventude de São Paulo propõem a criminalização do bullying através de um anteprojeto de lei, prevendo a conduta de um a quatro anos de reclusão e multa, ou, sendo menor o infrator, que seja internado no Instituto Casa, antiga FEBEM. Pretendem com isso, o combate repressivo sobre a conduta lesiva.[52]


Talvez criminalizar a conduta pelos que aqueles respondem na escola, ou, no caso do cyberbullying, a conduta dos pais do agressor, comprovadamente omissos, tal qual o engenheiro de uma obra fosse a solução, uma vez que a pressão talvez funcionasse, não obstante que pudesse gerar reflexos graves à toda uma sociedade. Pensem nos pais de família que seriam afetados por condutas de filhos que não são seus; pense nos filhos agressores que, ainda que ajam de maneira inadequada, percam o poder familiar de seus pais, presos por atos seus.[53]


Atualmente, no Estado de São Paulo,


“Escolas públicas e particulares já podem encaminhar, desde fevereiro,  casos de bullying e de cyberbullying diretamente ao Ministério Público Estadual (MPE) sem que os pais tenham de abrir boletim de ocorrência em delegacias ou  fazer o registro das denúncias em cartórios de notas.


Os estabelecimentos de ensino devem procurar a Promotoria da Infância e Juventude, no Brás, região central, enviar uma breve narração dos fatos e, se  possível, documentos e indicação de testemunhas.


“Uma comissão irá apurar, em caráter preliminar, se as ocorrências que chegarem dizem respeito a atitudes agressivas, realizadas de forma voluntária e  repetitiva, que ocorram sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro causando dor e angústia e realizada dentro de uma relação  desigual de poder”, explica o promotor Mario Augusto Bruno Neto. “Denunciando, as escolas se previnem de possíveis ações no futuro”,  afirma.[54]


Recentemente, em pesquisa realizada por Janaína Guimarães[55]:


“Não obstante a iniciativa de alguns estados e municípios em adotar uma política para adoção de um programa de combate ao bullying, não existe uma legislação específica tratando do tema, cabendo ao Judiciário aplicar as regras e sanções previstas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código Penal, por exemplo.


Após um caso ocorrido com um estudante na Paraíba, a Câmara Municipal de João Pessoa aprovou projeto, dando origem à Lei Municipal 11.381/08, que dispõe sobre o combate ao fenômeno.


Recentemente, o governador do Estado de Santa Catarina sancionou a Lei Estadual 14.651/09 para instituição do programa de combate ao bullying, de ação interdisciplinar e de participação comunitária nas escolas públicas e privadas do estado.


Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, a iniciativa ainda está sendo analisada pelo Poder Legislativo, por meio dos respectivos projetos de lei 350/07 e 683/07.” [sic]


Políticas públicas de “combate ao fenômeno”, apenas direcionadas a propaganda ou “conscientização” não vão adiantar em nada sem o devido trabalho educativo dentro dos casos já existentes. O vírus da violência está instalado e deve haver medidas de combate efetivo de modo a dirigir a conduta do agressor a ser mais social, como por exemplo, ser forçado a freqüentar palestras com pessoas que sofrem de bullying, ouvir seus depoimentos, ou mesmo prestação de serviços a comunidade dentro da comunidade, com pessoas semelhantes àquelas discriminadas.


Por outro lado, internar o menor infrator na Instituição Casa não irá ressocializá-lo. Pior que o sistema carcerário atual, irá se arrancar um menor de uma instituição de ensino e se irá colocá-lo em um estabelecimento sem as mínimas condições, onde será discriminado pelos próprios detentos, podendo a sofrer coisas muito piores até mesmo que o bullying praticado. Basta conhecer a realidade de tais estabelecimentos.


Não se visa assim a punição do infrator. É o ensino da disciplina na sua maneira mais pura, e não uma mera retribuição do fato ou simples “castigo”. São medidas que, sendo cumpridas, acarretarão em efetividade ao procedimento de afastar o mal que o bullying causa à sociedade infanto-juvenil.


Assim, a criminalização pode produzir grandes efeitos adversos: o de punir o agredido que esteja em alto estágio de perturbação e que não seja um criminoso assassino, mas que tenha se tornado um agressor; o de levar para a fundação Casa adolescentes agressores que acabarão por adentrar na “pré-escola do crime”; o de acabar por criminalizar pais e diretores de escolas, que serão tidos como criminosos, refletindo as conseqüências em todas as suas famílias, em toda uma sociedade, de maneira desproporcional.


Outro grande problema é que tornar o bullying, fenômeno praticado essencialmente entre crianças e adolescentes, como crime, será totalmente inócuo, tendo em vista a inimputabilidade dos agentes que praticam e sofrem bullying.


Fato é que o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº 8.069/1990, prevê a possibilidade de aplicar medidas sócio-educativas nas práticas dos atos em que o bullying poderia se enquadrar como infração, senão vejamos


“Seção III – Da Obrigação de Reparar o Dano


Art. 116. Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima.


Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada.


Seção IV – Da Prestação de Serviços à Comunidade


Art. 117. A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais.


Parágrafo único. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a freqüência à escola ou à jornada normal de trabalho.”


E ainda, já prevê o ECA o enquadramento de infração administrativa à conduta da instituição que deixar de comunicar a autoridade competente qualquer noticia de maus-tratos a crianças e adolescentes que ocorram dentro de sua instituição.


“Das Infrações Administrativas


Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente:


Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.” (grifo nosso)


Outro grande problema é o de criar seguidores ou pessoas que apóiem esse tipo de crime, transformando o atirador de Realengo como uma espécie de “mártir”, e acabarmos pelo absurdo de ter crianças amedrontadas pelo que antigamente era a “Cuca” que viria levá-las acaso não dormissem cedo. Hoje, seria o atirador que viria a matá-las, acaso não se comportassem bem na escola com os demais colegas.


De acordo com Janaína Guimarães[56]:


“Não obstante a iniciativa de alguns estados e municípios em adotar uma política para adoção de um programa de combate ao bullying, não existe uma legislação específica tratando do tema, cabendo ao Judiciário aplicar as regras e sanções previstas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código Penal, por exemplo.


Após um caso ocorrido com um estudante na Paraíba, a Câmara Municipal de João Pessoa aprovou projeto, dando origem à Lei Municipal 11.381/08, que dispõe sobre o combate ao fenômeno.


Recentemente, o governador do Estado de Santa Catarina sancionou a Lei Estadual 14.651/09 para instituição do programa de combate ao bullying, de ação interdisciplinar e de participação comunitária nas escolas públicas e privadas do estado.


Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, a iniciativa ainda está sendo analisada pelo Poder Legislativo, por meio dos respectivos projetos de lei 350/07 e 683/07.” [sic]


A pergunta que urge destes precedentes é se realmente há a necessidade de mais uma lei que verse sobre o caso, ou se a legislação vigente, tão pródiga, porém tão mal aplicada, e por vezes, indevidamente aplicada não seria suficiente acaso tivesse um modo de aplicação correto e eficaz dentro de uma hermenêutica correta.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Não se pretendeu de modo algum, ao longo do presente ensaio, justificar ou defender levianamente o assassino protagonista do conhecido como “massacre” ou “tragédia de Realengo”, mas o presente artigo pretendeu alcançar duas grandes metas: A primeira, de traçar um esboço humano para aquele que apenas foi conhecido como um monstro atirador, que, ainda que estivesse vivo, deveria ter seu direito de defesa preservado; e a segunda e principal meta: A de abrir os olhos para a realidade preocupante dos atuais casos de Bullying que estão ocorrendo no Brasil.


É importantíssimo conscientizar a sociedade que o Bullying não consubstancia as brincadeiras sofridas “por todos” nos colégios como alguns pregam, mas sim excessos que configuram uma verdadeira tortura que atinge aqueles que estão em fase de formação de sua personalidade. É, nas palavras de Janaína Guimarães, um “fenômeno cruel e silencioso”, que não trás conseqüências negativas apenas para o ambiente escolar.


O desvirtuamento ético e a má-formação educativa desde o âmbito de dentro das casas das crianças e adolescentes envolvidas, somado com um descaso tanto da maioria das escolas como de toda uma sociedade, o que reflete até mesmo no judiciário, classificando casos de bullying como “baixo potencial de lesividade”, faz com que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, e o princípio do melhor interesse da criança não sejam aplicados de maneira eficaz, em prol de garantir a dignidade para o infante.


E assim, os casos de Bullying apenas aumentam de forma preocupante, e o pior de tudo, assumem formas cada vez mais cruéis às vítimas, que passam a viver os piores pesadelos de suas vidas. E ainda, nunca se sabe quando uma delas possui um problema interior muitíssimo grave, grave o suficiente para o Bullying ser apenas a faísca que provocou a explosão de uma grande bomba. Afinal, não se pode esquecer a lição deixada por Dostoievsky, em sua obra Memória da casa dos mortos, de que “o homem não pode viver sem trabalho e sem condições legais e normais: degenera-se e converte-se numa fera”.


O agressor deve ter tanto acompanhamento quanto o agredido, pois seu comportamento é altamente lesivo. Ele deverá ser conscientizado e acompanhado, e, nesse sentido, o papel da sua família é importantíssimo. Criminalizar é uma solução totalmente inviável, inócua e até mesmo nociva, quando já se tem medidas de combate ao fenômeno.


Jamais se poderá fazer apologia ao massacre de Realengo, e o mais importante, serão necessárias políticas públicas maciças no sentido de expurgar esse verdadeiro câncer que ocorre dentro e até fora dos portões escolares, de maneira a se evitar que o atirador do Rio de Janeiro acabe sendo tomado como “mártir” ou espécie de ídolo de muitos que, como ele, sofreram as piores humilhações no colégio.


 


Referências bibliográficas:

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Fantástico revela nova carta deixada por Wellington e nela ele usa o bullying para justificar mortes, 2011, Disponível em <http://vcartigosenoticias.blogspot.com/2011/04/fantastico-revela-nova-carta-deixada.html>.

‘O bobo da sala se tornou um criminoso’, diz ex-colega de atirador, 2011, disponível em < http://www.cemeobes.com.br/noticias/%E2%80%98o-bobo-da-sala-se-tornou-um-criminoso%E2%80%99-diz-ex-colega-de-atirador/>.

ONG de SP pedirá para MP investigar ‘rodeio das gordas’, 2010, disponível em <http://www.jornalacidade.com.br/editorias/cidades/2010/10/27/ong-de-sp-pedira-para-mp-investigar-rodeio-das-gordas.html>

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TJ/RJ – Colégio terá que indenizar família por bullying praticado contra aluna

Disponível em <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI130206,101048-TJ+RJ+Colegio+tera+que+indenizar+familia+por+bullying+praticado>.

<http://www.top30.com.br/news/trotes-universitarios>


Notas:

[1] FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Bullying escolar: perguntas e respostas. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 33

[2] FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto, 2008. p. 44-45.

[3] Nesse sentido, FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto, 2008. p. 34.

[4] A situação é agravada ainda mais com os padrões estéticos que impõem modelos inalcançáveis de magreza.  As próprias modelos profissionais são induzidas a perquirir um ideal de magreza tão padronizado sob pena de não conseguirem trabalhos que levam muitas a desenvolver transtornos alimentares, como a jovem Ana Carolina Macan, que morreu em decorrência da anorexia por se achar acima do peso para o desempenho de seu trabalho. Matéria extraída do site http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1248775-EI306,00.html. Tal situação forçou agências a repensarem suas exigências e admissões, ao menos aos olhos da sociedade, fazendo com que as pessoas contratadas para o ofício de modelo fizessem exames médicos para suas devidas admissões. Nesse sentido, a matéria do site http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75786-5856-444,00-MODELOS+SERAO+OBRIGADAS+A+FAZER+EXAMES+MEDICOS+PARA+COMBATER+ANOREXIA.html. Mas essa conduta não irá amortecer completamente o impacto que a imagem da magreza perfeita provocou, a exigência de uma condição de beleza às custas da própria saúde continuam pelos bastidores como é bem conhecido.

[5] FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Op. Cit. p. 41.

[6] Em relação à questão específica do “cyberbullying”, FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Op. Cit. p. 65.

[7] BRASIL, Sandra; DINIZ, Laura; SEGALLA, Vinicius. Cruel, aterrador e inexplicável. In: Veja. 2212 ed. ano 44, nº 15, 13 de abril de 2011, p. 82-83.

[8] PRADO, Adriana; AQUINO, Wilson. O que aconteceu naquelas salas de aula. In: ISTOÉ. 13 abr/2011, ano 35, n. 2161, p.71.

[9] BRASIL; DINIZ; SEGALA, 2011, p. 83.

[10] LOBATO, Eliane; MARQUES, Hugo. “Virem para a parede, vou matar vocês”. In: ISTOÉ. 13 abr/2011, ano 35, n. 2161, p. 76.

[11] BRASIL, Sandra. O Retrato da mente de um monstro. In: Veja. 2213, ano 44, nº 16, 20 de abril de 2011, p. 94-95.

[12] TEIXEIRA, Rafael, MARQUES, Hugo. Menino solitário, adulto perturbado. In: ISTOÉ, 13 abr/2011, ano 35, n. 2161, p. 78.

[13] BRASIL; DINIZ; SEGALA, 2011, p. 84. Logicamente o nome do ex-colega foi preservado pela revista

[14] TEIXEIRA; MARQUES, 2011, p. 78.

[15] Para irmã e ex-colegas, atirador era estranho, reservado e calado, 2011, Disponível em <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/04/07/para-irma-e-ex-colegas-atirador-era-estranho-reservado-e-calado.jhtm

[16] Fantástico revela nova carta deixada por Wellington e nela ele usa o bullying para justificar mortes, 2011, Disponível em <http://vcartigosenoticias.blogspot.com/2011/04/fantastico-revela-nova-carta-deixada.html>.

[17] TRAGÉDIA EM REALENGO: quando aluno, atirador sofria gozações das meninas, 2011, Disponível em < http://www.oreporter.com/detalhes.php?id=45545>.

[18] TEIXEIRA; MARQUES, 2011, p. 78.

[19] ‘O bobo da sala se tornou um criminoso’, diz ex-colega de atirador, 2011, disponível em < http://www.cemeobes.com.br/noticias/%E2%80%98o-bobo-da-sala-se-tornou-um-criminoso%E2%80%99-diz-ex-colega-de-atirador/

[20] PRADO, Adriana; AQUINO, Wilson. O que aconteceu naquelas salas de aula In: ISTOÉ, 13 abr/2011, ano 35, n.2161, p. 74.

[21] LOPES, Marilia. Corpo do atirador de Realengo é enterrado no Rio. 2011, disponível em <http://estadao.br.msn.com/ultimas-noticias/artigo.aspx?cp-documentid=28470789

[22] TEIXEIRA, Duda. O efeito viral das matanças. In: Veja. 2212 ed. ano 44, nº 15, 13 de abril de 2011, p. 100.

[23] Nesse sentido, pode-se enquadrar o “trote” universitário, quando abusivo, como Bullying, como no caso das Universidades Paulistas que pretendem fazer com que o ato seja rotulado como crime. Disponível em <http://www.top30.com.br/news/trotes-universitarios>;. Ou também, no caso que ficou conhecido como “Rodeio das Gordas”, em que estudantes pulavam nas costas das moças e gritavam “pula gorda” de maneira vexatória e humilhante. ONG de SP pedirá para MP investigar ‘rodeio das gordas’, 2010, disponível em <http://www.jornalacidade.com.br/editorias/cidades/2010/10/27/ong-de-sp-pedira-para-mp-investigar-rodeio-das-gordas.html

[24] ] BETTI, Renata; LIMA, Roberta de Abreu. Bullying: Dor, solidão e medo. In: Veja: 2213, ano 44, nº 16, 20 de abril de 2011, p. 92

[25] Bullying pode ser umas das explicações para a tragédia nos EUA, 2007, Disponível em < http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL24607-5604-7877,00.html

[26] Bullying pode ser umas das explicações para a tragédia nos EUA, 2007, Disponível em < http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL24607-5604-7877,00.html

[27] Há, inclusive, um vídeo no YOUTUBE intitulado “GORDINHO SE VINGA”, disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=16Vh1fNzS-E> . Neste vídeo, há as imagens de um menino sofrendo gozações, até que de repente, em um ímpeto de raiva, pegou o agressor e o arremessou ao chão.

[28] ARENDT, Hanna. Conferência mencionada em SILVA, Sergio Amaral. Hanna Arendt: Pensadora da política da liberdade. In:Filosofia. Ano 2011, nº 28, p. 30

[29] BETTI; LIMA, 2011, p. 90-91.

[30] ARENDT, Hanna. Conferência mencionada em SILVA, Sergio Amaral. Hanna Arendt: Pensadora da política da liberdade. In:Filosofia. Ano 2011, nº 28, p. 30.

[31] ARENDT, Hanna. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 18-19

[32] ARENDT, 1997, p. 24

[33] BAUMAN, 1998, p. 16.

[34] 1998, p. 13.

[35] BAUMAN, 1998, p.43

[36] BETTI; LIMA, 2011, p. 94

[37] MONTEIRO, Lauro. Bullying pode doer no bolso das escolas. 2009. Disponível em <http://www.observatoriodainfancia.com.br/article.php3?id_article=588

[38] CAVALIERI, 2009, p. 80-81

[39] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010, p. 68

[40] CAVALIERI, 2009, p. 83-84

[41] apud GUIMARÃES, Janaína Rosa. O FENÔMENO BULLYING: A responsabilidade jurídica diante do comportamento agressivo de estudantes, 2011. Disponível em < http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/36/artigo141563-4.asp

[42] Armas dentro das salas de aula preocupam pais e professores, 2011, disponível em http://maisvoce.globo.com/MaisVoce/0,,MUL1626137-10345,00.html

[43] BETTI; LIMA, 2011, p. 91.

[44] TJ/RJ – Colégio terá que indenizar família por bullying praticado contra aluna

Disponível em <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI130206,101048-TJ+RJ+Colegio+tera+que+indenizar+familia+por+bullying+praticado

[45] GUIMARÃES, Janaína Rosa. O FENÔMENO BULLYING: A responsabilidade jurídica diante do comportamento agressivo de estudantes. 2011. Disponível em < http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/36/o-fenomeno-bullying-a-responsabilidade-juridica-diante-do-comportamento-141563-1.asp

[46] GUIMARÃES, 2011

[47] CAVALIERI, 2009, p. 181

[48] CAVALIERI, 2009, p. 184-185

[49] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010, p. 419-420

[50] 2011.

[51] 2010, p. 419.

[52] JUSBRASIL.MP quer que bullying seja crime. 2011. Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2653698/mp-quer-que-bullying-seja-crime

[53] Daí que o dano moral punitivo, ou punitive damages pudesse ter alguma valia mais efetiva em relação ao caso

[54] ALCALDE, Luíza. Em Caso de Bullying, escolas podem procurar o MP. in: Estadão. Notícias: Educação. 19 de abr 2011. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,em-caso-de-bullying–escolas-podem-procurar-o-mp,708353,0.htm

[55] 2011.

[56] 2011

Informações Sobre o Autor

Agatha Gonçalves Santana

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPa. Professora de Direito Processual Civil na Universidade da Amazônia – Unama. Advogada


Equipe Âmbito Jurídico

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