Resumo: Este artigo pretende enfocar a noção de espaço em Milton Santos e a preservação do patrimônio cultural. [1]
Introdução
O homem cultua suas lembranças. Em sua individualidade ou coletivamente busca documentar, sempre, as recordações passadas para no presente ou no futuro próximo poder garantir a sua própria existência.
Por isso não é raro se afirmar que a humanidade progride a partir do momento em que preserva a sua memória, posto que componha parte de todo o conhecimento através da história humana.
Para ser taxativo, a memória é uma garantia da identidade humana, já que ela na forma social ou coletiva, simbolizada por monumentos, documentos, lendas, mitos, ritos e outros fatos pertinentes[2], resgata a trajetória de um determinado grupo de indivíduos.
Aliás, para o Direito, a memória tem lugar especial. Um dos atributos da pessoa no gozo de sua capacidade de direitos e deveres é ter memória. É que o próprio legislador resolveu, desde o antigo Código Civil de 1916, distinguir aqueles que têm capacidade plena para os atos da vida civil dos que não há possuem. Vejam a lógica esculpida no novel art. 3°, inciso II, do Código Civil de 2002. [3] Vale dizer, o legislador dentro deste dispositivo resolveu fixar o alcance da incapacidade a aqueles que em razão de um estado patológico de gradação variada, restar privado da sua capacidade memorial[4].
Contudo não é só a memória como percepção individual que se configura ímpar, mas o seu conjunto, a dita memória coletiva ou social.
Desta, também, o Direito tem se preocupado muito. Na verdade, ao Direito tem cabido o papel de avocar para si a tutela das relações sociais e a proteção da cultura como um todo, tarefa, que fique claro, das mais edificantes para a construção de uma sociedade mais humanizada.
Parece, então que destas decorrências a que foi destinada ao Direito, é a de criar normas que amparem o patrimônio cultural e a memória a ele ligada.
Assim, gradativamente, e a partir do marco legal da Constituição Federal de 1934, o Estado Brasileiro resolve proteger, constitucionalmente, o patrimônio, atribuindo competência à União, aos Estados e aos Municípios para “o favorecimento e desenvolvimento das ciências, das artes e da cultura geral, bem como proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país”. [5]
E, daí em diante, seja através desta Carta, ou por intermédio de normas constitucionais ou infraconstitucionais, como foram os casos do Decreto-lei n° 25, de 30 de novembro de 1937[6], do Decreto n° 80.078, de 12 de dezembro de 1977[7], da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985[8] , da Constituição Federal de 1988, do Decreto n° 3.179, de 21 de setembro de 1999[9], do Decreto n° 3.551, de 4 de agosto de 2000[10] e o Decreto-Legislativo 22, de 8 de março de 2006 [11], o Estado Brasileiro passou a privilegiar em matéria legislativa a preservação do patrimônio cultural.
Por tudo isto, o presente artigo objetiva abordar a importância da memória e da identidade como forma de preservar o patrimônio cultural, baseado na noção de espaço trazida na obra “A Natureza do Espaço” de Milton Santos.
Patrimônio Cultural e Memória
A palavra patrimônio pode abrigar dezenas de conceitos diversos. Em Latim, patrimonium, possui dois grandes significados associados a paterno e pátria.[12]
Pressupõe, ainda, a idéia vinculada as palavras: herança, legado e posse.
Pode ser considerado, juridicamente conceituando, como “conjunto de relações jurídicas que tiverem valor econômico para uma pessoa” [13], ou seja, “titularidade subjetiva unipessoal”. [14]
Quanto à titularidade o patrimônio pode ser de propriedade pública ou privada. As Constituições de 1937 e 1988 se preocuparam, assim como instrumentos legislativos internacionais, em consagrar o patrimônio, ora chamando de histórico ou cultural, como sendo de interesse coletivo difuso, isto é, interessam a toda coletividade sem particularizar ninguém. É bom frisar que esse interesse coletivo não interfere na sua propriedade.
A carta de 1988 se preocupou em garantir proteção ao patrimônio material e imaterial, ou seja, não só se preservará o “construído”, mas também o “transmitido”.
Cria-se a idéia de patrimônio cultural ou de meio ambiente cultural, como uma das fontes necessárias e capazes de alavancar ao patamar de garantia impar para cidadania.
É o que está estabelecido no artigo 216 da Constituição Federal do Brasil: “patrimônio cultural é formado por bens de natureza material e imaterial, tomadas individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artistico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (grifo nosso).
De acordo com uma política global, a Constituição reconhece que o patrimônio cultural do povo brasileiro faz parte de sua identidade e de sua diversidade cultural. E pode, também, tornar-se um importante fator de desenvolvimento sustentado, de promoção do bem-estar social, de participação e de cidadania.
É, então, um conjunto de elementos que compõe o que se entende por patrimônio. O patrimônio cultural tem como sujeito de interesses toda a sociedade que reflete sua relevância e é uma categoria que abrange bens de naturezas diversas, que podem se classificar como bens materiais ou imateriais, móveis ou imóveis, públicos ou privados.
A proteção que pretendeu o constituinte de 1988 foi de estabelecer e abranger o fenômeno cultural que possui três dimensões fundamentais: criação, difusão e conservação. A criação da cultura é feita em diversos níveis e manifesta-se em diversas formas: na música, na pintura, nos escritos literários, nas fotografias, nas manifestações populares, na dança, enfim. A titularidade fica a cargo do Estado que deverá favorecer a realização dessas manifestações através de inúmeros incentivos, diretos ou indiretos. A difusão vincula ao acesso dessa produção cultural em meio à sociedade. É de fundamental importância a informação e a educação da sociedade. E, por último, a conservação, a qual repercute na proteção dos bens e na sua manutenção para evitar sua destruição.
Estas dimensões fundamentais: a criação, a difusão e a conservação, estão contempladas no texto constitucional, que as coloca sob a responsabilidade do poder público, contribuindo, também, a sociedade.
Assim, caberá ao Governo Federal, especialmente por intermédio do Ministério da Cultura, formular e operacionalizar as políticas públicas que assegurem os direitos culturais ao cidadão, criando instrumentos e mecanismos que possibilitem o apoio à criação cultural e artística, o acesso a estes bens culturais e a distribuição destes, bem como a proteção, a preservação e a difusão de todo patrimônio cultural brasileiro.
Deverá, dessa forma, o Estado brasileiro, com a colaboração da comunidade, promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meios legislativos ou através de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e, ainda, de outras formas de acautelamento e preservação.
Juntamente ao Estado, todos nós cidadãos devemos promover a proteção do patrimônio cultural dos municípios, provocando os institutos próprios de preservação ligados ao Município, ao Estado, ou, ainda, à União. O IPHAN é órgão fundamental para estas tarefas. Além disso, a sociedade pode se organizar em associações ou fundações para este fim.
Para tal, é importante compreender a ligação existente entre preservação do patrimônio cultural e memória.
Diz Souza Filho, que o sentido da referida preservação do patrimônio “não é pela materialidade existente, mas pela representação, evocação ou memória que lhe é inerente”. [15]
Nora observa que a memória “se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto”. [16]
É possível, assim, afirmar que da maneira como se tratam os monumentos, os edifícios e os fazeres (saberes), se relaciona a sociedade com sua memória e com seu próprio passado.
Segundo Ortiz, a memória nacional pode ser definida como um “universal” que se impõe a todos os grupos sociais, não sendo propriedade de nenhum em particular.
Continua o autor afirmando que a pluralidade da memória coletiva “não decorre de uma pretensa debilidade imanente ao popular, mas sim na diversidade dos grupos sociais que são portadores de memórias diferenciadas”. [17]
Candau não acredita numa categoria propriamente dita chamada memória coletiva. [18]
Ele pensa a memória como algo intrínseco ao individuo, então seria inexato o termo memória coletiva, pois quem relembra é o indivíduo e não a coletividade.
Quando no presente alguém faz menção a um fato passado, e assim sucessivamente há uma co-relação de fatos rememorados por outros indivíduos, estas seriam percepções individualizadas deste passado de cada um, que de modo algum podem ser considerados uma “verdadeira construção coletiva da memória”.
O próprio Halbwachs afirma que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios.” [19]
De uma forma ou de outra, sempre o que prevalece é a idéia de que a memória coletiva “escolhida” é de quem detém o poder, neste caso o Estado, que é o principal responsável pela preservação do patrimônio.
Lefebvre diz que estes monumentos preservados são parte de um imaginário, o imaginário social. [20]
Aduz, que eles são parte de sistemas complexos como os mitos, as utopias, as religiões, através dos quais a sociedade constrói uma representação de si.
Podemos afirmar, então, que este imaginário social traduz-se num processo relacionada à construção de uma identidade coletiva.
É o que advoga Ortiz quando afirma que “toda identidade é uma construção simbólica (a meu ver necessária), o que elimina, portanto as dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade do que é produzido. Dito de outra forma, não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos.”[21]
A noção de espaço em Milton Santos
A pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos é analisada por Milton Santos sobre o prisma e sua concepção de espaço, não só de espaço geográfico, mas sua concepção sobre a sociedade através de um sistema de técnicas, objetos e ações.
O conhecimento do que constitui o sistema técnico atual (técnica informacional) trata-se de uma das temáticas de que se preocupa Milton Santos. [22]
Os períodos técnicos (formas de fazer) – sentido partilhado pelo espaço e pela sociedade, representam a forma como a história realiza as promessas técnicas.
Várias classificações são apresentadas pelo autor [23] as principais são de: J. Attali – técnicas do corpo, das máquinas e dos signos e J. Rose – revolução neolítica, industrial e cibernética e de Ortega y Gasset – técnica do acaso, do artesão e do engenheiro.
Uma história geral, mais simplificada, dos instrumentos artificiais utilizados pelos homens, seria resumida em três palavras: ferramenta, máquina e autômato.
Ferramenta e máquina com controle do homem e a última (autômato) foge ao controle humano.
A maioria dos autores adota uma visão tripartite
É importante frisar que o conjunto de técnicas aparecem em um dado momento, mantêm-se hegemônicos durante um certo período, até que outro sistema de técnicas tome lugar – o que Santos denomina como evolução. [24]
Outra questão importante é que há uma constante influência das técnicas sobre o comportamento humano – afetando as maneiras de pensar, surgindo uma economia de pensamento adaptado à lógica do instrumento.
Segundo Santos há três unicidades: unicidade técnica, unicidade de tempo e unicidade do motor da vida econômica e social, sendo esta última à base para globalização/transformação do espaço geográfico. [25]
Hoje há uma técnica universalizante – há apenas um modelo – não há mais escolha, é o capitalismo tecnológico que serve de base para a globalização.
É que estamos diante da unicidade de tempo: a convergência dos momentos é a simultaneidade, o instantâneo – há uma lógica única.
Neste contexto os objetos técnicos possuem as características da: universalidade e auto-expansão, vida sistêmica, concretude, conteúdo em informação e intencionalidade.
Este objeto é científico graças à natureza de sua concepção, e é técnico por sua estrutura interna e é informacional porque é chamado a produzir um trabalho preciso – a informação conforme Maffessoli[26] disse: “os objetos não mais nos obedecem“ é a intencionalidade mercantil e simbólica dos objetos.
Diante desta situação aparecem as normas e o território para impor uma “organização das coisas”, assim a ordem mundial é cada vez mais normativa fazendo confluir a lex mercatoria : leis (jurídicas) e de mercado.
Além das normas jurídicas, há uma uniformização da gestão, do consumo, da tecnologia e do modo de vida.
Resumindo Santos afirma que “através de ações normadas e de objetos técnicos, a regulação da economia e do território vão agora impor-se com ainda mais força, uma vez que um processo produtivo tecnicamente fragmentado e geograficamente espalhado exige uma permanente reunificação, para ser eficaz.” [27]
O meio técnico-científico-informacional aparece no período pós-guerra, mais especificamente nos anos 70 e é a interação da ciência e da técnica somada a informação.
Santos defende a tese de que vivemos este período técnico.
As técnicas, em todos os seus domínios, existem como autorizações para o fazer. Os graus de intencionalidade dos objetos derivam daí. Pode-se, pois, imaginar que um espaço tenderá tanto mais a se tornar um espaço racional quanto mais alto for nele o nível de artifício. [28]
Os espaços da racionalidade funcionam como um mecanismo regulado, onde cada peça convoca as demais a se pôr em movimento, a partir de um comando centralizado.
Há uma produção limitada de racionalidade, associada a uma produção ampla de escassez, o que leva a maioria a não ter respostas as suas necessidades básicas.
Ante a racionalidade dominante, desejosa de tudo conquistar, pode-se, de um ponto de vista dos atores não beneficiados falar de irracionalidade ou (dialeticamente) de contra-racionalidade, socialmente falando nos pobres, excluídos, migrantes e economicamente em mercado informal, marginal ou, ainda, geograficamente em áreas menos modernas, mais “opacas”, sem brilho, glamour ou racionalidade paralela. [29]
Diante deste quadro, visualizamos um espaço de exclusão social, exclusão econômica por certo, mas sobre tudo que faz gerar uma “não cidadania”.
O fato de que não há possibilidade de se encontrar “verdadeiros” cidadãos faz crer que tão pouco este espaço produza garantias à preservação da memória, da identidade e da proteção/preservação do patrimônio culturais.
É como se estivéssemos diante de uma coletividade sem vínculo com seu passado, fadada ao esquecimento.
Contudo Santos adverte que é possível uma outra visão global ou globalizante, admitindo que o poder local possui meios de subverter esta ordem e, assim, produzir um resgate pleno da cidadania, inclusive cultural.
Bacharel em Direito (UFPel). Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões (ULBRA). Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel). Foi aluno regular do Mestrado em Direito (PUC/RS). Atualmente é Coordenador do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Professor Assistente I da FURG, onde ministra Direito Civil, Professor do Curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos – FURG/UAB. Membro do Núcleo de Pesquisa, Extensão e Estudos Jurídicos em Direitos Humanos NUPEDH (FURG). Pesquisador do GTJUS – Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (CNPq). Advogado. Membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/RS – Subseção Pelotas. Professor da Escola Superior de Advocacia – ESA – OAB/RS.
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