Como se sabe, em se tratando de apuração de eventual ilícito praticado por funcionário público, existe independência entre as instâncias penal civil e administrativa. Segundo a jurisprudência, isso acontece porque a “sanção administrativa é aplicada para salvaguardar os interesses exclusivamente funcionais da Administração Pública, enquanto a sanção criminal destina-se à proteção da coletividade” [1].
Com efeito, eventual absolvição do servidor na ação penal – salvo em caso de ser reconhecida a inexistência do fato, ou a negativa de autoria – não impede que seja instaurado o respectivo Processo Administrativo Disciplinar. Nesse sentido, vai o entendimento da melhor doutrina, como deixou assentado o mestre Hely Lopes Meirelles, para quem a “punição administrativa ou disciplinar não depende de processo civil ou criminal a que se sujeite também o servidor pela mesma falta, nem obriga a Administração a aguardar o desfecho dos demais processos, nem mesmo em face da presunção constitucional de não-culpabilidade”[2].
Entretanto, se por um lado tem o Poder Público o dever de investigar possível ilegalidade, é assente também – em um Estado Democrático de Direito[3] – o imperativo de que tal ocorra dentro de um prazo razoável. Não por outra razão é que todas as democracias modernas vêm, de muito tempo, prestigiando o instituto da prescrição[4]. No ponto, mais uma vez vale a lição do grande Hely Lopes Meirelles, para quem o substrato da prescrição administrativa está na “necessidade de estabilização das relações entre o administrado e a Administração e entre esta e seus servidores, em obediência ao princípio da segurança jurídica.”[5]
No mesmo norte, a Emenda Constitucional n. 45/2004 cristalizou, no art. 5º, LXXVIII da Carta Política, como garantia do cidadão eventualmente processado, o direito fundamental de ter o deslinde do feito em um tempo razoável[6].
Em assim sendo, com a vênia de quem pense de modo contrário, ousa-se discordar da posição adotada pelo Colendo Conselho Superior de Polícia do RS, a qual teve estro no Parecer 12352, da Procuradoria Geral do Estado – entendimento respaldado pelo TJRS -, segundo a qual, nos casos em que a acusação seja pela prática de “ato definido, também, como infração penal”, a prescrição administrativa regular-se-ia pela pena em abstrato cominada ao delito paradigma, nada importando já exista eventual pena em concreto firmada na esfera judicial.
Com efeito, embora de regra um campo não influencie no outro, induvidoso ser o procedimento administrativo um minus[7] em relação ao criminal. Isto porque nem todo o ilícito administrativo interessa ao Direito Penal, mas qualquer crime constitui-se também numa falta disciplinar. Nesse fio, a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico (como um todo, por óbvio), não se pode aceitar seja o PAD – no qual a pena máxima é a de demissão a bem do serviço público ou a cassação de aposentadoria ou disponibilidade – mais severo do que uma ação penal, cuja culminância pode vir a ser a privação de liberdade de um cidadão.
Ademais, o § 2º do art. 95 da Lei de n. 7.366/80 é de clareza solar: “Quando as faltas constituírem, também, fato delituoso, a prescrição será regulada pela lei penal”“. Para ilustrar, transcreve-se o Código Penal:
Prescrição depois de transitar em julgado sentença final condenatória
Art. 110 – A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.
§ 1º – A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada. ……..
Causa espanto o fato de pretenderem os seguidores da exegese hostilizada, sob a justificativa de dar prestígio ao já referido § 2º do art. 95 da Lei de n. 7.366/80 (regular a prescrição administrativa pela lei penal, “quando as faltas constituírem, também, fato delituoso”), fazê-lo somente levando em conta o art. 109, que estabelece os prazos para as penas abstratamente cominadas, descurando do art. 110, o qual reduz o prazo prescricional a partir de sentença condenatória com trânsito em julgado. Ou seja, tomam como diretriz para a afixação dos prazos prescricionais a lei penal – como determina o Estatuto – mas apenas na parte que não favoreça ao administrado!
Outrossim, o cálculo da prescrição administrativa com base no CP – sempre pela pena concretamente aplicada – somente se justifica a partir de ter o Poder Judiciário reconhecido, por sentença transitada em julgado, constituírem-se as faltas, também, “em fato delituoso”, ou seja, em delito (somente o crime – ou o delito – se constitui num “fato delituoso”). Aqui a lei não fala, por exemplo, em fato descrito como crime, mas, repita-se, em “fato delituoso”.[8]
Dito de outro modo, a simples subsunção da conduta do servidor em um tipo penal, sem que haja em relação a ela um decreto condenatório irrecorrível, não permite seja a prescrição “regulada pela lei penal” (isto é, há de ser reconhecido, pela Justiça Criminal, ter havido um “fato delituoso” – um fato típico, antijurídico e culpável[9]).
Aliás, é remansoso tal entendimento no egrégio Superior Tribunal de Justiça, como pode ser visto, por exemplo, a partir dos seguintes julgados: RMS 18245/RS; data de julgamento: 02/02/2006; QUINTA TURMA; Relator: Ministro Gilson Dipp e RMS 13.395/RS; data de julgamento: 26/05/2004; SEXTA TURMA; Relator; Ministro Hamilton Carvalhido.
De outra banda, a teor do art. 90 do Estatuto, as condutas que se subsumirem nos incisos XXXVIII e XLIII do art. 81 são passíveis de demissão.
O inciso XLIII é de inacreditável falta de técnica:
Praticar ato degradante ou ser convencido de incontinência pública escandalosa.
A par do evidente maltrato ao vernáculo, a redação legal fere de morte vários princípios constitucionais norteadores do direito administrativo sancionador[10].
A uma, porque difícil se saber o que significa ser alguém “convencido de incontinência pública escandalosa”. A duas, porque o próprio conceito sobre o que seja tal tipo de “incontinência”, ou “ato degradante”, deixa excessiva margem de discricionariedade ao julgador[11]. Tais expressões, demasiadamente imprecisas, contrariam o princípio da taxatividade (certeza ou determinação)[12], a que se devem submeter todos os dispositivos legais tendentes à aplicação de sanções criminais ou administrativas[13].
Portanto, eventual demissão de servidor com base exclusivamente nesse dispositivo é inconstitucional e, por isso mesmo, passível de anulação.
Já o inciso XXXVIII diz:
Praticar ato definido como infração penal que por sua natureza e configuração o incompatibilize para a função policial.
Aqui a lei requer apenas seja o ato descrito como crime, contentando-se com a simples adequação típica (não exige um “fato delituoso”). Portanto, pode o servidor responder pela falta disciplinar em comento mesmo que não seja processado criminalmente, ou ainda que tenha aceitado a transação penal, a suspensão do processo, ou que haja sido absolvido, excetuados os casos já referidos em que a absolvição impedir o processo administrativo.
A par disso, exige o tipo um outro componente, qual seja ter o fato descrito como crime praticado pelo servidor carga negativa suficiente a incompatibilizá-lo para a função pública.
Pela clara similitude existente entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, têm esses dois ramos do ordenamento jurídico evidente imbricação principiológica[14]. Nesse diapasão, o já referido princípio da taxatividade (corolário do princípio da legalidade e da anterioridade a lei penal), viga mestra de um direito penal de cariz garantista[15], tem também plena aplicação no PAD.
Assim sendo, pelas mesmas razões já aqui declinadas quando da crítica ao inciso VXIII, não se pode permitir que a segunda parte do tipo em apreço (“…por sua natureza e configuração o incompatibilize para a função policial”) seja entregue à discricionariedade do julgador, sob pena de absoluta falta de segurança jurídica[16].
Considerando a necessidade de que seja a ordem jurídica vista de forma orgânica, a partir novamente de uma interpretação sistemática, entendemos que somente aqueles tipos penais cujas penas permitam seja o servidor demitido, podem enquadrar-se no molde legal em testilha.
Diz o CP:
Art. 92 – São também efeitos da condenação:
I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo.:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a 1 (um) ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
Desse modo, não se enquadram no modelo em tela quaisquer crimes cujas penas privativas de liberdade máximas sejam menores do que 1 (um) ano; igualmente acontece se a pena for inferior a 4 (quatro) anos, desde que não seja o delito praticado “com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública”.
Em suma, diante das razões expendidas, impõem-se as seguintes conclusões:
a) O inciso XLIII da Lei 7.366/80 é inconstitucional, por ferir, dentre outros, o princípio da Legalidade (nos aspectos atinentes à taxatividade/certeza/determinação). Destarte, eventual condenação de servidor com base tão-somente nele é nula.
b) Somente guardam congruência, em tese, com o inciso XXXVIII do Estatuto, os delitos que se subsumam nos moldes do art. 92, I, a e b do CP.
c) A prescrição administrativa reger-se-á pela lei penal sempre que a(s) falta(s) imputadas ao servidor se constituírem num fato delituoso, o que só pode ser reconhecido pela Justiça Criminal e desde que a condenação transite em julgado. Nestes casos, a extinção da punibilidade se dará levando-se em conta a pena concretamente aplicada, em respeito à combinação do art. 95, § 2º da Lei 7.366/80, com os arts. 109 e 110, caput, e seu parágrafo único, do CP.
d) A ausência de processo criminal, a aceitação da transação penal ou da suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95), ou mesmo a absolvição do servidor na ação penal – salvo, neste caso, se for reconhecida a inexistência do fato, ou a negativa de autoria -, não ilidem possa ele responder administrativamente pelo inciso XXXVIII da Lei 7.366/80. Neste caso, a prescrição operar-se-á em 5 (cinco) anos, nos termos do art. 95, IV do Estatuto.
e) As causas de interrupção e de suspensão do prazo prescricional regulam-se pelos incisos I e II do § 3º do art. 95 da Lei 7.366/90.
Finalizando, cumpre acentuar que as demissões baseadas no equivocado e draconiano entendimento objeto de crítica no presente artigo, segundo o qual, sendo o “ato definido, também, como infração penal” a prescrição sempre deve ser calculada pela pena em abstrato – posição dominante no Conselho de Policia e no TJRS -, redundam em prejuízo (mais um!) aos cofres públicos. É que o já depauperado sistema de segurança pública estadual tem, com tais condenações, seus quadros reduzidos durante o interregno de tempo necessário a que os recursos dos servidores cheguem até o STJ, quando, presentes os pressupostos de admissibilidade, são todos providos, como se viu. Daí é o policial readmitido e indenizado nos salários e benefícios que deixou de auferir durante o afastamento. Nesse meio tempo, entretanto, fica a Polícia Civil (e a população!) alijada do trabalho dele. Ao final, o contribuinte paga a conta.
Advogado em Porto Alegre. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA/Gravataí – RS
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