Resumo: O presente estudo se propõe a uma análise da atual concepção do contrato e dos princípios a ele atinentes frente às transformações sociais, culturais e econômicas por que passa a sociedade, demonstrando a relativização perpetrada na autonomia da vontade e na obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda) ante a intervenção estatal que atribui uma função social a ser desempenhada pelo contrato hodierno. Aborda a visão constitucionalizada do direito civil que dá novo rumo ao contrato visando proteger o equilíbrio entre as partes contratantes, valendo-se da boa fé como um instituto moralizador das relações contratuais. O estudo faz ainda uma análise da releitura da principiologia contratual estabelecendo uma ponte com a interpretação do contrato, que por sua vez, obrigatoriamente, passa a ter como ponto de partida os princípios constitucionais e a principiologia contratual revisitada, tendo por paradigma a essencialidade que deverá nortear toda a visão do intérprete.
Palavras-chave: Contratos. Princípios. Releitura. Interpretação.
Abstract: The present study proposes an analysis of the current design of the contract and of the principles he linked to social, cultural and economic transformations that society, demonstrating the relativization perpetrated in the autonomy of the will and the obligation of the contract (pacta sunt servanda) before State intervention through social role assigned to the contract today, discusses the Constitution civil law that gives new direction to the contract in order to protect the balance between the parties contractors, taking advantage of good faith as a moralizing warrantor of contractual relations. The study also makes an analysis of contractual principiologia of establishing a bridge with the interpretation of the contract, which in turn, is based on the constitutional principles and the contractual principiologia revisited, with the paradigm the essentiality that should guide the entire vision of the interpreter.
Key words: Contracts. Principles. Rereading. Interpretation.
Sumário: 1. Introdução; 2. O contrato em sua atual concepção; 2.1 O Conceito de Contrato na Atualidade ; 3. Os princípios contratuais; 3.1 A Principiologia Clássica; 3.2 A Principiologia Atual; 3.2.1 A Principiologia Clássica Revisitada; 3.2.2 Os Novos Princípios; 4. A interpretação contratual em compasso com a nova principiologia contratual; 4.1 A Interpretação dos Contratos; 4.2 O Paradigma da Essencialidade – a socialização do contrato – Novo parâmetro de interpretação dos contratos. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O contrato, como se sabe é o principal, mais antigo e conhecido negócio jurídico existente no mundo. É tão antigo, quanto a sociedade, podendo-se concluir que sua existência, embora não conste de data exata, consta desde quando o homem passou a viver em sociedade, ou seja, desde os primórdios da civilização, quando o homem passou a um estágio mais complexo de vivência, utilizando-o como instrumento para a circulação das riquezas que produzia.
Do período de sistematização dos contratos do século XIX até os dias atuais muitas foram as evoluções, levando em conta que o contrato segue regulado pelo direito, e o direito nasce da sociedade, a qual evolui constantemente, exigindo adequações e respostas aos conflitos que surgem das limitações de uma vontade particular pela vontade do outro, que por sua vez, é limitado por uma vontade ainda maior, a vontade geral. Assim, o contrato tratou de acompanhar essa continua mutação que é a vivência em sociedade, através de uma profunda evolução em suas teorias e principiologia.
No compasso dessa mudança, o contrato passa a ser um verdadeiro instrumento de realização dos direitos fundamentais, devendo agora estrita observância à dignidade do ser humano. Diante dessa mudança de paradigma dentro da teoria contratual, necessário também foi a mudança de paradigma da interpretação dos contratos, vez que essa agora não se resume a aplicação da norma, antes apenas entendida como regra, ao caso concreto. No contexto jurídico atual, os princípios ganharam normatividade, e o sistema segue recheado de cláusulas gerais, de forma que o julgador passa a ter em suas mãos o poder-dever de efetivar os escopos do contrato dentro dos contornos constitucionais e dentro da atual principiologia contratual.
Doravante, analisaremos o conceito de contrato, bem como, as principais modificações e características de sua atual concepção. Seguidamente, veremos a evolução da principiologia contratual e sua importante ligação no exercício da interpretação dos contratos.
2. O CONTRATO EM SUA ATUAL CONCEPÇÃO:
2.1 O Conceito de Contrato na atualidade:
Na atualidade, o contrato, na lição de Pablo Stolze (2009), é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades.
Como dito, o contrato é sem sombra de dúvidas, a categoria mais importante dentre os negócios jurídicos, e ainda, o mais difundido e comumente utilizado dentre as mais importantes fontes de obrigações, dado a possibilidade de suas múltiplas formas e as diversas maneiras que estas repercutem no mundo jurídico.
É bem de se observar que a nova concepção do contrato não permite mais uma conceito dissociado da atual principiologia norteadora dos contratos, e muito menos da constitucionalização nele perpetrada, de sorte que, o conceito do nobre doutrinador acima citado, está em plena sintonia com a atual concepção de contrato.
Isso, sem contar que o Código Civil Brasileiro de 2002 trouxe ainda a necessidade de adequação do conceito e da intepretação dos contratos, bem como, das normas a ele atinentes, aos princípios que regem àquele diploma legal: da sociabilidade, da eticidade e da efetividade ou operabilidade.
Assim, ao operador do direito é imperioso ter em mente que o contrato não é mais aquele negócio jurídico em que vigorava a autonomia privada e a força obrigatória dos contratos (pacta sun servanda) de uma forma absoluta, interessando somente às partes contratantes. Essa é um tempo que já se foi! Contudo, é importante observar que tais princípios não foram suprimidos. Não é isso! Eles continuam a vigorar como pilares de sustentação de todo o direito das obrigações, porém, agora cabe aos magistrados compatibilizá-los aos novos princípios que dotaram o contrato de uma função maior, antes não existente: a função social.
3. OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS:
3.1 A Principiologia Clássica:
A forma tradicional de contratar pressupunha partes em condições de igualdade de contratar, de forma que se satisfazia somente com a igualdade formal, traduzida esta numa mera pressuposição de igualdade, considerando que todos são iguais perante a lei e ponto final.
Essa era a principiologia dos contratos aplicada ao Código Civil de 1916, dos quais destacamos abaixo alguns princípios:
Princípio da autonomia da vontade que dota as partes da faculdade de contratar ou não, bem como, da autonomia para escolher a parte com quem quer contratar, o modo, tipo e o conteúdo do contrato.
Princípio da Obrigatoriedade Contratual (pacta sun servanda) que faz com que o contrato vigore como lei entre as partes, ou seja, a exata compreensão da expressão latina pacta sun servanda: as partes são servas do contrato. Assim, ainda que uma das partes seja conduzida à ruína em razão de cumprir o estabelecido no contrato, exige-se o seu cumprimento, não obstante acusasse algum desequilíbrio que a onere de forma excessiva.
Princípio da Relatividade dos Efeitos que dentro da principiologia clássica delimita os efeitos do contrato, fazendo com que estes fiquem adstritos às partes contratantes, não afetando terceiros.
3.2 Principiologia Atual:
Diante da globalização da economia, do desenvolvimento urbano e do capitalismo, a principiologia clássica não mais atendeu as novas formas de contratar da sociedade globalizada, diante da massificação contratual, que é justamente, a forma que impera na atualidade, a exemplo dos contratos de adesão.
Assim, surgiu uma nova visão do contrato, uma visão voltada para o aspecto social a ser desempenhado nas relações contratuais, surgindo também a figura de um Estado intervencionista, que interfere nas relações contratuais, impondo limites à liberdade de contratar, a fim de fazer ser observada a supremacia da ordem pública e cumprida a função social do contrato.
Nessa nova visão, o individualismo, a autonomia da vontade, a imutabilidade e obrigatoriedade dos contratos, antes valores absolutos na principiologia clássica, são relativizados e cedem lugar ao contrato constitucionalizado, a ser compreendido como instrumento de realização de direitos fundamentais e tutela da dignidade da pessoa humana, e nos limites do interesse social, onde a livre iniciativa deve ser exercida com observância à justiça social.
A partir então, e posteriormente, com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro de 2002, pode-se dizer que o contrato passou de um modelo individualista, solidamente alicerçado nos conhecidos e vetustos dogmas do Estado Liberal, arraigado nos princípios da autonomia da vontade e da imutabilidade dos contratos, considerados como valores absolutos, para um modelo comprometido com a função social do direito, preocupado com a construção da dignidade humana, inserido na busca da formação de uma sociedade mais justa e igualitária.
Nessa toada, o Código Civil de 2002 inovou no campo da Teoria Geral dos Contratos, onde passa a vigorar nova principiologia, a qual não se conforma somente com a igualdade formal, buscando além dessa, também a igualdade material, ou seja, a verdadeira igualdade, e vem inspirada na teoria chamada de preceptiva, onde o contrato está além da vontade das partes, para alcançar uma função social e econômica, porém, não descartando a clássica principiologia, que agora, a partir de uma releitura e filtragem constitucional, deve conviver com os novos princípios de forma compatível e harmônica.
Nessa esteira, temos que a nova principiologia contratual está composta por princípios que compunham a anterior principiologia clássica e os novos princípios a ela inseridos. Desse modo, passamos a enumerar e analisar então àqueles e estes:
3.2.1 Principiologia Clássica Revisitada:
Princípio da Autonomia Privada que se apresenta de uma forma distinta do Princípio da Autonomia da Vontade advindo da principiologia clássica, valendo dizer que no primeiro, há o poder que o ordenamento concede a cada um para criar as suas próprias normas, porém, dentro de determinados limites, enquanto que no segundo, há total liberdade de contratar, não limitada. Portanto, observa-se que, o princípio da autonomia privada traduz-se na releitura da velha autonomia da vontade, ou seja, é a autonomia da vontade da anterior principiologia, agora revistada, para se transformar no princípio da autonomia privada que integra a nova principiologia contratual.
Importante mencionar que do Princípio da autonomia privada decorrem alguns sub-princípios, quais sejam, o Princípio da Liberdade Contratual e o Princípio da Relatividade dos Efeitos.
Princ. Liberdade contratual: que é a liberdade para estipular o conteúdo contrato.
Princ. da Relatividade dos Efeitos: decorrente da principiologia clássica, e que continua a existir, porém, atenuado/mitigado, de forma que o contrato continua produzindo efeitos entre as partes contratantes, porém, agora, como verdadeiros fenômenos econômicos e sociais que são, os contratos alcançarão toda uma sociedade, e é exatamente por isso, que obrigatoriamente estes deverão levar em conta os aspectos econômicos e sociais, de forma que não poderão prejudicar toda uma sociedade. Vale ainda mencionar que é justamente em razão da atenuação/mitigação desse último princípio que surge, como um forma de proteção ao crédito, a Tutela Externa do Crédito, hoje reconhecida no Enunciado n. 21 CJF – e que significa que terceiros não poderão prejudicar a contratação entre as partes contratantes.
Princípio da Obrigatoriedade Contratual (pacta sun servanda), também advindo da principiologia clássica, é princípio pelo qual segue estipulado que o contrato uma vez entabulado ele deverá ser cumprido pelas partes, ou seja, é o velho pacta sun servanda, ou seja, o contrato faz lei entre as partes, ou ainda, as partes são servas do contrato. No entanto, observa-se que também este foi revisitado, sofrendo uma releitura com algumas mitigações, na medida em que o próprio Código Civil de 2002 prevê dispositivos que dão conta dessa mitigação, como por exemplo, quando a parte se encontrar em estado de perigo, lesão, ou ainda, a cláusula geral destinada ao juiz para a modificação do valor da cláusula penal. Com isso, afirma-se com toda a certeza que o pacta sun servanda sobrevive ainda na principiologia contratual, pois é ele quem traz a segurança jurídica necessária a todo negócio jurídico como o é o contrato, contudo, o que também se pode afirmar com convicção, é que dentro da nova principiologia contratual, em respeito a outros princípios coexistentes nesse sistema, o princípio da obrigatoriedade contratual segue agora mitigado, atenuado conforme os referidos exemplos e tantos outros dispositivos trazidos no Código Civil de 2002 que de igual forma dão conta dessa mitigação.
3.2.2 Novos Princípios:
Princípio da Função Social que encontra fundamento no Código Civil de 2002 em seu art. 421 e no parágrafo único do art. 2.035, e por meio do qual os contratos passam a desempenhar uma função social em razão da capacidade que possuem de fazer gerar e circular riquezas, de distribuir renda, enfim, de realização e concretização de direitos, dentre outros. Nessa sorte, o contrato deve então atender a uma função social. E em sendo assim, ou melhor, se os contratos desempenham função social, estes, portanto, deverão ser preservados, surgindo desse princípio o sub-princípio da Conservação ou Preservação dos Contratos previsto inclusive no Enunciado 22 do CJF, que estabelece justamente a importância de se preservar o contrato em razão da função social que este desempenha.
Nesse particular, fazemos uma pausa para uma crítica doutrinária: É que a redação do art. 421 do CC/02, sofreu e sofre ainda severas críticas da doutrina, a uma, porque segundo a doutrina, a expressão utilizada pelo legislador faz confusão entre a liberdade de contratar e a liberdade contratual, já que a primeira (liberdade de contratar ou não) é ilimitada, enquanto que a segunda (liberdade contratual) é que é limitada pela função social dos contratos; a duas, porque a expressão ‘em razão’, segundo a melhor doutrina, deveria ser suprimida, já que a liberdade contratual é exercida em razão da autonomia privada e não em razão da função social, até porque ela, a liberdade contratual, é subprincípio da autonomia privada, como visto.
Princípio da Boa Fé Objetiva que tem sido muito mencionado nos julgados do STJ, exemplo disso é o julgado contido no Informativo 424 STJ – Recurso Especial – Resp nº 953389 –SP – julgado em 23/02/2009, e que traz a Boa Fé Objetiva conceituada como o padrão de conduta que impõe às partes um comportamento probo, honesto, leal como forma de fazer jus a confiança que lhe foi depositada. Assim, Boa Fé Objetiva, é antes de tudo, um modelo/padrão de conduta. Note-se, que a Boa Fé Objetiva diferencia-se da Boa Fé Subjetiva que não é princípio contratual, e trata-se de um estado psicológico da pessoa que acredita estar fazendo a coisa certa, encerrando, na verdade um estado anímico. Observa-se, no entanto, que embora a Boa Fé Subjetiva conste do CC/02, a exemplo dos artigos 309 e 1.242, sendo importante para vários outros institutos, para o mundo dos contratos, a boa fé subjetiva não goza de importância, sendo que o quê importa em matéria de contratos é a Boa Fé Objetiva.
Funções da Boa Fé Objetiva:
A Boa Fé Objetiva, segundo a melhor doutrina, desempenha importantes funções no direito civil, destacamos três delas: 1) Função Interpretativa presente no art. 113 do CC/02, estabelecendo que o contrato deve ser interpretado segundo a boa fé objetiva. 2) Função de Controle constando do art. 187 do CC/02, consubstanciando que ao se exercitar um direito, esse exercício deve ser realizado dentro de determinados limites para não ferir direitos alheios, sob pena, do exercício de um direito se transformar em um abuso de direito. Com isso, a Boa Fé Objetiva se faz presente na sua função de controle para limitar o exercício de direitos, a fim de evitar que esse exercício se transforme num abuso de direito. 3) Função Integrativa presente no art. 422 do CC/02, onde por meio dessa função, a boa fé objetiva vai interligar/integrar os chamados deveres laterais ou anexos (lealdade, informação, cooperação) à obrigação principal. De modo que, a obrigação deve ser cumprida para além da obrigação principal, devendo ser cumprida juntamente com os seus deveres laterais ou anexos. Atentando para o fato de que, embora o art. 422 do CC/02 mencione a Boa Fé Objetiva somente na execução e na conclusão, esta deverá também deve se fazer presente na fase pré e pós-contratual, conforme Enunciados nºs. 25 e 170 CJF, e a doutrina mais abalizada, que entende o contrato como um processo composto de todas as suas fases, não só da execução e conclusão.
Lado outro, não se pode olvidar das Teorias que decorrem da Boa Fé Objetiva que encerram importantes desdobramentos no mundo dos contratos.
Teorias (ou desdobramentos) decorrentes da Boa Fé Objetiva:
Em apertada síntese, as Teorias que decorrem da Boa Fé Objetiva são:
Supressio (supressão) por esta teoria há a supressão de um direito em razão do seu exercício tardio após um longo período de omissão (exemplo art. 330).
Surrectio (surreição/nascimento) diz-se que essa teoria é outro lado da moeda da supressio, eis que nela há o surgimento/nascimento de um direito para alguém. Assim, sempre que houver a supressio haverá a surrectio, uma vez que sempre que houver a supressão de um direito de alguém nascerá um direito para outrem.
Venire contra factum proprium cuja tradução literal é vir contra um fato próprio, e consagra a vedação do comportamento contraditório, de modo a não admitir que uma pessoa pratique determinado ato e na sequência realize conduta que seja diametralmente oposta, uma vez que presume-se haver expectativa gerada nos comportamentos das partes contratantes em decorrência da confiança mútua por eles depositada. Os arts. 973, 330 e 175, todos do CC, são exemplos de vedação ao comportamento contraditório.
Inalegabilidade das nulidades formais consistente na aplicação específica do venire contra factum proprium, vedando o comportamento contraditório em matéria de nulidade, com grande incidência no direito processual. Como exemplo tem-se o art. 243 do CPC e o art. 796 da CLT.
Tu quoque derivada da célebre frase do imperador Júlio César, prevê situações onde um comportamento rompe com a confiança e surpreende uma das partes da relação negocial, submetendo-a em posição de extrema desvantagem. São exemplos desse desdobramento da Boa Fé Objetiva o art. 180 do CC e a exceptio non adimpleti contractus, instituto do direito civil que veda a exigência da contraprestação num contrato sinalagmático, quando uma das partes não executa a prestação a que lhe compete.
Exceptio doli conhecida por exceção dolosa e visa coibir comportamentos que ao invés de serem realizadas para a prática de um direito, o são, na verdade, para prejudicar a parte contrária. O comportamento daquele que age no intuito de molestar a parte contrária, pleiteando aquilo que é indevido ou que na verdade o sabe que deve restituir, é um exemplo desse tipo de comportamento. Outro exemplo, podemos encontrar no art. 940 do CC.
Cláusula de Stoppel expressão oriunda do direito internacional, que busca a preservação da Boa Fé, e consequentemente, a segurança nas relações jurídicas no campo das relações negociais internacionais.
Desequilíbrio no exercício jurídico traduzido no reconhecimento de uma das importantes funções da Boa Fé Objetiva: a função delimitadora do exercício de direitos subjetivos. Assim, o exercício de um direito, porém, de forma desproporcional, encerrará num exercício abusivo do direito, importando em um ato ilícito não tolerado pelo direito.
Princípio da Justiça Contratual ou Equivalência Material que vem esculpido no CC/02 no art. 421 e evidencia a funcionalização do contrato com a intenção de tutelar os interesses coletivos.
Referido dispositivo consagra de forma expressa a função social do contrato, senão vejamos: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”
Assim, denota-se que o sistema civil brasileiro passou de um modelo individualista, solidamente alicerçado nos dogmas do Estado Liberal, para um sistema que abraça como compromisso a função social do direito, voltado à construção da dignidade humana e a solidificação de uma sociedade mais justa e também igualitária.[1]
O festejado doutrinador Humberto Theodoro Jr. (2008, p. 43), em lição majestosa, ensina-nos sobre os dois níveis que a função social do contrato se manifesta, a saber, segundo o seu magistério:
a) Intrínseco onde o contrato é tido como relação jurídica entre as partes negociais, impondo-se o respeito à lealdade negocial e a boa fé objetiva, buscando-se uma equivalência material entre os contratantes;
b) Extrínseco onde o contrato é considerado em face da coletividade, ou seja, sob o aspecto de seu impacto eficacial na sociedade em que fora celebrado.
É importante observar que o referido dispositivo inegavelmente nos remete ao art. 5º, inciso XXIII, da CF, que condiciona a livre iniciativa ao princípio da função social da propriedade, limitando assim o direito de propriedade através da mesma expressão, posto que, lá também de igual sorte, consagra a função social da propriedade.
O princípio da função social do contrato, embora não tenha assento expresso na CF, resta evidente, que constitui um desdobramento do direito constitucional à propriedade, e sua introdução na legislação infraconstitucional demonstra a intenção do legislador em limitar a liberdade de contratar, consubstanciada no princípio da autonomia da vontade, buscando assim maiores condições para o alcance do equilíbrio econômico-contratual, e consequentemente, da igualdade social.
Importante, no entanto, reiteradamente lembrar que os atuais contornos do contrato em seu aspecto social inseridos por este princípio não cuidaram de extirpar os já consagrados princípios da obrigatoriedade do contrato (pacta sun servanda) e da autonomia da vontade. Não, isso não ocorreu! O que se tem, é que agora tais princípios permanecem integrando a principiologia contratual, vez que há total liberdade para que o contratante exerça a faculdade de contratar ou não, podendo escolher com quem, como e a forma de contratar, porém, agora, essa manifestação de vontade, deverá ser exercida e valorada em razão do objetivo social que obrigatoriamente deverá estar intrínseco no negócio jurídico (contrato).
4. A INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL EM COMPASSO COM A NOVA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL:
Pois bem, analisada a evolução da principiologia contratual, não há como dissociá-la da hermenêutica dos contratos, assim, de igual modo, passamos doravante a análise do exercício da interpretação dos contratos alinhada à evolução da principiologia contratual.
4.1 A Interpretação dos contratos:
Segundo o dicionário da língua portuguesa HOUAISS[2], interpretar significa “determinar o significado de (texto, lei, etc.); adivinhar o significado de (algo) por indução … dar certo sentido a; entender”. E interpretação significa “determinação do significado de algo; entendimento ou julgamento pessoal; tradução”.
O festejado doutrinador ORLANDO GOMES (1999) leciona que a interpretação do contrato é uma atividade intelectual que deve obedecer a uma metodologia específica para integrar as lacunas do contrato, eliminar suas imprecisões, fixar seu exato conteúdo e fazer com que o contrato cumpra sua função jurídica correta.
A manifestação da vontade no direito contratual ocupa lugar de destaque. Portanto, ao intérprete do contrato é de suma importância a investigação da vontade das partes, e dois são os critérios utilizados para este fim: um subjetivo e outro objetivo. No primeiro, o intérprete leva em consideração o elemento volitivo interno, caracterizado pela vontade real, ou seja, a intenção, descartando o sentido gramatical das palavras; já no segundo, o que se busca investigar e considerar é o elemento externo, composto pela declaração propriamente dita e que gramaticalmente expressa quais são os objetivos, os fins a serem alcançados pelas partes com o negócio jurídico que pretendem entabular.
No magistério de VENOSA (2003), duas são as teorias interpretativas da manifestação da vontade: a teoria da vontade, que considera somente a intenção/vontade real das partes, independentemente da declaração contida no contrato, teoria capitaneada por Savigny; e a teoria da declaração, onde há a prevalência da exteriorização da vontade, de modo que a declaração externada se sobrepõe a vontade interna.
No Código Civil de 1916 evidenciava-se certa tendência pela interpretação através do critério subjetivista, a teor do que dispunha o seu art. 85: “Nas declarações de vontade se atenderá mais a sua intenção que ao sentido literal da linguagem.”
Já no Código Civil de 2002, não se pode afirmar o mesmo, uma vez que o legislador, por meio do art. 112, fez acrescentar ao texto do art. 85 do anterior CC (1916), a expressão: “nelas consubstanciada”, restando evidenciado que deve ser levada em conta na interpretação dos contratos a intenção nele manifestada.
Assim, observa-se que ambas as teorias (da vontade e da declaração) se fazem presentes na interpretação contratual hodierna. Não uma sobrepondo a outra, mas ambas sendo utilizadas na medida em que, ao interpretar, o intérprete não pode simplesmente abandonar a declaração de vontade e deliberadamente investigar a vontade interna. Mas, deve sim, a partir da declaração, buscar o sentido da vontade. Em resumo, se não houver obscuridades, contradições, dúvidas, a vontade interna não deverá ser investigada pelo intérprete, uma vez que, sendo as palavras claras estas já estarão evidenciando gramatical e satisfatoriamente a vontade das partes contratantes. Do contrário, haverá sim a necessidade do intérprete perquirir sobre a vontade interna/intenção das partes, pois é através da declaração escrita que o intérprete chegará à vontade dos contratantes. Dessa forma, conclui-se da atenta leitura do citado dispositivo legal, que, somente se, houver a cabal demonstração e comprovação de que determinada cláusula não espelha a vontade manifestada quando da celebração do negócio é que a vontade interna deverá ser considerada e prevalecerá.
Essa forma de aplicação das referidas teorias se deve ao fato de que no direito contratual moderno vigora o princípio da permanência dos contratos, cujo mandamento é que se deve fazer tudo o que for legalmente possível para que o contrato desempenhe a função jurídica que lhe foi reservada, proporcionando às partes o alcance daquilo que foi objetivado com a celebração do contrato. Em igual sentido, segue positivado no art. 170 do CC o princípio da conversão do negócio jurídico e no art. 183 também do CC, o princípio da convalidação ou aproveitamento do negócio jurídico.
O doutrinador Orlando Gomes (GOMES apud ABREU FILHO, 2003, p. 131) nos ensina que três são as funções da interpretação negocial: função declaratória, função integrativa e função construtiva. A primeira visa estabelecer o quê as partes pretendem com a celebração do negócio jurídico. A segunda tem a função de preencher lacunas porventura existentes, e a terceira, por sua vez, se encarrega de salvar o negócio, quando houver necessidade deste ser reconstruído.
Feitas essas explanações sobre a intepretação dos contratos, cabe agora nos ocupar do tema vindouro: a grande importância que os princípios têm na exegese contratual. Passemos então ao tema:
Princípios e das Cláusulas Gerais na Interpretação dos Contratos:
Nesse processo interpretativo, os princípios ganham papel importantíssimo, uma vez que é através da ponderação entre eles que se construirá uma solução mais adequada ao caso concreto.
E assim se diz, uma vez que os princípios são normas com elevado grau de abstenção, e por serem extremamente indeterminados e vagos, são campos férteis para o exercício da exegese, pois que reclamam a intervenção do intérprete para realizar a sua intepretação para que efetivamente se concretizem.
Nesse contexto, vale a diferenciação entre princípios e cláusulas gerais.
O mestre STOLZE (2009, p. 27) lembra-nos que: “Por princípio, entendam-se os ditames superiores, fundantes e simultaneamente informadores do conjunto de regras do Direito Positivo. Pairam, pois, por sobre toda a legislação, dando-lhe significado legitimador e validade jurídica.”
As cláusulas gerais, por sua vez são mandamentos dirigidos ao juiz para criar, completar ou desenvolver normas jurídicas através de elementos externos ao sistema, e por assim serem, permitem o ingresso de princípios valorativos no ordenamento, aptos a fundamentar decisões judiciais, o quê, por conseguinte, leva a uma reconstrução do Direito Privado.
Isso porque cláusulas gerais ou abertas, por serem despidas do excessivo rigor conceitual, são a porta de entrada das alterações do conteúdo da norma pela própria sociedade em evolução, e a sua grande incidência no Código Civil de 2002, segundo REALE foi uma opção feita para “possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais”. (REALE, in FERREIRA, 2003, p. 49)
Com isso, na hodierna hermenêutica contratual, o juiz tem poder para suprir lacunas e decidir observando valores éticos, quando a regra se tornar deficiente, construindo a solução que lhe parecer mais adequada ao caso concreto, portando uma função mais criadora, em verdadeira sintonia com o princípio da eticidade.
Lembrando que os princípios, diferentemente das regras, comportam colisão, portanto, onde e quando houver colisão de princípios, não haverá sacrifício de alguns deles, mas sim, por meio do princípio da proporcionalidade, haverá a ponderação de limites dos bens em questão, para que todos convivam de uma forma harmônica no sistema, e alcancem real efetividade. Pode assim, um só princípio ou mais de um princípio fundamentar uma só decisão.
No tocante aos contratos, temos que o art. 421 do CC apresenta três cláusulas gerais: autonomia privada (liberdade contratual); respeito à ordem pública; função social do contrato. Já o art. 422 também do CC, traz como cláusula geral a Boa Fé Objetiva (NERY, 2006, p. 421 – 413).
Dessa forma, à exegese dos contratos – que na realidade é definir o conteúdo do contrato, identificando com exatidão o tipo de contrato celebrado, as suas prestações essenciais e os efeitos jurídicos que as partes pretendem alcançar – imprescindível é a utilização dos princípios e cláusulas gerais pelo julgador visando preencher lacunas existentes, dar sentido ao texto, integrar o contrato ao sistema constitucionalizado, para que, à luz do princípio da concretude, a relação contratual exista de forma útil à economia e valiosa à sociedade.
4.2 O paradigma da essencialidade – a socialização do contrato – como um novo parâmetro de interpretação dos contratos:
A mudança da mentalidade jurídica a partir da socialização dos institutos jurídicos de direito privado, fenômeno que desembocou na despatrimonialização do direito civil, resvalou diretamente no campo do direito contratual, que antes, era fundado precipuamente no patrimônio. Ora, se despatrimonializado foi o direito civil, os contratos, por óbvio que deveriam ter agora uma nova visão conceitual diante de uma nova mentalidade jurídica, traçando novos parâmetros como ponto de partida para a conceituação e intepretação destes.
É assente que, havendo conflito de ideias quanto a determinados conceitos e questões a serem tratadas pelo direito, busca-se a melhor forma de lidar com eles, o que melhor se adequar é o que prevalecerá. Assim dá-se o surgimento de um paradigma. É comum a existência de diversos paradigmas dentro de um sistema jurídico, à medida que a sociedade evolui e há necessidade do direito acompanhá-la, fazendo assim surgir outro paradigma, que acompanhando essa evolução sofrerá mudanças, ajustes e irá se aperfeiçoar ao ponto de prevalecer sobre os demais paradigmas jurídicos antes existentes. Porém, não raro estes coexistirem e colidirem, e não se encontrando respostas suficientes para a resolução dos problemas surgidos dentro do paradigma vigente, novos paradigmas surgirão e prevalecerão (TIMM, 2008, p. 67).
As relações negociais passaram por profundas transformações a partir da constitucionalização do direito, em especial o direito privado. De modo que, o direito contratual, também inserido nesse contexto, sofreu inúmeras mudanças, como por exemplo, a relativização o princípio do pacta sunt servanda, da autonomia privada e do direito à propriedade, cujos valores transformaram-se em valores pela pessoa e sua dignidade, naquilo que é necessário para a sobrevivência e importante para garantir ao contratante segurança ao contratar, ao mesmo tempo servindo de proteção para que não sofra lesão ou abuso excessivo que o exponha a risco.
Diante disso, eis que surge então um novo paradigma na materialização do contrato como um instrumento de socialização das partes, que agora deixa de ser um mero meio formal de se entabular um negócio jurídico, e que pouco a pouco sofre a forte influência de fatores sociais na sua concepção.
Estruturalmente, ao contrato sempre fora aplicada a mentalidade do “ter” quanto à classificação do bem contratado, havendo a dualidade entre o sujeito e o objeto. Agora, porém, influenciado pelos fatores sociais e com fundamento na dignidade da pessoa humana, há uma alteração na classificação do bem contratado, que centraliza-se agora no “ser”. Assim, restou inaplicável o direito contratual de antes, calcado no “ter”, ao direito contratual de agora, fundado no “ser”, uma vez que neste não há dualidade entre o sujeito e objeto do contrato, já que na verdade aqui, ambos são titulares, ambos são o “ser”.
Conclui-se, portanto, que a essencialidade agora é o novo paradigma. A pessoa não está mais separada daquilo que necessita para existir dignamente. Assim, o objeto do contrato agora a ser tutelado é a própria pessoa. E quando o objeto de tutela é a pessoa, a perspectiva de interpretar o contrato deve mudar. Faz-se lógica a necessidade de reconhecer que é justamente a pessoa a constituir, ao mesmo tempo, o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da relação (PERLINGIERI, 2007, p. 155).
Justifica-se a essencialidade como um novo paradigma, a partir da ideia de que a classificação dos contratos, com base nos princípios constitucionais, consubstancia o contrato num verdadeiro bem. Um bem que servirá à sociedade e às relações sociais, dotando os contratos de efeitos numa visão diferenciada, primando pelo que é essencial à vida, à existência da pessoa enquanto ser humano que é.
CONCLUSÃO
Do presente estudo, chega-se a conclusão insofismável de que os princípios contratuais são parâmetros imprescindíveis nas relações jurídicas, em especial nas relações contratuais, operadas no seu aspecto social. Os princípios representam a base de todo negócio jurídico, precipuamente nos contratos, sendo consagrada pela doutrina, jurisprudência e legislação, a aplicação da nova principiologia no âmbito das relações obrigacionais.
Através da abordagem do principiologia clássica e contemporânea no presente estudo, conclui-se que houve considerável alteração nos princípios fundamentais que regem os contratos no direito civil atual, levando em conta os novos valores a serem considerados para a sua concepção, como a dignidade da pessoa humana, a boa-fé e a função social a ser desempenhada pelos contratos, sobrepondo tais valores à autonomia privada e à obrigatoriedade do pacto celebrado.
Por outro lado, verifica-se também que o contrato continua originado da livre vontade dos contratantes e a ele os contratantes estão obrigados, em razão do princípio da obrigatoriedade dos contratos, uma vez que tais não deixaram de existir, todavia, agora existem sob os preceitos sociais que norteiam toda a principiologia contratual.
A despatrimonialização e a constitucionalização do direito civil implicaram em uma alteração de valores e fundamentos para o direito contratual, centralizando a pessoa no núcleo dos contratos, deslocando os bens para uma dimensão de análise posterior.
O modelo liberal, individualizado e normativista dá lugar a um novo paradigma, fundado na democracia, no coletivo e numa nova principiologia: o paradigma da essencialidade. Com isso, à teoria contratual impôs-se uma adequação a esse novo paradigma, revisitando suas classificações, sua noção conceitual, e sua concepção, já que não há mais espaço para o individualismo contratual face à globalização da economia, do mundo, e do próprio ser, enfim.
A interpretação contratual contemporânea passa pelo rígido controle de um filtro constitucional, devendo estrita observância ainda à Boa Fé Objetiva e Função Social do Contrato. Estabelece um diálogo entre as diversas fontes normativas, harmonizando princípios, normas e cláusulas gerais, de forma a abrir campo à evolução da sociedade a que serve o contrato, limitando a livre manifestação da vontade e relativizando a obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda) por meio da intervenção estatal (judicial, legislativa e executiva), que por sua vez, por meio do princípio existencial, também visa a preservação do contrato, considerando o contrato como um instrumento de realização dos direitos fundamentais, especialmente, o da dignidade da pessoa humana.
Por fim, conclui-se com presente estudo, que a hermenêutica contratual exercida por meio das decisões judiciais é essencial para a análise dos casos concretos que envolvem as relações contratuais, assim como também o é a principiologia contratual com todos os princípios que a integram, sejam os clássicos agora relidos, sejam os contemporâneos; tudo para que a função social dos contratos pactuados alcance os seus efeitos pretendidos, lembrando que na ponderação, em caso de colisão entre os valores tutelados pelos princípios, o bem maior a ser preservado é a pessoa humana e o quê for essencial à sua existência, ou seja, são bens maiores e que deverão prevalecer: a vida e a essencialidade à ela.
Analista Judiciário, especialista em Direito Constitucional e Pós-Graduanda Direito Processual Civil, em Direito Civil, Negocial e Imobiliário Processual Civil
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