Júlia Guimarães Silva[1]
Resumo: Esta pesquisa apresenta como tema central a análise dos mandados de busca e apreensão genéricos no âmbito da intervenção federal do Rio de Janeiro e tem como objetivo expor a inconstitucionalidade e a ilegalidade desse instituto, criticando a seletividade do sistema penal. Para tanto, será levado em consideração o arcabouço doutrinário e o posicionamento dos Tribunais Superiores a esse respeito. Outrossim, utilizar-se-á como marco legal o Código de Processo Penal e a Constituição Federal. O mandado de busca e apreensão genérico teve consequências não apenas jurídicas, mas principalmente sociais e, por isso, este artigo, que envolve reflexões acerca de qual recorte social recai esses mandados, busca denunciar a política de guerra às drogas e do direito penal do inimigo. Ao final, será demonstrado que a intervenção federal decretada no Rio de Janeiro foi inconstitucional e que o mandado de busca e apreensão genérico utilizado naquela situação representa uma violação das garantias processuais e uma afronta aos alicerces do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Intervenção Federal. Mandado Genérico. Seletividade Penal.
Abstract: This research presents as central theme the analysis of collective search and seizure warrants in the context of federal intervention in Rio de Janeiro and aims expose the unconstitutionality and the ilegality of this Institute, criticizing the selectivity of the penal system. To this end, the doctrinal framework and the position of the Superior Courts in this regard will be taken into account. Furthermore, the Code of Criminal Procedure and the Federal Constitution will be used as a legal framework. The generic search and seizure warrant had consequences not only legal, but mainly social and, therefore, this article, which involves reflections on which social order these warrants fall on, seeks to denounce the policy of drug war and enemy’s criminal law. In the end, it will be demonstrated that the federal intervention decreed in Rio de Janeiro was unconstitutional and that the generic search and seizure warrant used in that situation represents a violation of procedural guarantees and an affront to the foundations of the Democratic Rule of Law.
Keywords: Federal Intervention. Warrant Generic. Selectivity of Penal System.
Sumário: Introdução; 1. Intervenção Federal: perspectiva constitucional e contexto do Rio de Janeiro. 2. Mandado de busca e apreensão: considerações pertinentes. 2.1 Conflito interpretativo: problematização hermenêutica acerca do art. 243 do CPP. 3. Críticas ao mandado genérico: a relação com a Seletividade Penal. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
De início, cumpre tecer algumas considerações sobre o mandado de busca e apreensão coletivo ou, como também é conhecido, mandando de busca e apreensão genérico. Esse tipo de mandado tem previsão constitucional e infraconstitucional, de modo que a análise deve ser feita em conjunto.
Na Constituição Federal, ele é citado no art. 5º, inciso XI, o qual prevê que o domicílio é asilo inviolável do indivíduo, havendo a possibilidade restrita de ingresso por meio de mandado judicial. Isso demonstra que o mandado judicial não é a regra, mas, pelo contrário, é a exceção. Ele interfere no âmbito de uma garantia constitucional, devendo, por isso, ser tratado com rigor legal. No âmbito infraconstitucional, a polêmica reside na interpretação do inciso I, do art. 243, do CPP, o qual será abordado mais à frente.
O supracitado instituto foi utilizado amplamente na Intervenção Federal do Rio de Janeiro e, devido à proporção tomada e à contemporaneidade dos fatos, pretende-se analisar os mandados de busca e apreensão nesse contexto.
A Intervenção Federal do Rio de Janeiro foi decretada pelo Presidente da República em 16/02/2018, ou seja, apenas 4 meses antes do início da elaboração dessa pesquisa. Os fatos decorrentes dessa medida federal, por serem muito novos, ainda não foram objetos de estudos de monografias, sendo necessário, portanto, que sejam desenvolvidos e aprofundados academicamente.
Ademais, é notório que o objeto aqui tratado teve grande repercussão no cenário nacional e internacional, tanto é que foi pauta da 39ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia 20/09/18, em Genebra, não apenas por ser uma medida gravosa, mas também por ser emanada do alto escalão do Poder Executivo Federal. Fora isso, tem-se que tal medida afetou um grande número de pessoas e mobilizou vários setores da sociedade civil. Sem falar que ocorreu em um dos estados mais ricos e populosos da federação, fato que gera repercussões ainda maiores.
Os mandados de busca e apreensão coletivos foram constantemente veiculados na mídia, ascendendo um debate sobre violação de garantias constitucionais. E, quando o assunto é garantir direitos e coibir arbitrariedades, pontos sensíveis à Ciência do Direito, o assunto passa a ser do interesse de todos.
A situação fática trouxe à tona a problemática dos mandados de busca de apreensão coletivos, os quais foram usados no intuito de averiguar o porte de drogas e armas de fogo nas favelas do Rio de Janeiro. Entretanto, por ser um tema novo e ainda pouco discutido, não há posicionamento pacifico da doutrina, nem tampouco da jurisprudência.
Os mandados genéricos expedidos no Rio de Janeiro tiveram consequências não apenas jurídicas, mas principalmente sociais e, por isso, a temática se torna tão rica. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, através do núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e da Coordenadoria de Defesa Criminal, impetrou Habeas Corpus Coletivo contra as buscas e apreensões nas casas de quatro localidades das comunidades já citadas. Percebe-se, então, que o debate envolve reflexões acerca do recorte social sobre o qual recai esses mandados.
É válido ressaltar, ainda, que a importância central da pesquisa reside em não se restringir a apenas uma abordagem teórica, mas sim em criticar à seletividade e demais nuances do Sistema Penal. O Direito é uma ciência social e, como tal, foi criada para servir às necessidades da sociedade.
O Estado deve se manifestar através dos limites legais, mas o que se percebe nas expedições dos mandados é justamente o rompimento desses limites. Os mandados de busca e apreensão coletivos tiveram consequências sociais e jurídicas de grande monta para a população e para Ciência Jurídica, de forma que esta pesquisa servirá como denúncia.
Dessa forma, ante a necessidade de alertar para a infração das garantias constitucionais, é fundamental que essa temática seja trazida ao debate acadêmico a fim de ganhar visibilidade. Assim, por todo o exposto, é oportuno discorrer sobre o mandado de busca e apreensão coletivo.
Antes de tudo, é válido tecer alguns comentários sobre o instituto da intervenção federal. Primeiramente, faz-se necessário entender do que se trata. Nas palavras de Alexandre de Morais,
a intervenção consiste em medida excepcional de supressão temporária da autonomia de determinado ente federativo, fundada em hipóteses taxativamente previstas no texto constitucional, e que visa a unidade e preservação da soberania do Estado Federal e das autonomias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.[2]
A intervenção federal é uma medida de natureza política e se submete tanto ao controle político, exercido pelo Congresso Nacional, quanto ao controle jurisdicional, promovido pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, em razão da natureza da medida, o controle jurídico não adentra na questão do mérito, limitando-se a analisar se foram observados os dispositivos constitucionais, em especial, os que se referem ao procedimento de decretação. Constitucionalmente, a intervenção federal não tem previsão de sustação de garantias fundamentais e seu decreto deve seguir uma série de exigências, de modo que a própria Constituição impõe limites. O objetivo, portanto, é afastar ações arbitrárias.
Na Constituição Federal, o texto assim dispõe:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I – manter a integridade nacional;
II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
Pela leitura do texto legal, nota-se que a intervenção tem três características marcantes: taxatividade, temporalidade e excepcionalidade. A taxatividade se verifica pelo rol numerus clausus que contém as hipóteses autorizativas do seu cabimento. A temporalidade está prevista no §1º do art. 36 da CRFB/88[3], posto que a redação estabelece que o decreto de intervenção especificará o prazo de execução da medida. Além disso, não se pode admitir que essa medida tenha duração extensa, pois isso não seria razoável e fugiria à noção de excepcionalidade, invertendo a lógica constitucional e transformando em regra o deveria ser a exceção. Quanto à característica da excepcionalidade, é preciso perceber que o constituinte de 1988, ao redigir o caput do art. 34, quis destacar muito claramente essa noção, pois a expressão “não intervirá” privilegia o Princípio da Autonomia, consagrado no art. 18 da CRFB/88[4]. A autonomia é um valor inerente à organização do modelo de estado federado e sua valorização demonstra coerência na estrutura da Constituição. Sobre essa excepcionalidade, Ivo Dantas faz o seguinte comentário:
Inicialmente, deve-se atentar para um detalhe de fundamental importância, qual seja, o de que o preceito constitucional que admite a intervenção, o faz sob a forma de excepcionalidade, visto que o normal, e como já ficou visto nas páginas antecedentes, é que cada uma das pessoas jurídicas que compõem o Estado Federal, aja dentro da esfera de autonomia reciproca que lhe é própria.[5]
No que tange ao caso do Rio de Janeiro, cumpre delinear a contextualização dos fatos. O Rio de Janeiro sempre foi um estado marcado pela violência. Ele vive sob ocupação militar há bastante tempo graças aos decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que foram implementados desde a Copa do Mundo e as Olimpíadas para garantir a segurança e o consequente sucesso desses eventos. Diferentemente das experiências de GLO, nas quais as Forças Armadas agem em apoio e sob coordenação do governo estadual, os militares na intervenção federal passam a assumir oficial e diretamente o comando da política de segurança pública no estado, se sobrepondo, portanto, às polícias civil e militar e ao próprio governador.
Em relação à intervenção federal, é válido pontuar, em uma perspectiva histórica, que a primeira intervenção nesse estado aconteceu em 1937, durante a ditadura do Estado Novo, momento em que o comandante Ernani do Amaral Peixoto foi escolhido como interventor federal pelo então presidente Getúlio Vargas. Após esse episódio, desde a promulgação da Constituição de 1988 não se havia mais utilizado esse instituto. Todavia, em 16 de fevereiro de 2018, o ex-presidente Michel Temer, sob o fundamento de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III, CRFB/88), publicou o Decreto Presidencial nº 9.288/2018, estabelecendo a intervenção federal no Rio de Janeiro. Esse decreto foi um ato espontâneo e feito de ofício pelo Chefe do Executivo Federal. Posteriormente, foi realizado o controle político pelo Congresso Nacional.
No Senado, foram 55 votos a favor da medida e 13 contra ela, com uma abstenção. Na Câmara dos Deputados, o placar foi de 340 votos favoráveis a 72 votos contrários. Para entender em que contexto houve essa aprovação é importante conferir os argumentos usados pelos parlamentares[6]. O presidente da Câmara na época, Rodrigo Maia, afirmou que
infelizmente, esta intervenção torna-se urgente e necessária porque o poder estadual exauriu sua capacidade para impor autoridade. O governo do Rio de Janeiro sucumbiu à desordem e, por isso, torna-se urgente e inadiável fazer prevalecer a ordem e levar de volta a paz de espírito às ruas do Rio de Janeiro e de todo o País.
Vários deputados também se manifestaram a favor da intervenção. Simão Sessim (PP-RJ) declarou que “94% da população do Rio de Janeiro, em pesquisa realizada ontem (19/02/2018), aprovou a medida. Com a intervenção federal, a segurança pública do Rio de Janeiro passa a contar com ações planejadas e cirúrgicas do serviço de inteligência das Forças Armadas”. Já o deputado Júlio Lopes (PP-RJ) disse que “hoje quem vive em algumas localidades tem de pagar mesadas aos tráficos e às milícias para circular. É necessário intervir em áreas onde o estado não pode entrar, trata-se de garantir o domínio territorial.”
A relatora do decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro, deputada Laura Carneiro (MDB-RJ), comentou o seguinte:
Temos razões mais do que suficientes para que a intervenção seja o caminho único, neste momento, para refrear a violência, para requalificar os profissionais de segurança pública, para reestruturar seus órgãos e para desenvolver políticas sociais que permitam o retorno do bem social, da dignidade da pessoa humana, e sobretudo, que garantam a preservação da vida.
Entretanto, em que pese a maioria dos comentários favoráveis, o apoio parlamentar à intervenção não foi unanime. O senador Humberto Costa votou contra, argumentando que “não foram dados números sobre a criminalidade no Rio de Janeiro nos últimos meses; não foi dada uma previsão de gastos; não foi dado um planejamento sobre o resultado que se espera.[7]”
Ante as graves consequências e grandes repercussões promovidas pela supracitada medida, o advogado Carlos Alexandre Klomfahs impetrou Mandado de Segurança contra o ato do Presidente da República, alegando que os requisitos para decretação da intervenção, quais sejam, a consulta prévia aos Conselhos da República e da Defesa, não haviam sido respeitados. A ação no Supremo (MS 35.534) foi da relatoria da Ministra Rosa Weber, que não conheceu da ação e negou seguimento em razão da ilegitimidade passiva para propositura.
Posteriormente, em 14/03/2018, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) promoveu Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5915/DF), sustentando que: a) a intervenção é uma medida desproporcional e dispendiosa; b) não houve justificativa e fundamentação no Decreto; c) os Conselhos da República e da Defesa não foram ouvidos; d) essa intervenção na verdade tem natureza militar. Iniciada a ação, os autos foram remetidos, no dia 02/05/2018, à Procuradoria Geral da República. Após parecer da PGR (03/12/2018), manifestando-se pela improcedência do pedido, o processo, que estava sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, foi julgado em decisão monocrática no dia 28/02/2019. Nessa decisão, o ministro fundamentou que ação direta de inconstitucionalidade estava prejudicada em razão da superveniente perda de objeto, tendo em vista que o termo prefixado da intervenção no Estado do Rio de Janeiro ocorreu em 31/12/2018. Em decorrência disso, o processo transitou em julgado no dia 01/04/2019 e teve sua baixa definitiva em 05/04/2019[8]. É oportuno, todavia, registrar uma crítica à inercia e ao descaso da PRG, que demorou sete meses para se manifestar nos autos. Tal atitude impossibilitou a análise de mérito da matéria, o que frustrou as expectativas do autor.
Ainda sobre essa temática, é fundamental traçar uma diferenciação entre a intervenção federal e os institutos do estado de defesa e estado de sítio. Esses dois últimos fazem parte do chamado Sistema Constitucional de Crise. Segundo Marcelo Novelino,
o sistema constitucional de crises deve ser informado por dois critérios básicos: necessidade e temporariedade. A necessidade pressupõe a ocorrência de situações de extrema gravidade a demandarem a adoção de medidas excepcionais para manter a estabilidade das instituições democráticas ou reestabelecer a ordem constitucional. A temporalidade impõe a limitação temporal do estado de legalidade extraordinária ao período em que a situação emergencial perdurar.[9]
Explicando melhor esse assunto, tem-se o comentário de Alexandre de Morais:
O Estado de defesa é uma modalidade mais branda de estado de sítio e corresponde as antigas medidas de emergência do direito constitucional anterior e não exige para sua decretação, por parte do Presidente da República, autorização do Congresso Nacional. O decreto presidencial deverá determinar o prazo de sua duração; especificar as áreas abrangidas e indicar as medidas coercitivas, nos termos e limites constitucionais e legais.
O Estado de sítio corresponde a suspensão temporária e localizada de garantias constitucionais, apresentando maior gravidade do que o Estado de Defesa e obrigatoriamente o Presidente da República deverá solicitar autorização da maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para decretá-lo.[10]
Comparando esses três institutos, percebe-se semelhanças e diferenças. Todos eles se submetem a controles políticos e jurídicos. Além disso, todos têm caráter temporário, mas não da mesma forma. O estado de defesa prevê prazo de 30 dias, prorrogável uma única vez; ao passo que o estado de sítio, apesar de determinar esse mesmo prazo, não impõe limites à prorrogação, permitindo que ela dure enquanto durar o problema.
Ao correlacionar esses institutos, fica evidente o mau uso da intervenção federal no Rio de Janeiro. O decreto interventivo e suas consequências geraram muita polêmica no cenário nacional, por isso cabe analisá-lo com mais detalhes. Tal decreto foi genérico e não especificou com clareza suas condições de execução, se limitando a fazer menção ao art. 145 da Constituição Estadual do Rio de Janeiro.
Como é sabido, a Administração Pública está submetida ao Princípio da Legalidade (art. 37, CRFB/88), ou seja, só lhe é permitido tomar alguma atitude que esteja pautada em normas previamente estabelecidas. Essas balizas são corolários do modelo de estado republicano e precisam ser respeitadas em nome da segurança jurídica, pois os administrados não podem ficar à mercê do livre arbítrio do Poder Executivo. A partir do momento em que o ato de execução da intervenção é redigido sem delimitar as condições dessa medida, abre-se margem para o que se conhece por “carta branca”. Nesse sentido, é perceptível a incongruência do Decreto 9.288/2018, pois ele, apesar de tratar de uma medida gravíssima e que afeta todos os moradores do estado do Rio de Janeiro, só possui cinco artigos.
Fora isso, é relevante destacar o parágrafo único do artigo 2º do Decreto 9.288/18. O referido parágrafo estabelece que o cargo de interventor é de natureza militar. Significa dizer que esse cargo é integrado e condizente com o regime das Forças Armadas. Tal fato tem importantes consequências jurídicas, pois será a Justiça Militar a competente para julgar todos os eventuais crimes cometidos durante o período de intervenção.
Outrossim, transformar o cargo de interventor, que é eminentemente civil, em um cargo militar é inconstitucional. Isso porque apesar da intervenção permitir a substituição da autoridade política estadual pela federal, essa autoridade sempre deve ter natureza civil, posto que serão adotados atos de governo. O interventor até pode ser militar, isto é, ter carreira militar, mas ele irá ocupar um cargo de natureza civil.[11]
Com relação a esse ponto, é necessário aqui fazer uma ressalva. Por causa da transformação da natureza do cargo de interventor, conforme acima explicado, passou-se a aplicar o Código Penal Militar. Todavia, no dia 13/10/17, o presidente Michel Temer sancionou a Lei nº 13.491, a qual altera o CPM, cuja nova redação garante que as violações cometidas por militares no Brasil, mesmo quando estiverem apenas exercendo papel de polícia, serão julgadas exclusivamente por tribunais militares. Tal alteração, por ser anterior ao Decreto 9.288, já vale para o interventor carioca e suas tropas. É preciso atentar que essa nova lei se apresenta como uma manobra que visa a impunidade de crimes cometidos por militares, pois isso acaba com a possibilidade de julgamentos imparciais e independentes. Para a ONG Conectas Direitos Humanos, julgar crimes militares contra civis em tribunais militares equivale a uma “licença para matar”[12].
Além disso, a nomeação de um militar para um cargo civil produz um certo receio na população, uma vez que, na prática, as ações vão se assemelhar mais às de uma intervenção militar do que às de uma intervenção federal.
A intervenção federal é a antítese da autonomia de uma unidade da federação. Ela foi pensada no intuito de salvaguardar o Estado Federal como instituição. Dessa forma, ela deve ser interpretada à luz dessa finalidade. Significa dizer que os pressupostos desse tipo de intervenção são situações críticas, as quais podem pôr em risco a segurança e a unidade do Estado Federal, ou seja, o equilíbrio da federação. Ocorre que na intervenção do Rio de Janeiro não houve nenhuma ameaça ao Estado Federal, posto que não há nenhum movimento separatista ou coisa do gênero. Assim, fica evidente que a decretação da referida intervenção foi aplicada de forma indevida.
Ademais, é preciso mencionar a deturpação desse instituto. Essa intervenção se mostrou inconstitucional por macular garantias fundamentais como a inviolabilidade do domicílio, a presunção de inocência, a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, entre outras. Entretanto, apenas as medidas do sistema constitucional de crise permitem, e ainda sim de forma regulada e limitada, a mitigação desse tipo de garantias. O que se verifica, portanto, é a utilização indevida da forma de intervenção federal para maquiar o que na prática é um estado de sítio.
A intervenção federal e o estado de sítio são medidas distintas, não podendo ser confundidas ou misturadas. A diferenciação já começa na própria estrutura da CRFB/88, na posição em que esses institutos estão dispostos. A intervenção federal faz parte do Título III (Da Organização do Estado), ao passo que o estado de sítio está localizado no Título V (Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas). É necessário compreender também que, conforme explanado nos parágrafos anteriores, eles não se referem às mesmas situações, pois os bens jurídicos tutelados são distintos. Enquanto a intervenção federal visa proteger a integridade do Estado Federal, o estado de sítio, inserido dentro do sistema de crise, tutela a existência do próprio Estado e de suas instituições democráticas.
Não sendo o caso do Rio hipótese autorizativa de estado de sítio, não há como aplicar por analogia os mesmos desdobramentos e consequências inerentes a ele, isto é, a suspensão de determinadas garantias fundamentais. Logo, a utilização do art. 139, V, da CRFB/88[13], é uma inversão constitucional que não poderia nunca ser permitida. É preciso ter em mente que se trata de situações excepcionais e, por conta disso, a interpretação da norma constitucional precisa ser restritiva, não se admitindo que disposições do estado de sítio sejam usadas durante a intervenção federal.
Por todo exposto, fica evidente que a intervenção federal do Rio de Janeiro viola a Constituição Federal.
Inicialmente, é preciso conceituar o que seria busca e apreensão. Pinto Ferreira define como “um ato de contrição judicial, por meio do qual a autoridade competente autoriza a procura e a apreensão de pessoa ou coisa determinada, para garantia do exercício de um direito.[14]” Lopes da Costa, por sua vez, entende que a busca e a apreensão não é medida preventiva em si, mas apenas meio de execução de medida preventiva ou satisfativa[15]. Desta opinião compartilha Humberto Theodoro Junior, complementando que “realmente é serventia da busca e apreensão tornar efetivas as medidas cautelares sempre que se haja de procurar a coisa ou pessoa e de mantê-la à disposição judicial.[16]”
É importante compreender que, embora esses dois termos (busca e apreensão) venham comumente associados, eles designam ações diferentes. A busca se refere ao ato de investigação e descoberta de algum elemento interessante ao processo penal. Cleunice A. Valentim Bastos Pitombo conceitua como sendo “o ato do procedimento persecutivo penal, restritivo de direito individual (inviolabilidade da intimidade, vida privada, domicílio e da integridade física ou moral), consistente em procura de pessoa, semoventes, coisas, bem como de vestígios da infração.[17]” A apreensão, por sua vez, ainda segundo essa autora, é “ato processual penal, subjetivamente complexo, de apossamento, remoção e guarda de coisas, tornando-as indisponíveis, ou colocando sob custódia, enquanto importarem à instrução criminal ou ao processo.[18]” Apesar de normalmente, na prática penal, esses dois atos virem juntos, eles não precisam obrigatoriamente estar vinculados. É possível que eles sejam determinados isoladamente.
Deve-se ter em mente que a busca e apreensão tem caráter cautelar e sua regulamentação se dá no âmbito infraconstitucional, uma vez que se encontra inserida no Título VII do Código de Processo Penal. De modo geral, podemos afirmar que o instituto da busca e apreensão trata de medidas judiciais restritivas dos direitos individuais com o objetivo de assegurar provas ou indícios necessários à instrução processual.
Quanto à natureza jurídica, existem algumas divergências na doutrina. A maior parte dos doutrinadores entende a busca e apreensão como uma medida cautelar ou um meio de obtenção de prova. Todavia, Nucci defende que ela tem natureza jurídica mista, isto é, tanto a busca, quanto a apreensão, poderiam ser vistas, individualmente, como meios assecuratórios ou como meios de prova, ou ambos.[19] Em contraponto a Nucci, Renato Brasileiro afirma:
Conquanto a busca e apreensão esteja inserida no código de Processo Penal como meio de prova (Capitulo XI do Título VII), sua verdadeira natureza jurídica é meio de obtenção de prova (ou de investigação da prova). Isso porque consiste em um procedimento (em regra, extraprocessual) regulado por lei, com o objetivo de conseguir provas materiais, e que pode ser realizado por outros funcionários que não o juiz (v.g., policiais).[20]
Outro aspecto que merece destaque é o momento para realização da busca e apreensão. Não existe limitação ou pré-definição de quando essas medidas devem ser utilizadas, sendo possível aplicá-las tanto na fase policial, quanto na judicial. Dessa forma, tem-se que é completamente amplo o liame temporal desse instituto, não se sujeitando à preclusão.
Deve-se comentar também que o sujeito ativo desse tipo de busca, ou seja, quem a executa, é uma autoridade que pode ser judiciária ou policial. Ao passo que, o sujeito passivo é “o titular da esfera de posse, pessoal ou ambiental, em que se suspeita encontrar-se a pessoa ou a coisa que se busca”[21], conforme definição do douto Fernando da Costa Tourinho Filho.
Outro ponto que merece atenção é a redação do art. 241, do Código de Processo Penal. Observe o texto legal:
“Art. 241. Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.”
A competência para decretação do mandado de busca e apreensão é indelegável e exclusiva do magistrado, de modo que, em consonância com o art. 242[22], só ele pode determinar, seja de oficio ou a requerimento de qualquer das partes (delegado de polícia ou ministério público). A partir disso, percebe-se que a primeira parte do art. 241 não está mais em vigor, pois, com base no impedimento imposto pela Constituição, não subsiste a possibilidade da autoridade policial, pessoalmente e sem mandado, adentrar em um domicílio. Dessa forma, tem-se que é exigido mandado judicial para limitar a atuação da polícia. No caso do juiz, quando ele próprio acompanhar a diligência, não se faz necessária a expedição de mandado, pois sua presença elide esse requisito.
É oportuno visualizar ainda as hipóteses de cabimento que autorizam a prática da busca e apreensão. Essas hipóteses delimitam os objetos e as finalidades dessa medida e estão enumeradas no art. 240 do CPP, conforme disposto abaixo:
“Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.
Com base no acima explanado, infere-se que a busca poderá ser classificada em dois tipos (domiciliar ou pessoal), de acordo com o que se vai perseguir. Ademais, é valido mencionar que o rol do art. 240 é meramente exemplificativo. Significa dizer que se admite expedição de mandado para outras hipóteses semelhantes às elencadas no Código.
É importante frisar que o mandado é uma medida gravosa, pois irá afetar a esfera de direitos de quem sofre seus efeitos. Logo, ele deve seguir um procedimento específico para sua execução. O art. 245 prevê esse procedimento. Sobre isso, é relevante comentar que, em convergência com o disposto no art. 5º, XI, da CRFB/88, as buscas devem ser realizadas durante o dia; só sendo permitido o ingresso durante a noite com o expresso e inequívoco consentimento do morador. Além disso, a exibição e leitura do mandado é uma das formalidades fundamentais. Pela redação do artigo, fica claro que essas atribuições não são de caráter facultativo do executor, mas sim de caráter vinculado. Fato que demonstra a importância dessa leitura. Fora isso, deve-se pôr em relevo a previsão do § 7º[23]. Sobre ele, Guilherme Nucci faz o seguinte comentário:
Auto é o registro escrito e solene de uma ocorrência. No caso da busca, haverá um registro detalhado de tudo o que se passou ao longo da diligência, bem como de tudo o que foi efetivamente apreendido, para assegurar a sua licitude e idoneidade, evitando-se futura alegação de abuso de autoridade ou questionamento sobre a origem da prova. É uma garantia tanto para o executor, quanto para o morador.[24]
Por último, cabe mencionar alguns aspectos relevantes sobre as repercussões no âmbito nacional do mandado genérico. A partir do momento em que foi publicado o decreto instituidor da intervenção federal no Rio de Janeiro, ocorreram várias manifestações de diferentes setores da sociedade civil. O debate sobre a problemática do mandado coletivo se iniciou a partir de uma declaração do então Ministro da Defesa, Raul Julgman. Ele declarou que esse tipo de mandado já tinha sido usado em outras ocasiões e que “no lugar de você dizer rua tal, número tal, você vai dizer uma rua inteira, uma área ou um bairro. Aquele lugar inteiro é possível que tenha um mandado de busca e apreensão. Em lugar de uma casa, pode ser uma comunidade, um bairro ou uma rua.[25]”
No dia 19/02/2018, após a declaração acima, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), junto com a Ordem dos Advogados do Brasil da Seção do Estado do Rio de Janeiro (OAB/RJ), publicou uma nota de repúdio contra os mandados coletivos de busca e apreensão. Alegaram, em suma, que tal expediente não é previsto em Lei e vai de encontro ao Código de Processo Penal e que, por ser limitador de garantias fundamentais, toda e qualquer medida cautelar jamais pode ser genérica. Caso contrário, haveria a violação constitucional da garantia individual de inviolabilidade do lar e da intimidade, colocando sob uma ameaça ainda maior os direitos da parcela mais desassistida da população. Além disso, eles também disseram que não se combate o crime organizado cometendo outros crimes, pois isso seria incompatível com a Democracia.[26]
Além do mais, não foi só a OAB/RJ que se posicionou. Diante da flagrante ilegalidade, as OAB’s de outros estados também emitiram opinião sobre o contexto carioca. A OAB/SE, por exemplo, enfatizou que a ausência de motivo concreto para a decretação da intervenção afronta o princípio federativo fundamental da organização política do Estado Brasileiro. Sustentou ainda que “a intervenção somente deve ocorrer em situações excepcionalíssimas, expressamente previstas e na forma autorizada no texto constitucional; do contrário, estaria aberta a porta para interpretações lenientes que admitiriam intervenções federais diárias em estados nos quais estivesse a ocorrer situação de comprometimentos da ordem pública próprias do cotidiano das sociedades complexas contemporâneas”. Para a OAB/SE, o decreto interventivo não contextualiza e nem fundamenta adequadamente qual é o quadro fático do qual se conclua pelo “grave comprometimento da ordem pública”[27].
O Ministério Público, representado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, e a Câmara Criminal do MPF, também emitiram nota repudiando a intervenção federal. Segundo os procuradores, o detalhamento do decreto é uma exigência constitucional criada exatamente para permitir mecanismos de controle político, social e judicial. Detalhamento esse que ficou em falta no decreto de Temer. Sobre o uso do mandado genérico, a manifestação foi no sentido de considerá-lo ilegal, uma vez que o CPP determina a quem deve se dirigir a ordem judicial. Ainda segundo os procuradores:
os mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio, bem como do dever de fundamentação das decisões judiciais. Por outro lado, a expedição de ordens judiciais genéricas, destinadas a serem cumpridas contra moradores de determinadas áreas da cidade, importa em ato discriminatório, violando o disposto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal.[28]
Cumprindo a sua missão institucional, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, através do Defensor Público responsável pelo Núcleo de Direitos Humanos, se pronunciou no seguinte sentindo:
Não podemos aderir ao discurso de estado de exceção para admitir medidas que legitimam a suspensão de garantias fundamentais em territórios marginalizados. Os estratos sociais mais vulneráveis, seja pela violência ou pela pobreza, merecem respeito de seus direitos constitucionais. A devassa domiciliar generalizada e indiscriminada, autorizada pelo Judiciário, é medida inconcebível no Estado Democrático de Direito. Fica difícil sustentar que a Constituição é levada a sério para todos e em todo território nacional[29]
Dessa feita, é notório que todos os auxiliares da justiça supracitados se posicionaram repudiando a intervenção federal e os mandados de busca e apreensão genéricos. Assim, depreende-se que a sociedade civil não apoiou essas medidas.
Quanto à perspectiva jurisprudencial, cabe desvendar como os Tribunais Superiores se posicionaram a respeito do uso desse tipo de mandado. Primeiramente, deve-se lembrar que, devido a sua especificidade e sua atualidade, a quantidade de decisões judiciais é bem reduzida. Em uma perspectiva regional, a título informativo, adianto que não há registros da utilização do mandado de busca e apreensão coletivo em Pernambuco.
No que se refere ao Superior Tribunal de Justiça, cumpre registrar que foi assentado o impedimento para realizar operações genéricas de busca e apreensão na favela Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro. O ministro Sebastião Reis Júnior, relator do processo, destacou que a ausência de individualização das medidas de apreensão contrariava diversos dispositivos do Código de Processo Penal, assim como o artigo 5º da Constituição Federal.[30] O mandado de busca e apreensão coletivo tinha sido autorizado pelo TJRJ, motivo pelo qual a Defensoria Pública do RJ teve que recorrer ao STJ. Tal caso ocorreu antes da intervenção federal, mas já anunciava o que estaria por vir.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, ao julgar a aplicabilidade do mandado de busca e apreensão genérico, declarou sua ilegalidade. Em recente decisão, cujo julgamento ocorreu em 6 de fevereiro de 2019, a 2ª turma do STF declarou ilícitas as provas obtidas em busca e apreensão realizada durante diligências da operação Publicano, que apurou esquema de propina e sonegação no âmbito da Receita Estadual do Paraná. Os ministros consideraram que a diligência foi ilegal, por ter sido realizada em local diverso do especificado no mandado judicial. Na oportunidade, o relator, ministro Gilmar Mendes, frisou ainda que o mandado de busca e apreensão, nos termos do artigo 243 do CPP, deve indicar o mais precisamente possível o local em que será realizada a diligência, não podendo haver mandado incerto, vago ou genérico.[31] Embora o caso julgado não esteja no âmbito da intervenção federal do RJ, percebe-se que o STF não acolheu o uso do mandado de busca e apreensão genérico.
Logo, ante o exposto, tem-se traçadas as principais considerações sobre o instituto do mandado de busca e apreensão.
2.1 Conflito interpretativo: problematização hermenêutica acerca do art. 243 do CPP
Primeiramente, é essencial entender, conforme explicado no tópico anterior, que é a legislação infraconstitucional, mais especificamente o Código de Processo Penal, que vai esmiuçar quando, como e em quais condições o mandado de busca e apreensão pode ser utilizado. Os arts. 240 e 243 tratam do assunto e a principal controvérsia, que gerará a polêmica aqui discutida, reside na interpretação dada ao art. 243, in verbis:
“Art. 243. O mandado de busca deverá:
I – indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;
II – mencionar o motivo e os fins da diligência;
III – ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.
O supramencionado artigo trata dos requisitos formais para expedição do mandado. No inciso I, a expressão “o mais precisamente possível” é vaga e causa dúvidas hermenêuticas quanto a sua aplicação. A dúvida reside em saber a que exatamente a expressão se refere, bem como delimitar o que seria uma indicação precisa nos termos da lei.
Sobre a questão da vagueza na Ciência do Direito, João Maurício Adeodato afirma que é um problema de denotação, referência, descrição, ou seja, do alcance da expressão. Ele ensina ainda que quanto mais impreciso é o termo, mais maleável é o texto.[32] E é nesse fato que reside o perigo para o ordenamento jurídico. Por conta disso, torna-se fundamental que a interpretação da norma seja restritiva.
O mandado de busca e apreensão é a autorização para violar determinadas garantias constitucionais. Por esse motivo, é imprescindível que ele seja expedido seguindo rigidamente os ditames legais, a fim de evitar que sejam cometidas arbitrariedades. Contudo, no contexto do Rio de Janeiro, apesar da gravidade que essa medida impõe, os magistrados começaram a criar uma nova interpretação a partir da expressão “mais precisamente possível” para mitigar essas garantias e alcançar, a qualquer custo, a persecução penal. Sobre isso, importa registrar que a falta de representatividade dos magistrados, os quais não visualizam os moradores das favelas cariocas como sujeitos de direitos, é determinante para construção de interpretações como essa.
O que a lei objetiva é a individualização da busca, que deve ser promovida com a cautela necessária para evitar que pessoas não envolvidas na investigação sejam constrangidas por uma violação desnecessária de sua intimidade. Em contrapartida, há quem defenda que, devido ao cenário do Rio de Janeiro ser peculiar em razão da sua geografia montanhosa, a qual propiciou a ocupação dos morros, seria impossível qualquer individualização de endereços, posto que as casas foram instaladas precariamente, sem logradouro definido. Assim, ante as circunstâncias, não haveria alternativa senão os domicílios serem devassados para que os agentes públicos pudessem apreender objetos ilícitos e prender criminosos.
A partir disso, verifica-se que a problemática do uso do mandado genérico se instaura entre definir se se trata de uma violação legal e constitucional ou de uma alternativa viável quando for impossível a individualização do imóvel.
Tendo em vista que o mandado de busca e apreensão é corolário do Princípio da Inviolabilidade do Domicílio, cabe fazer algumas considerações sobre ele. Direitos como a inviolabilidade do domicílio precisam ser protegidos, pois, antes de tudo, são manifestações dos direitos humanos. Conforme leciona Ivo Dantas, a natureza filosófica destes direitos e garantias é de direito natural, pois pertencem a essência do homem, não se configurando como uma dádiva ou benesse de qualquer Organização Política ou ordenamento jurídico-positivo[33]. Por isso mesmo, esse direito sempre foi tutelado pelas nossas Constituições. Fazendo uma pequena digressão histórica, nota-se o seguinte:
“Estabelecia a Constituição de 1934: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescrita em lei” (art. 113, n. 16). Idêntica disposição se encontrava na Constituição de 1891 (art. 72, § 11). E era isso o que já prescrevia a Constituição do Império, com a diferença, porém, de se referir a cidadão e não a indivíduo.[34]”
Conforme demonstrado no panorama acima, a inviolabilidade domiciliar constitui uma das mais antigas e importantes garantias individuais de uma sociedade civilizada. Ela engloba a tutela da intimidade, da vida privada, da honra, bem como a proteção individual e familiar do sossego e da tranquilidade[35].
O domicílio é tão prestigiado em nosso ordenamento que existe até um crime para quem o viola. Ele está tipificado no art. 150 do Código Penal: “Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências. Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.” Além disso, o art. 248 do CPP[36] também reforça essa ideia de preservação da intimidade. Outrossim, também é possível aferir o prestígio do domicílio na ordem constitucional, pois ele, como garantia fundamental, está guardado sob a égide das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV da CRFB/88)[37]. Dessa forma, através de interpretação sistemática, fica demonstrada a importância e a seriedade que deve ser dada ao domicílio, pois é incontestável a preocupação do legislador com esse tema.
Outro ponto que merece destaque é a interpretação do termo “domicílio”. O conceito de domicílio se adequa perfeitamente ao caso do Rio de Janeiro, de modo que negar tal fato e agir com distinção seria menosprezar e desqualificar as casas apenas por elas se encontrarem numa região menos prestigiada da cidade. O fato de uma casa estar localizada numa favela não pode descaracterizá-la como local de intimidade, digno de proteção. Dessa forma, sendo tais propriedades imóveis reconhecidas como lares, aplica-se a elas a proteção da inviolabilidade de domicílio, não havendo razão para expedir mandados de busca e apreensão genéricos.
Outro aspecto importante de lembrar é que a única hipótese que dispensa a expedição de mandado especializado é a de busca em locais abertos ao público, como ruas, praças, estradas. Como o caso do Rio de Janeiro não se trata dessa hipótese, visto que a procura se dá em propriedades privadas, é notório que a presença do mandado específico é indispensável.
Deve-se perceber, ainda, que o mandado de busca e apreensão genérico não macula apenas o princípio da inviolabilidade do domicílio, mas uma série de garantias como a presunção de inocência, o direito à igualdade, o direito à intimidade e a necessidade de fundamentação das decisões. O art. 93, IX, da CRFB/88 prevê que todas as decisões do poder judiciário serão fundamentadas sobre pena de nulidade. Ora, diante disso, é possível inferir, mais uma vez, que não há cabimento para expedir mandados genéricos, pois eles não têm fundamentação legal.
Assim, não restam dúvidas que a norma do CPP deve ser interpretada à luz da sistemática constitucional, de forma que, para respeitar os supracitados princípios, tão caros ao nosso ordenamento jurídico, o mandado de busca e apreensão deve, obrigatoriamente, ser específico. Confirmando essa ideia, Dinorá Musetti Grotti defende que “o mandado não depende de maior formalidade processual, mas a ordem não pode ser geral (ordem para revistar todas as casas de um logradouro, vila ou o que seja). A cada casa deve corresponder uma ordem singular[38].”
Além disso, é importante entender o ponto que se critica. Não se discute que a ordem de busca é emitida por autoridade competente, isto é, juiz togado e corretamente investido na jurisdição estatal. Não se discute tampouco que tal ordem apresenta objeto legítimo, qual seja, a apreensão de armas, munições e instrumentos destinados ou utilizados na prática de crimes (ex.: drogas). A ilegalidade reside, então, no fato do mandado ser expedido fora dos moldes do art. 243, ou seja, se o mandado não qualifica e nem individualiza a casa, ele não é válido porque não cumpriu os requisitos legais. Desse modo, o que se tem é uma falsa autorização, pois, não sendo completamente válido, a busca não estaria autorizada de fato. Esse mandado se resumiria, portanto, a uma manobra jurisprudencial, não encontrando nenhum respaldo legal.
Fora isso, ainda que no contexto do Rio de Janeiro não fosse possível fazer uma identificação formal, é factível que fosse feita a identificação por outros meios. Significa dizer que mesmo o imóvel não tendo dados governamentais, isto é, não tendo cadastro na prefeitura, não pagando IPTU ou não possuindo um endereço formal, é exequível que o magistrado o identifique através de suas características particulares como, por exemplo, tamanho, cor, material de construção, pontos de referências, etc. Assim, conclui-se que a falta de endereço formal não é motivo para se escusar do cumprimento da lei.
Ademais, deve-se levar em consideração que o mandado também tem como função delimitar, a depender do que se busca, o âmbito de atuação do executor. Para cumprirem sua missão, os executores estão autorizados a arrombar não só portões, portas e janelas de entrada e de aposentos internos, mas também gavetas, armários, cofres, caixas, arcas, ou qualquer móvel onde supuser encontrar-se o que buscam apreender[39]. Assim, por conta da gravidade evidente, inclusive com a possibilidade de causar danos patrimoniais, e para que o morador possa se acautelar contra arbitrariedades, urge mais ainda a necessidade de se especificar os termos, motivos e fins do mandado.
É interessante definir também uma distinção técnica entre os termos mandado de busca e apreensão coletivo e mandado de busca e apreensão genérico. O primeiro não infringe a ordem legal, pois cumpre todos os requisitos para sua expedição, tratando-se apenas de várias ordens compiladas em um mesmo documento. Ao invés de se ter vários mandados específico e individuais, teria apenas um mandado específico, porém coletivo. Ser coletivo não implica necessariamente em ser genérico. Seria, portanto, uma manifestação da economia dos atos processuais. Já o segundo estaria em desacordo com os preceitos constitucionais por não respeitar os requisitos do art. 243, CPP. Todavia, no uso comum, esses termos se confundem e são usados como sinônimos.
Por fim, cabe fazer uma última reflexão. Se o grande problema é a viabilidade da individualização dos domicílios quando da expedição do mandado, por que não investir na fase de investigação para atingir os alvos corretos sem generalizar as medidas? O instituto da ação controlada é uma técnica especial de investigação, prevista expressamente na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006). Ela consiste em retardar os flagrantes para, agindo com a vantagem da surpresa, conseguir descobrir outras pessoas envolvidas na prática da infração penal; reunir provas mais robustas; ou recuperar o produto/proveito do crime. A ação controlada também tem previsão na Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850) e seu objetivo é capturar o que no jargão policial é conhecido como “peixe grande”. Sobre esse tipo de ação, Renato Brasileiro faz o seguinte comentário:
A depender do caso, é estrategicamente mais produtivo, sob o ponto de vista da colheita de provas, evitar a prisão prematura de integrantes menos graduados de determinada organização criminosa, pelo menos num primeiro momento, de modo a permitir o monitoramento de suas ações e subsequente identificação e prisão dos demais membros, notadamente daqueles que exercem o comando da societas criminis.[40]
Já que tantos recursos são dispendidos em atuações de guerra às drogas, porque não transferir esses recursos e esforços para técnicas de investigação que realmente tenham alguma efetividade? É mais fácil, mais cômodo e mais barato violar direitos de uma parcela já vulnerável e marginalizada da população do que respeitar e cumprir a lei.
Por todos os argumentos anteriormente expostos, fica inequívoco que a problemática do mandado genérico se trata de uma violação legal e constitucional, não podendo, em nenhuma hipótese, ser encarada como uma alternativa viável quando impossível a individualização do imóvel, pois coadunar com o mandado genérico equivale a rasgar a Carta Constitucional. Nesse sentido, tem-se o pensamento de Luís Roberto Barroso: “se a norma afronta a Constituição, tornando-se inconstitucional, ela é inválida, por desconformidade com regramento superior, por desatender os requisitos impostos pela norma maior.[41]”
Em primeiro plano, é fundamental ter em mente que a função precípua do processo penal, dentro de um contexto de Estado Democrático, é frear e controlar as arbitrariedades do Estado-Juiz, opondo-se ao Autoritarismo. Deve-se explicar que na jurisdição penal autoritária os direitos fundamentais deixam de ser percebidos como limites à opressão do Estado e passam a ser encarados como óbices à eficiência repressiva e à ampliação do poder penal, gerando a sensação social de que tais direitos devem ser afastados em nome do bem comum.
Ao Estado é dada a prerrogativa de punir (jus puniendi), todavia essa prerrogativa não é absoluta e deve ser aplicada dentro dos parâmetros legais. O Direito lato senso busca proteger bens jurídicos como liberdade e propriedade, porém o Direito Penal é o ramo que age com autorização estatal para violar esses bem jurídicos. Em uma observação superficial, soa contraditório que o próprio Estado viole aquilo que se comprometeu a proteger. Justamente em razão dessa linha ténue, as garantias processuais penais são indispensáveis, pois, ao revés, estar-se-ia diante de um Estado Autoritário.
Em sequência, é necessário compreender que o processo penal não se presta ao combate da criminalidade, não sendo essa sua função precípua. O processo penal é na verdade um instrumento de aplicação da pena, nos moldes definidos pela constituição, com o respeito categórico às garantias penais e processuais penais. Assim, agir em desacordo com isso é subverter a lógica do direito penal e destruir os alicerces do Estado Democrático de Direitos. Alicerces esses que foram cunhados de maneira árdua ao longo de décadas, não sendo admissível o seu desmonte. Nessa perspectiva, Ferrajoli comenta que “a teoria do garantismo penal visa imprimir ao Direito um novo papel, contrapondo-se ao juspositivismo vigente, a fim de adequá-lo aos valores constitucionais.[42]”
Ora, se as garantias processuais devem ser protegidas a todo custo, sob pena de se instaurar um Estado Autoritário, o que justifica o uso do mandado de busca e apreensão genérico mesmo ele não tendo respaldo legal ou jurisprudencial?
Para responder a essa pergunta, faz-se necessário, primeiramente, rever brevemente o conceito de direito penal do inimigo. Jakobs, jurista alemão, propõe, na década de 90, uma bifurcação/dissociação subjetiva no direito penal: para as pessoas comuns, que eventualmente tenham cometido um erro, aplica-se o direito penal do cidadão, com todas as garantias e direitos inerentes à pessoa humana; para os inimigos sociais, aqueles que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, intercede o direito penal do inimigo, no qual estão ausentes, flexibilizadas ou atenuadas as garantias próprias ao conceito de pessoa humana.
Jakobs arrola algumas particularidades desse tipo de direito penal, dentre elas: ampla antecipação da tutela penal (criminalização/imputação em um estágio prévio a lesões de bens jurídicos); punições desproporcionalmente altas; passagem de uma legislação de direito penal para uma legislação de luta para combater a delinquência; e supressão das garantias processuais.[43]
Na mesma senda, Zaffaroni entende que o inimigo é enxergado meramente como um ente perigoso ou daninho que deve ser contido, segregado, eliminado.[44] A figura do inimigo é cunhada pela elite dominante e tem raça e classe definidas. Todavia, esse conceito se molda a tudo que satisfaça os interesses dessa elite, adequando-se a pressões políticas e ficando sempre à mercê do juízo subjetivo e arbitrário do individualizador. A fragilidade e o preconceito fazem parte dessa classificação subjetiva, a qual castiga os inimigos, mas deixa impune os amigos.
Ademais, cumpre observar que o direito penal é desigual por excelência, reproduzindo as nuances do sistema social. A distribuição do status de criminoso guarda relação com a sociedade de classes, posto que o alvo desse status são as classes menos favorecidas do sistema de produção capitalista. Corroborando esse pensamento, tem-se o conceito de Direito Penal de Classes, elaborado por Cláudio do Prado Amaral, pelo qual “seriam sancionados com pena privativa de liberdade aqueles indivíduos de camadas sociais menos favorecidas, enquanto os autores da delinquência agressiva aos bens coletivos sofreriam penas não detentivas”[45].
Dessa forma, percebe-se que ao invés de controlar o poder estatal, o direito serve para ocultar as relações de dominação política, exploração econômica e controle social de uma população dita indesejada. Isso equivale a dizer que nem todos são iguais nem possuem o mesmo valor dentro da sociedade, de modo que o tratamento e respeito às garantias processuais penais também são divergentes. Nesse sentido, Fernanda Bargato afirma que “nos tempos modernos, juntamente com a ideia de raça e racismo, a racionalidade tornou-se um importante fator de exclusão dos seres humanos fora do padrão cultural dominante”[46].
Aliado a isso, soma-se as ideias de criminologia midiática e guerra às drogas. Tais elementos vão marcar o contexto do Rio de Janeiro e ajudar a entender como a quebra das garantias fundamentais, na forma do mandado de busca e apreensão genérico, foi tão rapidamente aceita.
No que tange a midiatização do crime, salienta-se que o poder midiático exerce grande influência na sociedade, construindo estereótipos, alimentando medos e definindo o que é bom/ruim. A mídia, com seu comportamento teatral e novelesco, vai aterrorizar a população e pressionar os órgãos estatais em busca de respostas para a insegurança pública. São os meios de comunicação que vão propagar e fortalecer a noção de inimigo, fazendo com que essa noção cresça e adquira vários adeptos. Para a lei penal, não se reconhece outra eficácia senão a de tranquilizar a opinião pública, ou seja, estabelecer um efeito simbólico.
Nesse diapasão, destaca-se o seguinte pensamento:
“Nem sempre a mídia exerce um papel de imparcialidade e que não prejudique determinadas pessoas, ou seja, existem casos em que ela pode ser responsável por apontar determinadas pessoas como criminosas e, provocando uma ojeriza social, sugere um tratamento diferenciado com essas pessoas. Tem-se falado que a mídia pode eleger determinado sujeito que tenha potencialmente cometido um crime, como inimigo, retirando dele a condição de cidadão, e, portanto, provocando todas as consequências que disso advém.[47]”
Com relação à chamada guerra às drogas, é relevante pontuar que o estado do Rio de Janeiro sempre foi marcado pela violência resultante do intenso conflito pelo monopólio do tráfico de entorpecentes na região. Embora se reconheça a importância de desmantelar organizações criminosas, pois não se defende aqui uma impunidade cega, deve-se levar em consideração que existem diferentes formas de se atingir tal objetivo.
Ao invés de despender recursos comprando onerosos armamentos, o Governo deveria engendrar esforços para criação de estratégias de investigação e infiltração em organizações criminosas. Já ocorreu, na localidade da Favela do Alemão, uma operação policial que conseguiu prender traficantes e gerar, de fato, resultados momentaneamente efetivos. Isso prova que um planejamento adequado, com o auxílio dos órgãos de inteligência, em forma de forças tarefas, pode ser uma alternativa para o combate ao crime sem que seja necessário transgredir direitos fundamentais e utilizar artifícios jurídicos.
Utilizar o mote de proteção à segurança pública é um argumento de fácil receptividade social. Todavia, a prevalência da segurança pública em detrimento das garantias fundamentais não é razoável, pois esses dois valores não deveriam ser ponderados, uma vez que os direitos fundamentais são muito preciosos ao ordenamento jurídico, não podendo ser dispensados. O custo de manter essa segurança pública, se é que ela está mesmo sendo mantida, é muito alto. O Estado não pode chancelar violações, pois isso seria inverter a lógica constitucional.
Sobre o assunto, o professor de Direito Penal da UFRJ, Salo de Carvalho, comenta:
A violência institucional das Forças Armadas radicaliza a crise. Trata-se de apenas uma aparente e momentânea sensação de segurança, que a população ‘compra’ devido ao momento de crise. Mas, inegavelmente, isso não resolve o problema e legitima formas ainda mais violentas de controle social.[48]
Recentemente, o governador recém-eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), afirmou que não iria diminuir a repressão sobre os narcotraficantes e que poderia, inclusive, recorrer a atiradores de elite para combatê-los. Ele também cogitou o uso de drones fabricados em Israel para abater narcotraficantes. Essas práticas são típicas de um contexto de guerra, o que não é compatível com o cenário brasileiro, de maneira que se afigura desarrazoado seu uso. Analisando as supracitadas declarações, nota-se que as táticas de guerras estão sendo encaradas com normalidade. E pior: são práticas que estão sendo esperadas e comemoradas pela população. Tais táticas, entretanto, são extremamente radicais, violentas, militarizadas e onerosas, motivos pelos quais deveriam ser repudiadas.
Diante do exposto, faz-se necessário examinar os dados numéricos extraídos do processo de intervenção federal. Segundo infográfico elaborado pelo instituto Observatório da Intervenção, foram registradas 206 violações até 30 de agosto de 2018. Dessas violações, o principal registro foi o de bala perdida, com 122 casos. Em seguida, está homicídio com 26 ocorrências. Ocupando o terceiro lugar, tem agressão física com 21 casos e, em sequência, tem excesso de uso da força com 20 violações. Por último, há outras violações contabilizando 6 registros.[49] O que se verifica é que a violência, ao invés de diminuir, como foi amplamente prometido, aumentou. Ocorre que o aumento atingiu um recorte social que não tem visibilidade no cenário nacional. Por tal motivo, paira a falsa sensação de segurança.
O Rio de Janeiro é o único estado do Brasil que tem um instituto dedicado à divulgação de dados numéricos na área de segurança (Instituto de Segurança Pública). Nas demais unidades da federação, essa tarefa fica a cargo da Secretaria de Segurança ou de um departamento da Polícia Civil. Segundo o ISP, 97% das pessoas mortas pela Polícia em 2018 eram homens, 77% negros ou pardos e 35% jovens de 18 a 29 anos[50]. Examinando esses dados, verifica-se, portanto, que a ação policial é dirigida. Significa dizer que a etiqueta de inimigo tem cor e classe definidas.
A guerra às drogas acaba possuindo um objetivo paralelo, qual seja, a perseguição aos negros pobres, posto que há a perpetuação dos mecanismos de exclusão. Se o intuito fosse, de fato, o extermínio das drogas ilícitas, as ações policiais deveriam ser voltadas para fronteiras, portos e aeroportos, que são os locais de maior concentração de entrada de drogas. Ora, será que os órgãos estatais desconhecem essa ideia? A resposta é negativa. O que ocorre é que o interesse político em atuar em outras áreas é bem maior. A repreensão às drogas acaba sendo, portanto, um pretexto que esconde o real objetivo da segregação, sendo a criminalização da pobreza e da negritude uma escolha política.
Todos esses fatores, quando agregados, caracterizam e solidificam um sistema penal seletivo. De acordo com Nilo Batista, “seletividade, repressividade e estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o brasileiro.”[51] O mandado de busca e apreensão coletivo aparece nesse contexto como uma decorrência desse sistema.
Se o sistema penal tivesse 100% de eficiência, todos os brasileiros responderiam a algum processo criminal. Todavia, como essa eficiência é impossível, esse sistema trabalha através da seletividade, direcionando sua persecução para a parcela mais vulnerável da sociedade. Aliado a isso, deve-se lembrar que a polícia militar, que atua de maneira ostensiva, utiliza as prisões em flagrantes para alimentar esse sistema. Dessa forma, ela vai buscar os elos sociais mais fracos para conseguir cumprir suas metas.
Defende-se, portanto, que o direito penal seja um direito penal da ação e não um direito penal do autor, como frequentemente se pretende. Nas palavras de Zaffaroni, “um direito que reconheça e ao mesmo tempo respeite a autonomia moral da pessoa jamais pode punir o ser, senão o fazer dessa pessoa, já que o próprio direito é uma ordem reguladora de conduta”[52]. A ideia de um mandado de busca genérico faz supor que há uma categoria de sujeitos naturalmente perigosos e suspeitos em razão de sua condição econômica e do lugar onde moram. Tal fato gera como consequência uma parcialidade descarada, com a perpetuação de desigualdades e preconceitos com relação aos moradores das favelas cariocas.
Conclusão
A guisa de conclusão, pontua-se que a intervenção federal decretada no Rio de Janeiro foi uma medida muito gravosa e controversa, pois, além de ter um caráter militar, foi genérica e não especificou com clareza suas condições de execução. Da análise, percebeu-se que a intervenção se mostrou como um artificio para perpetrar violações aos direitos fundamentais sob o pretexto de proteção à ordem pública. Sendo assim, a intervenção federal do Rio de Janeiro se afigura como inconstitucional.
Sabe-se que o mandado de busca e apreensão é a autorização estatal para violar determinadas garantias constitucionais. Por esse motivo, é imprescindível que ele seja expedido seguindo rigidamente os ditames legais e constitucionais, a fim de evitar que sejam cometidas arbitrariedades. Contudo, no contexto do Rio de Janeiro, apesar da gravidade que essa medida impõe, os magistrados começaram a criar uma nova interpretação a partir da expressão “mais precisamente possível” para mitigar essas garantias e alcançar, a qualquer custo, a persecução penal.
Ocorre que o uso do mandado de busca e apreensão genérico, não macula apenas o princípio da inviolabilidade do domicílio, mas uma série de garantias como a presunção de inocência, o direito à igualdade, o direito à intimidade e a necessidade de fundamentação das decisões. Foi constatado que esse tipo de mandado não teve adesão de parte da sociedade civil, sendo repudiado pelos órgãos auxiliares da justiça. Além disso, verificou-se que ele não possui respaldo jurisprudencial dos Tribunais Superiores, sendo, pelo contrário, considerado ilegal.
Em razão disso, infere-se que não há cabimento para expedir mandados genéricos. Todavia, examinado uma perspectiva processual penal, foi averiguado que o uso desse instrumento se explica por conta da noção de direito penal do inimigo e da política de guerra às drogas. O Poder Público classifica a parte indesejada da população como inimigo e busca combatê-la, segregando-a a todo custo através do sistema penal. Aliado a isso, tem-se a ideia de guerra às drogas, largamente disseminada e alimentada pelos meios de comunicação em massa, que incentiva o uso de ações e abordagens violentas por parte do Poder Público.
Assim, certifica-se que o uso do mandado de busca e apreensão coletivo é um exemplo da perpetuação da lógica da seletividade do sistema penal, uma vez que atinge o setor mais pobre e marginalizado da sociedade. O endereço de uma pessoa, sua escolaridade, situação econômica ou cor da pele não podem ser fatores que legitimam a flexibilização das garantias processuais, sob pena de descaracterizar as bases do Estado Democrático de Direitos.
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[1] Advogada. Pós-Graduanda em Ciências Criminais. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: juguimaraes2009@hotmail.com
[2] MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2014. P. 333.
[3] CRFB/88, art. 36, § 1º. O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas. [sic]
[4] CRFB/88, art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
[5] DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. 3. ed. Curitiba: Juara, 2014. P. 479.
[6] CRISTALDO, Heloisa. Repórter da Agência Brasil. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-02/relatora-diz-que-intervencao-federal-e-caminho-unico-contra-violencia-no>. Acesso em 20 fev. 2018.
[7] Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/governo-vai-pedir-a-justica-mandado-coletivo-de-busca-e-apreensao-19022018>. Acesso em: 19 fev. 2018.
[8] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5372424>. Acesso em: 12 out. 2019.
[9] NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 10. ed. ver., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivum, 2015. P. 857.
[10] MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2014. P. 828.
[11] ALMEIDA, Eloísa Machado de. Decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro é inconstitucional. Justificando. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/02/16/decreto-de-intervencao-federal-no-rio-de-janeiro-e-inconstitucional/>. Acesso em: 29 out. 2018.
[12] Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/02/16/Interven%C3%A7%C3%A3o-federal-no-Rio-as-justificativas-e-as-contesta%C3%A7%C3%B5es>. Acesso em: 29 out. 2018.
[13] CRFB/88, art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: (…) V – busca e apreensão em domicílio;
[14] POVOA, José Liberato Costa. Busca e apreensão: teoria, pratica, jurisprudência. Apud. FERREIRA, Pinto. Medidas cautelares. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
[15] POVOA, José Liberato Costa. Busca e apreensão: teoria, pratica, jurisprudência. Apud COSTA, Alfredo Araújo Lopes. Medidas preventivas. Belo Horizonte, 1958.
[16] POVOA, José Liberato Costa. Busca e apreensão: teoria, pratica, jurisprudência. Apud THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo cautelar. São Paulo: LEUD, 1986.
[17] PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Da busca e apreensão no processo penal. São Paulo: Editora RT, 1999. P.96
[18] Idem Ibidem. P. 192.
[19] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. P. 471.
[20] BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal. Salvador: Jus Podivm, 2015. P. 710.
[21] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 34. Ed. Rev. São Paulo: Saraiva, 2012.
[22] CPP, art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.
[23] CPP, art. 245, § 7º. Finda a diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no § 4o.
[24] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. P. 491.
[25] Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/governo-vai-pedir-a-justica-mandado-coletivo-de-busca-e-apreensao-19022018>. Acesso em: 19 fev. 2018.
[26] Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/oab-ja-estuda-meios-de-impedir-a-aprovacao-dos-mandados-coletivos-na-intervencao-do-rio.ghtml>. Acesso em: 28 out. 2018.
[27] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-20/oab-ira-justica-uso-mandados-coletivos-intervencao>. Acesso em: 20 fev. 2018.
[28] Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/ministerio-publico-federal-lanca-nota-tecnica-sobre-intervencao-federal-no-rio-de-janeiro>. Acesso em: 31 out. 2018.
[29] LOZOYA, Daniel. Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/3444-Em-resposta-a-Defensoria-Justica-desautoriza-busca-coletiva-na-CDD>. Acesso em 28 out. 2018.
[30] Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 416.483. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. DJe: 20/09/2017. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201702368565&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 12 out. 2019.
[31] Mandado genérico de Moraes é proibido pelo próprio STF. Migalhas. Publicado em 16 de abril de 2019. ISSN 1983-392X. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI300495,31047-Mandado+generico+de+Moraes+e+proibido+pelo+proprio+STF>. Acesso em: 12 out. 2019.
[32] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 196/197.
[33] DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. 3. ed. Curitiba: Juara, 2014. P. 389.
[34] CASTRO ARAÚJO. A constituição de 1937. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. P. 276.
[35] MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2014. P. 55
[36] CPP, art. 248. Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência.
[37] CRFB/88, art. 60, § 4º, IV. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais.
[38] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. Apud. GROTTI, Dinorá Musetti. Inviolabilidade do domicílio na Constituição. São Paulo: Malheiros, 1993. P. 291.
[39] POVOA, José Liberato Costa. Busca e apreensão: teoria, pratica, jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1990. P. 40.
[40] BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal. Salvador: Jus Podivm, 2015. P. 790.
[41] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Apud. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. São Paulo: Renovar, 1990. P. 168.
[42] FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (Org.) O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. P. 94.
[43] JAKOBS, Gunther. La autocompresión de la ciencia del derecho penal ante los desafios del presente. La ciencia del derecho penal ante el nuevo milenio. Coordinador de la versión espanola Francisco Munoz Conde. Traducción de Manuel Cancio Meliá. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. P.58-59
[44] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007 (Coleção Pensamento Criminológico).
[45] AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas da ciência penal contemporânea: dogmática, missão do direito penal e política criminal na sociedade de risco. São Paulo: IBCCRIM, 2007. P. 122.
[46] GALLAS, Luciano. A diversidade cultural negada pela modernidade. Revista do Instituto Humanistas Unisinos. Edição 431. 04 de novembro de 2013. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5255-fernanda-bragato-1>. Acesso em: 25 set. 2019.
[47] PALADINO, Carolina de Freitas; GALVÃO, Danyelle da Silva. A mídia como produtora de mais um inimigo. Tipo: Inimigo. Organização de Leandro Ayres França. Curitiba: FAE Centro Universitário, 2011. P. 144
[48] RODAS, Sérgio. Para especialistas, intervenção federal no RJ é inconstitucional e não dá resultados. Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-16/intervencao-federal-rio-inconstitucional-nao-dara-resultados>. Acesso em: set. 2019.
[49] Disponível em: <http://www.observatoriodaintervencao.com.br/dados/apresentacao-de-infograficos/>. Acesso em: 17 set. 2019.
[50] MAZZOCO, Heitor. Intervenção federal: os números da guerra civil no Rio de Janeiro. Jornal O Tempo. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/brasil/intervencao-federal-os-numeros-da-guerra-civil-no-rio-de-janeiro-1.2085409>. Acesso em: 18 set. 2019.
[51] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. P. 26
[52] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal. Buenos Aires: Ed. Ediar, 1986. P. 91
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