Autora: Lilian Esther Ribeiro Pires – acadêmica de Direito na Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: lirpires@gmail.com.
Coautor e Orientador: Juan Pablo Ferreira Gomes, Advogado, Professor da Universidade do Estado do Amazonas – UEA e Mestre. E-mail: juanpablogomes1@gmail.com.
Resumo: O presente trabalho tem como escopo analisar a proteção jurídica à mulher-mãe e o processo histórico de afirmação e reconhecimento desta enquanto sujeito de direitos na Sociedade Moderna, além da condição de procriadora, tal qual foi relegada em uma estrutura social pautada pelo patriarcalismo, adotando-se, como estudo de caso, o fenômeno da violência obstétrica. Diante de um paulatino progresso sobre o tema, alguns tratados internacionais mostram-se empenhados na proteção da mulher diante dos abusos sofridos em maternidades, postos de saúdes, entre outras unidades básicas de saúde pública ou privada, enquanto que no direito interno não há sequer lei federal que permita o empoderamento a essas mulheres ou buscar por tutela judicial, ressalvando-se a iniciativa de alguns Estados e Municípios vanguardistas, como é o caso, em especial, do Estado do Amazonas com a entrada em vigor da Lei n. 4.848/2019.Assim,torna-se imperiosa uma investigação mais aprofundada sobre sua eficácia na prevenção e repressão aos corriqueiros episódios de desrespeito à dignidade da pessoa humana da mulher-mãe, bem como o alcance de políticas públicas levadas a efeito no mesmo sentido.
Palavra-chave: Violência obstétrica. Empoderamento feminino. Direitos Humanos. Direito Internacional Público. Amazonas.
Abstract: The present article aims to analyze the legal protection of the woman-mother and the historical process of affirmation and recognition of it as a subject of rights in Modern Society, in addition to the condition of procreator, as it was relegated to a social structure guided by patriarchalism, adopting as a case study, the phenomenon of obstetric violence. In the face of gradual progress on the topic, some international treaties are committed to the protection of women in the face of abuses suffered in maternity wards, health posts, among other basic public or private health units, while in domestic law there is not even a law federal government that allows these women to be empowered or seeks judicial protection, with the exception of the initiative of some states and avant-garde municipalities, as is the case, in particular, of the State of Amazonas with the entry into force of Law no. 4.848 / 2019. Thus, it is imperative to further investigate its effectiveness in preventing and suppressing ordinary episodes of disrespect for the dignity of the human person of the woman-mother, as well as the scope of public policies carried out in the same direction.
Keywords: Obstetric violence. Female empowerment. Human rights. Public International Law. Amazon.
Sumário: Introdução. 1. A luta da mulher na sociedade e o reconhecimento da violência obstétrica. 2. Histórico dos dispositivos legais de combate à violência obstétrica e proteção da mulher mãe. 2.1. A proteção contra violência obstétrica no âmbito internacional. 2.2. A proteção à mulher-mãe no Brasil e o papel da sociedade civil organizada. 3. Amazonas e sua trajetória no combate à Violência Obstétrica. Conclusão. Referências.
Introdução
Diante das inúmeras conquistas alcançadas pelos coletivos femininos ao longo da sociedade moderna é necessário e obrigatório discorrer e analisar o fenômeno de práticas que passaram a ser convencionadas e reconhecidas enquanto violência obstétrica, termo que, em pleno século XXI, ainda causa estranheza dado o desconhecimento generalizado sobre o tema em contraste com os inúmeros casos e relatos de constrangimentos, abusos, agressões verbais e tratamentos humilhantes experimentados por mulheres no mundo todo em diversas unidades de saúde, formando hostes de vítimas que desconhecem serem vítimas, seja pela desinformação, seja pela precariedade ou insipiência de mecanismos de proteção aos seus direitos.
A complexidade do tema se denota de imediato dada a dificuldade ainda contemporânea no processo de empoderamento feminino e o reconhecimento da mulher-mãe enquanto sujeito de direitos dotado de demandas específicas.
O gênero feminino por séculos foi alvo de discriminações relacionadas não só a fatores biológicos, mas também culturais e sociais, a mulher dificilmente poderia ter o poder de decisão sobre sua vida, seus pensamentos e na maioria das vezes sobre seu corpo. É perceptível que por décadas as mulheres foram marionetes da sociedade hegemônica que traçavam um manual de comportamentos, formas de agir, falar.
Como elucida Silvia Badim Marques (2020, p. 100):
“O conceito de gênero, portanto, não está ligado às diferenças biológicas entre pessoas designadas de homens e mulheres ao nascer, mas sim às diferenças culturais e sociais que impõem papeis diferentes a ambos os sexos, colocando a mulher em posição de desigualdade e subalternidade em relação aos homens, da qual derivam diversas violências e opressões que merecem atenção, estudos e políticas específicas para que sejam combatidas.”.
Em meados do século XX, diante das lutas dos coletivos femininos que se formaram em torno de diversas agendas e pautas, tal qual a inserção e maior visibilidade no processo político, igualdade de direitos, denota-se que as mulheres passaram a abolir o manual de modos imposto pela sociedade patriarcal do qual todas impreterivelmente tinham que seguir, do contrário não seriam respeitadas e nem bem-vistas aos olhos da sociedade burguesa.
No âmbito do direito internacional e como resultado de tais lutas, Tratados passaram a traçar um norte para o combate e prevenção à violência contra a mulher de um modo geral e especificamente contra a violência obstétrica, enquanto isso no âmbito interno, nosso ordenamento jurídico ainda encontra nítida carência de meios de proteção ou tutela, dada a ausência de lei federal reconhecendo a questão, destacando-se iniciativas de grande relevância como a Lei Estadual Amazonense n. 4.848/2019, resultado do trabalho constante e incansável de mulheres individualmente e coletivos feministas tal qual a Associação “Humaniza Coletivo” que buscam dar maior visibilidade ao tema e exigir a adoção de políticas públicas nesse sentido e tema.
Historicamente nas sociedades patriarcais a mulher sempre foi tida como criatura irracional fadada a viver em um espaço limitado e privado de atuação, tendo seu valor atrelado à condição de boa esposa, dona de casa e fértil para procriar, dando continuidade à espécie, sendo dessa forma reduzida a objeto de domínio e submissão nas mãos de seus supostos detentores, seja o pai, marido ou o Estado.
Segundo Tedeschi (2008), em nossa sociedade, a tradição cristã e os arquétipos da “Eva pecadora” e da “Maria virtuosa”, perpassarão toda representação de feminilidade sendo a segunda o modelo a ser alcançado e reconhecimento como virtuoso em todos os seus aspectos morais.
O autor ainda exalta a desigualdade entre gêneros, por conta de padrões impostos pela sociedade:
“Esses discursos recorrentes exerceram influência decisiva na elaboração de códigos, leis e normas de conduta, justificando a situação de inferioridade em que o sexo feminino foi colocado […] Assim, a desigualdade de gênero passa a ter um caráter universal, construído e reconstruído numa teia de significados produzidos por vários discursos, como a filosofia, a religião, e educação, o direito, etc. perpetuando-se através da história, e legitimando-se sob seu tempo.”( grifo nosso)
Após anos de dependência aos modelos impostos pela sociedade, gradativamente é perceptível que a mulher vem ganhando sua emancipação, e com essa liberdade floresce o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos, tornando-se exclusiva dona ou titular de seu corpo e de suas decisões.
A identificação própria da mulher como sujeito de direitos passou por contratempos durante os grandes marcos de dominação, todavia ainda na modernidade é possível entender que há mulheres que ocupam espaços vazios na sociedade e desconhecem seus poderes de decisão sobre si.
O fenômeno da desconstrução das aparências e posturas presentes em séculos anteriores dá aos movimentos feministas protagonismo na luta pela igualdade de gênero, conforme pondera Adichie (2014, p. 05):
“Então, de uma forma literal, os homens governam o mundo. Isso fazia sentido há mil anos. Os seres humanos viviam num mundo onde a força física era atributo mais importante para a sobrevivência; quanto mais forte a pessoa, mais chances ela tinha de liderar. E os homens, de uma maneira geral, são fisicamente mais fortes. Hoje, vivemos num mundo completamente diferente. A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar.”(grifo nosso).
Dessa forma é perceptível os avanços dos movimentos feministas intimamente ligados a reivindicações por direitos básicos como o da autoidentificação conjuntamente com o poder de decisão sobre seu corpo.
Assim sendo, há uma expressividade crescente das conquistas alcançadas enquanto a cultura do patriarcado é nitidamente atacada e enfraquecida, destarte a mulher ganha autonomia e consequentemente interfere de maneira direita na economia e nos padrões culturais impostos pela sociedade. A transformação é paulatina e cada dia uma mulher torne-se reconhecedora de seus direitos, ao ponto que em determinado momento a corrente de preconceito de gênero criada é rompida.
“A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura.”(grifo nosso)
Nesse esteio, por muito tempo os maus-tratos e desrespeitos a mulher durante o processo parturitivo em instituições de saúde eram deixados de lado, tendo as vítimas que conviverem com esse trauma o resto de suas vidas caladas.
No Brasil, em 2010, uma pesquisa nacional realizada pela Fundação Perseu Abramo mostrou que aproximadamente 25%(vinte e cinco por cento)das mulheres que tiveram partos em maternidades sofreram alguma forma de violência muito além de um mero dissabor da paciente, mas configurando-se efetivo sofrimento capaz de atingir a dignidade da pessoa humana das vítimas envolvidas.
O termo “violência obstétrica” descreve um agrupamento de formas de violência e danos originados no cuidado obstétrico profissional, sua visibilidade ganhou força em meados dos anos 2000, visando reconhecer a mulher mãe como sujeito de direitos reprodutivos femininos. Segundo a obra de Trindade (2018, p. 31), esse esclarece:
“O que hoje se chama de ‘violência obstétrica’ diz respeito às formas com que profissionais da saúde atuam sobre o corpo das mulheres em seus processos reprodutivos. Constitui-se, dentre outros, de atenção desumanizada, abuso de intervenções (independentemente de terem eficácia comprovada), medicalização excessiva, foco na leitura patológica dos processos de parturição fisiológicos. Esses processos, na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos, estão relacionados a uma série de situações consideradas degradantes pelas quais várias mulheres são submetidas ao se depararem com o sistema médico de saúde, em especial nos hospitais.”
Conforme D’ Oliveira, Diniz w Scharaiber (2002, p. 1681) em pesquisa aprofundada, conseguiram definir de forma detalhada quais são as ações que caracterizam a violência obstétrica:
“A violência obstétrica é expressa desde: a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal (tratamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional) e violência física (incluindo não utilização de medicação analgésica quando tecnicamente indicada), até o abuso sexual. Também o uso inadequado de tecnologias, intervenções e procedimentos desnecessários frente às evidências científicas, resultando numa cascata de intervenções com potenciais riscos e sequelas, pode ser considerado como práticas violentas”.(Tradução nossa)
É notório que diante do supramencionado a caracterização da violência obstétrica é muito mais ampla que o senso comum, não está adstrito ao momento do parto, incluindo-se a fase puerperal, momento posterior ao parto, desse modo um ato rotineiro de pouca importância praticado por um agente de saúde é capaz de gerar consequências graves tanto na vida da gestante quanto do próprio feto.
Para a maioria dos agentes de saúde apenas procedimentos como episiotomia (corte do períneo da paciente para facilitar a passagem do feto) e manobra de Kriseller(o profissional se posiciona sobre o abdômen e o tórax da paciente para empurrar o feto), que não são mais recomendados pela OMS (BISCEGLI, 2015) são caracterizadores de violência obstétrica, contudo como já massificado no presente estudo até o induzimento da mulher a um procedimento desnecessário e uma desinformação do procedimento adotado, são situações comuns de agressões.
A Revista Crescer (2017) entrevistou algumas mulheres que viveram momentos tortuosos no período gestacional e para fins ilustrativos traremos o relato de Fabiula Morenno e Laísa Santana:
“FabiulaMorenno, 40, a violência obstétrica começou no pré-natal da primeira filha, Maria Luiza, 9. “O médico era bem seco nas consultas quando eu dizia que queria parto normal. Esperei até 41 semanas, mas não tive nem sinal de dilatação. Então, em uma consulta no hospital, ele me levou para o centro obstétrico e não deixou meu marido entrar, alegando que ele não ia conseguir assistir”, lembra ela.
Laísa Santana, 29 anos, escutou frases como “Na hora de fazer, você não reclamava” ou “Se você gritar, é pior, porque nós não vamos te atender”, enquanto aguardava o nascimento da primeira filha, Gabriela, hoje com 2 anos. “Após 14 horas em trabalho de parto, eu já não tinha mais forças e a médica subiu em cima de mim para que minha bebê conseguisse sair. Empurrou o alto da barriga, minhas costelas – praticamente os pulmões – e eu não conseguia respirar. Lembro que fechei os olhos e pensei que não iria aguentar – eu nem conseguia falar para ela que não estava conseguindo respirar, mas logo depois minha filha nasceu, com dois laços de cordão no pescoço, meio roxinha, e foi voltando à cor depois de alguns minutos. São momentos que nunca esquecerei”, conta Laísa, que realizou o parto pelo SUS.”
Apesar do desconhecimento relativo por parte do senso comum, a violência obstétrica é real e a sociedade moderna paulatinamente vem contestando qualquer tratamento ríspido e condutas médicas desapropriadas por meio de ações mediadas pela internet, através das redes sociais, impulsionado pelos movimentos sociais feministas, tornando possível uma maior discussão e participação política na agenda de saúde sobre direitos reprodutivos.
2.1 A proteção contra violência obstétrica no âmbito internacional
O direito sexual e reprodutivo da mulher ganhou força enquanto capítulo da luta e afirmação histórica dos direitos humanos universais garantindo-se o reconhecimento de direitos e o dever de aplicação de políticas públicas específicas para o gênero feminino.
Na década de 70, as Nações Unidas inovaram com a realização da I Conferência Internacional da Mulher, em 1975, no México. A conferência contou com participação 70% feminina, reconhecendo-se o direito à autonomia reprodutiva, ou seja, que cabe a mulher a escolha reprodutiva, tendo assim um controle sob sua integridade corporal, conforme itens 113 e 216 da respectiva declaração.
“113 – No contexto dos serviços gerais de saúde, os Governadores devem prestar atenção especial às mulheres, especialmente nas necessidades de saúde, fornecendo: serviços de entrega e pré-natal e pré-natal; serviços de ginecologia e planejamento familiar durante os anos reprodutivos; serviços de saúde abrangentes e contínuos direcionados a todos os bebês, crianças em idade pré-escolar e escolar, sem preconceito em razão do sexo; conhecimento específico para meninas pré-adolescentes e adolescentes e para os anos pós-reprodutivos e velhice: e pesquisas sobre os problemas especiais de saúde das mulheres. Os serviços básicos de saúde devem ser reforçados pelo uso de pessoal médico e paramédico qualificado.(tradução nossa).
216 – Algumas das desvantagens enfrentadas pelas mulheres no processo de mudança foram discutidas. Devido às suas funções reprodutivas e ao fato de as mulheres serem as principais responsáveis pelos assuntos familiares, as mulheres foram consideradas relativamente menos capazes do que os homens de aproveitar as oportunidades de envolvimento total no desenvolvimento social e econômico da sociedade. ” (tradução nossa).
A luta dos coletivos femininos na década de 70 foi marcada pelo autoreconhecimento sob seu corpo e suas escolhas sobre ele, fazendo com que as políticas públicas integracionistas tivessem um viés empoderador, conforme explicita Mattar (2008):
“Tal e qual o movimento populacional, o movimento de mulheres, por sua vez, também tinha na reprodução um de seus elementos centrais. Entretanto, com outro foco: o controle da mulher sobre o seu próprio corpo, sua sexualidade e vida reprodutiva. O lema feminista da década de 70 ‘nosso corpo nos pertence’ estava em clara oposição à interferência da Igreja e do Estado.”
Quatro anos após a I Conferência Internacional da Mulher foi adotada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida pela sigla americana CEDAW ou Convenção da Mulher.
A Convenção ganhou visibilidade, pois foi o primeiro tratado internacional que discorreu vastamente sobre os direitos humanos das mulheres, conquistando um patamar de referência e parâmetro para ações estatais no que tange aos direitos humanos das mulheres. Além disso, conforme PIOVESAN (2012) a Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a consagrando o princípio da igualdade.
O Brasil tornou-se Estado-parte por meio da promulgação do Decreto n. 4.377/02 (2002), dessa forma carrega consigo o dever de eliminar a discriminação contra a mulher através de políticas públicas e medidas legais, inclusive sendo expresso no que tange a proteção da mulher no período gestacional e posterior, a fim de exemplificação vejamos os art. 3º e 12 do decreto supramencionado.
“Artigo 3º – Os Estados Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.
Artigo 12 -1. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.
Destarte, a Convenção demonstrou-se efetiva trazendo à tona tragédias inacreditáveis, conforme o emblemático caso Alyne Pimentel, envolvendo o Estado brasileiro, em 11 de novembro de 2002.
Alyne Pimentel, moradora de Belford Roxo, Rio de Janeiro, 28 anos, negra, classe baixa, casada, mãe e grávida de 06 meses. Diante de fortes dores procurou a Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória, sem realizar qualquer exame laboratorial ou ultrassonografia, foi liberada após administração de analgésicos. Sem qualquer melhora retornou para a mesma Unidade de Saúde, onde se constatou a morte fetal, salienta-se que Alyne já havia passado por 03 médicos distintos e apenas o último identificou a ausência de batimentos cardíacos do feto, vindo a ser necessária a realização de uma cirurgia de curetagem que durou aproximadamente 14 (quatorze) horas.
A equipe da Unidade de Saúde alegou não ter capacidade de continuar com atendimento e que seria crucial que Alyne fosse para um Hospital mais bem equipado, pois o quadro se agravava a cada minuto. Apenas o Hospital Geral de Nova Iguaçu possuía espaço disponível, mas recusou-se a fornecer sua ambulância para o transporte de Alyne, tendo essa que aguardar por 8 (oito) horas a disponibilização de um carro da rede pública, pois não possuía condições financeiras de custear uma ambulância particular. Após tantas horas de espera Alyne entrou em coma, chegando à Unidade Hospitalar de Nova Iguaçu, verificaram que não havia sido enviado os registros médicos informando que a mesma estava grávida e que diante dos seus sintomas realizou o parto de um natimorto. Em 16 de novembro de 2002, Alyne Pimentel não resistiu e faleceu. A autópsia constatou a causa da morte como hemorragia digestiva. Após o falecimento, a mãe de Alyne voltou a 1º Casa de Saúde, solicitando os prontuários médicos de sua filha e os médicos informaram que o feto já estava morto há dias e que isso ocasionou a morte de Alyne.
O caso foi levado ao conhecimento do Comitê CEDAW da ONU e ao analisar o mérito reconheceu-se que o Estado Brasileiro havia violado os artigos 2º e 12 da Convenção, no que tange ao acesso à saúde e acesso à justiça.
De forma detalhada sobre o caso, a obra de Catoia, Severi e Firmino (2020) pondera:
“O Comitê CEDAW decidiu, em síntese, que o Estado brasileiro violou as obrigações do artigo 12 (acesso à saúde), artigo 2º, c (acesso à justiça), juntamente com o artigo 1º da Convenção, lidos em conjunto com as Recomendações Gerais nº 24 e 28 da CEDAW.Ele considerou o Brasil responsável: pela falha no monitoramento das instituições privadas no que se refere aos serviços médicos por elas prestados; pela falha no atendimento às necessidades de saúde específicas de Alyne; pela falha em não adotar um enfoque interseccional nos serviços a ela prestados e pela falha em cumprir com suas obrigações de assegurar ação judicial e proteção efetivas.
O Comitê considerou que o Brasil não tomou todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra as mulheres no campo da assistência à saúde para assegurar o acesso aos servos de saúde. A falta desses serviços apropriados resultou em impactos diferenciados no direito à vida de Alyne, em razão de ser mulher negra e pela sua situação socioeconômica.
Seguindo o previsto no Protocolo Facultativo da CEDAW, o Comitê formulou recomendações ao Estado brasileiro considerando tanto a dimensão individual quanto estrutural do caso. No tocante à dimensão individual, o Comitê reconheceu os danos causados à mãe de Alyne e os danos morais e materiais sofridos por sua filha. Em razão disso, solicitou que o Brasil garanta a reparação apropriada, inclusive financeira, para a mãe e a filha de Alyne, a ser definida considerando a gravidade das violações em questão.
Sobre as causas sistêmicas, o Comitê requisitou que o Brasil: garanta o direito das mulheres à maternidade segura e a preços acessíveis, aos cuidados obstétricos de emergência; reduza as mortes maternas evitáveis por meio da implementação do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna no nível estadual e municipal, incluindo a criação de comitês de mortalidade materna onde eles ainda não existam; ofereça treinamento profissional adequado para os profissionais de saúde, especialmente sobre os direitos das mulheres à saúde reprodutiva; assegure que os serviços de saúde privados cumpram com padrões nacionais e internacionais relevantes de assistência à saúde reprodutiva; assegure que sanções adequadas sejam impostas aos profissionais de saúde que violem os direitos relacionados à saúde reprodutiva das mulheres; e assegure o acesso à proteção jurídica adequada e efetiva em casos em que os direitos relativos à saúde reprodutiva das mulheres tenham sido violados.
Ainda em cumprimento às determinações do Protocolo Facultativo, o Comitê determinou que o Estado brasileiro dê a devida consideração às recomendações feitas e envie, dentro de seis meses, uma resposta escrita, incluindo informações quanto às ações tomadas.”.(grifo nosso)
O Caso de Alyne Pimentel foi a primeira condenação internacional do Brasil em razão de morte materna, ainda que a própria CEDAW evite ou oculte o termo “Violência Obstétrica”.
O capítulo da proteção dos direitos reprodutivos das mulheres ganha novo marco com a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD) que ocorreu em setembro de 1994 no Cairo, Egito, inclusive a nomenclatura “direitos reprodutivos” foi criada nessa conferência.
A Conferência de Cairo é considerada de extrema importância diante dos novos paradigmas, exteriorizando a luta social dos coletivos femininos. Como consequência, a mulher que era vista pela sociedade como um ser completamente vulnerável, inferior e submisso, passa a ser reconhecida como sujeito de direito dos programas de desenvolvimento e população, conforme o Capítulo VII, parágrafo 7.3 do Programa de Ação do Cairo:
“Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos.”(grifo nosso).
Dessa forma, resta claro a necessidade da visibilidade dos direitos reprodutivos da mulher, PIOVESAN (2012) explicita o alcance que a Conferência Internacional de Cairo trouxe para a saúde reprodutiva, observemos:
“Em consequência, a saúde reprodutiva pressupõe a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e satisfatória e de reproduzir-se, contando com a liberdade de fazê-lo ou não, quando e com que frequência. Está implícito nessa última condição o direito de homens e mulheres à obtenção de informação e a ter acesso a métodos de planejamento familiar de sua escolha que sejam seguros, efetivos, disponíveis e aceitáveis, bem como a outros métodos de regulação da fertilidade de sua escolha não contrários à lei, e o direito de acesso a serviços de saúde apropriados que permitam à mulher passar pela gravidez e pelo parto com segurança e que provejam aos casais as melhores oportunidades de ter um filho saudável.”(grifo nosso)
Posteriormente, diante do pioneirismo da Conferência de Cairo, um ano após, 1995, em Pequim, China, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, confirma todas as declarações e decisões realizada em 1994.
Em 2014, a Organização Mundial de Saúde, diante de algumas repercussões acerca de tratamentos degradantes tanto no pré-parto, durante e pós-parto, publicou a declaração para Prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-tratos durante o Parto em Instituições de Saúde, “Toda mulher tem direito ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de saúde digno e respeitoso”, visando resguardar mulheres do mundo inteiro e assegurar o acesso universal aos cuidados em saúde sexual e reprodutiva, dando visibilidade a um dos problemas que mais atinge a sociedade: a violência do gênero feminino, salienta-se que apesar da cultura enraizada a visibilidade dada por esses meios de controle normativos façam que esses práticas sejam abandonadas, prevenidas e combatidas.
Entre os países latino-americanos, a Venezuela é destaque, pois tornou-se pioneira no que tange a utilização do termo “Violência Obstétrica” em seus dispositivos normativos, conquista alcançada pelos movimentos feministas locais dando visibilidade para os direitos reprodutivos das mulheres. Inclusive a legislação venezuelana tipifica expressamente a definição de Violência Obstétrica, inclusive elenca em seu artigo 51 um rol exemplificativo de atos caracterizadores da violência, vejamos:
“Se entende por Violência Obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando consigo em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.
Artigo 51. Violência obstétrica. São considerados atos constitutivos de violência obstétrica aqueles executados pelos agentes de saúde, composto por:
1.- Falta de atendimento oportuno e efetivo de emergências obstétricas.
2.- Forçar a mulher a dar à luz em decúbito dorsal e com a pernas levantadas, existindo meios necessários para a realização do parto vertical (…).”. (tradução nossa).
Dessa maneira, a Venezuela além de resguardar os direitos femininos, dá visibilidade a uma modalidade de violência contra a mulher tão banal de situações desumanas em ambientes hospitalares.
Além disso, diante do vanguardismo do país a expressão “Obstetric Violence” foi empregada pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr. Rogelio PérezD’Gregoriono Editorial Especial do International Journal of Gynecology and Obstetrics, em 2010, demonstrando o grande feito realizado, colocando a expressão em destaque no direito internacional e sendo amplamente divulgado pelos movimentos sociais engajados na luta pelo parto humanizado e pela assistência de qualidade em toda a gestação.
2.2 A proteção à mulher-mãe no Brasil e o papel da sociedade civil organizada
No Brasil, até a presente data não há legislação federal exclusiva sobre violência obstétrica, ressalte-se que tramitam no Congresso Nacional alguns projetos de lei de tal matéria, merecendo destaque o Projeto de Lei n. 7.633/14, de autoria do deputado Jean Wyllys, Projeto de Lei n. 8.219/17, de autoria do deputado Francisco Floriano e Projeto de Lei. 7.867/17, de autoria da deputada Jô Moraes.
Dada a inércia no âmbito federal, alguns Estados e Municípios são precursores no que tange a promulgação de legislação sobre o tema, são eles: Tocantins (Lei n. 3.385/18), Santa Catarina (Lei n. 17.097/17), Rio Branco (Lei n. 2.324/19), Paraná (Lei n. 20.127/20), Sobral (Lei n. 1.550/16), Pernambuco (Lei n. 16.499/18), João Pessoa (Lei n. 13.448/17), Minas Gerais (Lei n. 23.175/18), Mato Grosso do Sul (Lei n. 5.217/18), Rondônia (Lei 4.173/217), Goiás (Lei n. 19.790/17), Amazonas (Lei n. 4.848/19), leis em sua maioria perfazendo um lapso temporal entre 2016 e 2020, consequentemente recentes em nosso ordenamento jurídico.
Apesar das iniciativas louváveis, ainda que tardias, inúmeras mortes e abusos poderiam ter sido evitadas, como supramencionado pelo estudo da Fundação Perseu Abramo e Sesc, estima-se que a cada quatro mulheres, uma já foi vítima de atos de violência obstétrica na vida.
É diante desse contexto de uma normatização da violência obstétrica recente que o Brasil necessitava de alguma forma de resguardar, cuidar, proteger e alertar essas mulheres, a partir agora esqueçamos os dispositivos legais, ou seja, antes de 2016, ano que tivemos a primeira Lei especifica sobre Violência Obstétrica no Brasil.
Assim, é de extrema relevância ao trabalho e organização da sociedade civil, tal qual a Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa), que desde 1993 exerce importante papel na humanização do parto, visando diminuir as intervenções desnecessárias e promover o cuidado ao processo completo da gestação, dando ênfase e protagonismo à mulher e sua qualidade de vida, bem-estar e bem nascer. Inclusive, a ReHuNa foi pioneira em difundir as Recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a Atenção a Partos e Nascimentos, no Brasil.
Destaca-se seu documento de fundação, intitulado “Carta de Campinas”, publicado em 17 de outubro 1993, representando a indignação acerca dos descasos sofridos no período gestacional.
Posteriormente nos anos 2000, um segundo documento foi publicado, intitulado “Carta de Fortaleza”, em busca de novos objetivos na luta dos coletivos femininos e onde busca-se assistência médica humanizada para a mulher-mãe, em âmbito internacional, elencando medidas a serem adotadas. Vejamos um trecho:
“Estas medidas tão simples e possíveis de serem implementadas nos serviços de saúde de nosso país não podem mais esperar para se tornar realidade. Os resultados perinatais e as taxas de morbimortalidade materna resultantes da assistência prestada no Brasil, não nos permitem mais conviver com um modelo de assistência que tem sido responsável pelas maiores taxas de parto operatório do mundo e por mortes desnecessárias de mães e bebês. Nós da ReHuNa, presentes nesta Conferência Internacional para Humanização do Parto e Nascimento queremos já, o quanto antes, que as mulheres tenham a possibilidade de parir e nascer com dignidade e afeto, sendo acolhidas por pessoas que percebam o parto e nascimento como um momento único, como uma expressão de amor.” (grifo nosso)
Além disso, um projeto de autoria das pesquisadoras Ana Carloina Franzon, Bianca Zorzam, Heloísa de Oliveira Salgado, doutorandas pela FSP-USP, e Ligia Moreiras Sena, orientada pela professora Carmen na UFSC, com a parceria da blogueira Kalu Brum e do videomaker Armando Rapchan, tornou-se o videodocumentário “Violência Obstétrica – A voz das Brasileiras” e teve grande repercussão, atingindo inúmeros telespectadores, o documentário traz depoimentos de 24 (vinte e quatro) mulheres brasileiras relatando suas experiências durante a gestação e demonstrando categoricamente serem vítimas de violência obstétrica.
A estreia do documentário, exibido online, deu no dia 25 de novembro de 2012, nesta mesma data, é simbolizado o “Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher” designado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, associar essas datas afim de criar um manifesto foi algo proposital pelas produtoras. Alguns dos relatos grotescos permite dar visibilidade a essas mulheres que passam anos caladas, tendo que conviver sozinhas com suas dores:
“A episiotomia (Intervenção cirúrgica que consiste num corte na região do períneo – entre a vagina e o ânus – para ampliar o canal e facilitar o parto, geralmente efetuada em casos de partos instrumentalizados) me causou durante uns bons meses desconforto físico, ela inflamou, infeccionou, e desconforto psicológico, eu me sentia estranha, eu não gostava que meu marido encostasse naquela região…”;
“Me senti violada, violentada, quando eu leio algum relato de violência sexual, como a vítima se sente depois, eu consigo traçar um paralelo…”;
“Eu dizia ‘Pra que bisturi? Eu não quero episiotomia. Eu já sei que isso não é necessário. Eu sei que não precisa, é uma escolha’. E ele, ‘não, não podemos discutir isso agora’, e já foi fazendo a incisão na minha vagina. E eu não sabia se eu chorava, se eu respirava… eu não sabia o que eu fazia…”
“Ele (o médico) me convenceu com essa frase: ‘o seu bebê não quer morrer. Se você quiser ir pra casa, assumir essa responsabilidade, pode ir, pode pensar, mas eu tô aqui te falando como seu médico, eu preciso que você confie em mim’, Eu aceitei a cesárea, né?
“’Mas mulher é safada mesmo, né? Sofre e não dá um ano e já tá aqui de novo’. ”
Recentemente, em julho de 2019 o Conselho Federal de Medicina publicou no Diário Oficial da União, a Resolução nº 2.232, tendo como escopo estabelecer normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente, ou seja, que a paciente possa ter seu direito de escolha e recusar práticas sugeridas pelo médico, salvo nos casos específicos previstos na própria Resolução.
O assunto gerou bastante divergência, de um lado manifestantes prol feminismo perceberam que a Resolução cria um laço de tutela do corpo da mulher com a medicina, bastando o médico alegar suposta preocupação com o feto que o poder de decisão da mãe é posto em segundo plano. O Ministério da Saúde além dar anuência ao que corrobora o dispositivo supramencionado, compactua com o posicionamento do Conselho Federal de Medicina ao descordar da utilização do termo “Violência Obstétrica”. Ademais, o Conselho emitiu um parecer (Processo-consulta CFM n. 22/2018 – Parecer CFM n. 32/2018), traçando severas críticas ao termo, reforçando que é um ataque direto à médicos obstetras e ginecologistas, inclusive sugerindo que o termo dotado teria um viés totalmente ideológico e político:
“7 – O CFM reconhece que a proliferação de leis que tratam do tema “violência obstétrica” embute posições político-ideológicas, e na prática não garantem nem oportunizam uma assistência integral, em todos os níveis de atenção à gestante e ao nascituro.
8 – Por fim, o CFM considera que o termo “violência obstétrica”, além de ser pejorativo, traz em seu bojo riscos permanentes de conflito entre pacientes e médicos nos serviços de saúde e, para efeito de pacificação e justiça, avalia que tal termo seja abolido, e que as deficiências na assistência ao binômio materno-fetal tenham outra abordagem e conceituação.
9 – Na verdade, a expressão “violência obstétrica” se posiciona como uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia, contra o conhecimento científico e, por conseguinte, contra a mulher na sociedade, a qual necessita de segurança e qualidade de assistência médica.” (grifo nosso).
Diante do desprezo das autoridades (Conselho Federal de Médica e Ministério da Saúde) e dos descumprimentos de recomendações internacionais, manifestações contrárias surgiram em muitos movimentos ativistas e causaram revolta, sobretudo na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF) e ainda perante o Ministério Público Federal (MPF), que expediu Recomendação expressa ao Ministério da Saúde:
“RECOMENDA o Ministério Público Federal ao Ministério da Saúde, por meio de sua Secretaria de Atenção à Saúde ou quaisquer outras Secretarias que tratem do atendimento ao parto no país, que:
I – Esclareça por meio de nota que o termo “violência obstétrica” é expressão já consagrada em documentos científicos, legais e usualmente empregada pela sociedade civil, sendo o uso da expressão livremente facultado independentemente de eventual preferência do Ministério da Saúde em utilizar expressões alternativas em suas ações específicas;
II –Que se abstenha de empregar quaisquer ações voltadas especificamente à abolição do uso da expressão “violência obstétrica”, empregando, ao invés, ações voltadas a coibir as práticas agressivas, maus tratos e desrespeitou durante o parto, independentemente da intenção dos profissionais em causar danos;
III –Adote as ações positivas recomendadas pela “Declaração de prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, publicada em 2014 (documento remetido em anexo), que reconhece a ocorrência de violência física, verbal e maus tratos durante o parto, independentemente da intencionalidade do profissional em causar dano.”. (grifo nosso).
A Organização não governamental, “Parto do Princípio”, é uma rede de mulheres usuárias do sistema de saúde brasileiro tendo um papel relevante e atuante na defesa e promoção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, em especial no que tange à maternidade consciente. A Rede é bastante ativa nos movimentos sociais além de favorecer demandas e realizar denúncias diante de qualquer ataque ou supressão de direitos da mulher, inclusive possuem um arcabouço de material informativo referente a saúde sexual e reprodutiva da mulher.
No ano de 2012,a rede Parto do Princípio, elaborou para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher que tinha como finalidade investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público em criar mecanismos de proteção, um Dossiê intitulado “Parirás com dor”, o documento contém uma reunião de informações sobre a Violência Obstétrica praticada nas instituições brasileiras e salienta que determinados comportamentos, protocolos e intervenções invasivas e sem consentimento encarados como naturais pelos agentes de saúde, causam traumas, sentimento de impotência e silêncio, sendo exigido pela Rede que sejam implantadas políticas públicas efetivas ao combate a Violência Obstétrica e a prestação assistencial de qualidade.
“Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?” “Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo.”
“Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender.”
“Na hora de fazer, você gostou, né?”
“Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha.
Essas frases são repetidamente relatadas no Dossiê por mulheres que deram à luz em várias cidades do Brasil e resumem um pouco da dor e da humilhação que sofreram na assistência ao parto. Outros relatos frequentemente incluem: comentários agressivos, xingamentos, ameaças, discriminação racial e socioeconômica, exames de toque abusivos, agressão física e tortura psicológica.
Submeter uma mulher a procedimentos desnecessários, dolorosos, com exposição a mais riscos e complicações, com a única e exclusiva finalidade de antecipar o exercício da prática desse procedimento em detrimento do aprendizado do respeito à integridade física das pacientes, bem como seu direito inviolável à intimidade é considerado, no contexto dos direitos reprodutivos, violência obstétrica de caráter institucional, físico e, não raro, sexual. ”
Em junho de 2013, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito publicou relatório final ao dossiê da ONG, reconhecendo que o Brasil tem um número expressivo de vítimas e que a violência se encontra camuflada ou até naturalizada.
“Os procedimentos e comportamentos descritos no Dossiê e por acadêmicas e profissionais mencionadas no referido documento demonstram a gravidade das violências que as mulheres gestantes são submetidas cotidianamente nos serviços de saúde. Esta situação requer medidas mais eficazes dos poderes públicos, tanto no âmbito da saúde quanto do direito, particularmente do Ministério Público, no âmbito da União e dos estados.
O Dossiê sugere, dentre outras medidas:
As ações que o Ministério da Saúde vem desenvolvendo não têm sido suficientes para mudar esta realidade. Por isso, a CPMI recomenda ao Ministério da Saúde que intensifique suas ações junto aos estados para prevenir e punir a violência obstétrica e desenvolva campanhas para que as mulheres possam conhecer seus direitos e não aceitarem procedimentos que firam o direito a um procedimento médico adequado e não invasivo.
No que se refere à indagação sobre normatização para acabar com a violência obstétrica, informou que é um problema sério, e que no estado a Secretaria está lançando a rede materno-infantil, que se chama Bem Nascer. A lógica da rede é da melhoria da infraestrutura das maternidades e qualificação para atendimento desde risco habitual até alto risco, do norte ao sul do estado. A rede irá começar pela região metropolitana e norte, com investimento na pré-parto, mudanças das camas, dos equipamentos, para a humanização do parto.”
Mediante o exposto, resta incontestável os avanços promovidos pela luta da sociedade civil organizada, dando visibilidade e exigindo do Poder Público respostas, além de muitos outros feitos em âmbito internacional. Hodiernamente, no dia 19 de fevereiro de 2020, o presidente da Câmara dos Deputados criou a Comissão Especial para avaliar o aumento de denúncias de Violência Obstétrica e alta taxa de mortalidade materna no Brasil, composta por 34 (trinta e quatro) titulares e suplentes, após anos de mudez e omissão estatal.
É imperioso considerar que o progresso normativo e os avanços da legislação brasileira visando a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher são visíveis e reconhecidos a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, reconhecida como constituição cidadã por dar voz aos anseios da sociedade e proteção aos interesses do povo brasileiro.
Já em seu preâmbulo o Constituinte consagra o “bem-estar”, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, assegurando igualdade entre todos perante a lei.
Além disso, no que tange a assistência à saúde, a CF/88 prevê explicitamente prestação plena e integral por parte do Poder Público à população, independentemente de classe social, devendo o Estado coibir qualquer forma de violência contra a mulher, ainda assegurando que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, sendo assim, por interpretação analógica, a Carta Magna resguarda o dever de combater e punir a Violência Obstétrica, senão vejamos:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”
Destarte, os artigos acima elencados são basilares para a proteção à saúde e a dignidade humana, demonstrando que políticas públicas devem ser criadas e destinadas à saúde das mulheres a fim de gerar uma perspectiva de integralidade e de problematização acerca das desigualdades, violências e omissões relacionadas às mulheres.
Muitas iniciativas de políticas públicas foram sendo adotadas pelo Estado brasileiro ao longo dos anos, uma delas merece destaque, instituída pelo Ministério da Saúde que ganhou o nome de Rede Cegonha no SUS, através da Portaria n. 1.459/11, seu papel fundamental na sociedade é movimentar ações em atenção à saúde materna e infantil, alterar a cultura do nascer do brasileiro instituindo práticas de humanização durante o parto e também o nascimento.
Por sua vez, a Lei n. 11.108/2005 é um é dos maiores triunfos da conquista dos movimentos sociais feministas que lutam pelos direitos reprodutivos e ao combate à Violência Obstétrica. A lei prevê o direito da parturiente à presença de um acompanhante, dessa forma, impõe aos hospitais que autorizem a entrada do acompanhante quando a gestante requerer no momento do trabalho de parto, parto e pós-parto imediato em todas as unidades do Sistema Público de Saúde e particulares.
A classificação de quem se enquadra como acompanhante é subjetiva e fica a critério exclusivo da parturiente, assim sendo, a lei não prevê apenas que acompanhante seja propriamente dito o pai da criança, pode ser qualquer pessoa independente de parentesco com a gestante, basta que seja pessoa escolhida por ela.
Salienta-se que apesar da lei ser medianamente antiga em nosso ordenamento jurídico, muitas mulheres são impedidas de solicitar acompanhante e desconhecem a norma que dá direito a elas, por uma falta, perceptivelmente, proposital do Poder Público e hospitais privados de visibilidade e divulgação.
É imprescindível que a lei torne-se eficaz na sociedade pois atos praticados por agentes de saúde que sejam opostos ao exigido resta caraterizado como Violência Obstétrica, quando a gestante é impedida de ter ao seu lado um acompanhante da escolha dela, temos um direito violado, é um momento de total vulnerabilidade e ter ao seu lado uma pessoa de sua confiança faz com que a parturiente sinta segurança e consiga ter forças para ocupar seu papel de protagonista, ademais ele será o suporte da mãe para o que seja necessário estará com ela todo o tempo.
Outra lei, que ganhou destaque após ser sancionada pelo Presidente da República em 2007 é a Lei n. 11.634/2007, tendo como papel fundamental, garantir a parturiente que saiba desde o início da gestação em qual maternidade estará vinculada, logo que inscreve-se no programa de pré-natal é de reponsabilidade da Unidade Básica de Saúde informa-la, portanto, põe-se fim na incerteza vivida por muitas grávidas que tinham que esperar até as últimas semanas de gestação para que fosse confirmada a maternidade que deveria prestar assistência necessária de acordo com a situação da paciente, com o advindo da lei torna-se obrigatório que de pronto seja do conhecimento da gestante a qual maternidade está vinculada.
O Estado do Amazonas encontra-se entre as Unidades da Federação que possuem legislação especifica ao combate da Violência Obstétrica. Apesar do progresso normativo tenro, foi necessária uma relevante movimentação da sociedade civil para a obtenção desses meios de proteção.
Exatamente no ano de 2014, o Ministério Público Federal do Estado do Amazonas instaurou procedimento para apurar inúmeras denúncias de Violência Obstétrica no Estado, através de inquéritos civis, um dos casos tomou conhecimento internacional, o caso de Gabriela Repolho no ano de 2012, onde restou constatado pelo MPF graves violações de direitos humanos.
Após 01 ano da visibilidade das situações desumanas ocorridas nas maternidades amazonenses, o Ministério Público Federal promoveu a primeira Audiência Pública para debater o assunto, contando com a presença de 140 pessoas dentre elas: Poder Público, Autarquias e Sociedade Civil, diante dos relatos das vítimas, como da própria Gabriela, restou claro a falta de humanização e empatia dos agentes de saúde com as pacientes.
Dessa forma, o Ministério Público Federal, vislumbrando inúmeras falhas identificadas praticadas pelos agentes de saúde, expediu recomendação à Secretaria Municipal de Saúde (SEMAS), à Secretaria de Estado de Saúde (SUSAM), ao Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CRM-AM), ao Conselho Regional de Enfermagem do Amazonas (COREN-AM), à Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e aos hospitais privados de Manaus, o documento teve como objetivo coibir atos que atentem aos direitos reprodutivos da mulher e garantir que as sejam leis supramencionadas sejam aplicadas e jamais cerceadas, além de promover campanhas de conscientização e publicidade. A partir desse momento é perceptível certa resistência dos agentes de saúde em seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), deficiências intrínsecas a própria formação do profissional de saúde.
Em novembro de 2016, foi realizada a segunda audiência pública ao combate à Violência Obstétrica, após os debates, formou-se a Rede de Enfretamento à Violência Obstétrica no Amazonas, além da criação do Comitê de Combate à Violência Obstétrica no Amazonas que resultou no Termo de Cooperação para o Enfretamento à Violência Obstétrica, assinado entre os seguintes membros: Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado do Amazonas, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Amazonas, Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas, Secretaria Municipal de Saúde de Manaus, Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Amazonas, Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania, Secretaria de Segurança Pública, Conselho Regional de Enfermagem, Universidade Federal do Amazonas e Universidade do Estado do Amazonas, posteriormente aderido pelas Comissões de Direito Médico e da Saúde e da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional Amazonas e Humaniza Coletivo Feminista, associação ativista na causa no Amazonas, o documento visa formar uma cooperação entre os associados para juntos implementarem ações de conscientização ao combate à Violência Obstétrica durante pré-parto, parto e pós-parto no Amazonas, a Rede também comprometeu-se em realizar acompanhamento nas maternidades, ademais houve a capacitação de pessoas para atenderem as ligações do número 181, que é um canal exclusivo de denúncias de violências contra a mulher e que a partir de então também recebam denúncias de violência obstétrica e façam os encaminhamentos adequados.
Posteriormente foi celebrado entre o Ministério Público Federal do Amazonas e a Universidade Federal do Amazonas acordo de cooperação técnica objetivando implementar ações conjuntas, desde a capacitação e conscientização dos acadêmicos e docentes da Universidade, disponibilização de materiais acerca do combate à Violência Obstétrica até o desenvolvimento de aplicativo para o acompanhamento de denúncias referente a violência juntamente com a Secretaria de Estado de Saúde, outrossim, adicionou na grade curricular, a disciplina optativa “Questão de Gênero na Saúde da Mulher”.
Além disso, em novembro de 2018, os Ministérios Público Federal e Estadual do Amazonas ingressaram com uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Estado do Amazonas e a União com a finalidade de resguardar medidas de superação à Violência Obstétrica no Amazonas, tanto em hospitais públicos quando privados, garantindo o direito das mulheres ao tratamento humanizado previsto na legislação brasileira e canais efetivos para denúncias formalizados na SUSAM, após 2 tentativas de conciliação na 3ª Vara Federal, a Organização Não Governamental, intitulada “Humaniza Coletivo Feminista” solicitou ingresso no autos do processo como “amicuscurae” (amiga da corte), momento em que a juíza competente deferiu como legítimo o ingresso, diante da representatividade expressiva que a ONG possui no Estado.
Após árdua luta dos movimentos sociais feministas, em especial a ONG “Humaniza Coletivo Feminista” e do Comitê de Combate à Violência Obstétrica no Amazonas, no dia 3 de julho de 2019 entrou em vigor a Lei Estadual n. 4.848/2019 que prevê a implantação de medidas de proteção à Violência Obstétrica nas redes pública e particular de saúde do Estado. Além dispõe de um rol taxativo de condutas que caracterizam a violência em seu art. 2º:
“Art. 2.º Consideram-se condutas ofensivas, abusivas e violentas:
I – tratar a mulher de forma agressiva, não empática, com a utilização de termos que ironizem os processos naturais do ciclo gravídico-puerperal ou que desvalorizem sua subjetividade, dando-lhe nomes infantilizados ou diminutivos, tratando-a como incapaz;
II – fazer comentários constrangedores à mulher referentes a questões de cor, etnia, idade, escolaridade, religião, cultura, crenças, condição socioeconômica, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual, identidade de gênero e paridade;
III – ironizar ou censurar a mulher por suas expressões emocionais ou comportamentos que externalizem sua dor física e psicológica ou ainda suas necessidades humanas básicas, tais como gritar, chorar, amedrontar-se, sentir vergonha ou dúvidas; ou ainda por qualquer característica ou ato físico tais como: obesidade, pelos, estrias, evacuação, dentre outros;
IV – preterir ou ignorar queixas e solicitações feitas pela mulher atendida durante o ciclo gravídico-puerperal, referentes ao cuidado e à manutenção de suas necessidades humanas básicas;
V – induzir a mulher a aceitar uma cirurgia cesariana sem que seja necessária, apresentando riscos imaginários, hipotéticos e não comprovados, e ocultando os devidos esclarecimentos quanto aos riscos à vida e à saúde da mulher e do bebê, inerentes ao procedimento cirúrgico
VI – recusar, impedir ou retardar o atendimento de saúde oportuno e eficaz à mulher, em qualquer fase do ciclo gravídico-puerperal, inclusive em abortamento, desconsiderando a necessidade de urgência da assistência à mulher nesses casos;
VII – promover a transferência da internação da mulher sem a análise e a confirmação prévia de haver vaga e garantia de atendimento no estabelecimento destino, bem como tempo suficiente para que esta chegue ao local;
VIII – impedir a mulher de se comunicar com pessoas externas, privando-a da liberdade de telefonar e caminhar, conversar ou receber visitas quando suas condições clínicas permitirem;
IX – deixar de aplicar analgesia ou anestesia de parto para alívio da dor, quando a parturiente assim a requerer e as condições clínicas permitirem;
X – realizar a episiotomia ou episiorrafia quando esta não for prévia e inequivocadamente autorizada pela mulher, condicionada a validade do consentimento à prévia informação a respeito do procedimento, seus riscos e consequências fisiológicas, temporárias ou permanentes; (…)”
É de suma importância destacar que a lei não tem um viés de criminalizar a conduta médico ou da equipe médica, mas sim trazer à tona condutas desumanas de Violência Obstétrica e buscar através da adoção das medidas judiciais cabíveis indenizações as vítimas que viviam no desconhecimento dos seus direitos. Além disso, a partir de agora o Estado do Amazonas se amolda as normais internacionais sobretudo na descrição de violência obstétrica:
“Art. 1.º Ficam instituídas medidas de proteção contra a violência obstétrica no Estado do Amazonas e de divulgação da Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal.
Parágrafo único. Para os fins da presente Lei, entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres durante o pré-natal, parto, puerpério ou em abortamento, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada por membros que pertençam à equipe de saúde, ou não, sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia.” (grifo nosso).
De fato, em comparação com outros Estados e mesmo no âmbito federal, o Amazonas encontra-se em situação privilegiada no âmbito normativo, havendo ainda, contudo, carência de estudos que atestem a efetivação da lei no âmbito social e dados concretos sobre a redução do número de casos que se enquadrem no conceito de violência obstétrica.
Conclusão
Por todas as considerações feitas no presente trabalho é visível a histórica luta da mulher por seus direitos, travando uma contínua batalha contra tudo e contra todos, na conquista de sua identidade e autonomia, no seu reconhecimento enquanto sujeito de direitos e detentora de suas próprias decisões, sobretudo sobre seu próprio corpo.
O silêncio fez parte por muitos anos da vida de mulheres-mães em todo o mundo, a dor e o sofrimento, tidos como meros dissabores, se tornaram a única lembrança de um momento tão marcante e único na vida de uma mulher como o parto de seus rebentos.
A prática de comportamentos, protocolos e intervenções invasivas, desprovidos de consentimento, encarados como naturais pela equipe médica, expressam o quanto precisamos, ainda, empoderar as mulheres para que se reconheçam como sujeito de direitos.
O parto deve ser reconhecido como momento de celebração da vida e não palco de perpetuação da violência patriarcal, o corpo da mulher está vulnerável e sensível e é nesse momento que precisamos de uma equipe médica preparada para que tudo ocorra em fluxo perfeito, sem dor ou sofrimento, respeitando a autonomia da mulher e sua dignidade da pessoa humana.
Referências
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