Resumo: O presente trabalho analisa a responsabilidade internacional do Estado por violação de Direitos Humanos, especificamente, aquela decorrente da incompatibilidade entre a legislação interna e a Convenção de Belém do Pará que atribui proteção singular às mulheres. Para tanto, enfoca a responsabilidade internacional do Poder Legislativo por omissão legislativa, da qual o Estado Brasileiro foi condenado em razão de não cumprir com o dever de regulamentar à referida Convenção no âmbito interno, reconhecido no Caso Maria da Penha vs. Brasil, da qual resultou a elaboração da Lei Maria da Penha.
Palavras-chave: responsabilidade internacional do Estado; Direitos humanos; omissão legislativa; Lei Maria da Penha.
Resumé: Le present travail analise la responsabilité internationale de l’État par violation des droits de l’homme, précisement laquelle résultante de l’incompatibilité entre la législation nationale et la Convention de Belém do Pará. À cause de sa omission législative, l’État brésilien a été condamné par ne pas tâcher le devoir de réglementer cette convention à l’sphère interne. Le résultat du cas Maria da Penha vs Brasil a été l’élaboration de la Loi Maria da Penha.
Mots-clés: la responsabilité internationale de l’Ètat; les droits de l’homme; l’omission législative; la Loi Maria da Penha.
Sumário: 1. Introdução; 2. A internacionalização dos Direitos Humanos; 3. A Proteção Internacional da Mulher e o Processo de Especificação dos Sujeitos de Direito; 4. A Responsabilidade Internacional do Estado por Omissão Legislativa; 5. A Responsabilidade Internacional do Estado Brasileiro e o Caso Maria da Penha vs. Brasil; 6. Considerações finais; 7. Referências
“Enquanto não for sanada, a discriminação não permitirá a igualdade entre os gêneros (igualdade essa que não exclui as particularidades e as necessidades decorrentes das diferenças biológicas entre os sexos). A igualdade formal perante a lei somente se realizará de forma plena quando, além de eliminadas todas as formas de discriminação, forem adotadas pelo Estado ações afirmativas”[1]
1. INTRODUÇÃO
A internacionalização dos direitos humanos, iniciada no pós guerra, deu impulso a um novo entendimento do papel do indivíduo e do Estado na esfera internacional. Desde então aquele passou a ser aceito como sujeito de direito internacional e esse passou a aceitar o monitoramento da comunidade internacional das relações que mantêm com aquele.
Assim, a partir do momento da adesão aos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos nasce para os Estados a obrigação de compatibilizar a sua legislação interna aos termos estipulados nas Convenções Internacionais, de modo a permitir a efetiva proteção e garantia em consonância com os compromissos internacionais de proteção dos Direitos Humanos assumido pelos Estados, sob pena de serem condenados por violação de Direitos Humanos.
A falta de convergência entre os Tratados Internacionais e a legislação doméstica gera a responsabilidade internacional do Estado. Por conseguinte, quando existe incompatibilidade da legislação doméstica em relação aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, surge para as instâncias internacionais a possibilidade de questionamento por meio do controle de convencionalidade, e em caso de procedência emerge a prerrogativa de determinar a adequação das normas aos parâmetros internacionais.
No Caso Maria da Penha vs. Brasil, a ausência de regulamentação interna da Convenção de Belém do Pará levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a recomendar ao Estado Brasileiro que promulgasse uma Lei de proteção específica às mulheres em consonância com a referida Convenção. Destarte, uma vez reconhecida a responsabilidade internacional por violação de Direitos Humanos, foi promulgada a Lei Maria da Penha, que veio a corrigir a omissão legislativa do Estado Brasileiro frente à Convenção de Belém do Pará.
Com efeito, baseada nas considerações apontadas, efetua-se a leitura da atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos na promoção dos Direitos Humanos, especificamente, no Caso Maria da Penha vs. Brasil, que reconhece a responsabilidade internacional do Estado por omissão legislativa.
2. A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A análise do marco histórico do processo de internacionalização destaca a importância da elevação da proteção dos direitos humanos às instâncias internacionais e revela seu papel fundamental de complementar a jurisdição interna quando esta se mostra insuficiente.
Para melhor compreensão da função das instâncias internacionais, recorda-se, inicialmente, que, na segunda metade do século XVIII, os filósofos iluministas já traziam a noção de universalidade e igualdade entre os homens. Havia também a concepção jusnaturalista, na qual o único requisito para ser sujeito de direito era a qualidade de ser humano.[2] Com a positivação dos direitos em cada país, no século XIX, cada um com suas Constituições, os direitos do homem tornaram-se locais, ficando limitados aos Estados.[3]
Durante a Segunda Guerra, o nazismo inseriu a idéia de que para ser sujeito de direito, devia-se pertencer à determinada raça, o que significou uma “ruptura com os direitos humanos”.[4] Nesse período os indivíduos não pertencentes à raça ariana foram exterminados nos campos de concentração, pela justificativa única de pertencerem a outras etnias. A constatação de que a deficiência do ordenamento interno dos Estados, permitiu a prática dos extermínios em massa, sem que os indivíduos pudessem socorrer-se de uma ordem jurídica que impedisse as barbáries, levou a sociedade internacional a entender que era necessário estruturar uma ordem jurídica complementar à ordem jurídica interna, quando esta mostra-se incapaz de proteger os indivíduos vítimas de violação de direitos humanos.
À luz desse entendimento, sobre a necessidade de uma ordem jurídica além dos Estados, teve início o processo de fortalecimento da internacionalização dos direitos humanos. Assim, após a guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, introduziu os conceitos de indivisibilidade e universalidade. Indivisibilidade porque “os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada” e universalidade porque introduz “a crença de que a condição de pessoa é requisito único para a dignidade e titularidade de direitos”.[5] Essa declaração veio como um marco da reconstrução dos direitos humanos. [6]
Segundo Piovesan[7], a internacionalização traz duas conseqüências. Primeiramente, há uma relativização da soberania dos Estados, visto que para a proteção dos direitos humanos, intervenções podem ser necessárias. A segunda conseqüência baseia-se no fato de o indivíduo passar a ter seus direitos protegidos na esfera internacional na condição de sujeito de direito. Esse novo status do indivíduo garante que ele possa defender-se do próprio Estado quando este violar seus direitos. A defesa dos direitos humanos é importante forma de limitação do Estado, por ser este violador de direitos. Entretanto, não se pode esquecer seu papel de protetor essencial, que tem por obrigação não somente fiscalizar os agentes estatais, mas também os privados.
No âmbito do Continente Americano formou-se o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Assim, em 1969 foi assinada em San José na Costa Rica a Convenção Americana de Direitos Humanos, entrando em vigor somente em 1978. Além de enunciar direitos civis e políticos, a Convenção estabeleceu um aparato de monitoramento e implementação dos mesmos. De acordo com Buergenthal[8] “os Estados-partes da Convenção Americana têm a obrigação não apenas de ‘respeitar’ estes direitos garantidos na Convenção, mas também de ‘assegurar’ o livre e pleno exercício destes direitos”.
Os dois órgãos estabelecidos pela Convenção para assegurar sua implementação são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ambos são compostos por sete membros, eleitos a título individual.
Sobre a competência da Comissão Piovesan[9] postula que “alcança todos os Estados-partes da Convenção Americana, em relação aos direitos humanos nela consagrados”, além disso, igualmente, “alcança ainda todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, em relação aos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948”.
À Comissão cabe preparar estudos e relatórios que se mostrem necessários, recomendando aos governos dos Estados-partes a adoção de medidas adequadas à proteção desses direitos, podendo a eles requisitar informações relativas à efetividade das medidas tomadas. [10] A admissibilidade das petições que contenham denúncias de violação de direitos, encaminhadas por indivíduo ou grupo de indivíduos, ou ainda entidade não-governamental, é examinada também pela Comissão.
A petição deve conter determinados requisitos para ser aceita, como a inexistência de litispendência internacional e o prévio esgotamento dos recursos internos, salvo as seguintes exceções: injustificada demora processual ou legislação doméstica insuficiente para prover o devido processo legal.
Se aceita a petição, as partes são ouvidas e a Comissão busca solução amistosa. Caso a solução não seja alcançada, o Estado-parte tem três meses para cumprir as recomendações de relatório emitido pela Comissão. Não havendo acordo, a Comissão ou o Estado-parte, durante o período estipulado, pode submeter o caso à Corte Interamericana. O indivíduo não tem poder de submeter casos à Corte.
Quando um caso é submetido à Corte Interamericana, ela exerce sua função contenciosa. Esta função é limitada aos Estados-partes da Convenção que a reconheçam expressamente. Observa Piovesan[11] que “a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento”.
A Corte tem também função consultiva, ou seja, dá pareceres relativos à interpretação da Convenção ou qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos. Esse parecer pode ser solicitado por qualquer membro da Organização dos Estados Americanos.
Assim, verifica-se que a partir desse período histórico a questão da proteção dos direitos humanos passou a ser de interesse de toda a Sociedade Internacional, que constitui umas das grandes conquistas na proteção dos direitos humanos. A transcendência dos direitos humanos para a esfera internacional permitiu ao indivíduo adquirir a capacidade internacional e a soberania dos Estados sofreu uma relativização, da qual decorre uma importante mudança, que subordina os Estados a respeitar os parâmetros mínimos de proteção do ser humano estipulados nos Tratados Internacionais, sob pena de responsabilização internacional estatal pela violação de direitos humanos.
Com efeito, o Caso Maria da Penha vs. Brasil, traduz bem a insuficiência da ordem jurídica interna do Estado Brasileiro que se mostrou incapaz de investigar, de julgar e de sancionar o agressor. Em razão dessa falha dos instrumentos internos de salvaguarda, o Estado foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que atuou de modo complementar para sanar o déficit dos mecanismos internos.
3. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA MULHER E O PROCESSO DE ESPECÍFICA DOS SUJEITOS DE DIREITO
A passagem do homem genérico para o homem específico (especificação do sujeito de direito) deu-se com base em diversos critérios de diferenciação que revelam diferenças específicas, que não permitem igual tratamento ou igual proteção [12].
Assim, fez-se necessária a busca por meios especiais de proteção a grupos mais vulneráveis devido a circunstâncias tanto biológicas quanto culturais (como é o caso das mulheres) ou a indivíduos que, em decorrência de sua imaturidade física e mental, requerem proteção e cuidados especiais (como ocorre com as crianças). Passaram a ser também protegidos de forma específica os doentes mentais, os deficientes físicos e os anciãos, dentre outros. A admissão de sistemas especiais de proteção é relevante, pois contribui ao esclarecer, fortalecer e engrandecer o sistema protetor em seu conjunto[13].
O caminho para alcançar a universalização dos Direitos Humanos pressupõe a especificação dos sujeitos de direito. Nesse sentido, esclarece Faur[14], que o dinamismo dos direitos humanos possui uma característica particular pois, seus postulados não podem ser alterados para limitar os direitos dos indivíduos. Observa que, a modificação dos direitos humanos, teoricamente, é apenas permitida em caso de ampliação e esse alargamento desenvolve-se de três modos: a) para reconhecer mais direito às pessoas; b) para especificar aqueles direitos que se aplicar a situações particulares em razão da verificação de discriminação e c) para efetivar os direitos já reconhecidos. Por fim, lembra que esses propósitos elencados devem convergir, em termos finalísticos, para sedimentar o princípio da universalidade dos direitos, por meio do reconhecimento dos direitos e das garantias que fortalecem os propósitos da proteção dos direitos humanos.
Com a pretensão de buscar a realização de um tratamento especial às mulheres, em 1979, a Organização das Nações Unidas aprova a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e, em 1994, é aprovada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”). São esses os principais documentos existentes atualmente para a proteção internacional dos direitos humanos das mulheres.
Ratificada pelo Brasil em 1984, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e assegurar a igualdade [15]. Para a Convenção, discriminação contra a mulher é toda distinção, extinção ou restrição baseada no sexo que prive a mulher do exercício de seus direitos.
A Convenção prevê a adoção de políticas e legislações igualitárias, educação não estereotipada, além de uma sistemática de relatórios que são enviados pelos Estados-partes ao Comitê, descrevendo quais as medidas adotadas em âmbito interno para a proteção dos direitos das mulheres. Assim, tem-se um monitoramento e uma fiscalização do cumprimento do que foi acordado internacionalmente.
Outro documento de grande importância no que concerne à proteção internacional dos direitos das mulheres foi a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher (“Convenção de Belém o Pará”). Sua aprovação foi um grande avanço ao reconhecer a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, manifestado não somente na esfera pública, mas também na esfera privada.
A Convenção ainda afirma que a violência contra a mulher “é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens” e que sua eliminação é condição indispensável para o desenvolvimento individual e social da mulher e sua plena igualitária participação em todas as esferas da vida.
Os Estados participantes se comprometem a estabelecer os mecanismos judiciais, administrativos e as disposições legislativas necessários para a efetivação dos direitos compreendidos pela Convenção. Além disso, assim como ocorre na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, os Estados-partes devem enviar informes à Comissão Interamericana de Mulheres relatando as medidas adotadas para prevenir e erradicar a violência contra a mulher e as dificuldades encontradas ao implementá-las.
Destarte, a proteção peculiar reivindicada às mulheres tem o seu fundamento na necessidade de estabelecer parâmetros diferenciados de proteção do gênero de modo a permitir a erradicação da violência contra as mulheres que constitui um grave comprometimento à concretização dos direitos humanos.
4. A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO POR OMISSÃO LEGISLATIVA
O Pacto de San José da Costa Rica estabelece no seu preâmbulo que a proteção do sistema é “coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos”. Há na doutrina dos tratados internacionais uma forte discussão quanto à validade jurídica dos preâmbulos. No entanto, seguindo a intenção manifestada pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Tratados devem ser interpretados em seu conjunto[16] sendo o preâmbulo parte importante para compreender as finalidades do mesmo para que assim, seja aplicado de maneira consoante com seus propósitos.
É importante mencionar que, para acionar um Estado na esfera internacional é fundamental estabelecer sua responsabilidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte) vem afirmando que a responsabilidade internacional dos Estados surge no momento da violação das obrigações de respeitar e garantir as normas de proteção, conforme estabelecido nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos. [17] Contudo, sua implementação só pode ocorrer se o Estado não fornecer recursos internos eficazes para punir a violação ou a partir do esgotamento prévio[18] desses. Assim, na medida em que esses forem fornecidos, sendo os agentes perpetradores da violação punidos e dada a reparação adequada à vítima, extingue-se a responsabilidade do Estado.
Assim sendo, a responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos decorre das circunstâncias em que o Estado deixa de cumprir os Tratados Internacionais de proteção dos Direitos Humanos. Essa responsabilidade pode advir tanto da atuação do poder Executivo, Judiciário ou Legislativo, que pode ter como fato originário tanto atos comissivos como omissivo dos respectivos Poderes.
No tocante à responsabilidade do Poder Legislativo, como assinala Ramos[19], “nada impede que uma lei aprovada pelo Parlamento local viole os direitos humanos”. Além disso, deve-se observar que “a compatibilidade entre as leis internas com a Constituição por si não pressupõe que esteja em conformidade com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos”. Nesse sentido, Ramos[20] assevera que “mesmo se as leis tiverem sido adotadas de acordo com a Constituição, e em um Estado democrático, isso não as exime do confronto com os dispositivos internacionais de proteção aos direitos humanos”.
A responsabilidade do Poder Legislativo, conforme esclarece Mazzuoli[21], pode decorrer da edição de leis contrárias aos conteúdos de Tratados Internacionais aprovados anteriormente, com o objetivo de burlar compromisso internacional. O legislativo também pode ser responsabilizado quando “deixa de aprovar determinada legislação necessária ao cumprimento de tratado anteriormente aprovado (por ele mesmo) e já em vigor internacional”.
A tônica da responsabilidade internacional do Legislativo é pontuada por Mazzuoli[22] ao inferir que:
“[¼] A atuação do Parlamento tem, portanto, um papel primordial de respeito para com as normas internacionais ratificadas pelo Estado, as quais prevalecem sobre a legislação ordinária interna e têm de ser respeitadas pelo Poder Legislativo, sem que isso signifique, em absoluta, o impedimento de sua atividade político-jurídica consistente na função de legislar. Nenhum Estado pode fugir ao cumprimento de suas obrigações internacionais, quase sempre contraídas as duras penas no plano internacional, sob pretexto de violação de seu Direito interno.”
Em decorrência da responsabilidade internacional do Poder Legislativo, o conteúdo das reparações também engloba a exigência de adoção de medidas de direito interno que pode significar a reforma, a abolição ou a derrogação de normas internas conflitantes com a Convenção, a abstenção de aplicar determinadas normas e modificação destas num tempo razoável, ou ainda, em contrapartida, a edição de normas em conformidade com os Tratados Internacionais, que sejam necessários ou convenientes, como por exemplo a tipificação penal de determinada conduta ilícita. Em síntese, esta modalidade de reparação envolve a adoção de medidas pertinentes para permitir a compatibilidade da legislação doméstica com as obrigações decorrentes da esfera internacional ou aos parâmetros internacionais respectivos à matéria sobre a qual versa a demanda. [23]
As citadas medidas encontram seu fundamento no princípio de Direito das Gentes, segundo o qual um Estado que celebra um tratado internacional tem a obrigação de introduzir no seu ordenamento jurídico interno as modificações pertinentes para permitir a execução das obrigações contraídas. Esse dever é previsto pela Convenção Americana, que determina que os Estados-partes têm o encargo de compatibilizar a sua normativa interna aos termos da referida Convenção. [24]
Em consonância com os esclarecimentos de Ramos[25], diante de um caso de violação de direitos humanos em razão de normas que afrontam os Tratados internacionais, “forma-se, então, o chamado ‘controle de convencionalidade’ de leis perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Assim sendo, “há o crivo direto de leis internas em face da normatividade internacional dos direitos humanos, na medida em que sua aplicação possa constituir violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos”.
Por conseguinte, de modo similar ao controle da constitucionalidade, as Cortes Internacionais detêm a competência para efetuar o controle de convencionalidade de modo a exigir dos Estados a compatibilização das normas internas aos termos das Convenções Internacionais, sob pena de gerar a responsabilidade internacional por violação de direitos humanos em face de edição de leis incompatíveis ou insuficientes em relação à normativa internacional ou a falta de regulamentação interna dessa normativa.
No último caso, ou seja, nos casos em que foi caracterizada a falta de regulamentação interna dos Tratados Internacionais, surge para as instâncias internacionais a prerrogativa de determinar aos Estados condenados a obrigação de editar as normas faltantes, em consonância com o disposto no art. 2 da Convenção Americana.
5. A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO BRASILEIRO E O CASO MARIA DA PENHA VS. BRASIL
O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos vem exercendo influência na ampliação dos direitos humanos na esfera interna de vários Estados signatários da Convenção, inclusive o Estado Brasileiro, e uns dos focos de influência relativos ao Brasil foi a promulgação da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, também conhecida como a Lei Maria da Penha, que veio a regulamentar a Convenção de Belém do Pará e assim cumprir com as obrigações internacionais do Estado Brasileiro em adotar normas destinadas a prevenir, a punir e a erradicar a violência contra a mulher.
Esta lei foi elaborada após, no caso Maria da Penha vs. Brasil, o Estado Brasileiro ter sido condenado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em síntese, o caso refere-se às violências domésticas sofridas pela vítima Maria da Penha Maia Fernandes, que foi agredida continuamente por seu cônjuge, sofreu duas tentativas de homicídio, e hoje devido à gravidade da violência está paraplégica. Este caso foi levado à Comissão Interamericana devido à morosidade da justiça nacional, que decorridos 15 anos ainda não teria dado uma resposta condizente com a gravidade do caso.[26]
A responsabilidade do Estado Brasileiro é elucidada pela Comissão[27] ao pontuar que a impunidade que tem gozado e ainda goza o agressor e ex-esposo da Senhora Fernandes é contrária à obrigação internacional voluntariamente adquirida pela parte do Estado ao ratificar a Convenção de Belém do Pará. A falta de julgamento e de condenação do responsável nestas circunstâncias constitui um ato de tolerância por parte do Estado da violência que Maria da Penha sofreu, e essa omissão dos tribunais de justiça brasileiros agrava as conseqüências diretas das agressões por seu ex-marido sofridas pela Senhora Maria da Penha Maia Fernandes. Enfatiza-se que essa tolerância pelos organismos do Estado não é exclusiva deste caso, senão uma pauta sistemática. É uma tolerância de todo o sistema, que não fazem senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantém e alimentam a violência contra a mulher.
Em notas conclusivas, a Comissão Interamericana manifestou que dado que esta violação contra Maria da Penha forma parte de um padrão generalizado de negligência e falta de efetividade do Estado em processar e condenar os agressores. Considera a Comissão que não só se viola a obrigação de processar e condenar, mas também de prevenir estas práticas degradantes. Essa ineficiência judicial generalizada e discriminatória proporciona um ambiente fértil que facilita a violência doméstica, em razão de não existir evidências socialmente perceptíveis da vontade e da efetividade do Estado como representante do Estado e como representante da sociedade, para sancionar esses casos.[28]
A denúncia feita no caso Maria da Penha perante a Comissão foi determinante para a promulgação de uma lei que protegesse especificamente as mulheres contra a violência doméstica e familiar. De modo que, verifica-se por intermédio da análise do fato originário da Lei de prevenção e punição de violência contra a mulher que o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem exercido uma importante influência na esfera interna de proteção dos direitos humanos ampliando os mecanismos de proteção dos direitos fundamentais nesse âmbito.
Como anteriormente salientado, deve-se observar que a responsabilidade internacional do Estado não se limita aos atos comissivos, mas também alcance fatos omissivos, como o descumprimento de regulamentar internamente os Tratados Internacionais, que possibilite a aplicação interna desses Tratados. Assim sendo, o Estado brasileiro foi condenado devido à omissão legislativa que gerou a violação do compromisso internacional que impõe a adequação da legislação interna aos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos.
Para Piovesan e Pimentel[29] o advento da Lei Maria da Penha revela-se como uma “conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres”. A promulgação dessa lei, portanto “rompeu-se o silêncio que acoberta 70% dos homicídios de mulheres no Brasil”.
Embora no plano internacional constata-se a existência de instrumentos de proteção conferidos à proteção do gênero, e ratificados pelo Estado Brasileiro, a ordem jurídica interna mostrou-se deficitária, quando da análise do Caso Maria da Penha, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pois o Estado não deu cumprimento aos compromissos internacionais de implementar as Convenções Internacionais em seu território
Portanto, o estudo do caso demonstra a atuação da instância internacional, na prerrogativa de reconhecer a responsabilidade internacional por violação de direitos humanos em razão da omissão legislativa que impedia a efetiva proteção e garantia judicial das mulheres vítimas de violação de Direitos Humanos, veio a suprir a deficiência da legislação interna brasileira na proteção da mulher, de modo a estabelecer mecanismos internos que possibilitem o acesso à justiça às mulheres vítimas de violência doméstica.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proteção especial da mulher não decorre de um pensamento feminista nem de uma idéia discriminatória em relação aos homens, mas sim da necessidade de se eliminar qualquer tipo de violência de gênero e da “necessidade de afirmar a proteção específica que requerem os direitos e liberdade das mulheres, afirmação que constitui uma peça indispensável para a construção integral do sistema de proteção dos direitos humanos e sua vigência eficaz”.[30]
Em convergência com a necessidade de ações afirmativas para alcançar a efetiva proteção do gênero, o reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro por omissão legislativa, permitiu a implementação de mecanismos internos[31] dirigidos, especificamente, para a proteção de milhares de mulheres vítimas de violência semelhante à sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes. Por conseguinte, verifica-se a atuação concreta das Instâncias Internacionais exercitando seu papel na promoção da proteção dos direitos humanos.
Assim, constata-se que a justiça internacional tem atribuição importante na efetivação dos Direitos Humanos em razão da função complementar à justiça doméstica, de modo a estender a garantia do acesso à justiça quando esta é negada no âmbito interno. Portanto, verifica-se que essa atuação vem corrigindo as injustiças cometidas pelos Estados que provocam a violação dos Direitos Humanos, que poderiam passar impunes se não fosse a atuação das Instâncias Internacionais.
Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina –PR
Acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Londrina –PR
Acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Londrina –PR
Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Londrina –PR
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