Preceituava o art.
594 do Código de Processo Penal, com a redação determinada pela Lei n. 5.941,
de 22 de novembro de 1973, que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à
prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes,
assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de
que se livre solto”. O recolhimento do réu à prisão era, portanto, condição
para a apelação, salvo quando fosse condenado por infração da qual se livrasse
solto, prestasse fiança, ou fosse primário e portador de bons antecedentes.
Fora desses casos, sua fuga caracterizaria fato impeditivo do recurso, o qual
seria, por conseguinte, declarado deserto, consoante prescrevia o art. 595 do
CPP.
Parte
da doutrina, contudo, considerava que, com a nova ordem constitucional, o art.
594 devia ser reinterpretado, não se admitindo mais a prisão processual antes
do trânsito em julgado da condenação sem que estivessem presentes os requisitos
da prisão cautelar (CPP, art. 312), o que foi seguido pela jurisprudência.
Assim, sem a demonstração do periculum in
mora, a prisão provisória, decretada apenas porque o agente é reincidente
ou portador de maus antecedentes, consistiria em mera antecipação da execução
da pena, e, por conseguinte, violaria o princípio constitucional do estado de
inocência (CF, art. 5º, LVII). Nesse sentido: Luiz Flávio Gomes, Direito de
apelar em liberdade, 2. ed., Revista dos
Tribunais., p. 53. E, ainda: STF, 2ª T., HC 89754/BA, rel. Min.
Celso de Mello, j. 13-2-2007, DJ, 27-4-2007, p. 106.
Grande discussão,
igualmente, girava em torno do condicionamento do exercício de direitos
constitucionais – ampla defesa e duplo grau de
jurisdição – ao cumprimento de cautela processual. Desse modo, a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal passou a conceber que o fato de o réu estar
foragido não poderia ter o condão de impedir o recebimento da apelação ou
torná-la deserta. Nessa esteira, manifestou-se a 1ª Turma da Suprema
Corte: “A garantia do devido processo legal engloba o direito ao duplo grau de
jurisdição, sobrepondo-se à exigência prevista no art. 594 do CPP. IV — O
acesso à instância recursal superior consubstancia direito que se encontra
incorporado ao sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais. V — Ainda
que não se empreste dignidade constitucional ao duplo grau de jurisdição,
trata-se de garantia prevista na Convenção Interamericana de Direito Humanos,
cuja ratificação pelo Brasil deu-se em 1992, data posterior à promulgação do
Código de Processo Penal. VI — A incorporação posterior ao ordenamento brasileiro de regra prevista em tratado internacional tem o
condão de modificar a legislação ordinária que lhe é anterior. VII — Ordem
concedida” (HC 88420/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski,
j. 17-4-2007, DJ, 8-6-2007, p. 37). Dentro dessa linha de entendimento, a
2ª Turma do STF entendeu que a Constituição Federal de 1988 não teria
recepcionado a regra do art. 595 CPP, relacionada à declaração de deserção da
apelação quando da fuga do réu, “eis
que se reconhecida a inconstitucionalidade da exigência de recolhimento do
condenado à prisão para poder apelar, também o será a norma que repute a fuga
como causa para a deserção da apelação anteriormente interposta” (HC 91945/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j.
24/06/2008). No mesmo sentido, há recente decisão do Pleno do STF, o qual, no RHC 83.810 (Rel. Min. Joaquim Barbosa), na data de 05 de
março de 2009, solidificou posicionamento de que,
ainda que foragido, o réu tem o direito de apresentar o recurso de apelação (cf. notícia veiculada no site: www.stf.jus.br).
Com o advento da Lei
n. 11.719, de 20 de junho de 2008, finalizou-se a discussão em torno do tema,
posto que o art. 594 do CPP foi expressamente revogado. Note-se, no entanto,
que o legislador não operou a revogação expressa do art. 595, porém, pode-se
deduzir que, se o réu não precisa recolher-se à prisão para recorrer, caso
fuja, a apelação não poderá se tornar deserta. Aliás, essa interpretação já se
encontrava acobertada pela Súmula 347 do STJ, segundo a qual: “O conhecimento
de recurso de apelação do réu independe de sua prisão” (editada em 23.04.2008).
Deve-se
consignar que, consoante as novas alterações legislativas, o réu somente será
preso se constatados os pressupostos da prisão preventiva (CPP, art. 387,
parágrafo único, com a nova redação determinada pela Lei n. 11.719/2008). Esse
é também o teor do art. 492, inciso I, “e”, que trata da sentença condenatória
no procedimento do júri e que dispõe que o juiz-presidente, no caso de condenação,
“mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se
encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva”.
Diante disso, é
possível concluir que, havendo necessidade de segregação cautelar, quando da
prolação da sentença condenatória recorrível, esta somente será imposta se verificados
os requisitos da prisão preventiva, não podendo mais se cogitar da
obrigatoriedade do recolhimento à prisão para apelar. Todavia, uma vez
determinado o recolhimento ao cárcere, por força da existência dos aludidos requisitos
do art. 312 do CPP, eventual fuga do réu não impedirá o regular processamento
do recurso, propiciando-se, com isso, ampla guarida aos
princípios da não-culpabilidade, do duplo grau de jurisdição e da ampla defesa.
Procurador de Justiça licenciado e Deputado Estadual. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Autor de várias obras jurídicas
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