Resumo: O presente artigo pretende realizar uma análise concisa dos inovadores institutos adotados pelo Decreto Presidencial n. 4.887/2003 e suas possíveis ilegalidades e inconstitucionalidades, tendo em vista o iminente julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.229, pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Quilombolas; Decreto n. 4.887/2003; Ilegalidade; Inconstitucionalidade.
Abstract: This article intends to conduct a concise analysis of innovative institutes adopted by Presidential Decree. 4.887/2003 and possible illegalities and unconstitutional in view of the impending trial of Direct Action of Unconstitutionality n. 3229, by the Supreme Court.
Keys-words: Maroons; Decree. 4.887/2003; Illegality; Unconstitutionality.
Sumário: Introdução. 1. Da Previsão Constitucional de Salvaguarda das Comunidades Remanescentes de Quilombos e o Contexto do Surgimento do Decreto Presidencial n. n.4.887/2003. 2. Do Possível Vício de Legalidade do Decreto Presidencial n. 4.887/2003: Inovação Infralegal em Descompasso com a Normatização Pretérita. 3. Dos Fundamentos Que Indicam a Possível Inconstitucionalidade Formal do Decreto Presidencial n. 4.887/2003: Norma Infra-legal Autônoma. 3.1. Decreto Presidencial n. 4.887/2003 – Norma Infralegal Autônoma e Regulação Direta do Art. 68 do ADCT. 3.2. Da Previsão Normativa da Lei n. 9.649/98 e da Lei n. 7.668/88: Normatização Limitada à Atribuição de Competência Material de Execução do Ato Administrativo e Inexistência de Regulamentação do Procedimento Exigido pelo Art. 68 ADCT. 3.3. Da Previsão Normativa do Decreto n. 5.051/04 e da Convenção 169 da OIT: Incorporação da Norma ao Ordenamento Jurídico em Momento Ulterior à Edição do Decreto n. 4.887/2003. 3. Dos Fundamentos Que Indicam a Possível Inconstitucionalidade Material do Decreto Presidencial n. 4.887/2003: Inovações no Ordenamento Jurídico. 3.1. Da Inovação no Ordenamento Jurídico: Criação de Nova Hipótese de Intervenção Desapropriatória na Propriedade Privada sem Esteio na Norma Constitucional. 3.2. Da Inovação no Ordenamento Jurídico: Criação de Conceitos Jurídicos Novos de Autodefinição, Auto-atribuição e de Ocupação Presumida. Conclusão.
Introdução.
No ano de 2004, o Partido da Frente Liberal propôs, perante o Supremo Tribunal Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.229, questionando a higidez material e formal do Decreto Presidencial n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, que trata de um assunto historicamente caro à sociedade: o direito territorial das populações remanescentes de quilombolas.
Muito embora a matéria tratada no ato infralegal do Poder Executivo Federal, bem como suas inovadoras disposições, sejam pouco difundidas do grande público, fato é que as mesmas possuem extremo impacto social, com repercussões sérias à esfera patrimonial das pessoas.
Com efeito, debruçando um pouco mais sobre o assunto, vislumbra-se que o referido instrumento normativo vem sendo concretamente utilizado e que, por intermédio do INCRA, várias famílias já sentiram na pele os seus efeitos, restando prejudicadas no direito à sua propriedade imobiliária que, muitas das vezes, encontrava-se em seu domínio particular desde tempos imemoriais, tudo ao fundamento de que originariamente, ou seja, em um período remoto, pertenceria a um território quilombola.
Pois bem, deixando de lado a questão ideológica que orbita o tema dos quilombolas, que suscita tantos debates acalorados e naturalmente parciais quando se trata de discutir direitos de minorias, pretende-se neste trabalho uma análise meramente técnica dos inovadores institutos adotados pelo Decreto Presidencial n. 4.887/2003 e suas possíveis inconstitucionalidades.
Para isso, em um primeiro momento, em breves linhas se analisará a proteção constitucional atribuída às manifestações culturais brasileiras, o que se inclui, por certo, o território das áreas quilombolas, bem como se pretende analisar o contexto do surgimento do Decreto Presidencial n. 4.887/2003, recrudescendo a proteção desses territórios, como manifestação das políticas adotadas pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Já em um segundo momento, com supedâneo nas teses e pareceres vindos a lume com a discussão acerca da constitucionalidade do ato infralegal questionado, tecem-se considerações a respeito do tema, levantando-se importantes fundamentos que indicam possível vício de legalidade da norma, por inovação não permitida pela legislação pré-existente, bem como as teses relativas à sua inconstitucionalidade formal e material.
Ao ensejo, permite-se inferir que, ainda pendente de julgamento pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, o Relator dos autos da ADI n. 3.229, Ministro César Peluso, já se manifestou pela inconstitucionalidade do referido Decreto, com modulação de efeitos não retroativos, pretendendo manter as situações já consolidadas, pelo que se aguarda um posicionamento definitivo da Corte.
1. Da Previsão Constitucional de Salvaguarda das Comunidades Remanescentes de Quilombos e o Contexto do Surgimento do Decreto Presidencial n. n.4.887/2003.
Noticia a historiografia, a exemplo de DEL PRIORE (2010, p. 59), que o difundido vocábulo “quilombo” provém da antiga denominação atribuída às fortificações em território africano, “Kilombos”, que se constituíam da população local, agrupada com o objetivo de lutar e resistir contra o invasor europeu, marcadamente com alguma organização social, política, religiosa e militar.
Referida manifestação de resistência dos povos colonizados se desenvolveu praticamente em todos os locais em que se evidenciaram políticas de Estado baseadas no escravismo, pelo que, no Brasil há relatos de agrupamentos humanos, notadamente de comunidades de negros fugidos, em todo o território nacional, com características as mais diversas, desde reduzidas comunidades, às mais complexas, estas com surpreendente organização social, consoante informa DEL PRIORE (2010, p. 68):
“Conforme podemos notar, várias regiões da Colônia conviveram com quilombos. Isolados como Palmares ou inseridos nas periferias das vilas e cidades, agressivos ou pacíficos, reunindo gente de diferentes etnias, cor e credo. O que lhes importava era resistir e, para isso, a presença de laços de solidariedade ou de parentesco, assim como a vivência de práticas religiosas, foram muito importantes. Inúmeras pesquisas dão conta de que da presença de mulheres e crianças quilombolas, atestando assim a existência de ligações estáveis dentro da instabilidade que significa viver fugido”.
Diante disso, é fato inegável que a herança deixada por essas populações contribuíram imensamente para a construção de uma identidade nacional, juntamente com as demais culturas e costumes aqui inseridos, pelas mais diversas etnias que fizeram e fazem o Brasil ser o país que é hoje.
O antropólogo Darcy Ribeiro (1995, p. 222/223), em sua obra indiscutivelmente mais propalada, após mencionar as características mais marcantes das populações negras no Brasil, sua resistência nos agrupamentos quilombolas e sua condição após a abolição da escravidão, propõe-se a tecer sua evolução dentro do contexto social brasileiro, listando as diversas heranças deixadas pelos mesmos e que indiscutivelmente constituem orgulho nacional:
“A partir dessas precárias bases, o negro urbano veio a ser o que há de mais vigoroso e belo na cultura popular brasileira.
Com base nela é que se estrutura o nosso Carnaval, o culto de Iemanjá, a capoeira e inumeráveis manifestações culturais. Mas o negro aproveita cada oportunidade que lhe é dada para expressar o seu valor. Isso ocorre em todos os campos em que não se exige escolaridade. É o caso da música popular, do futebol e das numerosas formas menos visíveis de competição e expressão. O negro vem a ser, por isso, apesar de todas as vicissitudes que enfrenta, o componente mais criativo da cultura brasileira e aquele que, junto com os índios, mais singulariza nosso povo”.
Dentro desse cenário, visando resguardar todas essas características históricas, culturais e de comportamento, foram criados instrumentos normativos pelo legislador, em especial pelo constituinte originário de 1988, que não se descurou da garantia do exercício e acesso às fontes de cultura nacional, valorizando a difusão das manifestações culturais, mais especificamente das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, consoante disposição expressa do artigo 215 e respectivos parágrafos.
Nesse sentido, no que tange às reminiscências históricas dos antigos quilombos e da herança cultural afro-brasileira, a Constituição da República devotou-lhes especial atenção em seu art. 216, já considerados tombados, prevendo, inclusive, mediante regulamentação infraconstitucional, a possibilidade de manejo de instrumento desapropriatório, para fins de promoção e proteção desse patrimônio cultural brasileiro:
“Constituição da República. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º – O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” (Grifo nosso).
Por sua vez, nessa mesma linha protetiva, o Art. 68 do Título do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garante aos remanescentes quilombolas a propriedade definitiva de suas terras, desde que por eles ocupadas no momento da promulgação da Constituição da República, cabendo ao Estado somente o dever de emitir-lhes os respectivos títulos:
“ADCT. Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
Portanto, como se vê, a Carta Constitucional veio a devotar dois instrumentos diversos de amparo à manutenção da memória cultural afro-brasileira e das comunidades quilombolas: 1º) a garantia do reconhecimento da propriedade aos remanescentes quilombolas, de áreas historicamente originadas de quilombos, desde que por eles ocupadas no momento da promulgação da Constituição da República, consoante o art. 68 do ADCT; e, 2º) a proteção do patrimônio histórico-nacional, inclusive com o manejo de instrumento desapropriatório, mediante prévia regulamentação infraconstitucional, com supedâneo no sobredito art. 216 da Constituição Federal.
Nessa linha de raciocínio, pretendendo regulamentar administrativamente o procedimento de aplicação dos direitos de propriedade descritos no art. 68 do ADCT veio a lume o Decreto Presidencial n. 3.912, de 10 de setembro de 2001, que, em resumo, atribuía à Fundação Cultura Palmares a competência para dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas.
De igual modo, o ato infralegal reconhecia o direito à titulação às terras, historicamente áreas de quilombo, àquelas populações remanescentes e descendentes quilombolas que as estivessem efetivamente ocupando em 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal de 1988, momento que houve o surgimento do referido direito de propriedade.
Entretanto, em 20 de novembro de 2003, foi publicado o Decreto Presidencial n. 4.887, que, em seu art. 25, expressamente revogou o Decreto n. 3.912/ 2001, atribuindo nova feição ao modelo procedimental de efetivação do direito reconhecido no art. 68 do ADCT, introduzindo novos institutos e conceitos técnicos referentemente ao tema.
Com efeito, a partir do novo ato normativo, o critério para definição das áreas como remanescentes de antigos quilombos não mais se baseia no território efetivamente ocupado pelos remanescentes da comunidade, mas sim no conceito de autodefinição realizada por ela própria, que passa a deter o poder de indicar quais áreas historicamente pertenceram a seus antepassados, inclusive podendo adentrar em áreas privadas, que serão objeto de desapropriação, consoante o art. 13 da norma.
Nessa mesma medida, referido Decreto n. 4.887/2003 modificou a competência material para execução dos atos administrativos de titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombolas, atribuindo-a ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
Isso posto, nota-se que houve um recrudescimento da proteção aos remanescentes de quilombolas, no regramento normativo da regulamentação do direito de propriedade previsto constitucionalmente, com mudanças drásticas ao disposto na norma anterior, posto que introduzidos conceitos jurídicos inovadores que importaram na atribuição de vastos poderes à própria comunidade, que passa a deter a função de indicar o território de seus antepassados, ainda que em poder de terceiros, por gerações até.
Por oportuno, cumpre assinalar que o surgimento do Decreto n. 4.887/2003 vai ao encontro das políticas públicas patrocinadas pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, criada pela Medida Provisória n. 111/2003, convertida posteriormente na Lei 10.678/2003, ou seja, oito meses antes do advento do Decreto n. 4.887/2003.
De fato, declaradamente, uma das funções primordiais do referido órgão é a implementação de políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial, por meio de atos materiais e efetivação de instrumentos normativos protetivos, a exemplo das inovações introduzidas pela Lei. 12.258/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), com especial atenção à questão quilombola, objetivando à melhoria da qualidade de vida dessas populações, em geral extremamente marginalizadas.
Pois bem, conquanto as políticas protecionistas sejam dotadas de louváveis e humanistas intenções, fato é que o Decreto Presidencial n. 4.887/2003, com seus inovadores institutos e previsões, fez surgir na comunidade jurídica intermináveis discussões acerca de sua legalidade e constitucionalidade, o que se intentará descrever nas linhas que se seguem.
2. Do Possível Vício de Legalidade do Decreto Presidencial n. 4.887/2003: Inovação Infralegal em Descompasso com a Normatização Pretérita.
Em 27 de maio de 1998, foi publicada a Lei n. 9.649/98 que, dispondo sobre a reestruturação da administração pública federal, em seu art. 14, IV, “c”, veio a atribuir competência ao Ministério da Cultura para aprovar a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinar as suas demarcações:
“Lei n. 9.649/98. Art. 14. Os assuntos que constituem área de competência de cada Ministério são os seguintes: (…)
IV – Ministério da Cultura: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001). (…)
c) aprovar a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinar as suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001)”. (Grifo nosso).
De igual sorte, a Lei n. 7.668/88, que autorizou a constituição da Fundação Cultural Palmares, em seu art. 2º, III e seu parágrafo único, veio a atribuir a esta entidade o poder de identificar, reconhecer, delimitar e demarcar as terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades quilombolas e conferir a correspondente titulação:
“Lei n. 7.668/88. Art. 2º A Fundação Cultural Palmares – FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe: (…)
III– realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001).” (Grifo nosso).
Em compasso à previsão legal, o Decreto Presidencial n. 3.912, de 10 de setembro de 2001, atribuía essa mesma competência à Fundação Cultura Palmares, pelo que lhe competia os poderes de iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas.
Todavia, como já visto, vindo à lume o Decreto n. 4.887/2003, que revogou expressamente o Decreto Presidencial n. 3.912/2001, deu-se uma tônica diferente ao tratamento da matéria, pelo que, em contrariedade à previsão normativa posta, passou-se a atribuir ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por intermédio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a competência para a execução material de suas disposições, inclusive com poderes de iniciar de ofício o procedimento administrativo, consoante o disposto em seu artigo 3º e parágrafos:
“Decreto n. 4.887/03. Art. 3o . Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto. (…)
§ 3o O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado. (…)”
Nessa mesma toada, o art. 13 desse diploma infralegal dota o INCRA de competência administrativa para, no que pertine a imóveis supostamente localizados em áreas ocupadas por remanescentes de quilombos, adotar os atos necessários à sua desapropriação, com poderes regulamentares e de ingresso na propriedade particular:
“Decreto n. 4.887/03. Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
§ 1o Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos de comunicação prévia.
§ 2o O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem”.
Pode-se estabelecer, portanto, que há uma impropriedade latente no referido Decreto n. 4.887/2003, na medida em que traz disposições “contra legem”, indo de encontro às normas legais superiores que ditam previsão normativa diversa quanto à competência material para a execução do ato administrativo de identificação e reconhecimento das terras historicamente ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas.
Destarte, ousa-se afirmar que Decreto n. 4.887/2003 inova no ordenamento jurídico, prevendo competência administrativa não amparada pela norma superior, indo de encontro à previsão legal anterior, portanto, invade terreno próprio da reserva legal, pelo que se traduz em abuso de poder na modalidade excesso de poder, consoante GASPARINI (2002, p. 134):
“Há excesso de poder quando o próprio conteúdo (o que o ato decide) do ato vai além dos limites legais fixados. O excesso amplia ou restringe o conteúdo”.
Por essas razões, qualquer ato material implementado pelo INCRA, com supedâneo na sobredita norma infralegal, tendente ao processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, será nulo de pleno direito, em face do vício de legalidade, por inovação não prevista na lei.
Por derradeiro, ilustrativamente, o Superior Tribunal de Justiça é pacífico quanto à nulidade do ato administrativo por vício de incompetência, com aplicação de efeitos “ex tunc” ao ato jurídico de invalidação, inexistente a produção de efeitos ou direitos do ato impugnado, consoante julgado no Resp. n° 367-0, RJ, de relatoria do Ministro José de Jesus :
“EMENTA: Licença para construir. A autoridade administrativa pode anular atos da própria administração pública quando eivados de vícios que os tornam ilegais, mesmo porque deles não se origina direitos. E o ato nulo nunca será sanado, e nem terceiros podem, reclamar direitos que o ato ilegítimo não poderia gerar. Assim o registro de incorporação imobiliária no Registro de Imóveis não tem o efeito de tornar legal a respectiva licença de construção obtida indevidamente, contra as normas do direito de construir. Recurso especial não conhecido.”
Ao ensejo da conclusão, vistos os fundamentos que sugerem o possível vício de legalidade do Decreto n. 4.887/2003, ao inovar no ordenamento, prevendo competência administrativa não amparada pelo ato normativo superior, doravante, passa-se a elucidar as possíveis inconstitucionalidades incidentes sobre referido ato infralegal.
3. Dos Fundamentos Que Indicam a Possível Inconstitucionalidade Formal do Decreto Presidencial n. 4.887/2003: Norma Infralegal Autônoma.
3.1. Decreto Presidencial n. 4.887/2003 – Norma Infralegal Autônoma e Regulação Direta do Art. 68 do ADCT.
É ponto pacífico na doutrina, bem como nos julgados do Supremo Tribunal Federal, que os regulamentos e decretos infralegais, quando viciados por exorbitarem do poder regulamentar, não serão objeto de controle abstrato, na medida em que haveria mera ilegalidade, a ser solucionada pelo controle difuso, a exemplo do que restou julgado na ADI 1.347-DF[1].
Entretanto, exceções são elencadas, pelo que se admite o controle abstrato dos atos infralegais quando o vício que o inquina atinge diretamente a Constituição Federal, seja porque possuem a natureza de regulamentos de execução que invadem a reserva legal, seja porque possuem a natureza de regulamentos autônomos, sem amparo em lei, como bem ensina CUNHA JÚNIOR (2011, p. 372):
“Admite-se tal ação, por outro lado, quando se trata de regulamentos de execução que, ao revés de complementarem as leis a título de lhes darem exequibilidade, invadem domínio de reserva legal; ou quando se cuida de regulamentos autônomos ou independentes, que se relacionam diretamente com a Constituição e têm força de lei.”
Isso posto, sustenta-se no presente trabalho que o Decreto Presidencial n. 4.887/2003 possui natureza normativa autônoma, posto que não se curva a nenhuma norma legal primária, mas sim veio a lume com a intenção de dispor diretamente sobre a norma constitucional, o que suscita a possibilidade do controle abstrato, por malferir diretamente esta.
Com efeito, o referido Decreto intenta regulamentar diretamente o art. 68 do Título do ADCT, estabelecendo o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, expressamente como regulador direto do procedimento, nada se referindo à regulação ou se reportando a qualquer ato de hierarquia legal intermediária, consoante sua própria Ementa:
“Decreto Presidencial n. 4.887/2003. Ementa: Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
Diante disso, cumpre lembrar previamente que a previsão constitucional contida no Título do ADCT traz normas de caráter temporário, às quais perdem em importância na medida em que materialmente efetivadas. De qualquer sorte, enquanto isso não ocorre, suas normas são integrantes do texto constitucional, possuindo o mesmo status jurídico-formal, sobretudo no que se refere à sua supremacia.
Nesse rumo de ideias, o art. 68 do ADCT, porquanto não exauridos os seus efeitos, possui status formal e material de norma constitucional, pelo que ousamos ainda atribuir-lhe a característica de direito fundamental, em seu aspecto positivo, na medida em que se volta à proteção de um valor caro à sociedade brasileira, a que o Estado tem o dever de prestá-lo e o indivíduo de exigi-lo.
De qualquer sorte, muito embora atribuída a natureza de norma constitucional fundamental, o disposto no art. 68 do ADCT é normativamente insuficiente, pelo que necessita, para a sua plena aplicabilidade, de regulamentação infraconstitucional, por intermédio de um ato legislativo primário, afinal, da simples leitura de suas disposições não é possível indicar a maneira de se definir quem seriam os beneficiários dos títulos de propriedade contemplados na norma, bem como quais seriam os critérios de identificação das comunidades quilombolas.
Para extirpar qualquer possível questionamento quanto à possibilidade de regulação infraconstitucional de direitos fundamentais, vê-se que, conquanto o disposto no § 1º do art. 5º da Constituição Federal lhes atribua aplicabilidade imediata, tal preceptivo deve ser visto com parcimônia, afinal, não se nega que muitos daqueles direitos necessitam de regulamentação para sua devida aplicabilidade, como é o caso dos direitos contemplados no art. 68, ADCT, nas palavras de FERNANDES (2010, p. 253/254):
“Porém, alguns autores como Ingo Sarlet e Celso Bastos, José Afonso, bem como Gilmar Mendes adotam uma posição intermediária. Para esses autores, há situações em que não há como dispensar uma concretização pelo legislador (por exemplo no caso de alguns direitos sociais). Segundo esses autores, a norma do § 1º da CR/88 determina um mandado de otimização, que impõe aos órgãos estatais a obrigação de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, gerando uma presunção em favor da aplicabilidade imediata das normas que definem direitos. Nesses termos, os autores prelecionam que deve-se observar a norma específica e o direito contido na mesma para observar a aplicabilidade imediata embora deva-se buscar sempre, como já dito, a maior eficácia possível”.
Nessa ordem de ideias, um ato infraconstitucional, de natureza primária, deverá regulamentar o dispositivo constitucional, afinal, pela previsão contida no art. 5º, II da Constituição da República, base material do princípio da legalidade, somente por “lei” criam-se direitos e impõem-se obrigações, ademais, somente por “lei” admite-se regulamentação direta dos dispositivos constitucionais.
Via de consequencia, o Decreto n. 4.887/2003, sem fundamento em uma lei prévia, ao regulamentar diretamente o art. 68 do ADCT, invade terreno de matéria sob a reserva legal, inovando no ordenamento ao criar direitos e impor obrigações aos particulares, caracterizando-se, pois, como verdadeiro regulamento autônomo, instrumento, no caso, formalmente inconstitucional.
Em realidade, no Brasil, o poder regulamentar do Executivo cinge-se, consoante o disposto no art. 84, IV, da Constituição Federal, à edição de atos secundários infralegais com o escopo exclusivo de explicitar a execução de uma norma infraconstitucional, em outras palavras, o poder regulamentar tem por pressuposto uma lei prévia, vedando-se a inovação no ordenamento, tampouco na regulação direita da Constituição.
Nesse mesmo compasso, a previsão de edição de “decretos autônomos”, previstos no art. 84, VI, Constituição Federal, está limitada à prerrogativa de o Executivo editar matérias de efeitos internos, relativas ao funcionamento da administração e a extinção de cargos vagos, sendo vedada a inovação acerca de qualquer outra matéria constitucional.
A par disso, a doutrina mais abalizada, a exemplo de BANDEIRA DE MELLO (2003, p. 317/318), é pacífica quanto ao alcance do poder regulamentar do Executivo, limitado aos esteios da lei regulamentada, ganhando relevo, na Carta Constitucional, a aplicação do princípio da legalidade:
“Pode parecer, até mesmo, estranho que a Lei Maior haja se ocupado com tão insistente reiteração em sublinhar a inteireza do princípio da legalidade. Fê-lo, entretanto, a sabendas, por advertida contra a tendência do Poder Executivo de sobrepor-se às leis. É que o Executivo, no Brasil, abomina a legalidade e tem o costumeiro hábito de afrontá-la, sem ser nisto coartado, como devido. Daí a insistência constitucional, possivelmente na expectativa de que suas dicções tão claras e repetidas ad nauseam encorajem o Judiciário a reprimir desmandos do Executivo.”
Em resumo, o Decreto n. 4.887/2003 ao regulamentar diretamente a Constituição Federal, padece de vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que a regulamentação das normas contidas no texto constitucional, ainda que fossem de eficácia plena, sobretudo quando incidentes sobre o patrimônio e a propriedade das pessoas, exige a edição de atos legislativos primários, derivados de procedimento legislativo típico, por força do princípio da legalidade.
Finalmente, delineados os primeiros fundamentos da possível inconstitucionalidade formal do Decreto n. 4.887/2003, cumpre insistir nas razões de sua natureza de “decreto autônomo”, editada sem a existência de prévia lei regulamentada, pelo que, nas linhas que se seguem, serão elencados os argumentos que infirmam pontuais posicionamentos em contrário, que sustentam que o referido Decreto regulamentaria normas infraconstitucionais (Lei n. 9.649/98, Lei n. 7.668/88 e Decreto n. 5.051/04), às quais, por sua vez, regulamentariam o art. 68 do ADCT.
3.2. Da Previsão Normativa da Lei n. 9.649/98 e da Lei n. 7.668/88: Normatização Limitada à Atribuição de Competência Material de Execução do Ato Administrativo e Inexistência de Regulamentação do Procedimento Exigido pelo Art. 68 ADCT.
O Advogado-Geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, e o Advogado da União, Marcelo Casseb Continentino, nos autos da ADI n. 3.229, às suas folhas 98/120, realizaram uma efetiva defesa da constitucionalidade do Decreto Presidencial n. 4.887/2003, pelo que, em um de seus fundamentos, sustentaram que o ato infralegal se voltaria à regulação de normas primárias, quais sejam, as leis 9.649/98 e 7.668/1988, sendo, pois, descabida a pretensão do controle abstrato:
“Percebe-se, pois, que o Decreto n.º 4.887, de 2003, retira seu fundamento de validade diretamente das normas do art. 14, IV, “c”, da Lei n.º 9.649, de 1998, e do art. 2.º, III e parágrafo único, da Lei n.º 7.668, de 1988, e não diretamente da Constituição Federal (art. 68, ADCT).
Logo, não se afigura possível, na presente hipótese, submeter o referido decreto ao juízo abstrato de constitucionalidade, uma vez que não restou devidamente caracterizado o conflito de constitucionalidade, mas sim um suposto conflito de legalidade. Destarte, eventual mácula de norma infralegal há de ser verificada em cotejo com as leis federais vigentes, interpostas entre ele (decreto) e a Constituição Federal, as quais lhe dão suporte.”
Entretanto, pedindo vênia aos defensores da higidez da norma infralegal, entende-se no presente trabalho que os referidos diplomas normativos, citados naquela manifestação, não estabelecem ou trazem normas procedimentais, tampouco estabelecem direitos ou impõem obrigações relativas à matéria pertinente ao disposto no art. 68 do ADCT, ou seja, não tornam executável o preceito constitucional, logo, são inaptas a dar supedâneo ao Decreto n. 4.887/2003, norma efetivamente autônoma, formalmente inconstitucional.
Com efeito, no que pertine ao disposto no art. 2º, III, e seu parágrafo único, da Lei n. 7.668/88, com redação dada pela MP 2.216-37/2001, a mesma se limita a atribuir à Fundação Cultural Palmares o poder de identificar os remanescentes das comunidades quilombolas e conferir a correspondente titulação, nada se referindo ao eventual procedimento legal de exteriorização do procedimento administrativo de execução do direito albergado pela norma constitucional, eis o seu teor:
“Lei n. 7.668/88. Art. 2º A Fundação Cultural Palmares – FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe: (…)
III- realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. (Incluído pela Medida Provisória . 2.216-37, de 31.8.2001)
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares-FCP é também parte legítima para promover o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários. (Incluído pela Medida Provisória . 2.216-37, de 31.8.2001).”
De igual modo, o disposto no art. 14, IV, “c” da Lei n. 9.649/98, apenas vem atribuir competência ao Ministério da Cultura para a aprovação de delimitação dos remanescentes das terras remanescentes das comunidades de quilombos, nada se referindo a qualquer procedimento legal exigido pelo art. 68 do ADCT:
“Lei n. 9.649/98. Art. 14. Os assuntos que constituem área de competência de cada Ministério são os seguintes:(…)
IV – Ministério da Cultura: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001)(…)
c) aprovar a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinar as suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 2001).”
Portanto, os diplomas legais apontados como regulamentadores do art. 68 do ADCT limitam-se a apontar os órgãos públicos que deteriam competência material para a execução do ato administrativo do direito previsto na norma constitucional.
Por outro lado, as sobreditas normas legais são omissas na regulamentação do procedimento exigido para a plena aplicabilidade do direito previsto no art. 68 do ADCT, deixando de oferecer os elementos mínimos capazes de tornar executável o preceito constitucional, nada se referindo a qualquer definição dos possíveis beneficiários dos títulos e/ou os critérios de identificação das comunidades quilombolas.
Como resultado, inexiste a pretensa regulamentação dos diplomas supra mencionados pelo Decreto n. 4.887/2003, afinal, descabe regulamentar normas inexistentes, afinal, o exercício do poder regulamentar se dá “secundum legem”, consoante a doutrina majoritária, por todos, CARVALHO FILHO (2012, p. 58):
“Por essas razões, ao poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser.”
Rememore-se, ainda, que o Decreto n. 4.887/2003 contraria frontalmente esses mesmos diplomas legais ao estabelecer competência ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por intermédio do INCRA, para a execução material dos atos administrativos, ao passo que as sobreditas normas legais atribuem essa mesma competência ao Ministério da Cultural e à Fundação Cultural Palmares!
De qualquer sorte, ainda que se queira atribuir foros de norma regulamentadora ao Decreto n. 4.887/03, em face das Leis n. 7.668/88 e n. 9.649/98, de igual modo, incide-se em vício de inconstitucionalidade, na medida em que ocorre a denominada “delegação disfarçada”, igualmente vedada pelo ordenamento.
Com efeito, VELLOSO, em Parecer elaborado no âmbito da ADI 3.239, confeccionado a pedido do amicus curiae, Aracruz Celulose S.A., nos autos do referido processo, às fl. 448/494, menciona que, uma vez sustentado que as Leis n. 7.668/88 e n. 9.649/98 seriam disciplinadas pelo Decreto n. 4889/2003, haveria “delegação disfarçada”, na medida em as normas legais são omissas na disciplina do procedimento exigido pelo art. 68 do ADCT, enfim, não criam direitos e tampouco impõem obrigações aos particulares, ao passo que o ato infralegal inova no ordenamento:
“A alegação de que o Decreto 4.887/2003 estaria regulamentando as Leis 9.649/98 e 7.668/88, criando direitos e obrigações, implicaria outra inconstitucionalidade. È que os dois diplomas normativos referidos estariam veiculando, então, delegações disfarçadas, vedados no ordenamento jurídico brasileiro.”
De fato, o Decreto n. 4.887/03 traz inúmeras inovações no ordenamento jurídico, sem supedâneo na Constituição Federal e nas normas primárias acima citadas, exemplificativamente, dentre outras, o estabelecimento das comunidades que poderiam ser beneficiadas pela norma constitucional, a criação da figura da ocupação presumida e o critério de autodefinição, conceitos estes previamente inexistentes naquelas leis supostamente “regulamentadas”.
Por essas razões, em compasso ao entendimento de Carlos Mário da Silva Velloso, temos que, à revelia da omissão legislativa das normas primárias, o Decreto n. 4.887/03, ao regulamentar o procedimento exigido pelo art. 68, ADCT, atribuindo direitos e impondo obrigações, pode ser interpretada como norma editada pelo vício da “delegação disfarçada”, porquanto inova no ordenamento jurídico, sem supedâneo em norma primária, o que é vedado, consoante BANDEIRA DE MELLO (2003, p. 339/340):
“Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.
É, pois, à lei, e não ao regulamento, que compete indicar as condições de aquisição ou restrição de direito. Ao regulamento só pode assistir, à vista das condições preestabelecidas, a especificação delas. E esta especificação tem que se conter no interior do conteúdo significativo das palavras legais enunciadoras do teor do direito ou restrição e do teor das condições a serem preenchidas.”
Em remate, omissas as Leis n. 7.668/88 e n. 9.649/98 na regulamentação do procedimento exigido para a plena aplicabilidade do direito albergado no art. 68 do ADCT, o Decreto n. 4.887/2003 efetivamente inova no ordenamento jurídico, caracterizando-se pela natureza de regulamento autônomo, formalmente inconstitucional.
3.3. Da Previsão Normativa do Decreto n. 5.051/04 e da Convenção 169 da OIT: Incorporação da Norma ao Ordenamento Jurídico em Momento Ulterior à Edição do Decreto n. 4.887/2003.
Ainda em manifestação da higidez do Decreto n. 4.887/2003, nos autos da ADI 3.239, colhe-se o Parecer elaborado pelo Procurador Regional da República, Dr. Daniel Sarmento, o qual, às fl. 1.095/1.141 daqueles autos, sustenta que o referido ato normativo estaria em consonância à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, internalizada ao direito pátrio através do Decreto n. 5.051/2004, pelo que teria status de norma supralegal, sendo plenamente aplicável e daria sustentação àquela norma:
“Destaque-se que o artigo 14 da Convenção 169 prevê expressamente o direito à propriedade das terras tradicionalmente ocupadas. E o item 3 deste artigo 14 contempla a obrigação dos Estados de instituírem “procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados”. Da[i porque, pode-se afirmar que a Convenção 169 também confere suporte normativo para a edição do Decreto 4.887/03. E a referida Convenção por versar sobre direitos humanos, desfruta de hierarquia supralegal na ordem jurídica nacional, em conformidade com a mais recente orientação do STF nessa matéria.”
Esse mesmo posicionamento já foi acolhido em decisões anteriores, pelas instâncias judiciais inferiores, a exemplo do julgado nos autos do Agravo de Instrumento n. 2008.04.00.010160-5/PR[2], julgado pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, relatoria da Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, que, por maioria, reconheceu a aplicabilidade da Convenção 169 da OIT, que daria sustentação jurídica ao Decreto nº 4.887/2003, retirando-lhe o caráter de norma autônoma.
Com efeito, temos que o artigo 14 da Convenção 169 da OIT efetivamente atribui aos Estados signatários o compromisso de reconhecimento do direito de propriedade aos povos indígenas e tribais, das terras tradicionalmente ocupadas, eis o teor:
“Convenção 169, OIT. Art. 14. 1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.”
Entretanto, consoante o Parecer elaborado por VELLOSO, nos autos da ADI 3.239, às fl. 448/494, o Decreto n. 4.887/2003 não possui o condão de regulamentar o Decreto o nº 4.887/2003, na medida suas disposições não se aplicam especificamente aos quilombolas, bem porque cronologicamente adentrou no ordenamento jurídico em momento posterior:
“O argumento, por mais engenhoso que seja, não tem sustentação nem mesmo lógica. Em primeiro lugar, não se pode admitir regulamentação por analogia, que é o que se pretende, pois a Convenção invocada limita-se a cuidar dos povos indígenas e tribais, cuja situação fática difere da dos quilombolas brasileiros. Em segundo lugar, conforme foi dito, a Convenção 169 somente ingressou em nosso direito positivo após o citado Decreto 4.887/2003.”
De fato, a Convenção 169 da OIT somente passou a ter aplicabilidade no Brasil após a edição Decreto n. 5.051, publicado em 19 de abril de 2004, ou seja, em momento posterior ao Decreto n. 4.887, vindo à lume em 20 de novembro de 2003.
Portanto, por uma questão de lógica, não se admite que a norma regulamentada venha a lume posteriormente à norma regulamentadora, afinal, o exercício desta dá-se “secundum legem”, em conformidade à norma regulamentada e suas disposições normativas, que devem, por certo, ser preexistentes, vedando-se regulamentação por analogia.
Nesse mesmo sentido, restando lastreada as disposições do ato regulamentar a existência de prévia norma primária, a qual lhe dá suporte de existência, consoante CARVALHO FILHO (2010, P.60):
“Sob um enfoque de que os atos podem ser originários e derivados, o poder regulamentar é de natureza derivada (ou secundária): somente é exercido à luz de lei preexistente. Já as leis constituem atos de natureza originária (ou primária), emanadas diretamente da constituição.”
Por tudo isso, ousa-se por sustentar que o Decreto n. 4.887/03, sem esteio em lei prévia, veio a lume visando regulamentar diretamente o art. 68 do ADCT, invadindo terreno de matéria sob a reserva legal, pelo o que inova no ordenamento ao criar direitos e impor obrigações aos particulares, caracterizando-se, pois, como regulamento autônomo, instrumento, no caso, formalmente inconstitucional.
3. Dos Fundamentos Que Indicam a Possível Inconstitucionalidade Material do Decreto Presidencial n. 4.887/2003: Inovações no Ordenamento Jurídico.
3.1. Da Inovação no Ordenamento Jurídico: Criação de Nova Hipótese de Intervenção Desapropriatória na Propriedade Privada sem Esteio na Norma Constitucional.
Não bastassem os possíveis vícios de ordem formal emanadas do Decreto Presidencial n. 4.887/2003, consoante linhas expostas, de igual modo, sustenta-se que a referida norma de igual modo contraria materialmente a Constituição da República, na medida em que inova no ordenamento jurídico, ao normatizar institutos que sequer poderiam ser regulamentados por lei, desvirtuando o comando do art. 68 do ADCT.
Com efeito, o Decreto n. 4.887/2003, pela previsão contida em seu art. 13, veio a autorizar o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a realizar as medidas necessárias para a desapropriação dos imóveis particulares que vierem a incidir sobre os territórios ocupados por remanescentes das comunidades de quilombos:
“Decreto n. 4.887/03. Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
§ 1o Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos de comunicação prévia.
§ 2o O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.”
Em verdade, como se nota, o ato normativo veio a inovar no ordenamento jurídico ao criar mecanismo de intervenção na propriedade privada, em situação não prevista pela norma constitucional.
Com efeito, a previsão do art. 68 do ADCT cingiu-se a atribuir a propriedade definitiva das terras aos remanescentes quilombolas, desde que por eles ocupadas no momento da promulgação da Constituição da República, em 05 de outubro de 1988, cabendo ao Estado somente o dever de emitir-lhes os respectivos títulos.
Em outras palavras, o comando constitucional apenas reconhece aos remanescentes quilombolas a propriedade das terras por eles ocupadas e mantidas na data da promulgação da Constituição da República, e que se consubstanciam historicamente como áreas de quilombolo, não havendo previsão de desapropriação de territórios sob o domínio particular.
Tanto é assim que o Decreto Presidencial n. 3.912/2001, que fora posteriormente revogado pelo Decreto n. 4.887/2003, expressamente previa que o reconhecimento do direito à titulação das terras, historicamente áreas quilombolas, seriam atribuídas aos descendentes de quilombolas que as estivessem ocupando em 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal de 1988, marco do surgimento da atribuição do referido direito:
“Decreto n. 3.912/2001. Art. 1o. Compete à Fundação Cultural Palmares – FCP iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que:
I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e
II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988.”
Entretanto, como se vê, o Decreto n. 4.887/2003 modificou a interpretação a ser dada ao dispositivo constitucional, pelo que veio a prever um instrumento interventivo não previsto pela Constituição Federal.
Para VELLOSO, em seu já citado Parecer elaborado nos autos da ADI 3.239, às fl. 448/494, essa previsão interventiva na propriedade privada vai de encontro à disposição constitucional, esbarra no princípio da legalidade, bem como não possui amparo em qualquer lei de status jurídico intermediário, pelo que se criou nova espécie desapropriatória:
“Ocorre que, nos termos do artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal, a matéria pertinente às desapropriações constitui reserva legal, e não existe lei alguma regendo a necessidade de titulação de terras quilombolas como fundamento de processo expropriatório. Não há falar que incidiria na espécie a Lei 4.1312/62, que trata das desapropriações por interesse social, por isso que o seu art. 2º, inciso III, qualifica como de interesse social “o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola”, o que não é o caso.”
Diante disso, a inovação intentada pela norma infralegal vai de encontro à previsão constitucional, prevendo uma interpretação extensiva e vedada pelo ordenamento.
Ademais, é forçoso insistir que, da maneira como posta, será possível ao Estado vir a desapropriar imóveis rurais que, por vezes, se encontram na propriedade particular por várias décadas, senão sob um domínio centenário, tudo ao fundamento de que um dia, remotamente e em tempos antepassados, seria uma área de quilombo.
Por essas razões, em síntese, ousa-se afirmar que o comando infralegal do Decreto n. 4.887/2003, que autoriza a desapropriação de terrenos particulares, inova no ordenamento vai além da norma constitucional que pretende regulamentar, pelo que deve ser considerada materialmente constitucional.
3.2. Da Inovação no Ordenamento Jurídico: Criação de Conceitos Jurídicos Novos de Autodefinição, Auto-atribuição e de Ocupação Presumida.
Como já visto, o art. 68 do ADCT, objetivando preservar os valores culturais étnicos dos afro-descendentes, estatuiu a obrigação do Estado em emitir o respectivo título de propriedade aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam, no momento da promulgação da Constituição da República, na posse de suas terras historicamente originadas de quilombos.
Diante disso, pela previsão constitucional, para a atribuição da propriedade aos descendentes quilombolas, basta a prova de que o território se trata de área remanescente de quilombo e de que a mesma se encontrava ocupada por eles na data de 05 de outubro de 1988.
Entretanto, em caminho oposto ao da norma constitucional, o art. 2º e seu § 1º do Decreto n. 4.887/2003 veio a criar novas figuras jurídicas, para estabelecer os critérios de identificação dos quilombos e de seus remanescentes, agasalhando os critérios de auto-atribuição e de autodefinição, pelas quais a própria comunidade se qualificaria, expressamente se identificando como remanescentes de quilombo, para fazer jus à benesse constitucional:
“Decreto n. 4.887/03. Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.” (Grifos nossos).
Como se nota, por esses critérios novos de auto-atribuição e de autodefinição, permite-se que qualquer um se auto-declare possuidor das características próprias aos beneficiários do direito garantido pela norma constitucional, o que poderá necessariamente desembocará a uma interpretação extensiva desta.
Com efeito, após a publicação do referido Decreto 4.887/2003, com a introdução dos inovados instrumentos de auto-atribuição e de autodefinição, houve um aumento significativo do reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombolas e, por conseguinte, do número de procedimentos administrativos tendentes à titulação fundiária.
Em realidade, em estudo patrocinado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, dentro do contexto do “Programa Brasil Quilombola”, entre os anos de 2002 a 2009, o número de comunidades quilombolas mais que se triplicou no país (2009, p. 8):
“Até 2002, o Governo Federal havia identificado a existência de 743 quilombos. Atualmente, em decorrência da iniciativa das comunidades quilombolas pelo seu auto-reconhecimento, do fomento à ampliação e qualificação dos sérvios disponíveis e da criação do Programa Brasil Quilombola (PBQ), que deu visibilidade a essa política, o número de comunidades identificadas é de 3.524, dentro das quais 1.342 foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares.”
Pois bem. Diante de uma análise apenas superficial acerca dos sobreditos números, há de se confessar que efetivamente os critérios jurídicos adotados pela norma infralegal, de auto-atribuição e de autodefinição, serviram para que muitas comunidades passassem a se reconhecer como remanescentes de quilombolas, fazendo jus a uma ação estatal mais protetiva, o que, inquestionavelmente é salutar.
Entretanto, não há amparo constitucional aos referidos instrumentos postos, pelo que, nas palavras de VELLOSO, em seu Parecer elaborado nos autos da ADI 3.239, às fl. 448/494, ninguém poderia ser considerado “remanescente de quilombo” somente porque se declara como tal, afinal, por uma questão de razoabilidade, sua caracterização depende de estudos, pesquisas e critérios definidos em lei:
“Entretanto, o Decreto 4.887/2003 trilhou caminho diverso, em seu art. 2º e § 1º, ao admitir, como critério de identificação dessas comunidades remanescentes de quilombos, a própria palavra da comunidade. Ou seja, sem qualquer embasamento técnico – histórico, geográfico e antropológico – a comunidade pode se qualificar como remanescente de algum quilombo, o que basta, segundo o decreto, para merecer o benefício do art. 68 do ADCT.
O que o decreto chama de autodefinição pode abrir caminha para uma ampliação não prevista na Constituição nem querida pelo Constituinte, cuja preocupação foi preservar os hábitos, a cultura, o modus vivendi dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nunca chancelar invasões de terras. É que ninguém é remanescente de quilombo porque se considera como tal, pois a auto-atribuição não é critério de identificação de um povo ou pretensos descendentes de determinado grupo social. Essa qualificação depende de estudos, pesquisas e critérios que serão estabelecidos mediante lei.”
Nessa ordem de raciocínio, por se tratar de critérios jurídicos novos, relativamente à peculiaridade do direito contido no art. 68 do ADCT, referidos institutos de auto-atribuição e de autodefinição necessitariam de regulamentação legal, por meio de “lei”, vedada a sua instituição por instrumento infralegal, a ser regulamentado e instituído com supedâneo na autorização descrita no art. 216 da Constituição Federal, como forma de proteção do patrimônio histórico-nacional.
Passo contínuo, vê-se ainda que o art. 2º, §§ 2º e 3º do Decreto n. 4.887/2003 peca por uma outra impropriedade, contrariando a previsão constitucional, ao inovar no ordenamento jurídico e criar a figura da ocupação presumida, que prevê a delimitação e demarcação de áreas como remanescentes de quilombos, indicadas pela própria comunidade:
“Decreto n. 4.887/03. Art. 2o (…)
§ 1o (…)
§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.”
Mais uma vez citando o Parecer elaborado por VELLOSO, nos autos da ADI 3.239, resta patente a contrariedade do disposto no decreto com a previsão constitucional, na medida em que inova-se, passando a se presumir uma ocupação, a partir da própria afirmação da comunidade:
“Também no que diz respeito à própria ocupação, o Decreto 4.887/2001 não prevê qualquer pesquisa étnica, histórica e cultural do grupo, para comprovar essa posse centenária a ser convertida em propriedade. No revogado Decreto 3.912/2001 havia tal previsão. Todavia, o regulamento atual se contenta com a afirmação da comunidade, o que pode gerar desvirtuamentos contrários ao objetivo da norma constitucional.”
Ora, de feito, a previsão infralegal, abarcando a nominada ocupação presumida, contraria a norma constitucional, posto que nesta há uma ordem para a expedição da titulação de propriedade aos remanescentes de quilombos que “estejam ocupando suas terras”, em outras palavras, há necessidade de efetiva comprovação da ocupação centenária das terras pelos descendentes de quilombolas, não se admitindo mera fruição do direito por presunção infralegal.
Por essas razões, sustenta-se que a inovação do decreto contraria a norma constitucional ao desvirtuar a sua finalidade. Ademais, a ocupação efetiva do território deve ser demonstrada a contento e, por fim, os parâmetros de identificação devem ser estabelecidos em lei, para a garantia da sociedade e dos próprios beneficiários da benesse constitucional.
Conclusão.
Pelo que restou exposto no presente trabalho, pode-se concluir que efetivamente a norma infralegal contida no Decreto Presidencial n. 4.887/2003, objetiva à salvaguarda dos direitos mínimos aos remanescentes de quilombos, visando dar-lhes a necessária dignidade, bem como a manter protegido um traço histórico e de comportamento que tanto contribuiu para a construção da identidade brasileira.
Entretanto, o decreto foi muito além do que queria o constituinte originário, pelo que não é incorreto afirmar que o mesmo pecou pelo excesso.
Com efeito, viu-se que, através de um ato normativo de status infralegal, vindo “de cima para baixo”, sem o controle popular típico do processo legislativo, pretendeu o Poder Executivo Federal forçar uma nova interpretação à benesse constitucional do art. 68 do ADCT, dando-lhe alcance para lá de extensivo, criando novas figuras jurídicas e competências administrativas.
De fato, como visto, pode-se apontar vícios de legalidade ao Decreto n. 4.887/2003, posto que veio a inovar, atribuindo competências administrativa ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por intermédio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a competência para a execução material de suas disposições, em contrariedade ao que previa as anteriores leis n. 9.649/98 e n. 7.668/88.
De igual sorte, referido decreto, na medida em que se caracteriza como ato normativo autônomo, é passível de controle de constitucionalidade, pelo que se mostra formalmente inconstitucional, na medida em que cria direitos e impõe pesadas obrigações aos particulares, sem esteio nas normas de envergadura superior.
Por fim, é de se atentar ainda que o decreto inova no ordenamento, pelo que se mostra materialmente inconstitucional, posto que criou nova modalidade de intervenção na propriedade privada, bem como impôs os conceitos jurídicos inovadores de auto-atribuição, autodefinição e ocupação presumida, para fins de regulação do art. 68, ADCT, institutos estes que não estão previstos em qualquer ato normativo de cunho primário, tampouco na Constituição Federal, a qual somente previu a atribuição da titularidade do domínio aos remanescentes que estivessem ocupando as terras respectivas na data da promulgação da Carta Constitucional, só isso!
Por tudo isso, ainda que se considere dignos de nota e aplausos as políticas assistencialistas promovidas pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que a todo custo visa retirar os remanescentes das comunidades quilombolas da marginalização, oferecendo-lhes mínimos recursos sociais, fato é que o Decreto n. 4.887/2003, da forma como publicado, mostra-se manifestamente inconstitucional, o que poderá prejudicar muitas famílias já beneficiadas pelas suas disposições.
Ao ensejo da conclusão, resta agora aguardar o desfecho do julgamento da ADI n. 3.229, em curso de votação no Supremo Tribunal Federal, pelo que se espera, por fim, encerrar os longos debates e discussões a respeito da higidez da norma infralegal, mas que isso não signifique obscurecer ou olvidar das comunidades remanescentes de quilombolas, notadamente esquecidas e que, no momento, mais necessitam das políticas públicas sociais e assistencialistas.
Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhangera. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros Minas Gerais. Advogado
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