Resumo: Este artigo tem o objetivo de tratar do tema da religiosidade dos povos antigos e da forma de religiosidade proposta pelo autor norte americano Ronald Dworkin em sua obra “Religião sem Deus”. Para tanto, serão trazidas noções antropológicas sobre o assunto sem, contudo, especificar o tempo histórico exato que se tem em perspectiva. Para uma melhor compreensão acerca dos cultos ancestrais, faz-se necessário resgatar as pesquisas realizadas por Fustel de Coulanges, em seu livro “A Cidade Antiga” que aborda o surgimento das primeiras entidades familiares estruturadas na mística e na espiritualidade humana, em um momento no qual a convivência coletiva nas cidades ainda não existia. Relata, ainda, a origem e o desenvolvimento de importantes institutos jurídicos como o casamento, adoção, emancipação e sucessão que tiveram seus regramentos traçados a partir dos ditames religiosos desta época. Para complementar a perspectiva da religiosidade ancestral, colaciona-se a abordagem psicanalítica e antropológica da obra Totem e Tabu de Sigmund Freud. Em seguida, faz-se breve passagem pela mitologia greco-romana e pelo cristianismo como grandes sucedâneos ideológicos- espirituais dos cultos ancestrais. Por fim, analisar-se-á a proposta feita por Ronald Dworkin a respeito de sua concepção de atitude religiosa e sua relação com o teísmo e ateísmo.
Palavras-chave: Religião, antiga, mitologia, cristianismo, teísmo e ateísmo.
Abstract: This article aims to address the theme of religiosity of ancient people and the religiosity proposed by north american author Ronald Dworkin in his work Religion Without God. To do so, will be brought antropological notions about the subject without, however specify the exact historical time what's in perspective. For a better understanding about the ancient cults, it is necessary to rescue the research conducted by Fustel de Coulanges in his book The Ancient City that accosted the emergence of the first family structured entities in human mystical and spirituality, in a moment. which the collective social interaction in cities did not exist. Reports the origin and developing of important legal institutes such as marriage, adoption, emancipation and heritage that has specific regulations designed by religious dictates of that time. To improve the perspective of the ancient religion, will also be added the psychoanalytic and antropological approach of the book Totem and Taboo of Sigmund Freud. Then, do be brief approach of Greco-Roman mythology and Christianity as later cults ancestors. Finally, it will examine the proposal made by Ronald Dworkin regarding his conception of religious atitude and its relationship with theism and atheism.
Keywords: Religion, ancient, mythology, christianity, theism and atheism.
As obras que se têm como referência para este artigo são Religião sem Deus de Ronald Dworkin (2013) e A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges (1864). São livros separados no tempo, mas unidos na temática sobre religião, transcendência, Deus, morte, enfim, sobre o natural e o sobrenatural.
A Cidade Antiga é a reunião de pesquisas históricas, análises etimológicas e documentais, esculturas, pinturas e objetos muito antigos que remontam (ou tentam remontar) a uma época pré-clássica sem, contudo, estabelecer uma data exata. Ao contrário disto, é expresso e proposital ao longo do texto a ausência de referências temporais específicas.
Trata de um tipo de protocivilização na qual as cidades como organização do espaço coletivo ainda não existiam. Havia as primeiras entidades familiares dispostas de maneira esparsa e que, segundo Coulanges, nunca acreditaram que depois desta vida tudo se acabaria para o homem. Sustentavam a crença numa segunda existência depois da presente.
O elemento central era uma determinada religiosidade expressa pelos cultos domésticos, praticados por cada família em separado. Eram tantos os cultos quanto eram as famílias. Havia, inclusive a proibição de qualquer interferência de um culto sobre outro. Cada cerimônia religiosa era praticada somente pelos membros de determinada família, em âmbito doméstico, com uma ritualística própria e eram ministradas exclusivamente pelo pai, que era o regente da família.
As adorações eram dirigidas aos membros falecidos da família e também ao Deus Lar, fogo sagrado situado no interior da casa. Pode-se dizer que um era a expressão do outro. Ao Deus Lar eram dirigidas preces e pedidos de sabedoria e castidade. Daí Coulanges afirmar inclusive que: “o fogo do lar é uma espécie de ser moral”.[1]
A refeição era dividida; o sacrifício e o altar formavam uma congregação que identificava seus participantes de modo a conectá-los em laços profundos e duradouros de união.
Nestas acepções, a descendência era elemento fundamental. Os filhos homens tinham o dever de zelar pelo pós- vida de seus antecessores. Para isto, levavam repastos compostos de bolo, frutas, vinho e leite para os mortos. Conversavam com eles, pediam proteção e orientação.
Acreditava-se numa existência após a morte, mas não em outra dimensão e sim na continuidade da vida ali debaixo da terra. Tanto é assim que muitas vezes enterravam o parente morto com seus pertences e até mesmo com os escravos, porque acreditavam que estes continuariam sendo úteis ao dono falecido.
Sobre esta prática, diz Jean-Pierre Vernant:
“Prestam-se enfim, mais que outras formas de riqueza, a uma apropriação individual que poderá perpetuar-se além da morte: colocados ao lado do cadáver, como “pertences” do defunto, segui-lo-ão a seu túmulo”.[2]
A partir desta crença, consideraram o sepultamento necessário para que o corpo e sua alma tivessem morada, descanso e recebessem as homenagens devidas, sem as quais a alma permaneceria errante e assombraria os vivos. Não havia paraíso nem inferno; nem Tártaro, nem Campos Elísios; uma vez no túmulo, o homem não tinha mais nenhuma conta a prestar.
Nos tempos remotos descritos em A Cidade Antiga, os deuses se constituem na passagem da vida para a morte. É dizer: a morte transforma o ente familiar falecido em divindade. Como bem sintetiza Coulanges: “A morte foi o primeiro mistério e encaminhou o homem para outros mistérios. Elevou-lhe o pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino”.[3]
O falecimento de um membro da família transformava aquela pessoa em uma espécie de Deus. Ao parente morto prestavam-se homenagens periódicas, dirigiam-se orações e pedidos de ordem prática, como a fartura de alimentos e de animais.
Assim como os mortos eram divinizados, o solo no qual eram sepultados era sagrado. Desta forma, estabeleceram-se as primeiras características da relação do homem com a propriedade, e também com outros institutos basilares para o Direito como o casamento, a adoção e a sucessão que tiveram na religiosidade seus primeiros regramentos. Todos estes institutos eram disciplinados de modo a não permitir que os cultos se misturassem ou se perdessem.
A propriedade teve seus contornos iniciais traçados pela acepção de sacralidade do solo. No momento em que o falecido era enterrado, ocorria uma associação indissolúvel entre a família e a terra sobre a qual esta estava estabelecida. Afinal, ali repousavam eternamente os deuses daquele núcleo familiar.[4]
Assim como os deuses não eram compartilhados entre as famílias, não podia haver propriedades contíguas. Era preciso deixar uma faixa de terra neutra e sem dono entre as casas, pois se os terrenos vizinhos se confundissem as religiões se contaminariam uma com a outra, o que era terminantemente proibido.
A terminologia propriedade vem daquilo que lhe é próprio, dada a profundidade da mistura inicialmente ocorrida entre as crenças transcendentes do indivíduo e o solo ocupado por ele. Esta relação com o solo era estabelecida desta forma porque a casa era o lugar onde fogo sagrado, o Deus Lar, devia estar constantemente aceso, protegendo, ao mesmo tempo, a casa e seus moradores. A propriedade era elemento indispensável para a experiência do culto doméstico e estava, assim, incorporada à família.
A imortalidade possível para os antigos estava na família, nos antepassados e nos descendentes, naqueles que já se foram e nos que virão. A finitude humana era contornada pela ideia de sucessivas gerações que perpetuavam os mesmos valores, os mesmos deuses, os mesmos mortos, enfim, o mesmo culto. A certeza de que seria honrado pelo filho assim como o fez pelos pais e avôs, aplacava o medo do homem antigo de tudo um dia se acabar. Ao contrário, prosseguirá! A casa, os bens, o matrimônio, tudo deve transcorrer de modo a garantir essa continuidade sagrada.
Esta passagem contida na obra As Leis, de Platão indica a relação estabelecida entre família, patrimônio e finitude humana na concepção dos antigos:
“para vós que não durareis mais do que um dia é bastante difícil presentemente conhecer vossos próprios bens, e como diz a inscrição do oráculo de Delfos, conhecer a vós mesmos neste momento. Assim eu, como legislador, estabeleço esta regra: que tanto vós mesmos quanto esses vossos bens não vos pertencem mas à totalidade de vossa família, vossa raça, passada e futura (…).”[5]
Os ritos matrimoniais eram estruturados de modo a respeitar as regras desta religiosidade. A mulher ao ser desposada devia abandonar a sua religião original, aquela professada na casa dos pais, para então aderir à religião do marido. Isto porque não era possível para uma mesma pessoa ter duas crenças ao mesmo tempo. O casamento era o momento no qual a mulher, ao despedir-se de sua família, também deixava para trás o seu culto para poder, daí em diante, adorar aos deuses do seu novo lar: as divindades da casa do esposo.
Toda a cerimônia do casamento simbolizava a necessidade de seguir esta normativa religiosa. Iniciava-se o rito com a noiva deixando o lar paterno, entregue ao pretendente por seu pai. Em seguida, o noivo segurava a futura esposa no colo, simulando um rapto. Ela, por sua vez, deveria lançar gritos e as mulheres que a acompanhavam deviam tentar defendê-la, entoando hinos e cânticos. O ato deveria parecer forçado e involuntário. Tudo isto fazia parte de uma grande mise-en-scène necessária para não ofender o deus deixado pela noiva.
Este aspecto do ritual chama a atenção pelo seu viés teatral. A necessidade de simular uma situação com a intenção de aplacar possíveis ofensas ao deus denota uma concepção de divindade não onisciente, passível de ter sua visão orientada por um jogo de cena montado pelos homens. Não era um deus que tudo vê ou tudo sabe, ao contrário, é uma entidade em relação a qual os fatos da vida que lhe são apresentados são seletivos de forma a não desagradá-lo.
Por fim, concluía-se o rito matrimonial com os nubentes invocando preces e dividindo bolo, pão e frutas diante do fogo sagrado da nova casa. Realizados estes atos, o casal estava pronto para compartilhar o mesmo culto, os mesmos deuses e integrar, portanto, uma mesma família. Neste sentido, bem esclarece Coulanges: “A família antiga é mais uma associação religiosa do que uma associação natural”.[6]
A adoção também era organizada de modo a seguir e a permitir a continuidade do culto familiar. Aquele pater familias que não havia deixado descendente varão, podia e devia adotar um filho para garantir que as homenagens fúnebres fossem devidamente realizadas. Isto significava a oferenda periódica dos repastos e que as preces deviam ser invocadas segundo a tradição dos antepassados daquela família.
As normas para a sucessão e herança não escapavam das imposições religiosas desta época antiga. Aquele que recebia os bens do de cujus ficava também responsável por prestar as homenagens póstumas aos seus antepassados e a prosseguir os ritos religiosos da família. O herdeiro era o continuador do culto.
Toda a estrutura sucessória funda-se na ideia de que o homem é transitório e finito; já o patrimônio é material é perene, imóvel e atemporal. As gerações sucedem umas às outras com a obrigação de perpetuar a guarda da propriedade e da religião doméstica.
Característica peculiar destes tempos é que somente o filho homem herdava; a filha, não. Sustenta Coulanges que isto tinha fundamento no fato de que cabia ao descendente varão dar prosseguimento ao culto familiar. A mulher prestava homenagens aos entes falecidos do marido e não aos de sua família original.
Se permanecesse solteira até a ocasião da morte do pai, deveria estar sob a tutela de seu irmão ou de algum parente homem mais próximo. Portanto, como a mulher não era a protagonista dos ritos religiosos da família, a linhagem feminina era excluída do direito sucessório.
O fogo era elemento sagrado dos ritos e era em torno dele que a família se reunia para proceder às cerimônias religiosas. Este fogo situava-se dentro da casa onde habitava a família. Daí a fusão entre religião, família e propriedade.
A propriedade, o casamento, a adoção e a sucessão organizadas de modo a atender os ditames religiosos são alguns exemplos de como as crenças antigas constituíam um elemento nuclear para as primeiras formas associativas do ser humano.
As primeiras formas de religiosidade dos povos antigos eram vivenciadas de forma particular, individual ou familiar. Somente em momento posterior os cultos tornam-se compartilhados por grupos estendidos. A religiosidade foi, de certa forma, institucionalizada ao ganhar as cidades.
Com o passar do tempo, a representação de Deus e também a relação do homem com o transcendente modificou-se. A religiosidade, antes integrada aos elementos do cotidiano e da vida doméstica, desloca-se superando os limites traçados pelos cultos familiares; transfere-se do âmbito residencial para a cidade; as experiências místicas saem da família e tornam-se amplamente coletivas.
As famílias foram reunindo-se em fratrias e, em seguida, estas deram origem às tribos. As tribos foram associando-se de modo a constituir as cidades. Assim, os primeiros agrupamentos humanos estruturam-se em quatro dimensões coexistentes: a família, a fratria, a tribo e a cidade. Independentemente da motivação ou do impulso que culmina neste tipo de organização social, a religiosidade esteve sempre presente.
No início das cidades, havia o respeito à independência religiosa das famílias e das tribos que mantinham sua autonomia para proceder à ritualística de seus cultos. Outrossim, os aspectos da vida civil e jurídica permaneciam sob o comando do pater famílias. O espectro doméstico conservava-se, neste sentido, independente da organização comum coletiva.[7]
As fundações das cidades eram momentos repletos de ritos místicos, considerados absolutamente necessários para que este empreendimento obtivesse sucesso duradouro.
O destino da cidade dependia de sinalizações favoráveis dos deuses, que indicavam o local e a forma de se estabelecer ali o futuro espaço de convivência social. Ignorar isto era o mesmo que condenar a cidade ao infortúnio, à desgraça e ao inevitável declínio.
Desta forma, vê-se que a religiosidade persiste como elemento nuclear das sociedades antigas, que mesmo crescendo numericamente e expandindo-se geograficamente, prestam reverência aos cultos dos antepassados.
Mas à medida que crescem as fusões entre os vários grupos, unificam-se também as crenças, os deuses adorados e os hábitos religiosos. A religiosidade que irradiava orientações para o homem antigo, também sofria influências externas que lhe impunham alterações com o passar do tempo e com as mudanças nas estruturas dos espaços públicos.
As crenças incorporavam e abandonavam elementos (alguns de forma gradativa, outros abruptamente), de modo a acompanhar e a refletir as novas formas de sociabilidade.
Sobre estas mudanças, relata Vernant:
“O mundo dos mortos distanciou-se, separado do mundo dos vivos (a cremação partiu o liame do cadáver com a terra); uma distância insuperável se estabeleceu entre os homens e os deuses (o personagem do rei divino desapareceu). Assim em toda uma série de domínios, uma delimitação mais rigorosa dos diferentes planos do real prepara a obra de Homero, esta poesia épica que, no seio mesmo da religião, tende a afastar o mistério”.[8]
Na mitologia greco-romana os deuses eram ainda antropomórficos, mas viviam apartados no Monte Olimpo, caminhando ente os homens apenas ocasionalmente. Possuíam características humanas, mas também poderes sobrenaturais. As preces e os sacrifícios eram ofertados ao deus de cada providência.
Em momento anterior à mitologia grega acreditava-se e reverenciava-se o parente morto, aquele com o qual tinha havido convivência próxima e íntima. A civilização grega ao conceber e incorporar os deuses olímpicos em sua fé (e sua cultura) torna perceptível o afastamento que ocorre entre os homens e suas divindades.
Posteriormente, com a disseminação do Cristianismo, cresce a noção de um Deus unificado, ou seja, ganha cada vez mais adeptos a concepção de que há um só Deus. Ao mesmo tempo, pretendeu ser uma religião disponível para todos os homens. Ao contrário da religiosidade descrita em A Cidade Antiga, o cristianismo não sustentava distinção entre as famílias e os povos. Apresentou-se como a mais abrangente possível.
O apóstolo Paulo foi peça-chave na popularização do cristianismo, alargando suas fronteiras e multiplicando seus fiéis. A abrangência do Cristianismo operou mudanças sociais fundamentais e condicionou, ainda que em graus variados a cultura e o pensamento ocidentais.
Entretanto, muitas similaridades podem ser observadas entre o cristianismo e as crenças antigas. Não houve uma ruptura tão abrupta, de modo a abandonar completamente os elementos ancestrais que permaneceram cultivados pela ritualística católica, ainda que travestidos, amenizados ou transformados em alegorias.
Em suas investigações sobre o homem primitivo e a dinâmica dominante das tribos ancestrais, Sigmund Freud resgata as origens de comportamentos, crenças e ritos que perpetuaram seus efeitos por muitos séculos chegando até os seus dias (e também hoje) ao dizer que há muitas similaridades entre os medos e proibições dos povos antigos e a neurose moderna.
Em Totem e Tabu, Sigmund Freud traça um paralelo entre os cultos antigos e o cristianismo:
“Assim, na doutrina cristã a humanidade reconhece, de modo mais franco, o ato culposo de um tempo primordial, pois apenas no sacrifício do filho encontrou a mais plena expiação para ele. A reconciliação com o pai é tanto mais sólida porque, simultaneamente a este sacrifício, ocorre a total renúncia às mulheres, pelas quais tinha havido a rebelião contra o pai.(…) A religião do filho substitui religião do pai. Como sinal desta substituição é reavivada a antiga refeição totêmica, na forma de comunhão em que os irmãos provam a carne e o sangue do filho, não mais do pai, dessa maneira se santificando e se identificando com ele. Nossa visão acompanhou, através dos tempos, a identidade da refeição totêmica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia, percebendo em todas essas cerimônias o efeito do crime que tanto pesou sobre os homens, e do qual, ao mesmo tempo, eles tanto puderam se orgulhar. No fundo, a comunhão cristã é uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato a ser expiado.”[9]
Freud remonta, assim, a gênese da ritualística e da culpa cristã aos tempos das organizações tribais mais remotas. Destaca a centralidade do sacrifício (derramamento de sangue) como ato necessário para a purificação dos pecados e expiação da culpa. Assim, os elementos da carne e do sangue são comuns aos antigos e aos cristãos.
A ingestão dos restos mortais do animal sagrado, ato subsequente à imolação da vítima, tal como ocorria nos tempos antigos, foi substituído de forma alegórica pela liturgia católica, que manteve a ideia original, mas a prática que se perpetuou foi a de identificar na ingestão da hóstia e do vinho os símbolos da carne e do sangue da própria divindade.
A realização de sacrifícios, a relação parental, (especificamente de pai e filho) a transubstanciação da carne e do sangue e a necessidade de se expurgar as impurezas por meio de sofrimento, flagelos violentos e também pela morte, estavam presentes nas cerimônias procedidas pelas organizações tribais mais remotas, assim como no catolicismo.
Afirma Freud que as sociedades primitivas eram regidas por duas grandes instâncias: o totem e o tabu. Estes dois elementos complementavam-se no estabelecimento de importantes regras, basilares para a convivência entre os componentes do clã e também para a relação com as outras tribos.
O totem era uma espécie de divindade tribal e era comumente representado por um elemento da natureza, na maioria das vezes, um animal que tinha especial representatividade para aquela comunidade.
O totem dava proteção para os membros da tribo e estes, em contrapartida, prestavam-lhe homenagens por meio de sacrifícios, danças e festas nas quais imitavam o totem com seus movimentos e características. Relata Freud que este animal totêmico tinha também a dimensão de representação do ancestral comum do clã.[10]
As duas principais regras impostas pelo totem da cada tribo eram as seguintes: não matar o totem e abster-se de sua carne. Isto significa que todos os animais da espécie do totem deveriam ser poupados por aquele clã.
A morte do animal totêmico só era permitida em cerimônias específicas e fortemente ritualizadas nas quais a interrupção de sua vida não era simples assassinato e sim um sacrifício revestido de sacralidade e repercussões para aqueles povos.[11]
Após a morte do totem, sua carne era compartilhada entre os membros da tribo com a intenção de que assim, absorveriam as características preponderantes e admiradas daquele animal. Tinham com este ato a intenção de estreitar laços e de assemelhar-se ao animal adorado.
Já o Tabu é expressão que comporta duplo significado remetendo, ao mesmo tempo, a algo sagrado e também impuro. Este sentido ambivalente do termo, sustenta Freud, é uma possível explicação para a coexistência de sentimentos opostos na emotividade do homem ancestral[12].
O tabu (em decorrência das proibições totêmicas) ditava dois regramentos fundamentais: não eliminar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os indivíduos pertencentes ao mesmo totem.[13]
A dualidade, o binômio que se conjugava de forma constante na vida e na psiquê do homem primitivo levava à convivência incessante do crime e do castigo, do assassinato e da purificação, do pecado e da expiação, do desejo e da repressão.
O estado de ambivalência dos sentimentos transforma o parricida em adorador do pai morto. Em momento posterior ao assassinato do patriarca, nasce a necessidade de sua adoração e divinização pelos membros da tribo.
As homenagens fúnebres celebram o ente eliminado do convívio, muitas vezes de forma violenta, em sangrentas disputas pelas fêmeas, pela chance de deixar o maior número de descendentes e pelo poder de comandar e subjugar seus semelhantes.
Mas para que a rotina tribal transcorresse com fartura de alimentos, livre de desastres naturais e fertilidade crescente (dos homens e dos animais) era preciso manter os deuses satisfeitos e agradados. Assim, os sacrifícios tinham a função de presentear as divindades para que todos estes (e também outros) pedidos fossem atendidos. O homem antigo acreditava na negociação, na barganha e na troca com seus deuses.[14]
O ritual do sacrifício e a necessidade de oferendas sucessivas às divindades, tão antigos entre os homens, determinou não apenas os vínculos com os deuses como também as relações sociais paritárias e de autoridade entre os homens.[15]
Afirma Henrique Garbellini Carnio:
“O homem primitivo estabelece relações com as autoridades sobre-humanas por conexões de retribuição, ou seja, por promessas, por sacrifícios e por orações. Com isso, o mago, que em algumas sociedades identifica a si mesmo com as autoridades – o que cria uma organização social na qual se forma um sistema de castas com uma classe especial de feiticeiros – comunica-se com as autoridades sobre-humanas não apenas informando o que se espera delas, mas também dando-lhes algo como oferenda”.[16]
O homem ancestral é dotado de uma concepção coletivista profunda do meio em que vive, ele considera tanto a boa sorte como os infortúnios, acontecimentos que acometem e dizem respeito à comunidade como um todo e não apenas ao indivíduo singularmente considerado.
De igual modo, seus atos têm repercussão em todos os membros da tribo. Portanto, o sentido de responsabilidade pelo proceder adquire dimensão abrangente, que extrapola as consequências pessoais para irradiar seus efeitos sobre a integralidade do clã.[17]
Os nossos ancestrais tinham medo e pelo medo eram motivados. O sentimento de apequenamento diante da grandiosidade do universo, da beleza e da harmonia dos corpos celestes, levava à necessidade de se estabelecer alguma interlocução com as divindades, que também eram vistos como seres poderosos, mas com os quais era possível o diálogo, a negociação e, em alguma medida, a manipulação dos ânimos divinos.
Os deuses eram entrepostos, mediadores que aplacavam a força incontrolável da natureza pelos homens e no interesse e conservação deles, desde que estivessem em boa relação. Daí a importância de se agradar aos deuses, investigar seus desígnios e homenageá-los periodicamente.
A reação humana diante da contemplação da natureza é também ambivalente, é repleta, ao mesmo tempo, de angústia e maravilhamento. O homem pede aos deuses que intercedam na contenção das forças naturais, porque entende que ele sozinho não é capaz de fazê-lo.
É o que se vê neste trecho de Lucrécio[18]:
“Efetivamente, quando olhamos cá debaixo os espaços celestes do grande mundo e as estrelas brilhando no alto sobre o fixo éter, e vêm ao espírito os caminhos do sol e da lua, então o cuidado que no peito outros males oprimem acorda e começa a levantar a cabeça, a saber se por acaso não haverá frente a nós mesmos um imenso poder dos deuses que seja capaz de dirigir num variado movimento as resplandecentes estrelas. A pobreza da ciência traz uma tentação à mente que duvida e quer saber se houve realmente a origem do mundo, se há realmente um fim para ele e até quando poderão as muralhas do mundo suportar a fadiga do inquieto movimento, se revestidas por divino poder duma força eterna, poderão, batidas pela passagem do tempo, desprezar para sempre as fortes forças desse tempo imenso.
Além disto, a quem não aperta o ânimo com o pavor dos deuses, a quem se não arrepiam de medo os membros, quando a terra abrasada treme toda com o choque terrível dos raios, quando os rugidos percorrem todo o céu? Não tremem os povos e as nações, não encolhem seu corpo os reis soberbos, tomados pelo pavor dos deuses, com o receio de que tenha chegado o terrível tempo de sofrer castigo por algum crime vergonhoso ou por uma palavra insolente?”[19]
As divindades controlavam as forças naturais e com elas se confundiam muitas vezes, interferindo na relação do homem com os fenômenos naturais, de acordo com este modo de conceber dos deuses.
Mas apesar destas semelhanças, a religiosidade dos povos relatados por Coulanges diferenciava-se das maiores religiões modernas em pelos menos dois aspectos fundamentais: não há um único Deus e nem um Deus para todos os homens.
Muito distante disto, cada família tinha seu culto com divindades próprias e as divindades eram só daquela família. Não há partilha de culto entre famílias diferentes.
Isto significava uma enorme independência e liberdade para determinar as cerimônias regidas pelo pater familias que não devia obediência a nenhuma autoridade externa neste quesito. A prática religiosa não era, neste sentido, institucionalizada.
Mas na contemporaneidade, o autor norte americano Ronald Dworkin em sua obra derradeira intitulada Religion without God estende o conceito de religião e, de certa forma, resgata algumas dimensões da religiosidade antiga.
A atitude religiosa proposta por Dworkin, aproxima-se, em alguns aspectos, dos cultos relatados por Coulanges. A religiosidade antiga professa crenças descentralizadas e sem hierarquia externa e não se funda no temor de ser julgado por uma instância superior e de ser sentenciado ao céu ou ao inferno. Nasce da experiência fúnebre e da concepção da morte.
Para a religiosidade antiga e para atitude religiosa de Dworkin não há um só Deus e nem deuses compartilhados pelos povos. Há, sim, uma relação com o transcendente, mas experimentada de forma fragmentada e descentralizada.
Na religiosidade proposta por Dworkin, a religião volta a ser uma experiência individual, íntima e interna que prescinde das instituições para ser cultivada e operar efeitos em seus adeptos.
Afirma Dworkin que muito comumente a diferenciação religiosa é feita entre teístas e ateístas considerando a crença ou não em um Deus personalizado, tal como é concebido nas maiores religiões teístas – Cristianismo, Judaísmo e Islamismo.
Prossegue dizendo que a atitude religiosa é mais ampla do que isto. Ela se expande para a crença no transcendente e não requer, necessariamente, um Deus personalizado.
Sustenta que a religião é composta de duas partes: a científica e a valorativa. O que separa os teístas dos ateístas é a parte científica e não a parte valorativa da religião. É dizer: teístas e ateístas não divergem na crença de que há um modo, digamos, correto de se viver, de se portar, enfim, de se conduzir pela vida – são o que Dworkin chama de ateístas religiosos.
Esta é a parte valorativa da religião. O ponto de separação está na explicação para os fenômenos naturais – na parte científica. É a ciência que divide os “com” e os “sem” Deus.
Este elemento do “bem viver” ou a crença do indivíduo de que conduz bem a sua vida é tão importante, que Dworkin chega a afirmar que é aí que se pode pensar na única forma de imortalidade possível para o ser humano.
Diz ainda o autor que a origem e a explicação para o universo, se dada pela ciência ou pela religião, no fim das contas, convergem na necessidade de se interromper o regresso infinito. É o questionamento da causa da causa, sucessivamente. Conclui Dworkin que é por isso que Aristóteles afirma que deve ter uma causa sem causa, um primeiro movimentador, um motor imóvel: um Deus! Assim, Deus é uma necessidade conceitual (ou um imperativo lógico).
Dworkin afirma que a história gerou duas grandes convicções: a crença numa força inteligente superior e a junção de convicções éticas e morais profundas, e conclui, em seguida que, ateístas e teístas podem ser parceiros nas suas mais profundas ambições por terem as mesmas bases para uma convicção moral.[20]
A atitude religiosa consiste na convicção de que há um modo independente e objetivo de se viver. Os teístas e os ateístas discordam sobre a explicação das verdades da matéria e da mente, mas não sobre as verdades de valor.[21]
A atitude religiosa (que é este conceito ampliado de religião para Dworkin) compreende dois paradigmas: o significado intrínseco da vida e a beleza intrínseca da natureza. O primeiro significa que a vida humana tem sentido objetivo e importância. O segundo abrange a concepção do universo como um todo.
Isto porque nós seres humanos temos dupla dimensão: como seres da natureza temos existência física e, como somos dotados de consciência de nós mesmos, somos apartados desta mesma natureza.[22]
Afirma Dworkin que é crescente a concepção de uma religiosidade mais ampla e fundamenta seu argumento também na análise de interpretações jurídicas e judiciais sobre liberdade religiosa nos Estados Unidos da América.
Sustenta sua conclusão dizendo que está superado o entendimento que conferia proteção jurídica somente para os teístas e que a liberdade religiosa compreendia apenas a possibilidade de escolha entre as religiões existentes.
Prossegue argumentando que, hodiernamente, tem-se decidido que a liberdade religiosa abrange a opção de não escolher religião nenhuma e, que esta categoria inclui os ateístas. Portanto, a suprema corte norte-americana e também os tribunais inferiores têm estendido proteção jurídica para grupos que se intitulam religiosos sem deus.
Mas em seguida, questiona Dworkin: “a liberdade religiosa é somente sobre deus”? Para propor resposta a esta questão, Dworkin diz que a liberdade política tem dois componentes distintos: a independência ética e os direitos especiais.
A independência ética significa que o governo não deve nunca restringir a liberdade, porque isto implicaria num só modo de viver a vida ou que há alguma forma melhor do que outras de se viver. Em um Estado que valoriza a liberdade, deve ser deixado a cargo dos cidadãos individuais decidirem estas questões para si mesmos. A restrição da liberdade deve justificativas determinadas em detrimento de outras.
Os direitos especiais, em contrapartida, têm lugar mais poderoso e abrangente nas constrições para o governo. A limitação destes direitos deve ser excepcionalíssima. Exemplos de direitos especiais são a liberdade de expressão, o devido processo legal e julgamento justo.
Apesar do esforço empreendido por Dworkin e pelos efeitos acolhedores que pode ter a extensão do conceito de religiosidade, a chamada atitude religiosa descrita pelo autor norte americano é comportamento moral e não religioso.
A crença de que há uma melhor forma de se conduzir pela vida e a apreciação (ainda que numinosa) da natureza não caracterizam relação ou crença no transcendente.
Os temores descritos por Dworkin como possíveis de serem sentidos por um ateísta religioso, não são do plano imaterial, são sanções sociais, enfim, morais.
Ao encaminhar sua proposta para o conceito jurídico de liberdade religiosa e com isto tentar incrementar a possibilidade de extensão do conceito de religiosidade nas interpretações e decisões judiciais, Dworkin resta por orientar a discussão para seu aspecto judicializado.
Esta orientação não contribuiu para a elucidação dos conceitos e, ao mesmo, depositou nas decisões da Suprema Corte norte americana a esperança de superação de questões que não cabe a poder judiciário de nenhum país (ou supranacional) enfrentar.
A expectativa de resolução das mais amplas necessidades e dos mais variados anseios humanos pelo Direito, seja por via legislativa, doutrinária ou judicial, tem nos levado à crescente e exagerada judicialização da vida, ainda que, em contrapartida, as instituições tenham perdido significado de autoridade.
Sobre isto Giorgio Agambem esclarece:
“Os poderes não são hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja, que a ilegalidade é difundida e generalizada porque os poderes perderam toda a consciência de sua legitimidade. Por isso é vão acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio da ação (certamente necessária) do poder judiciário- uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente ao plano do direito. A hipertrofia do direito, que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela, isso sim, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial”.[23]
A tentativa desmedida de solucionar ou silenciar aspectos problemáticos e inquietantes pela via jurídica resultam em algo oposto ao pretendido, quer dizer, o excesso de invocação do direito banaliza seu sentido e esvazia sua efetividade.
O direito para se situar melhor, funcionar melhor e para atingir suas finalidades sociais pretendidas e necessárias precisa se reconhecer limitado e ineficaz em diversos acontecimentos da vida.
Fenômenos naturais como nascer, envelhecer e morrer extrapolam e muito a órbita jurídica, e mais importante do que isto: independem do Direito, das conceituações jurídicas doutrinárias e das tentativas de enquadramento legais para integrarem a experiência humana.
Nós seres humanos temos necessidade de arte, de poesia, de música, de cinema, de romance, de filosofia, de religião, de misticismo, de espiritualidade e de muito mais. Precisamos das relações pessoais, afetivas e intelectuais. E pode ser que tudo isto ainda não seja suficiente.
Por isso não se pode ter a pretensão de saciar as necessidades (dos mais variados tipos) humanas com uma coisa só. Parece não ser satisfatório buscar preencher só o vazio físico ou só o mental ou só o espiritual isoladamente.
Assim, encerro este artigo refletindo que talvez a satisfação possível esteja na harmonia entre corpo, mente e alma. E na atitude contemplativa da natureza, no sentimento de pertencimento ao universo e no saber situar-se no cosmos.
Professora da ESA/DF e da Fundação Dom Cabral. Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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