Autora: Marianne Pauletti dos Santos – Acadêmica de Direito no Instituto Federal do Paraná (IFPR). E-mail: mariannepauletti518@gmail.com
Orientadora: Luana Michalski de Almeida Bertolla. Professora Substituta do Instituto Federal do Paraná (IFPR). Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Direito Público pela Faculdade Anhanguera/UNIDERP. Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: luana.michalski@ifpr.edu.br
Resumo: Esta pesquisa foi direcionada para a compreensão da importância do princípio da função social da propriedade, e, nesse sentido, também demonstrou que a delimitação de áreas de reserva legal nas propriedades rurais caracteriza-se como um dos mecanismos mais efetivos no cumprimento da chamada função socioambiental da propriedade, que, por sua vez, fundamenta-se na percepção de que os recursos naturais são finitos. Conforme ensinamentos do texto constitucional brasileiro, é dever inerente à qualidade de proprietário manter o exercício do direito de propriedade em consonância com as exigências sociais e ambientais previstas em lei; isso quer dizer que a estrutura do direito à propriedade privada sofreu importantes modificações em seu conceito e conteúdo desde os seus primórdios até a contemporaneidade. Ou seja, o instituto do direito de propriedade, que já foi concebido como direito absoluto, especialmente durante o apogeu da vigência dos ideais liberais, foi limitado, motivado pela necessidade de resguardo do direito humano fundamental a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, tendo como ato inaugural desse novo regime jurídico da propriedade privada a inserção no texto constitucional de seu princípio estruturante e condicionador, qual seja, o da função social e socioambiental da propriedade.
Palavras-chave: Propriedade. Função Social. Reserva Legal.
Abstract: This research was aimed to understand the importance of the principle of the social function of property, and also it demonstrated that the demarcation areas of legal reserve in rural estates qualifies as one of the most effectives mechanisms in enforcement the so-called socio-environmental function of the property which in turn is provided under the perception that the natural resources are limited. As the teachings of the Brazilian constitutional text, it is inherent duty to the quality of owner to keep the right to property in accordance to the social and environmental requirements under the law; this means that the structure of the right to private property has undergone important modifications in its concepts and content from its beginning to present time. In other words, the institute of property law, which was conceived as absolute right, especially during the height of the validity of liberal ideals, was restricted, moved by the protection necessity of the fundamental human right to a healthy and ecologically balanced environment having as inaugural act of the new legal regime of the private property the insertion in the constitutional text of its structuring and conditioning principle, thus, the social and socio-environmental function of property.
Keywords: Property; Social Function, Legal Reserve.
Sumário: Introdução. 1. Direito de Propriedade. 1.1 A presença da proteção ambiental no exercício do Direito de Propriedade. 2. Função Socioambiental da Propriedade. 3. A Reserva Legal e suas implicações no Direito de Propriedade. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A finalidade precípua da reserva legal é a manutenção dos recursos naturais, o equilíbrio ecológico e a preservação dos recursos genéticos e da biodiversidade. Vale ressaltar que protege em especial a vegetação e seus atributos, promovendo a preservação do solo, dos recursos hídricos e fauna local.
Assim sendo, a destinação e manutenção de uma área de reserva legal, emerge como uma das ações mais efetivas na prevenção de impactos ambientais negativos e na constância dos empreendimentos localizados em áreas rurais.
Também merece destaque o fato de que a reserva legal representa uma restrição ao direito de propriedade, que tem origem no atendimento ao princípio constitucional da função social da propriedade, ou seja, um limite interno do direito de propriedade, que não é imposto ou indenizável. Significa dizer que hodiernamente o direito de propriedade apenas torna-se legítimo quando corresponde aos interesses sociais e ambientais de proteção.
Do mesmo modo, compreende-se que a atual crise ambiental requer a adoção de um novo modelo de desenvolvimento, que concilie progresso econômico e proteção ambiental, bem como requer um Estado capaz de implementar esse novo modelo.
A fim de demonstrar essa necessidade, ao longo desse trabalho será analisado o instituto jurídico do direito de propriedade, uma vez que se trata de instituto gerador de riquezas previsto, inclusive, no artigo 170 da Constituição Federal, como um dos princípios da ordem econômica.
O conceito de direito à propriedade, ao longo do tempo, sofreu profundas modificações estruturais, antes compreendido como direito absoluto e ilimitado que permitia ao proprietário usar, gozar e dispor do seu domínio como melhor lhe aprouvesse (definição típica de um Estado Liberal), agora, o exercício desse mesmo direito está sujeito a uma função social e uma função ambiental, vez que deixa de ser categorizado como direito de cunho meramente individualista para se tornar um direito comprometido com os interesses da sociedade, dentre eles, o da proteção ambiental.
Sendo assim, observa-se que há, efetivamente, o condicionamento do direito de propriedade aos requisitos impostos pelo direito ambiental, ramo do direito que surgiu justamente a partir da preocupação com o possível exaurimento dos recursos naturais, do mesmo modo, tais recursos pertencem à toda coletividade e por esse motivo devem ser tutelados tanto por ela quanto pelo Poder Público.
Tratam-se esses requisitos do integral atendimento da função social e ambiental da propriedade, por meio da instituição de inúmeras limitações ao exercício do direito do proprietário, notadamente aquelas relacionadas a espaços ambientais, aí compreendidos o zoneamento ambiental e espaços territoriais especialmente protegidos.
Nesse liame, igualmente pretende-se demonstrar a viabilidade da compatibilização do direito à propriedade e direito a um meio ambiente preservado, ambos igualmente necessários ao desenvolvimento e proteção da vida.
A harmonização desses direitos ocorre por meio da submissão ao princípio da função socioambiental da propriedade, tendo em vista que essa função garante tanto a preservação ambiental quanto o uso satisfatório presente e futuro da propriedade.
Também merece destaque a análise do surgimento do direito ambiental, motivado pelo pressuposto de que o direito à vida está intimamente relacionado à existência de um meio ambiente sadio e equilibrado para as presentes e futuras gerações, bem como à observância dos princípios ambientais, que por sua vez, dão ensejo ao direito fundamental à qualidade de vida e que, consequentemente submetem a exploração da propriedade ao atendimento de sua função socioambiental.
1 DIREITO DE PROPRIEDADE
Consoante lições de Orlando Gomes (2012, p. 07), os Direitos Reais têm como finalidade primária regulamentar o poder dos homens sobre os bens (coisas) e o seu modo de aproveitamento econômico, estabelecendo as formas de aquisição, exercício, conservação, reivindicação e perda daquele poder sobre a natureza física das coisas, sempre à luz das regras e princípios consagrados no ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o desenvolvimento histórico do Direito das Coisas serve como prova irrefutável da relevância desse instituto enquanto complexo de normas reguladoras dessa soberania do homem, em cuja organização reflete-se toda a estrutura político-econômica da sociedade (GOMES, 2012, p. 9).
O Código Civil de 2002 não modificou substancialmente os fundamentos dos Direitos Reais tradicionalmente consolidados. Entretanto, a evolução social e cultural cada vez mais vem trazendo à tona profundas transformações jurídicas no âmbito desses direitos, as quais são sentidas com mais vigor no direito de propriedade, como se poderá perceber adiante.
Sabe-se que o direito de propriedade surge concomitantemente com a escassez de recursos, como manifestação fática espontânea, já que desde os tempos primitivos o ser humano tenta satisfazer suas necessidades primárias através da apropriação dos bens. Primeiramente, o indivíduo pertencia à terra, posteriormente, a terra passou a pertencer ao indivíduo, num contexto de conformação entre a coexistência pacífica e as exigências sociais. Além disso, a noção de propriedade sempre foi lastreada pelo anseio e necessidade de dominação, a sobrevivência dependia da obtenção de utensílios e armas, da busca por animais de caça, que serviriam como alimento, e animais de tração, que serviriam para o transporte e cultivo da terra (PEREIRA, 2014, p. 66).
Esse desenvolvimento das organizações sociais também deu origem às ambições de conquista, que por sua vez culminaram em constantes conflitos. Tal contexto ocasionou o surgimento de regras tendentes a disciplinar o direito de propriedade, fossem essas regras de natureza comunitária, política, mística, aristocrática, democrática, familiar ou estatal.
O ancestral histórico do instituto do direito de propriedade encontra-se no Direito Romano, consequentemente, a concepção de propriedade que era até então tipicamente coletiva cedeu lugar à consciência de propriedade privada. Na Roma Antiga recebeu influências místicas e políticas, uma vez que, em seus primórdios, apenas o cidadão romano poderia adquirir propriedade. Incutida nessa determinação estava a lógica de que a dominação nacionalizava a terra conquistada, transformando-a em solo romano. Com o passar do tempo essa possibilidade estendeu-se aos estrangeiros, surgiram novos usos e destinações para o solo, compelindo os jurisconsultos da época a elaborarem novos regimes para os bens (PEREIRA, 2014, p. 66).
O instituto da propriedade, codificado pelo Corpus Iuris Civilis, compilação promovida sob as ordens de Justiniano, no século VI, é o resultado de sua lenta e gradual evolução dentro do Direito Romano, num lapso temporal de aproximadamente um milênio.
Mesmo a invasão dos bárbaros não alterou o regime de bens dos romanos, já que a dominação era tão importante para os germanos quanto era para os romanos. Contudo, foi a força motriz de uma importante consequência, houve substancial modificação nos valores, emergiu a desconfiança, o medo, insegurança e a instabilidade política e econômica, solo fértil para o despontar das ideias de transferência das terras para os poderosos, com a promessa de submissão e vassalagem, em troca de sua proteção militar e da possibilidade de gozar desses bens.
Esse pacto de fidelidade e assistência entre suserano e vassalo foi se amplificando, e junto com ele a ideia de poder político consubstanciado na propriedade imobiliária. O nobre, dentro de seus domínios era o soberano absoluto, sua figura mesclava as funções de julgador, cobrador de tributos e senhor da guerra e da paz. Concedia parte de suas terras aos camponeses, conhecidos como servos de gleba, mediante pagamento para cultivá-las e para que delas obtivessem algum lucro pecuniário ou frutos. Tem-se aí o retrato do sistema feudal europeu na Idade Média (PEREIRA, 2014, p.67).
A monarquia absoluta, predominante na Idade Moderna, por sua vez, tratou de ser combativa em relação a esse modelo de dominação baseada na detenção de bens imóveis, considerando que era de seu interesse que os poderes políticos fossem associados à pessoa do monarca e sua escala de nobreza.
Nesse panorama, conforme afirma Caio Mário da Silva Pereira (2014, p. 67), a Revolução Francesa foi a principal responsável pela democratização da propriedade, pois extinguiu toda sucessão de privilégios e direitos perpétuos inerentes à monarquia absolutista, concentrando novamente todas as propensões na propriedade imóvel, inclusive dando origem ao Código Napoleônico, pioneiro no movimento codificador do século XIX, convenientemente apelidado de “código da propriedade”, em virtude da grandiosa importância dada ao instituto, fazendo da aquisição e acúmulo de bens imóveis fonte de riqueza e prestígio, bem como um símbolo de estabilidade. Tal circunstância teve o condão de romper definitivamente com a aristocracia de linhagem, dando vida a uma concepção de aristocracia econômica que adentrou no século XX.
Pode-se dizer que o conceito de propriedade na contemporaneidade, a despeito da conservação dos termos e terminologia clássicos, já não exprime igual conteúdo de suas vertentes históricas. Todavia, ainda se reconhece ao proprietário poder sobre a coisa, as faculdades do domínio ainda preservam os mesmos atributos originários, quais sejam: direito de usar (iusutendi), direito de gozar (iusfruendi), direito de dispor (ius abutendi) e direito de reaver a coisa (rei vindicatio).
Com efeito, o direito de usar diz respeito à faculdade que permite ao proprietário servir-se da coisa, em virtude de sua destinação econômica, nesse caso o uso pode ser direto ou indireto, se o proprietário empreender à utilização pessoal do bem o estará usando diretamente, contudo, se o proprietário conceder o uso em favor de terceiro, ou deixá-lo sob a responsabilidade de algum subordinado estaremos diante de uso indireto.
Vale destacar que o direito de uso confere ao seu titular, direto ou indireto, acesso aos frutos naturais da coisa, nas palavras de Cristiano Chaves de Farias (2017, p. 294), […] não seria lógico que o beneficiário dessa faculdade fosse privado do acesso imediato aos bens que a coisa produza por sua própria natureza, como os frutos das árvores ou o leite das vacas […].
Também admite-se o uso sem aproveitamento atual, ou seja, é facultado ao proprietário permanecer conservando o bem em condições de servir-lhe posteriormente, quando for necessário. Mesmo assim, deve-se atentar ao fato de que a falta de utilização da coisa poderá trazer consequências, como a desapropriação por interesse social ou a sua arrecadação pelo Poder Público em caso de abandono (artigo 1.276 do Código Civil) motivadas por um comportamento de omissão do proprietário (FARIAS, 2017, p. 294).
O direito de gozar, ou fruir, por sua vez, compreende a mais relevante nuance do exercício de poder do titular do direito real, vez que consiste na integral exploração econômica da coisa, através da percepção de frutos e produtos que vão além dos simples frutos naturais, pois, quando o proprietário colhe os frutos extraídos diretamente da natureza, os chamados frutos naturais, exercita tão somente a faculdade de usar. Por outro lado, quando toma para si frutos industriais, produtos da intervenção do homem sobre a natureza, e os frutos civis, rendas que se originam da utilização da coisa por terceiros, estará efetivamente fruindo do bem (FARIAS, 2017, p. 295).
O direito de dispor merece breve regressão histórica, considerando que, no direito romano, o direito de usar e fruir unia-se a um terceiro direito: o de abusar da coisa, que consistia, inclusive, na possibilidade de destruição do objeto da propriedade pelo proprietário. Na atualidade, essa prerrogativa foi substituída pelo direito de dispor, o que conferiu substancial modificação no instituto da propriedade (FARIAS, 2017, p. 296).
Desse modo, o proprietário dispõe quando altera a própria substância da coisa, escolhe a destinação que será dada ao bem, constituindo-se como a mais abrangente concessão de acesso ao proveito econômico do objeto do direito real. Exercitando seus poderes de usar e gozar, o proprietário não se priva da substância da coisa, uma vez que tais faculdades podem ser destacadas do domínio em favor de terceiros sem que haja prejuízo à condição jurídica do proprietário, entretanto isso não se estende a atos de disposição, quando há o surgimento de situações favoráveis aos terceiros, a exemplo dos atos de transferência da propriedade ou de constituição de algumas espécies de direitos reais, como o usufruto.
Essa livre disposição da coisa pode ser material ou jurídica. Trata-se de disposição material quando os atos do proprietário convergem para a destruição ou abandono do bem; nas duas hipóteses esses atos físicos praticados implicam na perda da propriedade (art. 1225, III e IV do CC).
Já a disposição jurídica é aquela de caráter total ou parcial. É total quando o proprietário aliena o bem, acarretando transformação subjetiva do direito real; essa alienação pode ser onerosa (venda) ou gratuita (doação), em ambos os casos o terceiro adquirente será o sucessor do alienante em todas as faculdades inerentes ao domínio.
Na disposição parcial são instituídos ônus reais sobre o bem, como o usufruto ou a hipoteca. Nesse caso, o proprietário mantém a titularidade, mas também tem de conviver com um direito real em coisa alheia.
Já o direito de reivindicar é considerado elemento extrínseco ou jurídico da propriedade, pois materializa a pretensão do titular do direito de coibir a indevida ingerência de terceiros sobre a coisa, além de possibilitar-lhe a recuperação da coisa diante de quem quer que injustamente a detenha, mantendo sua dominação sobre o bem, e podendo efetivar a esperada participação socioeconômica.
Nesses termos, a pretensão reivindicatória é compreendida como a tutela jurídica concedida ao titular em face de lesão ao seu direito subjetivo de propriedade, praticada por qualquer um que desrespeite o dever genérico e universal de abstenção, bem como é uma extensão do direito de sequela ao verdadeiro titular da propriedade como mecanismo de recuperação da posse injusta de terceiros.
É correto afirmar que todas essas faculdades vêm sofrendo expressivas e frequentes restrições legais, motivadas pelo desejo de coibir abusos e evitar que o direito de propriedade seja um instrumento de dominação. Tal fenômeno é denominado “humanização da propriedade”, de modo que, cada vez mais, se instaura um regime através do qual o legislador grava restrições à utilização das coisas em benefício do bem comum; sem, porém, atingir a essência nuclear do direito subjetivo de propriedade, nem desnaturar a organização social e econômica (PEREIRA, 2014, p. 68).
1.1 A PRESENÇA DA PROTEÇÃO AMBIENTAL NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Em relação ao direito de propriedade na Constituição Federal de 1988, cumpre destacar que ela revelou-se como marco caracterizador do princípio da função social da propriedade, especialmente porque trouxe consigo a fixação dos pressupostos para o cumprimento da função ambiental de tal direito.
Nota-se que o constituinte foi muito diligente e comprometido com a qualidade do meio ambiente ao mencionar no texto jurídico as funções citadas acima, inaugurando, inclusive, um Estado Democrático Social Ambiental no Brasil.
A fim de obter-se uma compreensão cabal acerca do significado de um Estado Constitucional Ambiental, é oportuno trazer à tona os ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho, antes mesmo de adentrar na legislação constitucional brasileira. Afirma o autor (1992, p. 03) que, “[…] para se ter um estado ambiental há a necessidade de se guiar por princípios ecológicos […] Com novas formas de participação política sugestivamente condensadas na expressão democraticamente sustentada”.
Partindo dessas premissas, Canotilho elenca as características norteadoras de um Estado Democrático Ambiental, dentre elas destacam-se: uma concepção integrada no que tange à proteção global e sistêmica do meio ambiente; institucionalização de deveres fundamentais ecológicos; atuação integrada da administração; tensões e conflitos do Estado Constitucional e princípio da responsabilidade (CANOTILHO, 1992, p. 03).
Tendo em mente essas características, é possível concluir que a existência de um Estado Ambiental de Direito irá irradiar-se nas tomadas de decisões políticas, jurídicas e sociais do nosso tempo, além disso, considerando que vivemos em um mundo globalizado, onde resoluções firmadas em determinado país refletem-se rapidamente por todo o mundo, resta clara a importância e prudência de que qualquer Estado submeta-se às aspirações universais de conservação ambiental.
A denominada crise ambiental pela qual passa a modernidade ensejou o surgimento de uma nova dimensão de direitos fundamentais, que compele o Estado de Direito a inserir entre suas prioridades a proteção ambiental. A necessidade de tutela jurídica do meio ambiente emerge concomitantemente com as ameaças ao bem-estar, qualidade de vida e sobrevivência humanas causadas pelos processos de degradação ambiental.
Discorrendo sobre a formação desse novo direito fundamental, José Afonso da Silva (1994, p. 36) afirma que:
‘’A proteção ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, visa tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana.
Encontramo-nos, assim, como nota Santiago AngladaGotor, diante de uma nova projeção do direito à vida, pois neste há de incluir-se a manutenção daquelas condições ambientais que são suportes da própria vida, e o ordenamento jurídico, a que compete tutelar o interesse público, há que dar resposta coerente e eficaz a essa nova necessidade social.’’
Esse novo direito fundamental foi legitimado pela Declaração do Meio Ambiente, ratificada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972, e sobretudo deve-se destacar que os vinte e seis princípios constantes dessa Declaração são reconhecidos como uma extensão da Declaração Universal dos Direitos do Homem (SILVA, 1994, p. 36).
Encontra-se expresso na Declaração do Meio Ambiente que:
‘’O homem é, a um tempo, resultado e artífice do meio que o circunda, o qual lhe dá o sustento material e o brinda com a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral e espiritualmente (…). Os dois aspectos do meio ambiente, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma.’’
Porém, nessa mesma Declaração frisa-se que:
‘’Para chegar à essa meta será mister que cidadãos e comunidade, empresas e instituições em todos os planos aceitem as responsabilidades que lhes incumbem e que todos eles participem equitativamente do labor comum.’’
Diante desse panorama, a perspectiva antropocêntrica é concebida como pedra fundamental da proteção jurídica do meio ambiente, inserindo a dignidade da pessoa humana no núcleo da moralidade ambiental (CANOTILHO, 2007, p. 11). O autor também sugere que a proteção do meio ambiente não deve ser considerada incumbência exclusiva do Estado, mas sim, dever comum a ser concretizado pela partilha dessas obrigações entre as entidades públicas e a sociedade civil.
No entanto, atualmente, com o crescimento da consciência ecológica e comprovada necessidade de conservação da natureza em todas as suas formas em benefício das presentes e futuras gerações, verifica-se acentuada limitação de direitos individuais em detrimento dos interesses inerentes à toda coletividade. Nesse contexto, pode-se concluir que as restrições ao direito de propriedade, por exemplo, consubstanciadas nos princípios da função social e socioambiental da propriedade caracterizam-se como alguns dos instrumentos mais eficazes para o cumprimento dessa tarefa de preservação dos recursos naturais.
2 FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE
É inegável que a propriedade se insurge como mecanismo fundamental para realização de um direito individual, pois coordena as relações entre indivíduo e coisa, delimitando o poder de atuação do proprietário e coibindo práticas que porventura possam prejudicar seu pleno exercício.
Tais conteúdos materiais do direito de propriedade tem seus contornos traçados pelo Código Civil, diploma legal nuclear do direito privado brasileiro, em virtude disso durante décadas adotou-se pela doutrina a noção exclusivamente privada da propriedade, como bem se pode constatar através das disposições acerca do instituto no Código Civil de 1916.
Vale lembrar que com o advento do fenômeno da constitucionalização do direito civil essa visão civilista começou a sofrer inúmeras críticas, dentre elas destaca-se a posição de José Afonso da Silva (2002, p. 270):
‘’Essa é a perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não leva em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais. Em verdade, a Constituição Federal assegura o direito de propriedade, mas não só isso, pois, como assinalamos, estabelece também seu regime fundamental, de tal sorte que o Direito Civil não disciplina a propriedade, mas tão somente as relações civis a ela inerentes.’’
Ante o exposto, é possível afirmar com absoluta certeza que a propriedade encontra suas raízes na ordem constitucional, tendo sido elevada, inclusive, à categoria de direito fundamental, com o mesmo grau de relevância do direito à vida, liberdade, igualdade, dentre outros elencados no art. 5º da Constituição Federal. Trata-se de direito fundamental porque é capaz de garantir patrimônio ao cidadão, prerrogativa consubstanciada no mínimo existencial, que por sua vez é imprescindível para a efetivação da dignidade humana.
Além de declarar a propriedade direito fundamental (art. 5º, XXII a XXX), a Carta Magna ainda a descreve como princípio da ordem econômica (art. 170, II e III), princípio formador da política urbana (artigos 182 e 183) e da política agrícola e fundiária (artigos 184 a 186), bem como contém outras menções especiais em seu texto que igualmente interferem na aplicação do instituto.
Nesse contexto, a propriedade se configura como um dos mais eficientes métodos de efetivação dos princípios e fins pretendidos pelo Estado Social Democrático de Direito, principalmente em virtude da presença incindível da função social, conceito que supera a noção do instituto como mero instrumento de satisfação individual, vez que preconiza que esse direito deve ser exercido em consonância com o intuito de atender aos interesses coletivos e ditames da justiça social. A partir da implantação da função social já não se admite ociosidade e subutilização da propriedade.
Jürgen Habermas (1997, p. 129), discorrendo à respeito dos paradigmas do direito, afirma que, atualmente, a doutrina e prática tomaram consciência da necessidade de consideração de uma teoria social que legitime o exercício da justiça, do mesmo modo a autonomia privada, consequentemente, deve ser realizada de modos diferentes, em harmonia com contextos sociais distintos.
Historicamente, essa mudança de paradigma de um Estado eminentemente liberal para um Estado social se desenvolveu no âmbito do direito privado, como exemplo disso tem-se o caso da Alemanha, tendo em vista que lá, no período de monarquia constitucional, o direito privado pertencia a um ramo da ciência jurídica aplicada exclusivamente pelos juízes. Por esse motivo, ao longo do século XIX, o direito privado existiu como uma área do saber jurídico fechada e autônoma, resguardada das interferências de uma ordem constitucional democrática, essa separação tinha como pano de fundo a premissa de incompatibilidade entre Estado e sociedade, pois o direito privado deveria ser a base de uma organização social econômica e despolitizada, bem como garantidor do princípio da liberdade jurídica dos sujeitos de direito, mantendo-se alheio às intromissões nocivas do Estado, ao qual caberia, essencialmente, o direito público, subordinado aos ditames do Estado autoritário (HABERMAS, 1997, p. 132).
O início da materialização do direito privado, conferindo à ele papel ativo na concretização dos ideais de liberdade e igualdade entre os destinatários dos direitos, teve características claramente autoritárias, envolvendo obrigações de proteção social. Contudo, a principal responsável pela derrocada de fundamentos jurídico-constitucionais nos quais se sustentava a autonomia do direito privado foi a instauração da República de Weimar, a partir dela tornou-se inviável opor o direito privado, tido como o reino da liberdade individual, ao direito público, tido como o campo de ação das imposições do Estado (HABERMAS, 1997, p. 132).
O término dessa autonomia privada que precedia o direito constitucional diluiu definitivamente a existência de uma “sociedade de direito privado”, segundo a doutrina do direito civil alemão, houve submissão do direito privado aos princípios do direito público e a destruição de um sistema jurídico unitário e independente.
Isso significa dizer que a prevalência da constituição democrática sobre a seara privada determinou que o conteúdo normativo dos direitos fundamentais deveria desenvolver-se por meio de uma legislação ativa inerente ao próprio direito privado. Corroborando com tal pensamento, assevera Konrad Hesse (1988, p. 27) que:
‘’O direito constitucional confere ao legislador do direito privado a tarefa de converter o conteúdo dos direitos fundamentais num direito imediatamente obrigatório para os envolvidos numa relação jurídica privada. Ele tem que estar atento às variadas modificações necessárias, quando os direitos fundamentais passam a ter influência no direito privado.’’
O direito privado clássico assegurava a plena autodeterminação individual através dos direitos da pessoa, da proteção jurídica contra delitos, liberdade de contratar (especialmente no tocante a troca de bens e serviços), garantia da instituição do casamento e da família e por meio do exercício do direito de propriedade, principal objeto de estudo desse trabalho. Porém, a eclosão de novas ramificações do direito, tais como direito econômico, positivação dos direitos sociais e direito do trabalho, aliados à materialização do direito penal, do direito contratual e do trabalho, de modo que as finalidades do direito privado já não poderiam mais servir apenas à garantia da autodeterminação individual, deveriam também corresponder ao ditames da justiça social, nesse sentido Konrad Hesse (1988, p. 34):
‘’Deste modo, no próprio direito privado, a garantia da existência dos parceiros do direito e a proteção do mais fraco são colocados no mesmo nível que a defesa de interesses particulares.’’
Esse aspecto da justiça social precisa de interpretações distintas em relações jurídicas formalmente iguais, mas, diferentes sob o prisma da igualdade material, uma vez que os mesmos institutos jurídicos atendem a funções sociais diversas.
Cristiano Chaves de Farias (2017, p. 306), relembra que a liberdade, igualdade e fraternidade, trinômio basilar da Revolução Francesa – precursores da igualdade material e da solidariedade entre os sujeitos – foram propositalmente ignorados pelo fenômeno do individualismo burguês, durante a elaboração do Código Civil de 1804 (Código Napoleônico). De acordo com o referido autor (2017, p. 306), tal prática é natural quando o poder é utilizado de modo a privilegiar algum grupo, já que nesses casos o ordenamento jurídico submete-se aos procedimentos formais, porém, não preza por qualquer compromisso com os interesses sociais, tampouco possui legitimidade.
Em sua fase germinal, ao capitalismo apenas interessava o acúmulo de bens ao patrimônio individual, sem qualquer preocupação com a coletividade da qual se fazia parte, isto ocorreu porque a ascensão e sucesso daquele novo regime era condicionada pela necessidade de aumento da produtividade e multiplicação dos lucros, e o acesso a propriedade servia como estímulo para tais anseios. A consciência social foi um conceito que surgiu muito mais tarde, a partir do momento em que quase um século de autonomia privada sem freios começou a trazer consequências negativas para as sociedades, desmistificando a ideia nuclear do liberalismo econômico, segundo a qual a ausência de controle estatal proporcionaria geração de riqueza individual e indiretamente beneficiaria toda a sociedade (FARIAS, 2017, p. 306).
O século XX foi o reflexo do gigantesco desequilíbrio econômico, do crescente aumento da miséria, opressão e exploração da maioria das populações por uns poucos que representavam uma minoria mais abonada e detentora dos poderes políticos e econômicos.
Essa liberdade econômica desregrada, que fomentava o aumento e intensificação da pobreza, consequentemente privava os cidadãos do acesso e consumo aos bens mínimos necessários a uma digna sobrevivência. Em muitas nações surgiu um sentimento de profunda decepção diante dessas condições humanas, pois a tão sonhada liberdade, das correntes racionalistas e liberais, foi alcançada, mas pagamos um alto preço por isso, já que a empatia, nossa capacidade de enxergar e se compadecer pelo outro foi suprimida (FARIAS, 2017, p. 307).
Essas mazelas humanas reverberaram nas Constituições das últimas décadas. Contemporaneamente, observa-se especial compromisso com a proteção dos princípios da dignidade da pessoa humana e com o princípio da solidariedade, bom exemplo disso é que agora todas as relações patrimoniais dentro do ordenamento jurídico brasileiro estão sujeitas a esse arcabouço axiológico. Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias (2017, p. 307):
‘’Na Constituição Federal de 1988, a primazia é atribuída às situações existenciais ou extrapatrimoniais, traduzidas em extenso rol de direitos fundamentais. Nesse sistema, o indivíduo solitário, isolado em sua atividade econômica, é convertido na pessoa solidária que convive em sociedade e encontra nas necessidades do outro um claro limite à sua liberdade de atuação.’’
Ou seja, é dever de todos por em prática um direito civil constitucional, onde princípios e valores superiores e humanitários vinculam as ações humanas e são consubstanciados nos direitos fundamentais, essa proteção integral da vida e da dignidade tem o condão de forjar uma mentalidade cada vez mais solidária, que impõe limites à atividade econômica e sobreleva a importância da função social de direitos subjetivos.
A alarmante exclusão social orquestrada por um século de liberalismo irrestrito escancarou a infeliz realidade que o Estado apenas garantia a liberdade de uma minoria, ao custo da opressão da maioria. Nesse liame, a evolução do Estado Liberal para o Estado Social, marcada pela sagração dos direitos fundamentais da segunda geração, inaugura atuação ativa do poder público, destinada ao cumprimento de obrigações positivas tendentes a promover igualdade material entre todos. Para tanto, a relativização das liberdades individuais torna-se inevitável, o direito de propriedade torna-se condicionado pela satisfação dos interesses coletivos dos não proprietários.
O pioneiro na elaboração da concepção de função social da propriedade, e consequentemente instigador da inserção dessa mudança nos ordenamentos jurídicos foi León Duguit, autor francês, fundador da escola de Bordeaux. Rebelando-se contra as correntes individualistas imperantes até então, Duguit afirmou que a propriedade é instituição jurídica, e como tal constituiu-se para suprir necessidades econômicas e, neste enleio, adaptou-se a essas necessidades (DUGUIT, 1975, p. 235).
Além disso, o autor francês criticou severamente a ideologia individualista da propriedade, em especial no tocante a premissa de que somente se outorgando ao titular um direito subjetivo absoluto sobre a coisa é que se poderia assegurar a plenitude de sua autonomia individual.
Duguit refutava a concepção de propriedade como direito subjetivo, de acordo com ele sua natureza era a de função, ou seja, instituição posta a serviço do bem comum. Infere-se disso que a dita propriedade-função não era absoluta e intangível, e o seu proprietário era mero detentor da coisa, que em verdade pertencia à coletividade.
Revela-se prudente, contudo, relevar que esse conceito não se desenvolveu de modo tão radical e literal, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello (1987, p. 41) que:
‘’Estamos em crer que, ao lume do direito positivo constitucional, a propriedade ainda está claramente configurada como um direito que deve cumprir uma função social e não como sendo pura e simplesmente uma função social, isto é, bem protegido tão só na medida em que a realiza.’’
Diante disso, resta claro que prevaleceu a compreensão de que a propriedade é direito subjetivo condicionado ao cumprimento de uma função social. A intervenção legislativa no direito de propriedade justifica-se pela necessidade de valorização do bem comum frente a uma igualdade puramente formal entre proprietários e não proprietários. Neste ponto, afirma Cristiano Chaves de Farias (2017, p. 312) que existem semelhanças com a concepção tomista da propriedade, para a qual o proprietário é o procurador da comunidade na gestão dos bens colocados à serviço da satisfação coletiva, mesmo que a coisa esteja inclusa no patrimônio de uma só pessoa.
Sob este prisma, a Constituição Federal tutela a propriedade individual, assegurando sua perpetuidade e exclusividade, desde que se demonstre o adimplemento aos seus preceitos materialmente sociais, toda propriedade que não atender a sua função social sofrerá sanções estatais, de diferentes maneiras e intensidades.
No artigo 170, incisos II e III da Carta Magna verifica-se novamente a nuance valorativa da propriedade, esse dispositivo impõe que a Ordem Econômica deve alicerçar-se na valorização do trabalho, livre-iniciativa e conciliação da propriedade com a sua função social.
A função social exprime a expectativa por determinado comportamento do proprietário, obriga que ele atue de modo a realizar os interesses do bem comum, sem a extinção de seu direito privado sobre o bem, o qual lhe garante os poderes de uso, gozo e disposição, ou seja, a propriedade permanece privada e livremente alienável e transmissível, contudo, sua destinação deve guardar conformidade com as metas do corpo social.
Preleciona Cristiano Chaves de Farias (2017, p. 314) que:
‘’Haverá função social da propriedade quando o Estado delimitar marcos regulatórios institucionais que tutelem a livre iniciativa, legitimando-a ao mesmo tempo. Quando uma atividade econômica concede, simultaneamente, retorno individual em termos de rendimentos e retorno social, pelos ganhos coletivos da atividade particular, a função social será alcançada. O ordenamento jurídico viabilizará o empreendedorismo, que por sua vez justificará benefícios coletivos. Em outras palavras, o sistema jurídico não medirá esforços para estabelecer diretrizes que defendam e orientem a atividade privada à produção de ganhos sociais.’’
O que se almeja é humanizar o direito de propriedade, tendo em vista que ele se caracteriza como fonte de obrigações para o seu titular em detrimento do bem-estar da coletividade. Mesmo assim, tais obrigações em hipótese alguma poderão lesionar o conteúdo mínimo e essencial do direito de propriedade, materializado no domínio (FARIAS, 2017, p. 321).
Ainda no âmbito do direito de propriedade, a função social da propriedade urbana manifesta-se por meio da materialização de espaços de cidadania e solidariedade, o artigo 182 da Constituição Federal foi regulamentado pela Lei n.º 10.257/01, convenientemente denominada Estatuto da Cidade, vez que dispõe acerca de normas de ordem pública e interesse social tendentes a conformar o uso da propriedade a uma exploração racional dos recursos e das riquezas, de modo a amenizar aquelas situações de desigualdade econômica e social corriqueiras no dia a dia das cidades, bem como é capaz de assegurar o caráter sustentável do desenvolvimento e expansão urbanos, protegendo os direitos humanos e evitando a marginalização de comunidades carentes (FARIAS, 2017, p. 323).
A propriedade rural, por sua vez, está consubstanciada na terra, enquanto bem de produção, que deve desempenhar sua função social com maior rigor que outros bens (FARIAS, 2017, p.329). Em nosso ordenamento jurídico, as questões agrárias localizam-se em tópico único e possuem um capítulo da Carta Magna dedicado exclusivamente a elas, nos artigos 184 a 191, mesmo assim o principal dispositivo à respeito do tema é o artigo 186, CF/88, qual seja:
‘’Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.’’
Nesse sentido também leciona Orlando Gomes (2012, p. 118):
‘’A propriedade do imóvel rural se exerce como uma função social quando favorece o bem-estar dos seus proprietários e trabalhadores, mantém níveis satisfatórios de produtividade, assegura a conservação dos recursos naturais e observa a regulamentação legal do trabalho.’’
Assim compreende-se que a correta interpretação do artigo 186 da Constituição Federal leva à conclusão de que não é suficiente apenas exploração racional do solo pelo proprietário rural, vez que a concepção da função agrária como mera função econômica já caiu em desuso, uma vez que a função social da propriedade rural exige os requisitos de produtividade, aproveitamento racional de recursos naturais e de uso comum, proporcionando bem-estar aos trabalhadores.
Diante de todo o exposto sabe-se que o direito de propriedade já não é mais supremo e individualista, vez que as novas demandas no âmbito dos direitos sociais, coletivos e difusos impuseram restrições ao seu exercício, por esse motivo é necessário conciliar a propriedade, desenvolvimento econômico e preservação dos recursos naturais.
À vista disso, o ordenamento jurídico brasileiro contemplou a função social e ambiental da propriedade, consoante o disposto nos artigos 5º inciso XXIII, 170 inciso III, 182 caput, 184 e 186 inciso II da Constituição Federal, almejando a promoção do bem-estar da nação e o equilíbrio ecológico (MORAES, 2003, p. 1.840). A existência de tais preceitos é prova inequívoca de que a função social da propriedade, subordinando-se aos comandos constitucionais, somente é cumprida quando respeitado o meio ambiente.
Ao proprietário compete a subordinação às normas ambientais, adequando a forma de exploração do bem às características naturais da região onde se localiza, por exemplo, e notadamente à Lei n.º 9.605/98, a fim de conservar não apenas o imóvel de sua titularidade como também a coletividade por ele afetada. A função socioambiental também repercute nos deveres do poder público, através de sua obrigação de editar normas tendentes a fomentar o desenvolvimento sustentável, alicerçado sobre a harmonia entre progresso econômico e preservação dos recursos naturais.
3 A RESERVA LEGAL E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE PROPRIEDADE
Um dos mecanismos mais relevantes para a efetivação da proteção ambiental é a instituição da reserva legal nas propriedades rurais, de acordo com Marcelo Abelha Rodrigues (2013, p. 218), ”Trata-se, antes de mais nada, de verdadeira limitação administrativa (portanto geral, gratuita e com finalidade pública) fixada pelo legislador, tendo por fim condicionar o uso da propriedade em prol do interesse público”.
Já o conceito de Reserva Legal encontra-se no artigo 3º, inciso III, do Código Florestal, qual seja:
‘’III. Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural , auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa.’’
Lucas de Souza Lehfeld (2013, p. 33) compreende a Reserva Legal como área particularmente protegida constitucionalmente, cuja imposição, empreendida pelo Poder Público, por meio de normas regulamentadoras, objetiva o cumprimento, pela propriedade rural, de sua função socioambiental, conforme preceitua o art. 186 da Constituição Federal, independendo da existência de vegetação naquela determinada área sujeita à preservação.
Dissertando acerca da definição de reserva legal apresentada pelo artigo 3º do Código Florestal, Lucas Azevedo de Carvalho (2013, p. 111) constata que ”[…] trata-se a mesma de uma área em cada propriedade ou posse rural que será delimitada e terá sua exploração restringida nos termos da lei ”.
O recente Código Florestal de 2012 inaugurou importantes alterações legislativas no tocante à reserva legal, a modificação de sua conceituação, bem como alteração de seu procedimento de registro e regularização, têm a finalidade precípua de conceder maior efetividade à fiscalização pelo Poder Público e direcionar sua implantação e manutenção ao alcance de determinados propósitos, dentre eles o cumprimento da função socioambiental da propriedade.
O caput do artigo 12, da Lei 12.651/12, comporta a previsão legal de delimitação da área de reserva legal, estabelecendo a extensão territorial hábil a ser considerada como tal, relativamente aos percentuais mínimos de área destinada, estes dependem da extensão do imóvel. Marcelo Abelha Rodrigues (2013, p. 222) afirma que o legislador optou pela permanência dos mesmos percentuais da legislação anterior:
‘’Art. 12. Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei:
I – localizado na Amazônia Legal:
II – localizado nas demais regiões do País: 20% (vinte por cento).
Deve ser considerado outro importante aspecto, a localização da reserva legal, insculpida no artigo 14 do Código Florestal, sobre a qual pondera Lucas Azevedo de Carvalho (2013, p. 284), ”[…] a localização da reserva legal não é fruto da escolha do proprietário ou possuidor, visto que será estabelecida pelo órgão estadual competente de acordo com os critérios legislativos”, dispostos nos incisos do supramencionado artigo, quais sejam:
‘’Art. 14. A localização da área de Reserva Legal no imóvel rural deverá levar em consideração os seguintes estudos e critérios:
I – o plano de bacia hidrográfica;
II – o Zoneamento Ecológico-Econômico
III – a formação de corredores ecológicos com outra Reserva Legal, com Área de Preservação Permanente, com Unidade de Conservação ou com outra área legalmente protegida;
IV – as áreas de maior importância para a conservação da biodiversidade;
V – as áreas de maior fragilidade ambiental.
Haja vista que a reserva legal constitui-se de espaço especialmente protegido, sua instituição está invariavelmente vinculada à conservação e recuperação da vegetação nativa e da proteção da fauna silvestre. Desta feita, a fim de que a reserva legal seja capaz de alcançar sua finalidade, é indispensável que sua localização no imóvel rural seja determinada através de critérios e estudos.
Após o estabelecimento dos percentuais e localização, também merece especial atenção a questão do registro, imprescindível para o reconhecimento jurídico da área destinada a servir de reserva legal, ou seja, a partir do registro é que ocorre a legalização dessa área. Lucas Azevedo de Carvalho (2013, p. 287) pondera que:
‘’Em conversas com proprietários rurais é muito comum os mesmos acharem que possuem Reserva Legal tão somente por existir na propriedade uma quantidade de mata superior a 20% de seu tamanho total. No entanto, a mata, por si só, não indica Reserva Legal, sendo que somente poderá ser assim caracterizada após o registro da mesma no Cadastro Ambiental Rural ou sua averbação em Cartório de Registro de Imóveis (essa última não mais obrigatória). Dessa forma, somente poderá se falar em existência da Reserva Legal após o procedimento administrativo próprio que, inclusive, definirá sua localização.’’
Faz-se necessário mencionar que o Código Florestal de 1965, em seu artigo 16, §8º, exigia a averbação da área de reserva legal junto à matrícula do imóvel, tal determinação almejava coibir a alegação, pelo adquirente do imóvel, de desconhecimento dos ônus inerentes ao bem adquirido, referentes à manutenção da reserva legal. Contudo, os elevados custos gerados por essa averbação no registro de imóveis,e suportados pelo proprietário eram alvo frequente de reclamações, considerando que a gratuidade de tal averbação apenas era concedida à pequenas propriedades ou posses rurais familiares, em consonância com os preceitos do §9º do aludido artigo 16 da legislação florestal revogada.
Nesse contexto, após a entrada em vigor do novo Código Florestal houve significativa alteração na regra que disciplina o registro da reserva legal, especialmente motivada pela criação do Cadastro Ambiental Rural – CAR, através do qual são reunidos dados de todas as propriedades rurais do país, consequentemente, já não é mais obrigatória a averbação da área de reserva legal na matrícula do imóvel, tendo em vista que atualmente seu registro passou a constar e pode ser verificado pormenorizadamente diretamente no Cadastro Ambiental Rural, comprova tal afirmação a transcrição do artigo 18 do Código Florestal de 2012:
‘’Art. 18. A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.
Portanto, diante do exposto, não é suficiente ao proprietário apenas a destinação de fato da área de vegetação nativa conservada ou em recuperação no percentual estabelecido pela lei para que esteja instituída juridicamente a sua reserva legal, também deverá ser efetuada a inscrição do imóvel rural no Cadastro Ambiental Rural, com a indicação da área definida como reserva legal, atendidos os critérios e condições exigidos, tais como a demonstração das coordenadas geográficas, a fim de que o órgão público competente possa aprovar a localização e existência da reserva legal, a partir disso restará comprovado que a propriedade rural está ambientalmente regularizada e adimplindo com a sua função socioambiental.
Por fim, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida (2006, p. 42), pondera acerca da ênfase à lucratividade como estratégia para o estímulo à proteção ambiental, de acordo com ela as atividades econômicas, dentre elas o agronegócio, não apenas causam degradação ambiental, mas também são por ela afetadas e prejudicadas, de modo que é fundamental a adesão dos empreendedores e proprietários aos programas e instrumentos de preservação ambiental. A reserva legal, por exemplo, promove vantagens econômicas a médio e longo prazo, vez que a adequada preservação de mata e vegetação nativa, bem como manejo sustentável do solo são fatores intimamente relacionados ao prosseguimento e otimização da produtividade das propriedades rurais.
CONCLUSÃO
Contemporaneamente, o meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado insurgiu-se como um novo direito, estatuído à categoria de direito humano fundamental de terceira dimensão, já que se trata se um direito imbuído de solidariedade e fraternidade, vez que a manutenção da qualidade de vida é responsabilidade de toda a sociedade.
Por isso, mesmo que a proteção ambiental tenha sido inserida no ordenamento jurídico como princípio garantidor da manutenção da qualidade de vida de todos os indivíduos, não significa dizer que este seja um direito superior ao direito de propriedade, pois, em verdade, o que deve haver é a harmonização e coexistência pacífica entre ambos.
Assim, o exercício do direito de propriedade é integrado pelos interesses do proprietário (direitos individuais e de exploração econômica da propriedade) e interesses da coletividade (direitos difusos que resguardam a existência de um meio ambiente sadio e equilibrado).
O exercício do direito de propriedade somente é legítimo quando não ameaçar ou lesionar os interesses sociais. O proprietário deve, portanto, conciliar a manutenção da produtividade de sua propriedade com a utilização racional e adequada dos recursos naturais nela disponíveis, a fim de preservar, por conseguinte, o meio ambiente.
A inclusão da proteção ambiental no rol de princípios da ordem econômica como mecanismo para o alcance de uma vida digna, em conjunto com um direito de propriedade condicionado ao cumprimento de sua função social, almejam a promoção do desenvolvimento sustentável, com fulcro na conscientização do proprietário de que os recursos ofertados pela natureza são finitos, e por isso devem ser utilizados racionalmente.
O Código Florestal, amparado por disposições constitucionais, determina a criação de espaços territoriais especialmente protegidos, tais como as áreas de reserva legal, locais situados no interior das propriedades destinados exclusivamente à conservação da biodiversidade e que apenas podem ser economicamente exploradas mediante manejo sustentável dos recursos naturais, ou seja, somente se estará legalmente autorizado a explorar a área caso não haja descaracterização ecológica dos recursos florestais e ecossistemas. A reserva legal, portanto, representa uma restrição na fruição do bem pelo proprietário ou seu possuidor, e está incontestavelmente alicerçada no princípio da função social e socioambiental da propriedade.
Do mesmo modo, deve-se ter claro que economicamente é muito mais rentável a floresta preservada do que desmatada, pois suas diversas funções serão mantidas e, ao se privilegiar atividades econômicas que destoam da função social da propriedade rural, eventuais desequilíbrios ecológicos se reverterão em desequilíbrios econômicos.
Para tanto, é primordial que o Código Florestal fomente uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, que seja integrada e orientada por princípios ambientais, principalmente o da função socioambiental da propriedade, uma vez que não é desejável que a economia seja concebida como uma ciência que tudo quantifica e converte em mercadoria, algoz do meio ambiente, pois essa compreensão superficial somente acarretará maior degradação, considerando que poderá fortalecer o discurso da escassez, que por sua vez incentiva a exploração ambiental irrestrita, sob o pretexto da satisfação das necessidades humanas.
Nesse contexto, há que se buscar a formulação de um novo Estado, um Estado de Direito Ambiental, baseado numa democracia ambiental orientada pela cidadania participativa e solidária, preocupada com a utilização racional dos recursos naturais, bem como capaz de conjugar crescimento econômico e conservação da natureza, com vistas a alcançar um modelo de desenvolvimento legítimo, permeado pela sustentabilidade ambiental e econômica.
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