THE CIVIL LIABILITY OF HEALTH PLAN OPERATORS FOR MEDICAL ERROR
Autores: Karine Gurgel de Freitas[1], Neilma Gomes Vieira Capelão[2]
Orientador: Marco Antônio Delmondes Kumaira³
Resumo: Visando estabelecer um encontro da Medicina com o Direito, baseado na legislação, doutrinas e jurisprudências, o artigo busca, inicialmente, analisar o instituto da responsabilidade civil dentro do contexto da relação médico-paciente, com o objetivo de esclarecer de que forma se dá a responsabilidade civil diante de um dano ocasionado por um erro médico. O questionamento central do artigo refere-se a analisar o cabimento ou não da responsabilidade civil das operadoras de planos de saúde decorrentes do erro médico de seus credenciados, cooperados ou conveniados, ou seja, os médicos listados em sua rede de atendimento. Pela perspectiva doutrinária e jurisprudencial, já é possível afirmar que a relação que se estabelece entre a operadora e o beneficiário, e entre o médico e o paciente, são abarcadas tanto pelo Código Civil quanto pelo Código de Defesa do Consumidor. Portanto, resta, por fim, analisar os possíveis impactos dessa judicialização e examinar o posicionamento atualmente adotado pelo Poder Judiciário nos Tribunais Pátrios, nos casos de responsabilidade civil das operadoras de planos de saúde por erro médico.
Palavras-chave: Erro médico. Operadoras de planos de saúde. Relação médico-paciente. Responsabilidade civil.
Abstract: Aiming to establish a meeting between Medicine and Law, based on legislation, doctrines and jurisprudence, the article initially seeks to analyze the civil liability institute within the context of the doctor-patient relationship, with the objective of clarifying how civil liability for damage caused by medical error. The central questioning of the article refers to analyzing the appropriateness or not of the civil liability of the health plan operators resulting from the medical error of their accredited, cooperative or insured, that is, the doctors listed in their service network. From the doctrinal and jurisprudential perspective, it is already possible to affirm that the relationship established between the operator and the beneficiary, and between the doctor and the patient, are covered by both the Civil Code and the Consumer Protection Code. Therefore, it remains, finally, to analyze the possible impacts of this judicialization and to examine the position currently adopted by the Judiciary in the Brazilian Courts, in cases of civil liability of health plan operators for medical error.
Keywords: Medical error. Health Plan Operator. Doctor-patient relationship. Civil responsability.
Sumário: Introdução; 1) Responsabilidade Civil; 1.1) Breve evolução histórica da responsabilidade civil; 1.2) Conceito; 1.3) Dos pressupostos para configuração da responsabilidade civil; 1.3.1) A Culpa para fins de responsabilidade civil; 1.3.2) O Ato Ilícito para fins de responsabilidade civil; 1.3.3) O Dano para fins de responsabilidade civil; 1.3.4) O Nexo Causal para fins de responsabilidade civil; 1.4) Da Responsabilidade Contratual e Extracontratual; 1.5) A Responsabilidade Civil Objetiva e a Responsabilidade Civil Subjetiva; 2) Da Responsabilidade Civil do Médico; 2.1) Conceitos gerais; 2.2) Obrigação de meio x Obrigação de resultado; 2.3) A Relação Médico-Paciente; 2.4) Do Erro Médico; 2.5) A Iatrogenia como excludente da Responsabilidade Civil do Médico; 3) Responsabilidade Civil das Operadoras de Planos de Saúde e o Erro Médico; 3.1) Sistema Único de Saúde – SUS x Sistema de Saúde Suplementar; 3.2) A Lei 9.656/98 e o Código de Defesa do Consumidor – CDC; 3.3) Dados atuais sobre o Erro Médico no Brasil; 3.4) A Responsabilidade Civil Objetiva e Solidária das Operadoras de Planos de Saúde e o Erro Médico; 3.4.1) Análise do posicionamento atual dos Tribunais Pátrios em caso de responsabilização da Operadora de Plano de Saúde por Erro Médico; 3.5) Análise dos impactos da judicialização da saúde no âmbito das Operadoras de Planos de Saúde; Considerações Finais; Referências.
INTRODUÇÃO
A quantidade expressiva de usuários de planos de saúde no Brasil e a escassez de recursos do Sistema Único de Saúde do país (SUS), dá ao sistema privado de assistência à saúde um papel da mais alta importância na demanda da prestação dos serviços assistenciais no Brasil. Conforme a ANS (Agência Nacional de Saúde)[3], em dezembro de 2020, havia 711 operadoras médico-hospitalares operando no país e mais de 47 milhões de usuários dependentes desse sistema suplementar.
Em paralelo a esse cenário, há um crescente aumento de judicializações no segmento de saúde, incluindo as demandas relacionadas a responsabilidade civil por erros médicos[4] e planos de saúde, por meio das quais a sociedade tem buscado, cada dia mais, o Poder Judiciário para ter seu direito resguardado e, consequentemente, receber a reparação pecuniária referente aos danos sofridos.
De acordo com o Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça 2020[5], foram 459.076 demandas judicializadas, com aproximadamente 135 mil relativas à Saúde Suplementar (operadoras de planos de saúde), chamando a atenção o alto número de casos envolvendo erro médico: 31.039.
Diante desse quadro, busca-se, neste estudo, alcançar o objetivo principal de analisar a possibilidade de responsabilização civil das operadoras de planos de saúde no erro médico de seus credenciados, cooperados ou conveniados. Sendo detectado o cabimento da responsabilidade civil das operadoras de planos de saúde no erro médico, busca-se analisar através dos objetivos específicos as seguintes questões: verificar qual o fundamento legal deverá ser utilizado; analisar a espécie de responsabilidade civil que poderá ser aplicada a operadora de plano de saúde nas ações de erro médico de seus credenciados, cooperados ou conveniados; abordar o impacto da judicialização para os planos de saúde; verificar o posicionamento atual dos Tribunais Pátrios em face da responsabilidade civil das operadoras de planos de saúde nos erros médicos.
A metodologia baseia-se em pesquisas bibliográficas, de importantes autores que abordam e estudam o tema em profundidade, como Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer e Karina Pinheiro de Castro, para uma explanação crítica e científica. Além disso, serão utilizados trabalhos científicos de outras universidades do Brasil, revistas jurídicas e periódicos especializados, bem como o entendimento jurisprudencial dos tribunais e, dada sua relevância no Poder Judiciário, do Superior Tribunal de Justiça.
Quanto a temática escolhida, percebe-se a sua grande relevância, porque além do instituto da responsabilidade civil se encontrar frequentemente presente na vida em sociedade, a quantidade de usuários de planos de saúde atualmente é muito expressiva, e consequentemente a relação médico-paciente passa a ser fundamental nessa dinâmica para evitar o crescente aumento de demandas judiciais visando a responsabilidade civil de operadoras de planos de saúde por erro médico.
Neste sentido, o presente artigo busca primeiramente analisar o instituto da responsabilidade civil do médico explanando sobre o conceito de erro médico e suas características, para posteriormente adentrar na temática da responsabilidade civil da operadora de plano de saúde decorrente do erro médico de seus credenciados, cooperados ou conveniados e seus possíveis impactos, para finalmente trazer uma análise das decisões recentes dos Tribunais Pátrios acerca do tema.
1.1 Breve evolução histórica da responsabilidade civil
Devido as constantes mudanças que ocorrem na sociedade ao longo da história, o instituto da responsabilidade civil assumiu um caráter flexível e dinâmico, precisando sempre se adaptar e se transformar mediante as necessidades que vão surgindo.
Nas sociedades primitivas, anteriores a existência do Direito e das normas que regem o Estado como conhecemos atualmente, era comum que ao causar um dano a outra pessoa, a sociedade se utilizava da vingança inerente a própria natureza humana para “solucionar” o conflito, como uma forma primitiva de aplicação da responsabilidade. Segundo Terra, Guedes, Tepedino (2020, p.1):
Os pressupostos, critérios e mecanismos voltados à obrigação de reparar o dano sofrido por uma pessoa revelam a trajetória da responsabilidade civil ao longo do tempo. […] Nas sociedades primitivas, a regra de Talião – olho por olho, dente por dente –, absorvida pela Lei das XII Tábuas, determinava o nexus corporal do violador perante o ofendido, e estabelecia uma equivalência da punição do mal com o mal. Encontravam-se, aí, vestígios da vingança privada, embora marcada pela intervenção do poder público, com o intuito de discipliná-la. Nessa fase, não há diferença entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal.
Com a evolução da sociedade e a busca pelo interesse coletivo, o amadurecimento do senso de justiça trouxe consigo a necessidade de uma regulamentação e normas jurídicas que estabelecessem critérios e limites.
De acordo com Castro (2019, p. 36-37), surgiram nesse contexto os primeiros ordenamentos jurídicos, como a Lei das XII Tábuas, o Código de Hamurabi[6] e o Código de Manu. O Código de Hamurabi, segundo Castro (2019, p. 37, apud CASTRO, 2005, p. 21), foi o primeiro documento histórico[7] que tratou da responsabilidade do médico em relação aos seus pacientes.
Demonstrando um importante avanço, de acordo com Terra, Guedes, Tepedino (2020, p.1), a Lex Poetela Papilia (326 a.C.) consagrou, enfim, a contenção da responsabilidade civil à responsabilidade patrimonial, com a proibição da execução pessoal ou escravidão de si próprio ou de pessoas de sua família em troca da extinção do débito. Porém, mesmo com a criação dessa lei, situações como essa continuavam a acontecer.
Conforme pondera Castro (2019, p. 38), somente com a Composição ou Compositio que a regulamentação da responsabilidade civil se aprimorou ao prever uma reparação em pecúnia, sendo a origem remota das atuais formas de indenização do Direito Civil.
A composição voluntária, possibilitava a parte lesada entrar em composição com o ofensor, a fim de receber uma forma de resgate, que substituiria a antiga vingança privada. Caso não houvesse acordo, a composição legal era fixada pela autoridade por meio da Lei das XII Tábuas.
A Lei das XII Tábuas, embora tenha definido os delitos (públicos e privados) e estabelecido as respectivas penas, não considerou relevante a valoração do elemento subjetivo em todas as condutas ilícitas, dessa maneira, mesmo ausente o dolo e a culpa, era possível a aplicação de uma sanção. De qualquer maneira, isso não retira o seu importante papel de contribuição ao atual estágio de evolução da responsabilidade civil.
Com a maior delegação de poderes ao Estado e com o advento da Lex Aquilia, que, de acordo com Santos (2013, p. 25), é originária de um plebiscito proposto pelo tribuno Aquílio, votado provavelmente entres os anos de 286 e 287 a.C., a composição da responsabilidade civil evoluiu ainda mais.
Nesse sentido, Terra, Guedes, Tepedino (2020, p.1) destacam:
Pouco a pouco, separa-se a responsabilidade civil da criminal. A ideia de responsabilidade civil deixa, gradativamente, de se vincular à punição do agente ofensor, e passa a se relacionar ao princípio elementar de que o dano injusto, assim entendida a lesão a interesse jurídico merecedor de tutela, deve ser reparado, consagrando a função precípua que se passou a atribuir ao instituto: a reparação patrimonial do dano sofrido.
A Lex Aquilia pode ser considerada o grande marco da evolução da responsabilidade civil como entendemos atualmente, porque ela reforçou a ideia de reparação de dano através do pagamento em pecúnia, e passou a exigir a valoração do elemento subjetivo da conduta do ofensor, mas não da maneira como atualmente conhecemos, já que não distinguia os graus dessa culpa.
Além disso, pode-se extrair da interpretação da Lex Aquilia, o princípio pelo qual se pune a culpa por danos injustamente provocados a terceiros, independentemente de relação obrigacional preexistente (sem vínculo contratual) dando origem a responsabilidade extracontratual.
Castro (2019, p. 37), aponta que a Lex Aquilia também se mostrou muito importante na definição da responsabilidade civil médica do Direito moderno, pois nela contém os primeiros rudimentos de responsabilidade médica, prevendo penas e definindo espécies de delitos referentes a atividade do médico.
Importante não deixar de mencionar o Código Napoleônico no Direito Francês, que também teve importante papel na construção do instituto da responsabilidade civil. Nessa quadra, diz Souza (2004, p.47):
A regra moral elementar, consubstanciada no princípio “neminem laedere”, foi consagrada no artigo 1382 do Código francês, assim como a sanção, diante da violação, funcionando, assim, como uma regra geral, já consagrada desde os canonistas. Preocupou-se o Código com a organização técnica da responsabilidade civil, para sancionar o dever moral e determinar a regra de conduta.
[…] Isto influenciou todo o direito do século XIX, durante o qual os juristas jamais duvidaram de que a responsabilidade civil repousasse sobre a noção de culpa.
Percebe-se, assim, que o Direito Francês deixou sua importante contribuição ao reforçar o caráter reparatório da responsabilidade civil, buscando retirar o foco do agente causador e levando-o a vítima, buscando fazer voltar, o mais próximo possível, ao status quo ante.
1.2 Conceito
Cumpre salientar, primeiramente, as ideias gerais sobre o instituto da responsabilidade civil, que está frequentemente presente na vida em sociedade buscando trazer o equilíbrio nas relações através da reparação do dano causado em virtude do descumprimento de uma norma jurídica pré-existente, contratual ou não.
Conforme Castro (2019, p. 42, apud DINIZ, 1995, p. 29), tem-se por responsabilidade civil:
Responsabilidade civil é aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).
Importante entendimento sobre o tema, demonstra Venosa (2019, p.448, apud NORONHA, 2003, p. 429), segundo o qual, de forma ampla:
[…]a responsabilidade civil é sempre uma obrigação de reparar danos: danos causados à pessoa ou ao patrimônio de outrem, ou danos causados a interesses coletivos, ou transindividuais, sejam estes difusos, sejam coletivos strictu sensu.
O Código Civil (CC) em seus artigos 186 e 927 prevê que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito e que mediante a ocorrência do ato ilícito nasce a obrigação de reparação. O abuso de direito também é considerado ato ilícito, de acordo com o art.187 do CC.
1.3 Dos pressupostos para configuração da responsabilidade civil
Diante do conceito de responsabilidade civil, tem-se a partir da regra do art.186 do CC, que não basta a antijuridicidade para caracterização do ato ilícito gerador de responsabilidade.
Segundo Sílvio de Salvo Venosa (2019, p. 451), os requisitos para a configuração do dever de indenizar são a ação ou omissão voluntária, relação de causalidade ou nexo causal, dano e culpa.
De acordo com Mello (2017, p. 587, apud CAVALIERI FILHO, 2005, p. 54), a culpa não foi definida pelo legislador brasileiro, e em sentindo amplo (lato sensu), abrange “toda espécie de comportamento contrário ao Direito, seja intencional, como no caso do dolo, ou não, como na culpa”.
O dolo existe quando o agente tem a intenção de causar o dano ou quando assume os riscos do resultado. Porém, o objetivo do presente artigo é tratar a responsabilidade civil das operadoras de planos de saúde decorrentes do erro médico, não se mostrando relevante aprofundar no dolo, porque a responsabilidade médica predominante nos tribunais, deriva da culpa, caracterizada pela negligência, imprudência ou imperícia.
1.3.1 A Culpa para fins de responsabilidade civil
A culpa é um dos conceitos mais discutidos na esfera jurídica, é o elemento mais importante para a caracterização do erro médico. De acordo com Moraes (1996), ela pode ser analisada em vários aspectos, podendo ser dividida gradativamente, desde o grau leve ao grave.
A culpa no sentido amplo é quando identificamos o dolo, ou seja, quando há à intenção, e a culpa no sentido estrito é resultado da violação a um dever de cuidado e pode ser consequência de imperícia (falta de habilidade no exercício de atividade técnica), negligência (falta de cuidado por conduta omissiva) ou imprudência (falta de cuidado por conduta comissiva).
Segundo Araripe (2005, apud, DINIZ, 2006, pág. 46):
“A imperícia é a falta de habilidade ou inaptidão para praticar certo ato; a negligência é a inobservância de normas que nos ordenam agir com atenção, capacidade, solicitude e discernimento; e a imprudência é precipitação ou o ato de proceder sem cautela.”
Portanto, todas as vezes que falamos em culpa esta deverá ser analisada em cada caso, para verificação dos elementos que constitui a culpa, se eles estão ou não presentes no ato praticado.
1.3.2 O Ato Ilícito para fins de responsabilidade civil
Ato ilícito é toda conduta humana que contraria à ordem jurídica, à moral, aos bons costumes, são atos praticados que causam danos a outrem, gerando consequentemente a responsabilidade civil de reparar os danos causados, a partir do ato ilícito é que se analisa a culpabilidade do agente. Conforme descrito por Cortez (2013, p. 83):
O ato ilícito é um todo, do qual a culpa é um dos seus elementos. O ilícito é um fenômeno complexo, uma fonte de obrigação qual seja, a de indenização ou de ressarcir o prejuízo causado, que é praticado com infração a um dever de conduta, através de ação ou omissão culposa ou dolosa do agente, pelas quais resultará dano para outrem […]
Para que exista um ato ilícito são necessários três pressupostos segundo Cortez (2013, p. 85), são eles: a existência de uma conduta pessoal, violação do dever jurídico estabelecido pela lei e a existência de um prejuízo a outrem. Identificado o ato ilícito há de se falar em culpa ou dolo e consequentemente em reparação do dano causado.
1.3.3 O Dano para fins de responsabilidade civil
O dano é o prejuízo que gera lesão a algum bem de outrem, originado pela conduta voluntária do agente, sendo o principal efeito derivado do ato ilícito seja ele culposo ou não, é de que a partir da existência do dano nasce a obrigação civil de reparação mediante indenização, de acordo com Correia-Lima (2009, p.31) sem a comprovação de dano, não há de se falar em responsabilidade civil de reparação.
É estabelecido pelo Código Civil nos artigos 186 e 187 a obrigação de reparação do prejuízo oriundo de atos ilícitos havendo ou não a culpa nos casos explícitos em lei e/ou quando a atividade realizada já tem natureza de causar riscos para os direitos de outrem. Segundo Mello (2017, p.624): “o dano é a lesão de um bem jurídico, que pode ser classificado como danos materiais ou patrimoniais e danos imateriais ou morais.”
Os danos materiais ou patrimoniais são danos que atingem coisas mensurais economicamente, já os danos imateriais e morais são danos que não há como mensurar em sua totalidade os prejuízos causados, pois estes tipos de danos atingem a personalidade, o bem-estar e o íntimo da vítima, ou seja, em um contexto mais subjetivo.
1.3.4. O Nexo Causal para fins de responsabilidade civil
No âmbito da teoria da responsabilidade civil é necessário a demonstração do nexo de causalidade, que nada mais é do que a ligação entre causa e efeito, que existe entre a ação ou omissão do ofensor e resultado oriundo deste fato que é o dano.
Segundo Correia-Lima (2009, p. 29), não é preciso observar, após o dano, apenas a ordem cronológica dos fatos, o mais importante é identificar um nexo lógico que levou a causa do dano. Compactuando com esse entendimento, segundo Mello (2017, p.624):
[…] é a relação entre um fato (causa) e o dano ocorrido (efeito). O nexo de causalidade é elemento essencial nos casos de indenização, já que a responsabilidade civil existe a partir da existência do nexo causal entre o fato e o resultado danoso.
O dano pode se dar por vários fatores casuísticos, assim como também pode ocorrer baseado apenas em uma causa. São discutidas várias teorias de nexo de causalidade, mas partindo do princípio da teoria da causalidade da equivalência, de acordo com Correia-Lima (2009, p. 30) dizemos que a causa será toda e qualquer condição que tenha contribuído para o resultado do dano.
1.4 Da Responsabilidade Contratual e Extracontratual
Conforme CHANAN (2018) muito tem se discutido em vários países, inclusive no Brasil, sobre a unificação dos institutos da responsabilidade civil contratual e extracontratual, onde identifica-se que a tese monista tem forte tendência em prevalecer, entretanto, assim como em outros países, o Brasil é influenciado pelo Direito Romano, e por isso adotamos atualmente a tese dualista.
A tese dualista faz distinções entre os dois institutos claramente apresentados através do Código Civil de 2002, nos dispositivos 389 a 405, trata-se da responsabilidade das inadimplências contratuais, ou seja, da responsabilidade contratual, e a responsabilidade extracontratual ou aquiliana[8] encontra-se nos artigos 186, 187 e 188 juntamente com os artigos 927 a 954.
De acordo com Castro (2019, p. 56) a responsabilidade contratual baseia-se a partir de um contrato prévio firmado entre as partes, que pode ser de forma tácita ou expressa, este contrato através de cláusulas e condições impõe obrigações e direitos para ambas as partes que o celebram.
Caso alguma das partes deixe de cumprir com as obrigações determinadas neste contrato, haverá o cometimento de um ilícito contratual que ensejará na responsabilidade contratual. Portanto, havendo uma relação jurídica prévia entre autor e vítima caracterizando um negócio jurídico, a relação estará pautada por um contrato.
Por sua vez, na responsabilidade extracontratual também denominada responsabilidade aquiliana, não há uma relação jurídica firmada previamente, pois nesta relação não há de se falar em negócio jurídico, pois ela acontece naturalmente pelo dever de não causar nenhum dano a ninguém, e qualquer um que vier a lesar o direito alheio, estará obrigado a repará-lo.
Segundo Castro (2019, p. 57) a responsabilidade extracontratual decorre da prática de ato ilícito, seja por meio de uma conduta culposa ou por abuso de direito, ocorrendo a transgressão de um dever geral de conduta.
1.5 A Responsabilidade Civil Objetiva e a Responsabilidade Civil Subjetiva
A responsabilidade civil tem seu fundamento em duas teorias, quais sejam, a teoria da responsabilidade subjetiva e da responsabilidade objetiva. O primeiro momento da responsabilidade civil, foi o da responsabilidade subjetiva, onde a culpa precisava ser provada.
A responsabilidade subjetiva encontra respaldo legal no artigo 186 do Código Civil, e seu fundamento é baseado na culpa do agente, ou seja, o elemento subjetivo da culpabilidade determina o dever de reparação, por esse motivo sendo também conhecida como teoria da culpa.
Segundo Alvino Lima citado por Kfouri Neto (2019, p.109), são requisitos essenciais para a teoria da responsabilidade subjetiva: o ato ou omissão que viola o direito de outrem, o dano que é produzido por esse ato ou omissão, a relação de causalidade entre o ato ou omissão e o dano provocado, e por fim, a culpa. Nesse sentido, a análise de como o comportamento do agente contribuiu para o prejuízo da vítima, se torna essencial.
De acordo com Couto Filho e Souza, citados por Castro (2019, p.50), temos: “A responsabilidade subjetiva é fundada na culpa, logo é condição sine qua non seja provado que houve atuar negligente, imprudente ou imperito.”
Com a evolução da sociedade e das relações obrigacionais, a teoria subjetiva começou a não ser suficiente para solucionar os conflitos existentes.
Em muitas situações, o ônus de provar a culpa do agente era praticamente impossível, deixando em muitos casos a vítima sem qualquer indenização. De acordo com Terra, Guedes, Tepedino (2020, p.8):
A rigor, a revolução por que passa, ainda hoje, a responsabilidade civil decorre, em grande medida, da alteração da própria função do instituto, que deixa de ser, definitivamente, a moralização ou a punição de condutas, e passa a ser a proteção da vítima, de acordo com a máxima segundo a qual, verificado o dano injusto, a vítima não deve ficar irressarcida. Volta-se a responsabilidade civil para as consequências do dano, não já para suas causas.
Segundo Castro (2019, p.50), a partir de ideias socializantes presentes ao final do século XIX na Europa, a jurisprudência e a doutrina começaram a entender que para evitar situações de impunidade à vítima, era necessário operar a inversão do ônus da prova a respeito da culpa, ou seja, o autor do dano seria responsabilizado de maneira presumida em alguns casos, tendo, contudo, a possibilidade de provar sua isenção de culpa.
Esse fundamento fez surgir a teoria da responsabilidade objetiva, presente na lei em várias oportunidades, que desconsidera a culpabilidade. Encontra-se prevista, de modo geral, no parágrafo único do art.927 do Código Civil:
Art.927, Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
De acordo com Castro (2019, p.49), a responsabilidade objetiva compreende na reparação de danos causados a outrem sem necessariamente analisar a culpa, neste caso apenas com o fato de existir a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade é possível caracterizar a responsabilidade de reparação do dano de forma objetiva. Em consoante entendimento, Sílvio Rodrigues citado por Kfouri Neto (2019, p.114):
Na responsabilidade objetiva a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois desde que exista relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou não culposamente.
Como ressalta Venosa (2019, p.451), essa exacerbação da noção de responsabilidade constitui, na verdade, a maior inovação do Código deste século em matéria de responsabilidade e exigirá um cuidado extremo da nova jurisprudência.
2.1 Conceitos gerais
Como visto no presente trabalho, a responsabilidade civil de modo geral, conforme prevista no art. 927 do Código Civil, se resume a obrigação de reparação de um dano causado a outrem, gerado por um ato ilícito.
O ato ilícito pode ser caracterizado pelo abuso de poder (art.187, CC), ou por uma ação ou omissão voluntária, negligência e imprudência (art.186, CC), ou seja, fundamentada em regra, na culpa.
No campo médico, pode-se dizer que essa conduta humana consiste em uma lesão do direito à vida e a integridade psicofísica do paciente (engloba a saúde física e mental), podendo ocasionar danos materiais, morais ou estéticos.
Os médicos, em regra, atuam como profissionais liberais, ou seja, sem qualquer critério de preposição, com autonomia e por esse motivo não ficando subordinado ao paciente.
De acordo com o art. 951 do CC, o profissional liberal que causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal ou inabilitá-lo para o trabalho, se aplicará a responsabilidade subjetiva, centrada na comprovação da culpa stricto sensu (negligência, imprudência ou imperícia). De acordo com Kfouri Neto (2019, p.28):
É ressabido que aos profissionais liberais – e ao médico, de modo particular – aplicam-se as regras da responsabilidade subjetiva, calcada na culpa, ficando o ônus da prova, via de regra, a cargo da vítima (arts. 186 e 951 do CCB; art.14, § 4º, do CDC e art. 373, I, do CPC/15).
Em consoante entendimento, segundo Terra, Guedes, Tepedino (2020, p.185) temos:
A responsabilidade do médico é subjetiva, definida pelo art. 951 do Código Civil, que expressamente se refere ao dano decorrente de imprudência, imperícia ou negligência, e mantida pelo Código de Defesa do Consumidor, cujo art. 14, § 4o, em exceção à regra geral da responsabilidade objetiva introduzida nas relações de consumo, determina que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
Portanto, é possível afirmar que a responsabilidade do médico no Código de Defesa do Consumidor, assim como no Código Civil, é subjetiva. E por esse motivo, a culpa do médico para ser caracterizada, precisa ser certa, ou seja, deve-se provar que o comportamento do profissional contribuiu para o prejuízo da vítima, unindo-se os três elementos: dano, culpa e nexo de causalidade.
2.2 Obrigação de Meio x Obrigação de Resultado
Quando se fala da responsabilidade do médico, há duas modalidades de
obrigações: as de meio e as de resultado. Na maior parte dos casos, e de acordo com o entendimento doutrinária, a obrigação do médico será de meio e não de resultado.
A obrigação de meio, consiste no emprego pelo médico de toda a atenção e cuidados exigidos e esperados para tratar ou amenizar determinada patologia que acomete seu paciente, sem se vincular a uma obrigação de cura ou resultado satisfatório. De acordo com Kfouri Neto (2019, p.18):
Afirmação tradicionalmente acatada indica que os médicos se tornam devedores de uma obrigação de meios. Basta a atividade profissional, consciente e dedicada, tendente à obtenção da cura, para concretizar o adimplemento contratual. A prova de eventual imperícia, imprudência ou negligência é atribuição do paciente-vítima ou de seus familiares. Esta, a fórmula, tradicionalmente, admitida pelo Judiciário: o fim último da Medicina é cuidar, não necessariamente curar.
A obrigação de meio entende-se como regra geral, visto que obter o resultado desejado pelo paciente, nem sempre será possível, pois depende de inúmeros fatores que escapam do controle total da medicina, como o estado de saúde do paciente, estrutura hospitalar, os conhecimentos técnicos do profissional, o avanço da medicina para os tratamentos de determinadas patologias, dentre outros. Por esses motivos, na obrigação de meio, o ônus da prova é do paciente/vítima, que deve provar a culpa do médico.
Segundo Terra, Guedes, Tepedino (2020, p.186), algumas espécies de atividades médicas são consideradas, pela jurisprudência dominante, obrigações de resultado. É o caso dos exames radiológicos, da transfusão de sangue, das cirurgias estéticas puramente embelezadoras, e em procedimentos técnicos de exames laboratoriais e outros, tais como radiografias, tomografias, ressonâncias magnéticas etc.
Na obrigação de resultado, o dever de indenizar surge pelo simples fato de não se obter o fim desejado, descartando qualquer outra possibilidade que não o atingimento de um determinado fim.
Segundo Kfouri Neto (2019, p.183), é presumida a culpa do médico nas obrigações de resultado, em face do não atingimento da meta prometida, tendo como consequência processual o ônus da prova a seu desfavor.
Como bem ressalta Demogue (1996, p. 224, apud KFOURI NETO, 2019, p. 99):
O médico contrata uma obrigação de meio, não de resultado. Ele não deve ser responsável se o cliente não se cura. Ele promete somente cuidados atenciosos e o cliente deve provar a culpa do médico e a relação causal entre a culpa e o ato danoso (morte etc.). Por exceção, se o médico que se compromete a prestar serviço ao doente não o faz, ele se torna plenamente responsável pelo dano.
Deve-se sempre levar em consideração o fato de que, sendo obrigação de meio, ou, sendo obrigação de resultado, o médico deve sempre empregar todos os cuidados esperados de um médico diligente e cuidadoso, cumprindo suas obrigações com seu paciente.
2.3 A Relação Médico-Paciente
Sabe-se que o papel e a atuação do profissional médico na história da sociedade sofreram diversas mudanças. O antigo médico de família que atuava de forma mais generalista, amigo e conselheiro, que a todos da comunidade conhecia, não existe mais.
No cenário atual, temos um médico cada vez mais especialista, restrito à sua área de atuação, mais distante daquela realidade da comunidade, e em contrapartida, inserido em uma sociedade em intensa transformação tecnológica e com necessidade de respostas mais ágeis e assertivas. Segundo Venosa (2019, p.601):
Nessas últimas décadas, a Medicina socializou-se e despersonalizou-se. A necessidade premente de especialização faz com que a relação médico-paciente seja quase exclusivamente profissional. Continua a Medicina a ser uma arte, mas sob contexto diverso. O paciente, nessas premissas, raramente terá condições de ponderar e escolher o profissional e o tratamento adequado para seu mal.
O descompasso entre os benefícios do avanço tecnológico e os novos tratamentos que surgem a todo momento, e o distanciamento do médico do seu paciente, no sentido humano da profissão, abriram espaço para um cenário de inúmeros conflitos. Consoante com esse entendimento, ressalta Kfouri Neto (2019, p. 17):
Não há dúvida quanto ao fato de o médico, nos tempos atuais, exercer sua profissão em condições mais adversas que na década passada. […]
Surgiram grandes organizações de medicina pré-paga, a necessidade de complexos cálculos atuariais, a preocupação primordial com os gastos e a preservação do sistema, muitas vezes em detrimento de melhores cuidados ao enfermo. E sobrevêm os conflitos. A despersonalização da relação médico-paciente, de igual, gera quadro de antagonismos, no qual se inserem, com destaque, ações de ressarcimento de danos. As vítimas de atos culposos dos profissionais da saúde – comissivos ou omissivos – buscam reparação pecuniária para o abalo sofrido, com repercussões físicas e psíquicas.
O Poder Judiciário e os Conselhos Regionais e Federal de Medicina, tem sido cada vez mais acionados na busca para a solução desses conflitos, seja para pedidos de ressarcimento de danos pela caracterização da responsabilidade civil do médico ou a infração a princípios éticos e morais que regulam a profissão.
A relação que inicialmente era para ser pautada pela diligência e cuidado, criando um elo de confiança entre o médico e seu paciente, se tornou uma relação fria e distante, eminentemente consumerista, mesmo a saúde não sendo um produto a ser consumido pelo doente.
2.4 Do Erro Médico
Como já tratado nos tópicos anteriores, aplica-se a responsabilidade subjetiva para o médico, ou seja, sendo necessária a comprovação da culpa caracterizada pela negligência, imprudência ou imperícia, para ensejar a responsabilidade civil do profissional de acordo com o art. 14, § 4° do Código de Defesa do Consumidor: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”
A responsabilidade civil do médico, está comumente ligada ao cometimento de um erro. O erro médico advém de um desvio da conduta necessária, adequada, sem perícia e incompatíveis com o desempenho que seria razoável esperar-se de um médico prudente, podendo ser uma conduta omissiva ou comissiva. De acordo com Gomes, Drumond e França (2001, p. 27, apud Castro, 2019, p. 40):
Erro médico é a conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir dano à vida ou agravo à saúde de outrem, mediante imperícia, imprudência ou negligência. Erro do médico sugere qualquer desvio do médico das normas de conduta dentro ou fora da medicina, com dano ou sem ele.
Como a culpa médica está diretamente relacionada a comprovada imprudência, imperícia ou negligência, faz-se importante distingui-las no contexto prático da medicina.
A negligência é o oposto da diligência, ou seja, é a omissão de um agir recomendável, necessário, é a distração do profissional com os cuidados necessários ao seu paciente. De acordo com Kfouri Neto (2019, p.110):
Caracteriza negligência a troca de prontuários e exames; em neurocirurgia, médico não atentou para a radiografia invertida e operou o lado direito do cérebro, em vez do esquerdo; a demora no envio do paciente a especialista; o diagnóstico falho, por exame superficial; o retardamento na intervenção cirúrgica – a desatenção, a desídia, a falta de cuidado.
Com relação a imprudência, existe um ato comissivo por parte do médico. Esse ato comissivo é caracterizado pela precipitação e pela falta de cautela. O autor Kfouri Neto (2019, p.111) cita como exemplo de imprudência:
[…] A realização de anestesias simultâneas, o cirurgião que empreende cirurgia arriscada se garantia de vaga em UTI, a remoção de pacientes graves em ambulâncias sem equipamentos adequados – são atos imprudentes praticados pelos médicos.
E por fim, a imperícia, caracterizada pelo despreparo prático e insuficiente conhecimento técnico, carência de aptidão, ocorrendo sua caracterização principalmente com médicos que atuam em determinada especialidade sem a devida qualificação. Conforme enfatiza Kfouri Neto (2019, p.112):
Imperícia é a falta de observação das normas, deficiência de conhecimentos técnicos da profissão, o despreparo prático. Também caracteriza a imperícia a incapacidade para exercer determinado ofício, por falta de habilidade ou ausência dos conhecimentos necessários, rudimentares, exigidos numa profissão.
[…] Presume-se imperito, por exemplo, o médico ginecologista – sem habilitação em cirurgia plástica – que se aventura a realizar cirurgias próprias da especialidade para a qual não se qualificou; (…)
Restam, assim, analisados os requisitos para se configurar a culpa médica, notadamente quanto à comprovação de ato imprudente, imperito ou negligente.
2.5 A Iatrogenia como excludente da Responsabilidade Civil do Médico
A Medicina é uma ciência complexa e seus resultados não são totalmente passíveis de controle por parte do médico. Por esse motivo, nem todo resultado insatisfatório no olhar do paciente, será caracterizado como um erro médico.
Uma grande parte dos atos médicos pode significar um risco para o paciente, assim como o uso de determinados medicamentos, porém, muitas vezes são extremamente necessários na busca de uma melhor condição para o tratamento de determinada patologia.
Nesse contexto, temos a iatrogenia, que pode ser considerada como um fator aleatório não desejado, que causa um mal ao paciente, consistindo num resultado negativo da prática médica. De acordo com Giovanini (2014):
A iatrogenia consiste em um estado de doença, efeitos adversos ou alterações patológicas causados ou resultantes de um tratamento de saúde correto e realizado dentro do recomendável, que são previsíveis, esperados ou inesperados, controláveis ou não, e algumas vezes inevitáveis.
Na iatrogenia, tem-se o desdobramento de um tratamento tecnicamente correto, porém com reações adversas, esperadas ou não, porque dependem da complexidade de organismo e de diversos outros fatores externos. Como exemplo, Kfouri Neto (2019, p. 52) esclarece:
Mencione-se, para ilustrar, a necessidade de praticar orquiectomia bilateral (extirpação dos testículos), para a cura do câncer de próstata, quando, devidamente informado o paciente, tornar-se a única alternativa terapêutica – e tantas outras situações iatrogênicas.
Portanto, caracterizada a iatrogenia, não há o que se falar em erro médico visto que os pressupostos da responsabilidade subjetiva, quais sejam, o dano, a culpa e o nexo de causalidade, não estarão presentes.
Da mesma forma, a iatrogenia evidencia-se como causa de excludente da responsabilidade civil do médico, não existindo a obrigação de indenizar, tal como nas situações de caso fortuito ou de força maior – devido ao rompimento do nexo causal, o fato de terceiro e a culpa exclusiva da vítima.
Por oportuno, cabe destacar ainda que há outras excludentes podem ser alegadas dependendo do caso concreto, como legítima defesa (Código Civil, art.188, inc. I), estado de necessidade (Código Penal, art.24), exercício regular de direito e cumprimento do dever legal (Código Penal, art.23, inc.III).
3.1 Sistema Único de Saúde- SUS x Sistema de Saúde Suplementar
As operadoras de planos de saúde cada dia mais, vem ocupando um lugar de destaque devido a enorme procura da sociedade por maior segurança, qualidade e agilidade na prestação de serviços de saúde. Conforme já pontuado, de acordo com a ANS (Agência Nacional de Saúde) em dezembro de 2020, havia 711 operadoras médico-hospitalares operando no país e mais de 47 milhões de usuários dependentes desse sistema suplementar, maior número de usuários desde dezembro de 2016.
Em paralelo, como um dos principais motivos impulsionadores dos números expressivos de crescimento da saúde suplementar no Brasil, temos o insuficiente Sistema Único de Saúde – SUS. De acordo com informações do site do Conselho Nacional de Saúde – CNS, após a Emenda Constitucional 95 de dezembro de 2016, que instituiu um novo regime fiscal, o SUS teve uma perda de R$ 22,5 bilhões a partir de 2018 até 2020. Além disso, também esclarece que os gastos em saúde por pessoa, caíram de R$ 594,00 (em 2017) para R$ 583,00 (em 2019).
A matéria alerta que de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2019), a parcela da população com mais de 65 anos era de 10,5% em 2018, e poderá atingir um percentual de 15%, em 2034, alcançando 25,5% em 2060.
Portanto, o cenário apontado pelo CNS do futuro da saúde pública no Brasil é preocupante, porque ao invés de crescer, os investimentos têm sido reduzidos, e em contrapartida, o envelhecimento da população tem aumentado, o que eleva ainda mais os gastos com a saúde, visto que a população de maior idade demanda proporcionalmente mais serviços de Saúde.
Com o SUS não cumprindo o seu papel por completo, já que segundo a Constituição Federal, é sua obrigação prestar assistência à saúde de toda a população brasileira, o sistema de saúde suplementar continuará exercendo um importante papel no cenário da prestação de serviços de saúde no Brasil.
3.2 A Lei 9.656/98 e o Código de Defesa do Consumidor – CDC
Os planos de saúde, caracterizam-se pela prestação contínua de serviços de assistência à saúde mediante uma contraprestação em pecúnia. De acordo com Schaefer (2012, p.51), temos:
Os planos de saúde caracterizam-se pela prestação do serviço de assistência médico-hospitalar mediante uma contraprestação pecuniária, com atendimento em rede própria ou conveniada/credenciada, facultando-se a possibilidade de oferecer reembolso em determinadas circunstâncias de atendimento.
A principal característica desses contratos é a bilateralidade do contrato e a reciprocidade das obrigações, ou seja, a operadora deve cobrir os eventos contratados e o consumidor/usuário deve pagar em dia as prestações acordadas. Conforme Schaefer (2012, p. 55), trata-se de contratos de massa, adesivos, aleatórios e de execução continuada, que oferecem, pelo menos, a cobertura mínima de serviços definida em lei (Lei 9.656/98).
A Lei 9.656/98 regulamentou os planos e seguros privados de assistência à saúde, e conceituou o que seria uma operadora de plano de saúde, em seu artigo 1º inciso II: “[…] pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de que trata o inciso I deste artigo;”.
A Lei 9.656/98, representou um importante marco de ampliação a proteção aos direitos do consumidor de planos e seguros de saúde. A aplicação dessa Lei, não afasta o emprego do Código de Defesa do Consumidor – CDC na relação operadora e usuário de plano de saúde, conforme determina o art.35-G da referida Lei e de acordo com a Súmula 608 do STJ: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. (Súmula 608, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/04/2018, DJe 17/04/2018)”.
O Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9.656/98 devem ser aplicados de forma complementar, visto que ambos visam a proteção da vida, saúde e integridade física e psíquica. Portanto, na contratação de planos de saúde, a operadora é considerada fornecedora, pois presta aos consumidores serviços de assistência à saúde, conforme determina o art.3º, §2º, do CDC. Consoante com esse entendimento, de acordo com Schaefer (2012, p. 73):
As operadoras de planos e seguros são pessoas jurídicas de direito privado, consideradas pelo ordenamento como fornecedoras ou prestadoras de serviços típicas que desenvolvem atividade subordinada à tutela do Código de Defesa do Consumidor (colocação no mercado de produtos e serviços de assistência privada à saúde, em consonância com o disposto na Lei 9.656/98).
Resta assim justificada a aplicação do CDC em face das operadoras de planos de saúde.
3.3. Dados Atuais sobre o Erro Médico no Brasil
Antes de se adentrar na questão central do trabalho, cabe destacar os dados atuais sobre erro médico no Brasil, a fim de contextualizar o problema trazido à baila.
Segundo Castro (2019, p.102), a partir de dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), verificou-se nos últimos anos um elevado índice de condenações na área da saúde no Brasil. Em 2017, foram pelo menos 26 mil processos referentes a erro médico chegando à apuração de que, na atualidade, 7% (sete por cento) dos médicos no Brasil sofrem processos.
O número de processos por erro médico tem crescido significativamente, como percebe-se ao comparar os dados do CNJ acima apontados de 2017, com os dados trazidos pelo relatório “Judicialização da Saúde no Brasil”[9] de 2019, realizado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER, que dentre outras informações relevantes, chama a atenção o alto número de casos envolvendo erro médico: 31.039.
Em mesma perspectiva, percebe-se através do relatório “Justiça em Números” do CNJ de 2020, que dentre os assuntos mais demandados na Justiça Estadual no 2º e 1º graus e nos Juizados Especiais, está a responsabilidade civil. Segundo Kfouri Neto (2019, p.39):
Não há dúvida de que uma das causas do aumento da quantidade de demandas contra profissionais da medicina é a “gradativa deterioração dos serviços médicos”. As constantes menções em reportagens também contribuem para popularizar as denúncias. A falta de instrumental adequado, a pouca ou nenhuma discussão sobre Bioética nas faculdades, as precárias condições de trabalho – tudo contribui para o aumento dessas denúncias.
Devido ao expressivo aumento de demandas judiciais por motivo de erro médico, tem-se buscado cada dia mais entender os motivos que podem ensejar essas demandas. De acordo com matéria veiculada pela Globonews, segundo dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos últimos anos o número de ações judiciais alegando erro médico aumentaram cinco vezes. Em 2016, foram 376 processos contra médicos e em 2019 esse número saltou para 2080 ações. São quase 6000 demandas nos últimos 3 anos que buscam indenizações por falhas supostamente cometidas por esses profissionais.
De acordo com a matéria, sobre as denúncias administrativas registradas no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP, essas alcançaram o número de 1428 casos, alegando negligência, imprudência ou imperícia, sendo as especialidades que apresentaram maior índice de reclamações: clínica médica, ortopedia e obstetrícia.
A justificativa para esse aumento pode estar desde a grande oferta de cursos de medicina sem estrutura pelo país, como também ao ensino insuficiente das faculdades, o crescimento da industrialização e tecnologia de ponta, a sobrecarga e condições de trabalho, a especialização dos médicos em contrapartida com a diminuição do caráter humano da profissão, dentre outros fatores.
No site do Conselho Federal de Medicina – CFM, pode ser consultado o estudo da Demografia Médica no Brasil 2020[10], que apontou que o Brasil tem hoje mais do que o dobro de médicos que tinha no início do século. No ano 2000, eram 230.110 médicos e em 2020, esse número chegou a 502.475 profissionais. Nesse período, a relação de médico por mil habitantes também aumentou significativamente na média nacional, passando de 1,41 para 2,4.
Portanto, a preocupação do Conselho Federal de Medicina – CFM, e da população em geral, é com relação a qualificação e capacidade técnica dos novos médicos que estão entrando no mercado de trabalho.
3.4 A Responsabilidade Civil Objetiva e Solidária das Operadoras de Planos de Saúde e o Erro Médico
Diante do que se apreende do tópico anterior, o número de médicos no Brasil mais do que dobrou nos últimos vinte anos.
Sob esse prisma, cabe destacar que dentre os bens mais relevantes resguardados pelo Direito e a Medicina, temos o direito à vida, a saúde e a integridade psicofísica das pessoas. Por esse motivo, a atuação do médico pode afetar diretamente a vida de várias pessoas, o que torna a análise da responsabilidade civil das operadoras de planos de saúde decorrentes de um erro médico de especial relevância.
Como já exposto, a operadora de plano de saúde é caracterizada pelo Código de Defesa do Consumidor como fornecedora de serviços médicos, por isso tem-se a aplicação do art.14 do CDC, incidindo em regra a responsabilidade objetiva da operadora, que trata da responsabilidade sem aferição da culpa.
Na responsabilidade objetiva, se torna desnecessária a demonstração da negligência, imprudência ou imperícia, mas pressupõe nexo de causalidade adequada entre a atividade do agente e o dano. Porém, a análise da responsabilidade civil da operadora de plano de saúde por erro médico, precisa ser tratada com a devida atenção.
A existência de uma rede credenciada por parte da operadora, limitando o usuário a escolha do profissional médico constante naquela listagem, tem papel determinante na caracterização da responsabilidade civil.
Subtende-se que aquele profissional já foi devidamente analisado pelos critérios de qualidade da operadora antes de ser inserido em sua lista de credenciados/conveniados. Segundo Schaefer (2012, p.89):
O plano de saúde, caracterizada a responsabilidade objetiva, responde pela escolha de seus profissionais, independentemente da constatação de culpa. A lei consumerista determina que o fornecedor é responsável pela qualidade do serviço que coloca à disposição do mercado de consumo. Portanto, a operadora de plano de saúde é responsável pela qualidade dos serviços, do atendimento e dos profissionais que põe à disposição de seus consumidores por meio de listas vinculativas.
Além disso, a operadora de plano de saúde por integrar a cadeia de fornecimento da assistência à saúde, também responde solidariamente pelo erro médico de seus credenciados/conveniados, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, no art. 7º, parágrafo único, e no art.25, §1º, que determina como regra de todo o sistema a solidariedade passiva de todos os fornecedores envolvidos na cadeia econômica.
Nesse caso, a responsabilidade é compartilhada pelo médico, pelo hospital (caso o atendimento tenha sido realizado em suas dependências) e pelas operadoras dos planos de saúde, permitindo-se o direito de regresso daquele que ressarcir o dano contra aquele que o provocou. (SCHAEFER, 2012, p.89)
Importante ressaltar que a relação existente entre o médico e a operadora, em regra, não é de preposição, mas sim de um prestador de serviços, ou nos casos de operadoras de planos de saúde constituídas como cooperativas médicas, o médico pode ser um cooperado. Em qualquer um dos casos, o contrato vinculando o médico a operadora de plano de saúde, reforça a previsão de responsabilidade solidária da operadora conforme o CDC. Complementa Kfouri Neto (2019, p.157):
Respondem as operadoras de planos de saúde e os médicos a elas vinculados, solidariamente, diante dos danos causados pelo profissional. Relevante é o fato de o médico ser colocado à disposição pela operadora – e por ela indicado, usualmente em listagem distribuída ao usuário. Nesse caso, a pessoa jurídica aparece como fornecedora de serviços médicos e é parte legítima para também figurar no polo passivo da ação indenizatória […]
Na responsabilidade solidária, é possível ao credor exigir o cumprimento integral da obrigação de apenas um ou de todos os devedores, destaca Schaefer (2012, p.91):
Dessarte, é do consumidor a escolha de quem irá acionar na busca da reparação de seus prejuízos, pois os responsáveis solidários não precisam ser demandados ao mesmo tempo, facultando-se ao que ressarciu o dano o direito de regresso contra quem o causou (trata-se, portanto, de litisconsórcio facultativo).
Tal preceito é devido a ideia de risco-proveito assumido pela operadora ao contratar profissionais e estabelecimentos para a prestação de serviços oferecem, dando o prévio aval de excelência, aos consumidores-beneficiários.
Porém, como já descrito, o erro médico para ser caracterizado depende da comprovação da culpa do médico, por negligência, imprudência ou imperícia, visto que se trata de um profissional liberal que responde de forma subjetiva nos termos dos arts. 186 e 951 do Código Civil e art.14, §4º do Código de Defesa do Consumidor.
De acordo com Kfouri Neto (2019, p.49):
Evidentemente, não importa que o médico seja plantonista no pronto-socorro ou atenda em qualquer outra dependência do hospital. Pelos atos puramente médicos, necessário reiterar, há que se comprovar a culpa do profissional, a fim de se estabelecer a responsabilidade solidária da pessoa jurídica.
Portanto, é possível concluir, que antes de ser decretada a responsabilidade objetiva e solidária da operadora de plano de saúde pelo erro médico de seu credenciado/conveniado, é necessário que a responsabilidade subjetiva do profissional médico seja caracterizada.
Diferente entendimento, poderia trazer enormes impactos, visto que ensejaria a interpretação de que a prática médica exige uma obrigação de resultado, visto que, se o médico não tivesse sua culpa caracterizada, o plano de saúde teria que arcar de forma objetiva com o possível dano alegado pela parte autora mesmo sem a existência de culpa.
Importante colocação é feita por Castro (2019, p. 52): “Cumpre ressaltar que responsabilizar um médico objetivamente acabaria por desencadear um número ilimitado de indenizações contra profissionais que não concorreram efetivamente para a ocorrência do dano.”
Portanto, nos casos de erro médico, para que seja configurada a responsabilidade objetiva e solidária da operadora de plano de saúde, antes deverá ser comprovado que o médico integrante de sua lista de credenciados/conveniados agiu com culpa.
3.4.1 – ANÁLISE DO POSICIONAMENTO ATUAL DOS TRIBUNAIS PÁTRIOS EM CASO DE RESPONSABILIZAÇÃO DA OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE POR ERRO MÉDICO
Neste tópico será realizada uma breve análise de algumas decisões recentes dos Tribunais Pátrios, que reforçam os pontos já apresentados no presente trabalho.
Sabe-se que a Medicina não é uma ciência exata, portanto, os Tribunais possuem uma difícil missão de analisar os conflitos que são levados ao Poder Judiciário em busca de uma solução “justa” sopesando muitas vezes direitos indisponíveis como a saúde.
Luzia Chaves Vieira (2000) traz uma importante reflexão a respeito do assunto:
Existem temores de que os tribunais são leigos cientificamente para julgar os feitos médicos com precisão e equidade. A lei não entrava o progresso de nenhuma ciência: ao contrário, ela a ampara e protege. O que realmente compromete o progresso da medicina é a irresponsabilidade médica. Os tribunais não são leigos nem incompetentes; pois quando os juízes avaliam as faltas dos médicos, manifestam-se depois de ouvirem os próprios médicos os peritos, que são, na verdade, os olhos da lei.
Com a análise das atuais decisões dos Tribunais Pátrios é possível observar, que o entendimento que vem se formando sobre a responsabilidade civil das operadoras de saúde perante o erro médico, deve ser analisado sobre a ótica primária da conduta culposa do agente, depois, o nexo causal entre a ação e o evento danoso.
Sendo assim, citaremos as ementas abaixo seguidas de comentários sobre as referidas decisões.
Responsabilidade civil – Erro médico – Lesão de plexo braquial direito no momento do parto. Responsabilidade objetiva do hospital e da operadora do plano de saúde pelas condutas culposas de profissionais integrantes de seu quadro ou de sua rede credenciada. Laudo pericial que não evidenciou a ocorrência de culpa médica. Ausência de indicação de parto cirúrgico. Parto natural. Dificuldade de saída biacromial ocasionada por distocia de ombro. Impossibilidade de diagnóstico prévio. Realização das manobras necessárias e adequadas à atual prática médica. Culpa do profissional afastada. Ação improcedente. Sentença mantida. Recurso desprovido” (TJSP – Ap 1062567-90.2013.8.26.0100, 7-3-2018, Relª Mary Grün). (grifo nosso)
O acórdão se deu mediante a recurso de apelação, o qual a apelante inconformada com a decisão da sentença que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais em face do hospital juntamente com plano de saúde, interpôs recuso de apelação. O TJ-SP manteve a decisão da sentença e negou o provimento do recurso.
A decisão proferida foi fundamentada pela ausência de comprovação dos requisitos que configuram o erro médico (negligência, imperícia ou imprudência). A análise destes requisitos integra a fase de comprovação da responsabilidade subjetiva do profissional médico que realizou o procedimento. O entendimento do TJ-SP neste caso, colabora com o entendimento do presente trabalho, de que é necessária a caracterização do erro médico para então poder configurar a responsabilidade objetiva e solidária dos envolvidos (plano de saúde, hospital, clínica, etc.).
A seguinte decisão, trata-se de um recurso inominado que tramitou em juizado especial referente a uma ação de indenização, onde o recurso reformou a sentença condenando o hospital e o plano de saúde responderem solidariamente em face da autora.
CIVIL. ABANDONO MÉDICO A GESTANTE EM TRABALHO DE PARTO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PLANO DE SAÚDE E DO HOSPITAL. DEVER DE INDENIZAR. DANO MORAL CABÍVEL. 1. Acerca da responsabilidade civil, assim disciplina o CC/02: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”. Cabe, à guisa da menção ao artigo 186 do mesmo dispositivo: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” A interpretação mais serena que se deve dar ao presente dispositivo gravita em torno da conduta levada a cabo da má-fé ou que contrarie a proibição legal (a ação), à não-realização de algo a que o agente estava obrigado, por dever legal, a fazê-lo (a negligência), bem como ao erro de profissional na realização de seu mister, gerando o prejuízo experimentado pela vítima (a imperícia). 2. Deste modo, comete ato ilícito o médico que, negligentemente, após acompanhar a paciente por todo seu pré-natal, abandona-a em hospital depois de fazer os exames pré-parto, sem prestar qualquer esclarecimento. 3. Acerca da responsabilidade subsidiária do plano de saúde e do hospital, O STJ já fixou entendimento no sentido de que caso se esteja diante de contrato com manutenção de hospitais e indicação de rol de conveniados, a operadora e o hospital respondem solidariamente pela má prestação do serviço: “(…) contrato fundado na prestação de serviços médicos e hospitalares, próprios e/ou credenciados, no qual a operadora (…) mantém hospitais e emprega médicos ou indica um rol de conveniados, não há como afastar sua responsabilidade solidária pela má prestação do serviço (STJ. 4ª Turma. REsp 866.371/RS. Relator Ministro Raul Araújo. DJ: 20/08/2012.)”. 4. Deste modo, tanto o hospital quanto a operadora do plano respondem solidariamente. (TJ-AP – RI: 00331926720178030001 AP, Relator: JOSÉ LUCIANO DE ASSIS, Data de Julgamento: 07/05/2019, Turma recursal) (grifo nosso)
A decisão foi fundamentada mediante a análise dos requisitos da conduta médica que levou ao resultado, neste caso foi comprovada que houve imperícia e negligência do médico que acompanhava a paciente, e conforme já apresentado no presente estudo, o hospital e o plano de saúde irão responder civilmente de forma objetiva e solidária pela má prestação do serviço executado pelo profissional médico.
Nesta análise foi configurada a responsabilidade objetiva e solidária entre a operadora e o hospital, sendo que a operadora responderá pela escolha de seu profissional, independentemente de comprovação de culpa. Segundo Luzia Chaves Vieira (2000):
O convênio responde pela culpa in eligendo quando faz a triagem dos profissionais médicos e paramédicos que farão parte dos seus registros, in vigilando, quando deve fiscalizar a atenção dos médicos no desempenho das suas atividades profissionais. Responde ainda pela culpa in comitendo pelo fato de concordar com a atividade dos profissionais incompetentes ou inexperientes por eles contratados para atuar em área do risco ou de alta tecnologia.
Pode-se observar, que os Tribunais Pátrios têm se manifestado fortemente em relação à responsabilidade civil dos planos de assistência à saúde quando ocorre um erro de um médico associado, no sentido de responsabilizá-los de forma objetiva e solidária, independente da comprovação de culpa deste, mas sendo necessária primeiramente a prova da culpa do médico.
3.5 Análise dos impactos da judicialização da saúde no âmbito das operadoras de planos de saúde
Pelo fato de estarmos inseridos em uma democracia e da Constituição Federal garantir o direito à saúde como um direito social em seu art.6º, quando esse direito não é atendido, é no judiciário que se busca essa efetivação. Essa busca da efetivação dos direitos constitucionais através do Poder Judiciário chama-se judicialização. Luís Roberto Barroso (2011, p.360-361), define a judicialização da seguinte forma: “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário”.
De acordo com o relatório Judicialização da Saúde no Brasil[11] do CNJ de 2019, o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou 130% entre 2008 e 2017, enquanto o número total de processos judiciais cresceu 50%. Identificou-se que os principais assuntos discutidos nos processos em primeira instância são: “Plano de Saúde”, “Seguro” e “Saúde”.
Percebe-se com isso, uma participação muito elevada do assunto “Plano de Saúde” que está em primeiro lugar na lista de processos de primeira instância relacionados à saúde.
Além disso, como já demonstrado no presente trabalho o aumento dos processos por erro médico está em uma crescente, o que também acaba impactando nas operadoras de planos de saúde, porque como já visto, caracterizado a culpa do médico vinculado a operadora pela sua lista de credenciados/conveniados, ela é responsável objetiva e solidariamente pelos danos causados pelo erro médico.
A judicialização da saúde, seja por erro médico ou por outras demandas, acaba comprometendo o orçamento ou planejamento tanto do serviço público quanto do serviço privado.
Devido a escala de crescimento da judicialização da saúde, o assunto tornou-se relevante não apenas para o sistema de assistência à saúde público e privado, mas também para o próprio Judiciário, que tem de lidar com centenas de milhares de processos, vários dos quais sobre temas recorrentes e quase sempre contendo pedidos de antecipação de tutela ou liminares, exigindo uma maior agilidade e eficiência.
De acordo com matéria veiculada no site da Associação Brasileira de Planos de Saúde – ABRAMGE[12] relatando evento ocorrido em outubro de 2020, o seminário online “Mutualismo e equidade em planos de saúde: princípios e busca por equilíbrio”, onde o ministro João Otávio de Noronha relatou a preocupação com a judicialização da saúde suplementar e o seu impacto na saúde pública:
Não se pode transferir a obrigação do Estado para os entes privados porque assim você inviabiliza o sistema. Temos cerca de 47 milhões de usuários de planos de saúde no país, então jogue 47 milhões de pessoas no SUS e veja o que acontece. Nosso dever é zelar para que as instituições cumpram seu papel, temos de zelar pelo equilíbrio econômico.
O equilíbrio econômico das operadoras de planos de saúde é algo que pode beneficiar ou impactar negativamente toda a economia, visto que o fechamento de uma empresa gera demissões e menos impostos pagos ao governo.
Conforme a ANS (Agência Nacional de Saúde)[13] em dezembro de 2010, havia 1045 operadoras médico-hospitalares em atividade, em 2015 caíram para 828, em 2020 atingiram o total de 711 e em janeiro de 2021 chegou ao total de 709 operadoras médico-hospitalares em atividade, o que demonstra uma curva decrescente. O impacto na saúde suplementar de um desenfreado crescimento da judicialização da saúde, pode falir muitas operadoras, principalmente as de menor porte, afetando também a livre concorrência e consequentemente o consumidor.
Para elucidar esse cenário, a autora Gomes (2018), em seu artigo sobre os impactos financeiros da judicialização da saúde em operadoras de saúde suplementar, destaca o seguinte:
O que pode ser observado é que os Planos de Saúde estão cumprindo um papel que é do Estado, promovendo saúde fora dos limites que se é proposto, tendo muitas vezes que custear procedimentos de cifras vultosas, que põe em risco toda uma atividade empresarial, sendo que se quer de fato é sua obrigação. As sentenças em desfavor das operadoras de Saúde Suplementar, muitas vezes em sua fundamentação remetem a Princípios e obrigações puramente estatais e que recai mais uma vez os desmandos do Poder Público na iniciativa privada, devendo esta arcar com o sucateamento da máquina pública.
Devido a necessidade de o usuário/consumidor ter os seus direitos à saúde resguardados e por outro lado, a importância de se manter o equilíbrio econômico das operadoras de planos de saúde e ganhar agilidade devido ao enorme número de processos que tramitam no Poder Judiciário, uma alternativa que tem crescido nos dias atuais são os métodos alternativos de solução de conflitos na área médica, como a conciliação, mediação ou arbitragem.
As vantagens da utilização dos métodos alternativos é que além de não envolver toda a burocracia dos trâmites de um processo no poder judiciário, existe a economia de custos processuais, respeito à confidencialidade e agilidade na solução do conflito. Em suma, pode ser uma alternativa benéfica para todas as partes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho abordou os pontos relevantes da responsabilidade civil subjetiva e objetiva, e apresentou os requisitos basilares para a configuração do erro médico e posteriormente, da operadora de plano de saúde.
Além disso, o trabalho buscou apresentar os reflexos decorrentes dos erros médicos, que dentre outros, podemos citar os altos índices de processos tramitando no Poder Judiciário elevando o orçamento tanto da saúde pública, mas principalmente da assistência privada à saúde no Brasil.
Diante da deficiência do SUS em atender toda a população de maneira efetiva, a atuação da saúde suplementar foi elevada a um patamar de grande importância e responsabilidade no cenário brasileiro, devido a um enorme número de usuários dependentes desse sistema, fazendo com que a judicialização da saúde suplementar seja analisada com a sua devida importância.
A partir desse cenário, a análise de doutrinas e jurisprudências permitiu a conclusão de que, as operadoras de planos de saúde estão sujeitas a responderem de forma objetiva e solidária quando identificado o erro médico de seus credenciados/conveniados, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.
O fato de que as operadoras de planos de saúde que limitam a escolha de profissionais médicos as suas listas vinculativas, não permitindo a livre escolha por parte do usuário, corrobora com o entendimento da aplicabilidade da responsabilidade solidária, cabendo a indenização ao usuário/paciente lesado, que ao contratar este tipo de prestação de serviços busca a segurança, previsibilidade, garantia e acima de tudo deposita a confiança de se ter um serviço prestado de maneira satisfatória e logicamente eficiente e digno.
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[1] Bacharelanda em Direito – Centro Universitário UNA. Tecnóloga em Processos Gerenciais – Centro Universitário UNA. E-mail: karine.gurgel@hotmail.com
[2] Bacharelanda em Direito – Centro Universitário UNA. E-mail: neilmavieira_@hotmail.com
³Doutor em Educação pela – PUCMINAS. Mestre em Direito pela Univ. Iguaçu. Especialista em Direito de Empresa pelo Inst. de Educação Continuada – PUCMINAS. Graduado em Direito pela PUC-MINAS. Professor de Direito Proc. Civil de curso de Graduação e Pós-graduação em Direito e-mail:marco.kumaira@prof.una.br
[3] ANS – Agência Nacional de Saúde, trata-se de uma autarquia especial de normatização controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. Os dados apresentados são divulgados e atualizados periodicamente em seu endereço digital: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais.
[4] Importante ressaltar que neste trabalho, em alguns casos, se utilizará a expressão erro médico em seu sentido mais amplo, ou seja, o erro decorrente de ação ou omissão do facultativo, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, membros de uma equipe cirúrgica, ou seja, do profissional da saúde.
[5] Relatório Justiça em Números – uma radiografia completa da Justiça, com informações detalhadas sobre o desempenho dos órgãos que integram o Poder Judiciário, seus gastos e sua estrutura. Este relatório, produzido pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), apresenta onze anos de dados estatísticos coletados pelo CNJ, com uso de metodologia de coleta de dados padronizada, consolidada e uniforme em todos os noventa tribunais. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf.
[6] Código de Hamurabi – aproximadamente 1780 a.C. O nome de Hamurabi permanece indissociavelmente ligado ao código jurídico tido como o mais remoto já descoberto: o Código de Hamurabi. O legislador babilônico consolidou a tradição jurídica, harmonizou os costumes e estendeu o direito e a lei a todos os súditos. Seu código estabelecia regras de vida e de propriedade, apresentando leis específicas, sobre situações concretas e pontuais. CÓDIGO DE HAMURABI. Secretária da Educação do Paraná, 2019. Disponível em: < http://www.historia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/fontes%20historicas/codigo_hamurabi.pdf>. Acesso em: 11/11/2020.
[7] Art. 218 do Código de Hamurabi: “Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.” CÓDIGO DE HAMURABI. DHNET, 2019. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm>. Acesso em: 11/11/2020.
[8] O termo aquiliano nasceu do direito romano a Lex Áquila, que significa responsabilização pelo ato ilícito cometido a partir do elemento subjetivo culpa, que surge pelo ato ou omissão que vai ao contrário do dever imposto pela lei.
[9] Relatório analítico propositivo da Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução, realizado pelo INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER em 2019 em parceria com o Conselho Nacional de Justiça. Fonte: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/03/66361404dd5ceaf8c5f7049223bdc709.pdf.
[10] O estudo da Demografia Médica no Brasil 2020 é resultado de um trabalho do Conselho Federal de Medicina -CFM e da Universidade de São Paulo -USP, sendo uma produção científica que atualiza os conhecimentos acumulados na última década e traz novas informações detalhadas sobre a população de médicos e seu exercício profissional. Disponível em: http://www.flip3d.com.br/pub/cfm/index10/?numero=23&edicao=5058#page/4.
[11] Relatório analítico propositivo da Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução, realizado pelo INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER em 2019. Fonte:https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/03/66361404dd5ceaf8c5f7049223bdc709.pdf
[12] A Abramge é uma entidade sem fins lucrativos que percebeu a necessidade de organizar e propagar o sistema privado de prestação de serviços médicos, com eficiência e qualidade. O principal objetivo da Abramge é representar institucionalmente às empresas privadas de assistência à saúde do segmento de Medicina de Grupo, junto aos órgãos federais, estaduais e municipais, em atuação no território nacional.
[13] ANS – Agência Nacional de Saúde, trata-se de uma autarquia especial de normatização controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. Os dados apresentados são divulgados e atualizados periodicamente em seu endereço digital: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais.
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