Resumo: O presente artigo cogita da possibilidade de acolhimento da responsabilidade civil objetiva apregoada no art.927, parágrafo único, do Código Civil, aos infortúnios laborais oriundos de atividade de risco, afastando a regra do art.7º, XXVIII, da Constituição Federal, que impõe a responsabilidade subjetiva face à conduta culposa ou dolosa da entidade patronal. Para suplantar a problemática, é de capital relevância cuidar da temática concernente à responsabilidade civil, para, posteriormente, particularizar a teoria dos acidentes do trabalho, adentrando, por fim, no campo árido da responsabilidade civil do empregador pelos acidentes de trabalho.
Palavras-chave: Acidentes do Trabalho. Constituição Federal. Código Civil. Responsabilidade civil. Empregador.
Sumário: 1 Introdução. 2 Os Pressupostos da Responsabilidade Civil. 3 A Responsabilidade Civil Subjetiva. 4 A Responsabilidade Civil Objetiva. 5 Acidentes do Trabalho. 5.1 Acidente Típico. 5.2 Doenças Ocupacionais. 5.3 Dos Acidentes do Trabalho por Equiparação. 6 Os Argumentos Favoráveis à Aplicação da Responsabilidade Objetiva aos Acidentes do Trabalho. 6.1 O Caráter Aberto do Caput do Art. 7º da Constituição Federal. 6.2 O Princípio da Proteção como Fundamento. 6.3 A Norma Situada no Art. 2º, Caput, da CLT. 6.4 A Interpretação Sistemática. 6.5 A Jurisprudência Favorável. 7 A Corrente Favorável à Aplicação da Responsabilidade Subjetiva aos Acidentes do Trabalho.8 Considerações Finais. Referências
1 Introdução
O artigo dedica-se à elucidação da problemática instaurada em sede doutrinária e jurisprudencial, no tocante à temática acerca da responsabilidade civil do empregador pelos acidentes oriundos da relação laboral. A contenda a ser travada no defluir do presente ensaio gravita ao redor da órbita do art. 7º e seu inciso XXVIII, da Constituição Federal, que preconiza a responsabilidade civil subjetiva aos infortúnios laborais – ou seja, para a efetivação da reparação na esfera cível, cabe ao laborista provar a culpa ou dolo patronal. Em dissonância à regra supracitada, avulta a norma vergada no art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Na dicção do dispositivo em voga, tem-se a responsabilidade objetiva quanto aos danos culminados pelo exercício da atividade de risco. Nesse caso, o dever de indenizar restará cristalino, cingindo-se o laborista apenas à demonstração do liame concernente ao fato danoso e o prejuízo suportado. Destarte, a indagação cala fundo quando da dúvida pairante acerca da atividade eivada de risco que é exercida pelo empregado. A reparação de um eventual infortúnio será lastrada no art.7º, XXVIII, da Carta Magna, ou amparar-se-á no art.927 e seu parágrafo único, da lei ordinária? É o que se intenta investigar no presente artigo.
2 Os Pressupostos da Responsabilidade Civil
Impõe sublinhar, inicialmente, que os pressupostos que aqui serão arejados têm incidência na responsabilidade subjetiva e objetiva, constituindo “uma verdadeira teoria geral da responsabilidade civil”, no dizer de Sérgio Cavalieri Filho[1]. Integram a teoria da responsabilidade civil três pressupostos: ato ilícito, dano e nexo causal. De maneira didática, elucida-se o primeiro pressuposto – o ato ilícito.[2] Nesse contexto, bem se amolda a definição de Silvio de Salvo Venosa[3] acerca do elemento, asseverando “que os atos ilícitos são os que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento”. O ato ilícito compõe-se da ação ou omissão, e seu conceito está consubstanciado na inteligência do art.186, do Código Civil:
“Art.186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.[4]
Assim sendo, o ato ilícito tem – em seu cerne – “uma conduta humana voluntária, contrária ao Direito” [5]. O agente porta-se de modo a angariar, através de ato comissivo ou omissivo, dano a outrem por afronta a direito do indivíduo, com visíveis repercussões na ordem jurídica.[6]
O ato ilícito “é, assim, a ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente, um preceito jurídico de direito privado, causando-se dano a outrem”[7], sustenta Orlando Gomes. O mesmo jurista assevera ser o ato ilícito integrado pelos seguintes aspectos: 1) ato comissivo ou omissivo de um determinado indivíduo; 2) a culpa; 3) mácula à norma de direito privado; e 4) dano.[8] O mestre enumera a culpa como elemento segregado do ato ilícito. Portanto, com fulcro no que acima observamos e atrevendo-se a um modesto esclarecimento de ato ilícito, podemos concluir ser a agressão à norma jurídica de direito privado, eivada de culpa ou dolo – os quais, em hipótese alguma, chocam-se com a própria noção do pressuposto sob análise. Noutras palavras, a agressão à norma jurídica – ato ilícito – é oriunda de um elemento subjetivo, que poderá ser a culpa (negligência, imprudência ou imperícia) ou dolo.
Indubitavelmente, sem que exista a concretização de um dano oriundo do ato ilícito, não haverá reflexos no campo da responsabilidade civil.[9] Nesse passo, o dano poderá ser de cunho patrimonial ou moral, sendo as duas espécies passíveis de suportar a responsabilidade civil.[10] Imperioso destacar, desde logo, uma definição de patrimônio – o que mostra-se de acentuada relevância para debelar a acepção de dano patrimonial. Apresenta-se apenas a definição de Arnaldo Rizzardo: “O conceito de patrimônio envolve qualquer bem exterior, capaz de classificar-se na ordem das riquezas materiais, valorizável por sua natureza e tradicionalmente em dinheiro.”[11] Tem-se, com lastro no acima citado, o dano patrimonial como “dano que atinge o patrimônio do ofendido” à luz da razão de Pontes de Miranda[12].
Por seu turno, o dano moral ou extrapatrimonial funda-se na ideia de agressão ao apanhado de sentimentos do homem, a saber – honra, dignidade, reputação de seu nome profissional, entre outros do gênero.[13] Outrossim, Yussef Said Cahali[14] corrobora a assertiva supracitada, vez que é categórico na construção de uma definição acerca do assunto aqui ventilado, aclarando que o dano moral reside em toda mácula suportada pela alma humana, tangenciando o íntimo da personalidade do homem, exteriorizando-se através da dor, da perda de um ente, ou do sofrimento.
Traçadas as definições das espécies de dano, vamos ao derradeiro pressuposto da responsabilidade civil – o nexo causal. Luiz Cunha Gonçalves, com o escopo de atingir uma definição de relação de causalidade, leciona-nos o que abaixo segue colacionado:
“Para se exigir a alguém a responsabilidade civil, não basta alegar e provar que ele praticou um ato ilícito e que outra pessoa sofreu um dano. É indispensável demonstrar que este dano foi efeito daquele fato ilícito, isto é, estabelecer entre os dois fatos a relação de causa e efeito”.[15]
Alicerçado no mesmo desígnio de definir o que é, em verdade, o nexo de causalidade, o civilista Arnaldo Rizzardo lança luz à temática aduzindo tratar-se da “relação verificada entre determinado fato, o prejuízo e um sujeito provocador”.[16] Não obstante, nem sempre revela-se branda a identificação do nexo de causalidade que figurou de modo direto para efetivação do dano gerado, motivo pelo qual cabe, em apertadíssima síntese, delinear algumas palavras sobre a teoria da equivalência das condições e a despeito da teoria da causalidade adequada.[17]
A teoria da conditio sine qua non, assim também conhecida a teoria da equivalência das condições, não destina-se a distinguir a causa e a condição, isto é, “se várias condições concorrerem para o mesmo resultado, todas têm o mesmo valor, a mesma relevância, todas se equivalem”, sublinha Sérgio Cavalieri Filho[18]. Por conseguinte, com fulcro nas linhas acima tracejadas, não há prevalência entre uma ou outra das diversas causas que concorreram para existência do prejuízo angariado. No que tange à teoria da causalidade adequada, “nem todos os antecedentes podem ser levados à conta do nexo causal” enfatiza Sílvio de Salvo Venosa[19]. Nesse diapasão, tal proposição visa amparar a responsabilidade civil na causa mais apropriada que principiou o dano, dentre outras formadoras de um determinado evento.[20] Nosso vigente Código Civil adotou a teoria da causalidade adequada consubstanciada no art. 403, ainda que não faça menção expressa ao nexo de causalidade:
“Art.403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato.”[21]
Conjugados em plena consonância os três pressupostos acima elencados, exsurge a teoria da responsabilidade civil para tutelar os direitos lesados. Cumpre, agora, alçar voo sobre o território da responsabilidade civil subjetiva, juntamente com alguns aspectos que a esta são inerentes.
3 A Responsabilidade Civil Subjetiva
Em sede preliminar, cabe sublinhar que a matéria em singularidade fundamenta-se no elemento da culpa, como faísca deflagradora do dever de reparar. A culpa é o agir do agente que “não visava causar prejuízo à vítima, mas de sua atitude negligente, de sua imprudência ou imperícia resultou um dano para ela”, leciona Silvio Rodrigues[22]. Na contramão da definiçõe de culpa aqui esposada, temos o dolo como resultado intencionalmente incitado por terceiro – ou seja, o agente delibera lesar alguém.[23] Escoltando o raciocínio acima explanado, temos que a culpa em sentido amplo abarca o dolo, e a culpa em sentido estrito evidencia-se na conduta humana eivada de imperícia, negligência ou imprudência.[24] A imperícia é oriunda da ausência de habilidade técnica, a qual deveria ter sido observada em um dado momento; a negligência consubstancia-se na falta de zelo, ou acatamento das normas organizadoras do convívio social; por fim, a imprudência é entendida como a atitude que afasta a cautela que deveria ter sido considerada em um determinado momento.[25]
A teoria subjetivista fora, e ainda o é, contundentemente rechaçada por diversos juristas que reclamam por maior salvaguarda dos direitos lesados por terceiros. Para atender ao aludido anseio, vem ganhando terreno a responsabilidade civil objetiva.
4 A Responsabilidade Civil Objetiva
A responsabilidade civil objetiva tem seu limiar histórico no contexto dos acidentes de trabalho. A mitigação do labor penoso angariado pela implementação da máquina às margens da revolução industrial redundou em uma nefasta consequência: a extensão dos números e do risco de infortúnios laborais.[26] Nesse quadro, ocorre o despertar da responsabilidade civil objetiva pela extrema dificuldade de reparação do dano emanado do infortúnio laboral, sobretudo pela árdua tarefa de provar a culpa do empregador.[27]
A responsabilidade objetiva pode ser depreendida como a atribuição dos riscos da atividade a quem dela se beneficia e a incrementa, “e não a terceiros que não têm participação alguma na mesma ou, se têm, não auferem as vantagens provenientes desta atividade”, pontua José Acir Lessa Giordani[28]. No entender de Paulo Sérgio Gomes Alonso[29]:
“A teoria objetiva desvinculou a obrigação de reparação do dano sofrido da ideia de culpa, baseando-se no risco, ante a dificuldade da prova da culpa pelo lesado para obter a reparação.”
Nesse passo, e como podemos inferir da passagem acima transcrita, a responsabilidade civil objetiva tem fulcro integral na teoria do risco. Ademais, imperioso frisar que todos os pressupostos da responsabilidade civil serão aqui aplicados – ou seja, haverá ato ilícito, dano e nexo causal, muito embora o elemento da culpa será sempre dispensável.[30]
Previamente ao apontamento do principal dispositivo em que guarda repouso a responsabilidade civil objetiva no direito pátrio, cumpre observar as diversas teorias concernentes à natureza do risco, dentre as quais podemos pôr em evidência as seguintes: teoria do risco-proveito, do risco criado, do risco profissional, do risco integral e teoria do risco excepcional.[31] O risco-proveito arroga-se da ideia de que a responsabilidade pelo dano deverá ser imputada a quem aufere proveitos de determinado empreendimento.[32] Depreende-se, da singularidade da teoria do risco criado, “que se alguém põe em funcionamento uma lícita atividade perigosa, responderá pelos danos causados a terceiros, em decorrência dessa atividade, independentemente da comprovação de culpa”, registra Paulo Sérgio Gomes Alonso[33]. Tracejando os contornos da teoria do risco profissional, extrai-se que esta se empenha em salvaguardar o laborista frente às variadas formas de perigo em que este possa estar submetido, isto é, confere amparo ao risco advindo da atividade laboral.[34]
O civilista Luiz Roldão de Freitas Gomes[35], inclinando-se em demonstrar as espécies de risco, e estribado na docência de Caio Mário da Silva Pereira, refere que o risco integral vislumbra a reparação do dano oriundo de um fato qualquer, não havendo relevância, em essência, na origem que o efetivou. Tem-se, por fim, a teoria do risco excepcional, a qual atua com o norte de incidir sobre atividades que, de maneira excepcional, poderão acarretar risco, como, a título ilustrativo, o transporte de carga perigosa.[36] A teoria do risco está consagrada no cânone do art. 927 e seu parágrafo único do Código Civil – o que Anderson Schreiber [37] denomina de “cláusula geral por atividades de risco”. Pela relevância temática da norma em foco cumpre colacioná-la:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”[38]
Não obstante, a dicção legal revela-se imprecisa, motivo pelo qual há contundente embate doutrinário acerca do dispositivo em apreço.[39] Sob essa vertente, o que seria “atividade de risco”? À visão de Álvaro Vilaça de Azevedo[40], abriram-se margens à interpretação jurisprudencial concernente a tal expressão, havendo incidência da responsabilidade objetiva apenas nas atividades perigosas, assevera o autor. Recorremos, novamente, às lições de Sérgio Cavalieri Filho – o qual, empenhado em tecer uma definição da palavra “atividade” mencionada pelo legislador infraconstitucional, estaciona na conclusão abaixo manifestada:
“Logo, não há como afastar a idéia, já consagrada pela lei e pela doutrina, de que atividade indica serviço, ou seja, atuação reiterada, habitual, organizada profissional ou empresarialmente para realizar fins econômicos”.[41]
Esta é a verídica conotação atribuída à palavra “atividade”.[42] No que toca ao termo “risco”, embora já superficialmente tratado, vale observar que Cláudio Brandão[43], ainda que apoiando-se em ensinamentos de Silvio de Salvo Venosa, Pablo Stoze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, aduz que o risco “é a atividade que, embora lícita, apresenta uma maior probabilidade de apresentar danos”. A dualidade de termos conjugados em plena consonância conferem ânimo à aplicação da responsabilidade civil objetiva. Passa-se à análise dos acidentes do trabalho.
5 Acidentes do Trabalho
Ao cuidar da matéria concernente aos acidentes do trabalho, importa destacar que dela advém o acidente típico, acidente ocupacional – o qual divide-se em doenças profissionais e doenças do trabalho – e acidentes por equiparação, respectivamente, artigos 19, 20 e 21, da lei 8.213/1991. No entanto, antes de adentrarmos às espécies de acidente do trabalho propriamente ditas, comporta conhecimento o estudo sobre a conceituação do infortúnio laboral. A definição de acidente do trabalho encontra respaldo no pensamento de Jayme Aparecido Tortorello, que articula o seguinte:
“Sugere-se que acidente do trabalho seja definido como acidente sofrido pelo trabalhador, a serviço da empresa, e que ocorre pelo exercício do trabalho, provocando lesão corporal, perturbação funcional ou doença que cause a morte, a perda ou redução permanente ou temporária da capacidade para o trabalho”.[44]
Exposta e superada a conceituação relativa ao acidente do trabalho, no que cabe anotar que as descrições acima arroladas versam sobre a infortunística laboral de modo meramente genérico, pois as espécies de acidente do trabalho que a pouco aduzimos vêm definidas na dicção legal. As conceituações de infortúnio laboral como gênero são construções doutrinárias, uma vez que o acidente do trabalho em sentido restrito encontra amparo frente à letra fria da lei.
5.1 Acidente Típico
O aludido epíteto também é corriqueiramente apontado na doutrina justrabalhista como acidente-tipo ou macrotrauma[45], estando salvaguardado no art.19, da lei 8.213/1991, sendo oportuna sua transcrição:
“Art.19. Acidente do Trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.”[46]
Infere-se, pois, ser evento subitâneo, único, imprevisto, com consequências imediatas, onde a violência não constitui, ainda que excepcionalmente, a sua essência do fato, já que há acidentes em que o operário é maculado por infortúnio que acaba por se manifestar tardiamente.[47] Outrossim, a aludida significação de acidente típico é compartilhada por José Antônio Ribeiro de Oliveira, expondo que “trata-se de evento único, imprevisto, que ocorre de súbito, de consequências geralmente imediatas, podendo ser leves, graves e até fatais”.[48] O diploma legal impõe, como um dos requisitos necessários à configuração do acidente típico, a lesão corporal ou perturbação funcional passível de aplacar dano à saúde do trabalhador.
Por derradeiro, ainda sobre os aspectos que norteiam o acidente do trabalho típico, necessário revelar a posição de Mozart Victor Russomano sobre as características do instituto em apreço. O Ex-Ministro do Tribunal Superior do Trabalho assevera alguns aspectos oriundos da concepção de acidente típico, os quais abaixo seguem transcritos:
“[…] O acidente, necessariamente, é súbito, isto é, acontece em um pequeno lapso de tempo; é violento, no sentido de ser capaz de gerar danos físicos; é fortuito porque não pode ser provocado, nem direta, nem indiretamente, pela vítima; determina, enfim, uma lesão corporal, que diminui ou exclui a capacidade de trabalho de quem por ele for atingido […].”[49]
Dos elementos apanhados pelo jurista, o mesmo prossegue aduzindo ser “indispensável que o fato súbito, violento e fortuito esteja vinculado, diretamente, ao trabalho desenvolvido pela vítima”.[50]
Cediço que, a depender do doutrinador, os elementos ou requisitos para configuração do acidente típico podem sofrer mutações e também confundir-se com as próprias características do instituto.[51] A título meramente exemplificativo, sob a lente doutrinária de Cláudio Brandão[52], este sistematiza os seguintes elementos formadores do infortúnio típico: evento gerador do dano, natureza do dano (compreende lesão corporal e perturbação funcional), consequências dos danos e nexo de causalidade. Para Antônio Lopes Monteiro e Roberto Fleury de Souza Bertagni[53], a configuração de acidente típico cinge-se apenas à conjugação de dois termos: dano e nexo causal. Agora, observam-se as doenças ocupacionais.
5.2 Doenças Ocupacionais
A lei subdivide as doenças ocupacionais em doenças profissionais – também conhecidas como doença profissional típica, ergopatia, ou tecnopatia – e doença do trabalho, tendo como sinônimos a doença profissional atípica ou mesopatia.[54] A doença profissional e a doença do trabalho estão dispostas, respectivamente, no art.20, caput, e incisos I e II, da lei 8.213/1991, abaixo reproduzida:
“Art.20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elabora pelo Ministério do Trabalho e da Previdência.
II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.”[55]
As doenças profissionais são inerentes a certas atividades laborais – isto é, são peculiares a determinadas funções exercidas pelo trabalhador.[56] Da sábia lição de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento extrai-se o seguinte:
“Doença profissional é aquela que é causada pela própria atividade prestada, visto que, no seu exercício, há a atuação do fator patogênico que vai intoxicar ou infectar o trabalhador. Da própria atividade laboral é que vem o risco, intrínseco a ela, e, consequentemente, a eclosão da atividade mórbida. Em outras palavras, o trabalhador executa sua função envolvido pelo fator patogênico, que é peculiar, ou próprio, da atividade exercida.”[57]
Na lúcida hermenêutica legislativa de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari[58], trata-se de uma situação comum a todos os operários que laboram em determinada atividade que possa trazer malefício à sua saúde, sendo elencada no Decreto n. 3.048/99, ou reconhecida pela Previdência Social. Destarte, a doutrina é heterogênea quanto à concepção de doença profissional.
Indispensável, entretanto, tecer explicação referente ao inciso I, infine, do art. 20, da lei em comento, que aduz sobre a relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Previdência. Neste ponto, a lei faz alusão ao decreto n. 3.048/99[59] – o qual, em seu anexo I, cuida de um rol de doenças profissionais que poderão ser desenvolvidas em determinadas atividades laborais e, no anexo II, trata de alguns agentes passíveis de acarretar a mencionada espécie de moléstia ocupacional, muito embora o rol regulamentado não seja taxativo – mas, sim, exemplificativo.[60] A regulamentação, via decreto, no que tange às doenças profissionais, tem sua razão de existência pela dispensabilidade da comprovação do nexo causal pelo obreiro, uma vez que este é presumido.[61]
As doenças do trabalho, por sua vez, têm o predicado de afastar a relação direta entre patologia e trabalho – ou seja, o fator patogênico não está intrínseco à atividade laboral exercida, como na doença profissional o está.[62] Á ótica de Mozart Victor Russomano “são doenças cujo aparecimento e progresso resultam de circunstâncias que cercam a prestação de serviço”.[63] Quanto ao nexo causal, assim assevera Sebastião Geraldo de Oliveira[64]:
“Diferentemente das doenças profissionais, as mesopatias não têm nexo causal presumido, exigindo comprovação de que a patologia desenvolveu-se em razão das condições especiais em que o trabalho foi realizado.”
Para levar a cabo a matéria ventilada, mister mencionar as características das doenças ocupacionais. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[65], discorrendo sobre o que denomina serem “entidades mórbidas” – corresponde ao gênero do qual são espécies doenças profissionais e doenças do trabalho –, o jurista traz à superfície a “atuação paulatina, progressiva, desconcentrada no tempo”, como principais predicados das entidades mórbidas. Reportamo-nos aos acidentes do trabalho por equiparação.
5.3 Dos Acidentes do Trabalho por Equiparação
Os acidentes do trabalho por equiparação não possuem nexo causal imediato com o exercício da atividade laboral, mas, indiretamente, estão relacionados com o trabalho desenvolvido pelo operário.[66] O acidente do trabalho por equiparação está disposto na sistemática do art. 21 e os incisos que o compõe:
“Art.21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta lei:
I – o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para a redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para sua recuperação”.[67]
A hipótese acima elencada faz menção à concausa. O instituto em apreço, segundo Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[68], é o verdadeiro reconhecimento que, por vezes, haverá acidente integralmente desvinculado da atividade laboral, o que podemos chamar de concausa, a qual soma-se ao acidente para gerar o efeito prejudicial. Nesse sentido, a interpretação que se pode extrair da legislação supracitada e da passagem doutrinária, nos remete à conclusão que a concausa é a ocorrência de duas causas, sendo a primeira relacionada ao exercício da atividade laboral; enquanto a segunda é fato exterior, mas que atuará como fator propagador dos danos efetivados pela primeira causa.
Quanto ao inciso II do art. 20, este dá guarida às diversas situações em que o trabalhador suporte a agressão de terceiros, sendo necessária para o enquadramento legal, a manifestação do fato prejudicial no local e horário de trabalho.[69] Assim, da leitura do art. 21, II, da lei 8.213/91, nota-se que configura acidente do trabalho o sofrido pelo trabalhador no local e horário de trabalho. Na alínea “a” do inciso em comento, considerar-se-á infortúnio laboral “o ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado por terceiro ou companheiro de trabalho”. A norma utiliza a expressão “ato de agressão”, com o fito de salvaguardar a integridade física do obreiro – que, nesta ocasião, poderá ter seu corpo maculado por qualquer indivíduo estranho ao ambiente laboral ou por companheiro de trabalho.[70] A expressão “ato de sabotagem”, no entendimento do jurista Cláudio Brandão[71], “é a danificação proposital de instalações da empresa […], objetivando a interrupção dos serviços”. Por fim, a expressão “ato de terrorismo”, explica Mozart Victor Russomano[72], pressupõe violência movida por determinada ideologia, sendo que, no ambiente de trabalho, visará atacar a empresa ou a terceiros.
A alínea “b” da norma sob análise preceitua a égide do trabalhador por “ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por motivo de disputa relacionada ao trabalho.” O dispositivo procura assegurar a incolumidade física do operário, ainda que o ofensor seja indivíduo alheio à empresa, embora resida nesta a razão da desavença, aliás, caso a disputa não esteja resguardada na relação de trabalho, não há como configurar infortúnio laboral.[73] Posterior ao dispositivo ora comentado, a alínea “c” equipara ao acidente do trabalho o “ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro de trabalho”, o qual tenha o condão de acarretar avaria ao laborista. Revela-se verídica a compreensão de Oswaldo Opitz e Silvia Opitz[74] ao assinalar que o evento culposo deverá ser executado no local e horário de trabalho, por companheiro ou terceiro alheio ao labor.
Na alínea “d”, a norma equipara ao infortúnio laboral o “ato de pessoa privada do uso da razão.” Com efeito, sobrevém a ressalva de José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva, aduzindo que é “despicienda tal hipótese legal, tendo em vista que o acidente do trabalho se configura em qualquer agressão provocada por terceiro ou colega de trabalho”.[75] Destarte, revela-se inócua a previsão legal. Por derradeiro, na alínea “d” a lei justapõe o infortúnio laboral aos fatos imprevisíveis como o “desabamento, inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior”. É bem verdade que o legislador – assim infere-se do dispositivo em estudo – almeja estender a aplicação da norma, vez que o “conceito é bastante elástico, compreendendo múltiplas situações”.[76]
O inciso III, do art.21, cuida da “doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade”. A conjectura supramencionada assim é vislumbrada por Wladimir Novaes Martinez:
“Para não confundir com a doença profissional ou do trabalho, a contaminação acidental aludida no inciso III tem de ser abrupta. O legislador quis apenas alcançar enfaticamente o contágio de produtos radioativos e assemelhados”.[77]
A dicção do art. 21, IV, trata dos acidentes in itinere, que, na lição de José Cairo Júnior, “é aquele ocorrido fora do estabelecimento da empresa, mas enquanto o empregado percorre o trajeto residência-trabalho ou vice-versa, durante o período de descanso ou refeição, ou, ainda, quando se encontra executando serviços externos”.[78] Nesse compasso, o legislador acautela situações em que o acidente não corresponde com o horário e local de trabalho, muito embora guardem com este íntima relação.[79] A alínea “a” do inciso IV aduz que o infortúnio ocorrido “na execução de ordem ou na execução de serviço sob a autoridade da empresa” considerar-se-á acidente do trabalho por equiparação. Sobre a temática, pujante é o ensinamento de Feijó Coimbra:
“Se, mesmo fora do local de trabalho, e até excedendo o horário a que se acha obrigado, o trabalhador está cumprindo ordens do patrão, deve ser entendido como em pleno exercício de suas funções e, como tal, de trabalho será o acidente que então com ele ocorra.”[80]
Por seu turno, a alínea “b” considera acidente do trabalho por equiparação, quando o laborista empenha-se “na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito”. O que tende estar presente aqui é a intenção do trabalhador em colaborar com a empresa, a tal vontade atribui-se um cunho de extensão da atividade laboral.[81] Outrossim, estando o trabalhador “em viagem a serviço da empresa […]”. A hipótese acima citada vem elucidada na alínea “c” do inciso IV e evidencia-se de acentuada importância, quando a viagem não constituir comum exercício da atividade laboral, pois, caso contrário, poderá configurar acidente típico.[82]
Finalmente, a inteligência da alínea “d” do dispositivo em apreço tem a propriedade de impingir ao malefício suportado pelo obreiro, oriundo de acidente verificado “no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”, caráter de infortúnio do trabalho por equiparação. A aludida hipótese situa-se sob o manto protetor da legislação, em virtude da exigência da atividade laboral, vez que o obreiro, para bem exercê-la, deverá deslocar-se da casa para o trabalho ou vice-versa, ou do ambiente de trabalho para o local onde desfruta de seu descanso, sendo irrelevante o seu meio de locomoção.[83]
Em contrapartida, muito se indaga acerca do desvio de trajeto por interesse particular, já que afastaria o nexo de causalidade com o labor, no entanto, só considera-se descaracterizador do acidente de trajeto a interrupção anormal – mas, retomado o percurso pelo laborista, incidirá a proteção legal de acidente do trabalho por equiparação.[84]
6 Os Argumentos Favoráveis à Aplicação da Responsabilidade Objetiva aos Acidentes do Trabalho
Cumpre, em sede preliminar, pôr em evidência que os danos advindos de acidente do trabalho encontram amparo na legislação previdenciária com lastro na teoria objetivista, na modalidade do risco integral, não obstante estando o infortúnio eivado de culpa ou dolo patronal, há também espaço para incidência do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal.[85] A reparação estribada no direito previdenciário não obsta a devida no direito comum, em que pese o ônus probatório da culpa patronal, eis que esta baseia-se na responsabilidade aquiliana, caso o órgão julgador não advogue a culpa presumida decorrente do dever de incolumidade à saúde do empregado pré-determinado no contrato laboral.[86]
Impõe alertar, ainda, que a matéria ganhou relevo com o advento da Emenda Constitucional nº45/2004, a qual pôs a cargo da justiça do trabalho as casuísticas tangentes às ações indenizatórias.[87] Por derradeiro, merece enfoque a superada súmula 229, do STF, vez que, hodiernamente, não mais subsiste o elemento da culpa grave para imputar ao empregador o dever de reparar.[88] Tecida sintética explanação, para o regular limiar da contenda que aqui será travada, necessário a transcrição literal do art. 7º, caput e seu inciso XXVIII, da Constituição Federal:
“Art.7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:[…]
XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.”[89]
A peleja emerge, como bem anotado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[90], na conjectura do laborista que exerce atividade de risco, em que mostra-se forçosa a indagação de como será saciado o anseio por reparação no âmbito do direito comum, mormente diante da mencionada regra do art. 927 e seu parágrafo único do Código Civil. Sendo assim, vamos ao primeiro argumento favorável à aplicação da precitada norma cível.
6.1 O Caráter Aberto do Caput do Art. 7º da Constituição Federal
A censura que tem cabida aos partidários da teoria subjetiva que acomete os acidentes do trabalho reside no caput do art. 7º do Texto Constitucional, o qual tem o condão de arrimar um rol mínimo aos direitos do trabalhador, e não exaustivo, proporcionando o acréscimo de incisos desde que “visem à melhoria de sua condição social” [91]. Os direitos sociais – como o direito ao trabalho assim o é – têm “por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando a edificação da igualdade social”, assevera Alexandre de Moraes[92]. Têm-se, pois, direitos meramente exemplificativos, não exaurindo os direitos fundamentais que os laboristas poderão, futuramente, vir a usufruir.[93] Sob o cunho aberto da norma em apreço, José Afonso da Silva[94], discorrendo acerca dos “direitos reconhecidos” aos trabalhadores, leciona: “São direitos dos trabalhadores os enumerados nos incisos do art.7º, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Temos, assim, direitos expressamente enumerados e direitos simplesmente previstos”.
Umbilicalmente ligado ao entendimento acima esboçado, ao concebermos que o caput do art. 7º da Constituição Federal não cinge-se apenas aos direitos ali elencados – mas, inclusive, acolhe vindouras prerrogativas de efetivação da condição social do laborista, cumpre avocar a lição de Kátia Magalhães Arruda[95] – pois, em seu juízo, o caput do artigo em tutela vislumbra alcançar a meta de melhoria das condições sociais do trabalhador. Em arremate às vozes aqui levantadas acerca da exceção do caput do art. 7º, assinala-se a lição de Inocêncio Mártires Coelho[96], o qual também declara o caráter expansionista da norma em exegese, além de mencionar que o disposto neste artigo evidencia-se também da leitura do parágrafo 2º do art. 5º, da Constituição Federal. A segunda vertente de argumentação da corrente positivista deflui do princípio da proteção, que é singularizado na obra de Cláudio Brandão.[97] À diretriz confere-se integral enfoque a partir de agora.
6.2 O Princípio da Proteção como Fundamento
A definição do princípio da proteção ganha seu ápice nas palavras de Américo Plá Rodriguez, as quais merecem literal transcrição:
“O princípio da proteção se refere ao critério fundamental que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador.”[98]
O princípio da proteção segrega-se em três segmentos – a regra in dubio, pro operario, a regra da condição mais benéfica e, por fim, a regra da norma mais favorável ao laborista.[99] O in dubio, pro operario expressa um critério hermético, onde, havendo multiplicidade de normas aplicáveis a um determinado caso, o magistrado deverá sobrepor a que melhor atende aos interesses do obreiro, por seu turno, o desdobramento da condição mais benéfica dedicar-se-á a obstruir a aplicação de dispositivo trabalhista empregado para ceifar direitos já usufruídos pelo laborista – ou seja, veda a mitigação de “condições mais favoráveis em que se encontrava o trabalhador”.[100] Por fim, pelos ditames da norma mais favorável, apanha-se que, havendo mais de uma norma passível de aplicação, o intérprete primará pela que seja mais favorável ao trabalhador.[101]
Ganha maior amplitude para a problemática em voga a regra por último explicitada. Cediço que a ciência jurídica vale-se da hierarquia entre normas para suplantar questões envolvendo choque entre dispositivos.[102] Apesar disso o direito laboral “não acolhe o sistema clássico, mas sim o princípio da hierarquia dinâmica das normas, consistente na aplicação prioritária de uma norma fundamental que sempre será a mais favorável ao trabalhador”, acentua Amauri Mascaro Nascimento[103]. Nesse diapasão, avulta o desdobramento do princípio da proteção no que concerne à norma mais favorável ao trabalhador – pois tal segmento tem o condão de efetivar “a quebra lógica no problema da hierarquia das fontes”, no entendimento de Américo Plá Rodriguez[104], que o formula com respaldo em lições de Cessari.
Calcado neste entendimento, as considerações acima tecidas realçam uma possível imputação do art.927, parágrafo único, do Código Civil, aos acidentes do trabalho exercidos com risco para o empregado, em detrimento do art.7º, XXVIII, da Constituição Federal, vindo a interromper um argumento com trânsito corrente na doutrina negativista, a saber – a obediência da hierarquia no ordenamento jurídico.[105] Ultrapassadas as fronteiras do princípio da proteção como mecanismo hábil a sanar a problemática da atribuição de responsabilidade objetiva ao empregador por acidentes de trabalho regidos por atividade de risco, passa-se, agora, a direcionar o foco à importantíssima linha de argumentação apregoada pelo magistrado trabalhista José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva – a regra do caput do art.2º da CLT.
6.3 A Norma Situada no Art. 2º, Caput, da CLT.
Com efeito, merece especial atenção a audácia do jurista supracitado no que toca à matéria aqui arejada, já que este posteriormente à análise das motivações de três autores – Cláudio Brandão, José Cairo Júnior e Raimundo Simão de Melo –, impõe a necessidade da busca de um fundamento com bases sólidas para imposição da responsabilidade objetivista a todos os acidentes de trabalho, e não apenas àqueles eivados de risco na atividade exercida, é o que mostra-se transparente na seguinte passagem:
“O que se pretende demonstrar daqui por diante é que há necessidade de encontrar um fundamento sólido, por meio do qual se possa sustentar a responsabilidade objetiva do empregador em todos os casos de violação do direito fundamental à saúde do trabalhador.”[106] [grifo original]
Dito isso, cumpre aclarar o predicado da alteridade esculpido na norma em comento. O conceito da aludida diretriz ecoante na literatura trabalhista justapõe-se ao entendimento de que o empregador deve suportar todos os encargos oriundos do contrato de trabalho, “por ser ele quem assume os riscos da atividade econômica”, frisa José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva[107]. Por ser de abissal relevância, cabe transcrever o art. 2º da CLt.
“Art.2º. Considera-se empregador a empresa individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços.”[108]
Nesse passo, a assunção dos riscos manifestada pela norma posta à íntegra impera ao atribuir os encargos advindos da obrigação trabalhista avençada à responsabilidade exclusiva do empregador a título de ônus pela atividade exercida, transferindo-se todos os gravames à sua pessoa, no que cabe frisar que se está diante tanto dos riscos acarretados pelo empreendimento, quanto às obrigações originadas da mão de obra empregada.[109] Ao patrão pertence a prerrogativa de dinamizar os serviços por ele ofertados, cumprindo, pois, “suportar os riscos da atividade que desenvolve”, sintetiza Pedro Paulo Teixeira Manus[110].
Por conseguinte, a diretriz da assunção dos riscos, ou alteridade, confere sombra de razão às palavras manejadas por José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva ao aduzir “que no próprio direito do trabalho encontra-se o fundamento último, a ser utilizado para responsabilização objetiva do empregador em todas as hipóteses de dano à saúde ou à vida do empregado”.[111] Calcado nesse desígnio, o referido jurista assevera ser a norma em comento permeada pela teoria do risco como força motriz das relações laborais, recorrendo, aliás, à centelha deflagradora da responsabilidade objetiva no atual Código Civil, que também fora a teoria do risco profissional ou atividade empresarial, consubstanciada no parágrafo único do art.927, do mencionado Diploma.[112]
A vindoura linha de argumentação ampara-se na lição de Raimundo Simão de Melo, o qual edificou relevante fundamentação dissipada pelos militantes da imposição da responsabilidade objetiva aos acidentes de trabalho. Trata-se da análise conjunta do art.7º, XXVIII, da Constituição Federal, com o art.225, § 3º, da mesma Carta: é a interpretação sistemática.
6.4 A Interpretação Sistemática
A definição do método sistemático avulta como a análise conjunta da integralidade do contexto normativo em que a regra está inserida, “o intérprete deve abrir os olhos para a realidade mais ampla em que está inserido o dispositivo interpretado”[113], acentua Aurélio Agostinho Verdade Vieito. É claro a todas as luzes, ser a problemática aqui ventilada passível de interpretações gramaticais, teológicas e sistemáticas, muito embora empenha-se total diligência sobre a arguta razão exposta por Raimundo Simão de Melo, quando do cotejo sistemático entre o art.7º, XXVIII e o art.225, § 3º, da Constituição Federal, ao passo que este apregoa a responsabilidade objetiva aos danos ambientais, enquanto aquele prisma pela responsabilidade subjetivista. Faz-se mister, aliás, a transcrição do dispositivo por último mencionado:
“Art.225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.[…]
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”[114]
Evidencia-se de total pertinência a leitura do inciso XXVIII, do art. 7º, em harmonia com a dicção do § 3º, do art. 225 no intento de impor a responsabilidade objetiva aos acidentes do trabalho.[115] Não obstante, ao agasalhar a responsabilidade objetiva nos danos acarretados ao meio ambiente e acolher a responsabilidade com fulcro na culpa para os acidentes do trabalho, paira relevante dúvida ao operador da ciência jurídica, qual seja a formulação da indagação acerca de uma suposta antinomia existente entre a dualidade de normas constitucionais, em virtude do §3º do art.225 encampar terreno amplo, enquanto o inciso XXVIII não ultrapassa as fronteiras dos acidentes de trabalho em âmbito individual.[116] Consabido que as antinomias são, em verdade, contradições entre normas ou disposições que entre si são incompativeis[117] e resguardados na concepção que o art.225 e seu § 3º tutelam todas as espécies de vida, ao passo que o disposto no art.7º, XXVIII tem alcance mitigado, o legislador constituinte “não poderia tratar diferentemente os acidentes do trabalho que são a consequência maior dos danos ambientais que atingem diretamente a pessoa humana”, registra Raimundo Simão de Melo[118].
Sem embargos, havendo ou não antinomia, esta não tem o condão de rechaçar o argumento edificado com lastro no método sistemático de interpretação, vindo apenas a corroborar a fragilidade do art.7º, XXVIII, da Constituição. Por fim, cumpre colacionar as palavras de Raimundo Simão de Melo acerca da problemática aqui exposta:
“A vida, como não resta dúvida, é o bem maior do ser humano e é exatamente em função desse bem supremo que existe o Direito. Assim, não é lógico e, por fim, não é justo que para a consequência do dano ambiental em face da vida humana se crie uma maior dificuldade para a busca da reparação dos prejuízos causados ao trabalhador.”[119]
Galgada a barreira da interpretação sistemática imposta ao art.7º, XXVIII, em sintonia com o art.225, §3º, da Constituição Federal – a qual, como exposto alhures, é de integral pertinência para elucidação da matéria, eis que lançada como uma das precípuas linhas de argumentação contra os militantes da corrente negativista. À título ilustrativo, apresentam-se algumas construções pretorianas favoráveis à aplicação do art. 927, parágrafo único, do Código Civil.
6.5 A Jurisprudência Favorável
“EMENTA: ACIDENTE DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. A caracterização do dano como do nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho deve ser cabalmente demonstrada para que se possa imputar ao empregador, com fundamento no art. 927 do CCB, a obrigação de indenizar por dano material o empregado delas acometido.”[120]
“EMENTA: ACIDENTE DO TRABALHO. MOTORISTA DE ÔNIBUS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. FATO DE TERCEIRO. TEORIA DO RISCO PROFISSIONAL. LIAME ETIOLÓGICO PRESERVADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL. CABIMENTO. Havendo prova da ocorrência do dano alegado, bem assim do nexo de causalidade entre a lesão e o trabalho, excluída a hipótese de culpa exclusiva do empregado, ao empregador incumbe a obrigação de indenizar, prevista no art. 927 do CC, por danos causados ao empregado. Sendo de risco a atividade desenvolvida pelo motorista, o fato de terceiro, causador do acidente de trânsito, no exercício da atividade, não afasta o nexo de causalidade e não elide a responsabilidade do empregador e/ou do tomador de serviços.”[121]
“EMENTA: DOENÇA PROFISSIONAL EQUIPARADA A ACIDENTE DO TRABALHO. NEXO CAUSAL. RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR. É de se reconhecer a responsabilidade do empregador, em razão do risco profissional, quando a moléstia que acomete o trabalhador ocorre em razão do serviço prestado em favor da empresa, ainda que na condição de concausa.”[122]
7 A Corrente Favorável à Aplicação da Responsabilidade Subjetiva aos Acidentes do Trabalho
Em franca dissonância às vozes que se exaltam em sobrepor a responsabilidade objetiva do empregador aos infortúnios laborais, estão os partidários da responsabilidade subjetiva, os quais firmam passo na tese de que “a responsabilidade objetiva confronta com a norma do inciso XXVIII do art.7º da Constituição brasileira”, conforme anota José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva[123]. Cediço que o sistema normativo ancora-se em um diploma essencial, que figura como norte das demais legislações, sob a temática aqui ventilada já assinalava Hans Kelsen[124]: “É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa”. Nessa senda, ganha relevo o argumento da corrente negativista, da benevolência à hierarquia entre as normas. Com suporte na lógica supracitada, Rui Stoco afasta a aplicabilidade do art.927 e seu parágrafo único do Código Civil, e, por conseguinte, relega a responsabilidade objetiva do empregador face aos acidentes laborais, eis que a Constituição deve prevalecer face à norma de legislação inferior no escalonamento hierárquico.[125]
O entendimento exposto é confortado diante das linhas tracejadas por Fernando José Cunha Belfort, que, cogitando da hipótese de sintonia entre o art.7º, XXVIII, da Constituição e o art.927, parágrafo único, do Código Civil, enuncia o seguinte parecer:
“Penso que tal interpretação é inconstitucional, pois a simples aplicação do critério hierárquico lex superior derogat inferiori, para verificar a validade e eficácia da norma, pois, em regra, a responsabilidade de empresário com fulcro no risco do empreendimento (CCB, art. 927, parágrafo único) pode ser aplicada a outros casos e não às hipóteses de indenização dos danos procedentes de acidentes do trabalho, sob pena de inconstitucionalidade.”[126]
Da conclusão de Edy Wilson Biava Teixeira extrai-se o que, abaixo segue colacionado:
“Portando não há se falar em prevalência do dispositivo inserto no Código Civil, posto que não poderá este se sobrepor a norma que lhe seja hierarquicamente superior. Ousa-se até afirmar a sua inconstitucionalidade por vício material, uma vez que o conteúdo normativo do citado dispositivo afronta previsão inserta na Lei Maior.”[127]
Nesse diapasão, Raimundo Simão de Melo – muito embora seja fiel partidário da corrente positivista, não hesita em noticiar que a maior parcela da doutrina e da jurisprudência deita raízes na tese em apreço.[128] Nesse sentido, há construções pretorianas que endossam a assertiva do autor supramencionado, merecendo transcrição literal:
“EMENTA: REPARAÇÃO POR ACIDENTE DE TRABALHO. A ausência de prova do acidente de trabalho alegado pelo autor inviabiliza as pretensões reparatórias deduzidas contra a ré, já que esta, negando o evento danoso, faz permanecer no pólo ativo da ação o ônus da prova, encargo processual do qual o demandante não se desonera”.[129]
“EMENTA: ACIDENTE DE TRABALHO. Não havendo prova conclusiva de que a lesão apresentada pelo reclamante é decorrente do trabalho executado na empresa recorrida, não há como imputar qualquer responsabilidade à reclamada”.[130]
8 Considerações Finais
Afilio-me à corrente positivista, reconhecendo ser perfeitamente aplicável a responsabilidade objetiva aos acidentes do trabalho culminados pelo exercício de atividade de risco, face ao parágrafo único do art.927. A motivação única em que se apega a corrente negativista, como comentou-se alhures, lastra-se na teoria kelseniana da hierarquia entre as normas, no entanto, aparenta-me que tal teoria não tem o condão de suprimir o princípio da proteção, que é peculiar ao direito do trabalho. Afastar a aludida diretriz seria negar ao Direito do Trabalho seu caráter de disciplina jurídica autônoma. Portanto, quer-me parecer que o argumento lançado pela corrente negativista é frágil diante do princípio da proteção. Evidencia-se, outrossim, de insuperável relevância o caput do art.7º, da Constituição Federal, que assegura a melhoria da condição social dos laboristas mediante a complementação de seus direitos.
Da pesquisa feita também revelou-se que a responsabilidade objetiva do empregador também poderá apoiar-se no art. 225, §3º, da Lei Maior, e não apenas no dispositivo civilista. Firmo entendimento de que todas as espécies de acidente do trabalho devem ser alvejadas pela responsabilidade objetiva, eis que ao empregador cabem todos os riscos da atividade, diante da assunção dos riscos estabelecido pela norma do caput do art.2º da CLT.
Advogado em Porto Alegre. Pós-graduando em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa Novas Tecnologias e Relações de Trabalho (PUC-RS)
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