Resumo: O princípio da culpabilidade constitui pedra angular do Direito Penal moderno. Assimilado pela Lei Maior, o conceito psicológico da culpabilidade alça a status constitucional a responsabilidade penal subjetiva, de modo que, sob o manto da Carta Republicana de 1988, ninguém poderá ser legitimamente punido por fato para o qual não haja concorrido culposa ou dolosamente. O presente artigo tem por objetivo analisar o crime de rixa qualificada, a fim de apurar se a tradicional interpretação e aplicação do quanto preconiza o artigo 317, parágrafo único, do Diploma repressivo consagra situação de responsabilização penal objetiva, em aparente violação à Carta Constitucional. Por fim, se propõe uma interpretação conforme a constituição do referido preceptivo legal, sintonizando-o com o conceito psicológico da culpabilidade.
Palavras-chave: Princípio da culpabilidade. Conceito psicológico. Responsabilidade penal objetiva. Rixa qualificada. Interpretação conforme a Constituição.
Abstract: The culpability principle is a cornerstone of modern Criminal Law. The psychological concept of culpability is well established in the Brazilian Constitution and proscribes punishment in cases of liability without fault. Therefore, under the Brazilian Constitution, no one can be rightfully condemned for an act practiced without mens rea. This article aims to analyze the qualified form of affray, crime that is defined by the Brazilian’s Penal Code article 317. This paper shoes that the traditional interpretation and application of the aforementioned article may lead to a situation of liability without fault, thus being unconstitutional. Furthermore, the paper proposes an interpretation in accordance with the Brazilian Constitution, so that the referred article may be deemed constitutional.
Keywords: Culpability principle. Psychological concept. Liability without fault. Affray. Interpretation in accordance with the Constitution.
Sumário: Introdução. 1. A culpabilidade no Direito Penal norte-americano: noções preliminares acerca do instituto da mens rea(intent). 2. A estatura constitucional do princípio da culpabilidade e a afirmação da responsabilidade penal subjetiva. 3. Rixa qualificada: a interpretação doutrinária tradicional e a consagração da responsabilidade penal objetiva.4. Artigo 317, parágrafo único, do Código Penal: uma interpretação conforme a Constituição. Conclusão. Referências.
Introdução
Atribuindo notável valor ao livre-arbítrio, a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre propugnava por uma ampla responsabilização do homem por todas as suas ações: “O homem está condenado a ser livre, condenado porque ele não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz”.
Decerto, o ensinamento possui grande prestígio no âmbito filosófico, mas não encontra abrigo na sistemática da responsabilização penal moderna. Ao erigir a culpabilidade à condição necessária e indispensável para qualquer condenação, adogmática jurídica consolidou a imprescindibilidade do dolo ou da culpa para fins de caracterização da infração penal. É dizer, ausente a vontade e a consciência de realizar a conduta prevista abstratamente no tipo penal incriminador (dolo) ou inexistindo comportamento violador do dever objetivo de cautela (culpa), não se cogitará da perfeita subsunção do fato à norma. Nesta hipótese inexistirá correspondência entre as tendências subjetivas que revestem aação ou omissão do agente e o elemento subjetivo do fato tipificado na norma penal incriminadora.
Se é indubitávela irrelevância penal das intenções não convertidas em ações – cogitationis poenam nemo patitur, como proclamou Ulpiano –, é igualmente fora de dúvida que a qualificação de uma conduta como criminosa pressupõe a tendência subjetiva do agente – intelectual e volitiva –, a revestir a ação ou omissão.
Nessa esteira, consagrou-se, no Brasil, a responsabilidade penal subjetiva, ancilário da noção de culpabilidade pelo fato, somente se punindo condutas antijurídicas quando praticadas dolosa ou culposamente.
Esta é a regra geral, amplamente divulgada pela doutrina nacional, mas encontraria ela exceções no Direito Penal pátrio? Noutros termos, seria constitucionalmente aceitável, em determinados casos, impor-se responsabilidade penal objetiva, a fim de punir o agente por um resultado para o qual não haja concorrido com dolo ou culpa?
Considere, especificamente, uma briga de torcidas que se transforma em tumultuo geral. Certo momento, um dos contendores decide atirar um vaso sanitário de cima de uma varanda, vindo a atingir um transeunte. Nesse caso, todos os demais envolvidos (afora aquele que lançou o vaso) devem responder pelo resultado morte?
Este artigo se propõe à análise do crime de rixa qualificada, justamente porque, segundo parcela da doutrina nacional e estrangeira, se encontraria, na tipificação desta conduta, um resquício de responsabilidade penal objetiva. As questões ora postas, destarte, são: (i) o parágrafo único do artigo 317 do Código Penal de fato abriga uma hipótese de responsabilidade penal independentemente de culpa lato sensu? (ii) qual o método interpretativo que poderia justificar tal ilação? (iii) existe algum óbice constitucional à instituição da responsabilidade penal objetiva? (iv) se houver, há como se realizar uma interpretação do referido dispositivo legal de forma a coaduná-lo aos ditames constitucionais?
1. A culpabilidade no Direito Penal norte-americano: noções iniciais acerca do instituto da mens rea(intent)
Conforme se verá, inexiste unanimidade acerca da indispensabilidade da culpa ou do dolo para fins de responsabilização penal, mesmo em Estados democráticos.
No Direito norte-americano utiliza-se tradicionalmente a locução latina mens rea para representar genericamente esses elementos subjetivos da conduta (podendo englobar, a depender do contexto, o conhecimento da ilicitude)[1]. Embora normalmente não seja possível prescindir do intent, há casos de liability without fault naquele país, os cognominados strict e vicarious liability.
No caso Morissette v. United States(1952), o juiz Robert Jackson (in LOEWY, 2000, p. 206) fez coro ao anterior pronunciamento de Thomas Cooley em People v. Roby (1884), aquinhoando:
“… como regra geral, não poderá haver crime sem intenção criminosa, mas essa não é, de modo algum, uma regra universal […]. Muitas leis que se encontram na natureza das regulamentações policiais, tal como esta [ora em análise], impõe sanções penais independentemente de qualquer intenção de violá-las, com o propósito de estimular um grau de diligência na proteção da sociedade a impossibilitar violações”. (tradução nossa)[2]
Com base nesses precedentes e analisando casos de "responsabilidade estrita" ("strict liability"), Paul Bergman e Sara Berman-Barrett (2005, pp. 12/15) confirmam a existência de leis que, não obstante incriminem condutas desprovidas de dolo ou culpa, devem ser consideradas válidas:
“… embora tais leis sejam relativamente poucas em número. Leis que dispensam mens rea – isto é, leis que punem pessoas a despeito de sua orientação subjetiva – são chamadas leis de responsabilidade estrita. A justificativa usual é que os benefícios sociais do enforcement rigoroso superam os prejuízos de se punir uma pessoa que poderá ser moralmente inocente.” (tradução nossa)[3]
Exemplificam os autores com dois exemplos:
“• Leis incriminadoras do estupro de vulnerável que em alguns Estados torna ilegal a conjunção carnal com um menor, mesmo quando o réu honesta e razoavelmente acreditava ser a vítima suficientemente velha para consentir validamente ao ato sexual […].
• Leis regulamentadoras da venda de álcool a menores que, em muitos Estados, punem os vendedores de álcool a menores a despeito da crença razoável do vendedor de que se tratava de adquirente suficientemente velho para a compra de bebidas alcoólicas.”[4]
Interessante notar que o primeiro exemplo – referente ao statutory rape –, é caso típico de aplicação de erro de tipo no Brasil (art. 20, caput, do CP), a excluir, não por acaso, o dolo (erro vencível, inescusável) e a culpa (erro invencível, escusável). Na sistemática pátria, se o agente desconhece a condição de menor de 14 anos daquele com quem mantêm relações sexuais, não responderá pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Na espécie,
“… desaparece a finalidade típica, ou seja, não há no agente a vontade de realizar o tipo objetivo. Como o dolo é querer a realização do tipo objetivo, quando o agente não sabe que está realizando um tipo objetivo, porque se enganou a respeito de um de seus elementos, não age dolosamente”. (MIRABETE, 2009, p. 155)
Tal distinção entre o Direito estadunidense e o brasileiro obvia a incompatibilidade entre a strict liability e responsabilidade penal subjetiva.
Não é demais destacar a ponderação de valores levada a efeito pelas leis acolhedoras da responsabilidade estrita. Tem-se, por um lado, as consequências danosas decorrentes de certas condutas e, de outro, o prejuízo causado ao indivíduo condenado, a despeito de sua "inocência moral". Por razões de política criminal, prestigiou-se o primeiro, de modo a viabilizar a responsabilidade penal objetiva. A propósito:
“Leis de responsabilidade estrita punem réus que comentem erros honestos e, portanto, podem ser moralmente inocentes. Como as consequências jurídicas de erros honestos podem ser tão gravosas em certas circunstâncias, aqueles que se encontram em situações regidas por regras de "responsabilidade estrita" precisam adotar precauções especiais antes de agir.”(BERMAN & BARRET, 2005, p. 15, tradução nossa)[5]
A academia, muitas vezes em razão da obstinada e incauta repetição, consagra determinados aforismas que, por essa só razão, passam a ser admitidas como espécies de truísmos dogmáticos, incontestáveis e inderrogáveis. Parece ter ocorrido isso no Brasilquanto ao famigerado brocardo nullum crimen sine culpa, para uns, ou nulla poena sine culpa, para outros, incorporado, entre nós, como uma das facetas do princípio da culpabilidade.
Nesse sentido, não raro se aventa:
“Não existe, no ordenamento positivo brasileiro, ainda que se trate de práticas configuradoras de macrodelinquência ou caracterizadoras de delinquência econômica, a possibilidade constitucional de incidência da responsabilidade penal objetiva. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa (‘nullum crimen sine culpa’), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do ‘versari in reillicita’, banida do domínio do direito penal da culpa.”[6]
Logo, seguindo-se este entendimento, não seria possível, no Direito Penal pátrio, instituir-se a responsabilidade penal independentemente do intentdo agente. Daí concluir-se pela prevalência, no Brasil, da responsabilidade penal subjetiva como única modalidade de responsabilização criminal.
2. A estatura constitucional do princípio da culpabilidade e a afirmação da responsabilidade penal subjetiva
No moderno Direito Penal brasileiro, a culpabilidade possui três relevantes dimensões:
“(i) concita o magistrado a dosar a pena de forma a manter estreita correlação com a reprovabilidade do injusto penal praticado pelo condenado. Sob esta ótica, a culpabilidade consubstancia-se num juízo de censura norteador da fixação da pena necessária e suficiente a prevenir e reprimir o crime (art. 59 do CP). Apresentando o pensamento de Hans Achenbach, Adriano Teixeira (2014, p. 22 e 27) anota:
“… [enquanto] critério medidor de pena, a culpabilidade “pode ser composto […] por diversos elementos a indicar menor ou maior gravidade do fato, como o desvalor da ação (dolo e culpa) e do resultado (grau de lesão ao bem jurídico), nível de consciência da ilicitude, maior ou menor capacidade (ou exigibilidade) de evitação do delito etc. […]. Portanto, a culpabilidade não deve ser vista como apenas mais uma circunstância judicial, mas sim ostentar o posto de critério central de aplicação da pena.”
Esta dimensão, consolidada pelo avanço do neokantismo, lastreia-se a uma concepção normativa da culpabilidade;
(ii) integra o conceito analítico de crime, ao lado do fato típico e da antijuridicidade (ou ilicitude), para os adeptos da teoria tripartida; ou constitui pressuposto necessário, mas não suficiente, para a aplicação da pena, para os filiados à teoria bipartida. Nesta dimensão, a culpabilidade seria composta por três elementos: a potencial consciência da ilicitude, a imputabilidade e a exigibilidade de conduta diversa; e
(iii) obstaculiza a responsabilidade penal objetiva. Nesta terceira dimensão entende-se a culpabilidade como nexo subjetivo estabelecido entre o agente e o fato delitivo, cunhada comoconceito psicológico de culpabilidade.”
Como se permitiu antever, a presente reflexão se concentrará nesta terceira acepção: culpabilidade enquanto empecilho para o apenamento do acusado por fato para o qual não haja concorrido dolosa ou culposamente.
De partida, convém ressaltar a matriz constitucional do conceito psicológico da culpabilidade, ao menos sob três fundamentos, quais sejam: (i) a íntima relação com a dignidade da pessoa humana; (ii) cuidar-se de consequência natural da presunção de inocência; e (iii) decorrência do caráter intranscendenteda pena. Impõe-se, portanto, a análise cuidadosa desses fundamentos. Vejamo-los.
Primariamente, a exigência da culpabilidade psicológica defluiria da dignidade da pessoa humana, porquanto a imposição de pena sem prévia perquirição de culpa lato sensu resultaria na percepção do indivíduo como meio para a satisfação de um suposto interesse do corpo social.
No mais, a responsabilidade penal objetiva acabaria por desvirtuar a função da pena, retirando sua feição preventiva especial positiva, pois inexistiria a necessidade de ressocialização do apenado.
No que tange às finalidades da pena, a doutrina inglesa tem oferecido valioso subsídio dogmático, notadamente a teoria utilitarista clássica esculpida por Jeremy Bentham, incluída entre as teorias consequencialistas(em sentido amplo), em oposição às teorias deontológicas. A respeito do tema, explica didaticamente o catedrático de Oxford, Ben Dupré (2007, pp. 192/195):
“Como nas discussões de outras questões éticas, o debate acerca da justificativa da punição tem tendido à divisão entre linhas consequencialistas e deontologicas: teorias consequencialistas acentuam as consequências benéficas que decorrem da punição dos malfeitores, enquanto teorias deontológicas insistem que a punição é intrinsicamente boa, como um fim em si mesma, independentemente de outros benefícios que dela poderão resultar.
A ideia central por trás das teorias que pugnam ser a punição boa em si mesma [deontológicas] é a retribuição. Uma intuição básica inerente a grande parcela do nosso raciocínio moral é a de que as pessoas devem receber aquilo que merecem: assim como elas devem se beneficiar dos comportamentos bons, também devem sofrer por terem se comportado mal. […] Por vezes outra ideia é trazida – a noção de que os malfeitos criam um desequilíbrio e que o equilíbrio moral é restaurado quando o malfeitor quita o seu débito para com a sociedade.
Em evidente contraste às posições retribucionistas, justificativas utilitárias ou consequencialistas não somente rejeitam a premissa segunda a qual é punição é boa, como a consideram ruim […]. A função da punição na redução da criminalidade é geralmente compreendida de duas formas: descapacitação e desincentivo […]. A outra concepção central do raciocínio utilitarista é a admissão da punição como meio de reforma e reabilitação do criminoso.” (traduçãonossa)[7]
Está hoje sedimentada a inteligência segundo a qual a sanção aplicada ao malfeitor não objetiva “vingar” a sociedade. Somente se justifica o apenamento quando atingidas as suas finalidades preventiva e repressiva (art. 59 do CP). Desta forma, restaria igualmente violada a dignidade da pessoa humana, mesmo quando a responsabilização independentemente de culpa facilitasse a punição daqueles que se comportassem em desacordo com o quanto esperado pela sociedade, trazendo, ao menos aparentemente, algum benefício social.
Sinteticamente, apenar-se alguém em razão de uma conduta praticada sem dolo ou culpa é incompatível com a dignidade imanente a toda pessoa, uma vez que implica reduzi-la a mero objeto, apequenando-o e reduzindo sua serventia à realização de anseios da coletividade. Esta visão de corte antiutilitaristapauta-se pela reconhecimento de um valor intrínseco encerrado por cada ser humano– sua dignidade –, merecedor de especial resguardo, de modo a deslegitimar investidas nesse contexto, mesmo quando delas resulte algum benefício social.
Cumpre rememorar as lapidares palavras de Elizabeth Fry: “A punição não serve à vingança, mas à diminuição do crime e à reforma do criminoso" (tradução nossa)[8]. Se inexistir consciência e vontade do agente de praticar um crime, ou não se verificar a ausência de cautelas, seria sem sentido aplicar-se-lheuma sanção, porquanto não se conseguirá diminuir a criminalidade, nem reformar o criminoso. Evidentemente, o apenamentoviolaria a dignidade humana.
Reforça tal intelecção o artigo 5º, 6., da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos[9], ao estabelecer que “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”.
Secundariamente, a proscrição da responsabilidade penal objetiva seria consectário natural da presunção de inocência. Isso porque, se o estado de inocência é presumido, não poderia a lei impor a responsabilização por fato para o qual o apenado não haja concorrido ao menos culposamente. Significa afirmar que a culpa e o dolo devem ser provados no caso concreto. Neste sentido colocam-se André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves (2012, p. 117), os quais esclarecem:
“… se ninguém pode ser qualificado como culpado senão quando condenado por sentença penal transitada em julgado, significa, raciocinando inversamente, que somente se pode condenar, em sentença penal, quando se reconhecer a culpabilidade do agente; portanto: não há pena sem culpabilidade.”
Vale destacar que, à semelhança do princípio da dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência constitui direito materialmente fundamental, garantido não só pela Carta Constitucional, como também pela Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, em cujo artigo 8º, 2., lê-se: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa…"[10].
Terciariamente, decorreria a parêmia nullum crimen sine culpa do princípio da pessoalidade da pena[11]. Ora, se a pena há de ser sempre pessoal, respondendo um sujeito apenas pelas condutas por ele praticadas, não haveria como responsabilizá-lo pelos resultados derivados de condutas alheias. Aliás, desvelaria tarefa difícil, sob a ótica moderna do Direito Penal, estabelecer um juízo de censura, imprescindível para o adequado apenamento, quando inexistir culpa ou dolo do apenado. Aliás, o juízo de censura inerente à culpabilidade não há de recair sobre o resultado em si, mas sobre a conduta do agente que de alguma forma haja concorrido para a sua produção. Desta sorte, a culpabilidade se relaciona ao agente e à conduta delitiva por ele praticada, não se confundindo com as consequências do crime.
Destaque-se, por oportuno, que as três matrizes constitucionais comumente apontadas pela doutrina, previstas respectivamente no artigo 1º, III, e artigo 5º, LVII e XLV, da Constituição Federal, caracterizam-se como cláusulas intangíveis ao revisor constitucional, constituindo verdadeiras garantias de eternidade.
Vista a matriz constitucional do princípio da culpabilidade, convém perquirir a sua disciplina infraconstitucional. Nesta esfera, houve grande avanço no que respeita à consagração da responsabilidade penal subjetiva com a reforma da Parte Geral do Código Penal em 1984.
Tal reforma, operada pela Lei 7.209/84, teve, dentre outros objetivos, o de expugnar do ordenamento jurídico institutos procedentes da teoria do versari in reillicita, cuja origem remonta ao Direito Canônico. Neste sistema, o agente respondia por todas as consequências que derivassem de sua conduta incriminada, inclusive aquelas consequências imprevisíveis ou fortuitas. Significa dizer que aquele que praticava uma ação criminosa tornava-se, por esse fato, responsável também pelo resultado fortuito (qui in re illicita versatur tenetur etiam pro casu).
Atualmente, o artigo 19 do diploma repressivo, ao tratar da agravação pelo resultado, determina que “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. Logo, não é possível imputar ao agente um resultado para o qual não haja concorrido com culpa ou dolo.
Nesse toar, Greco (2012, p. 66) põe em evidência a finalidade da previsão legal, a saber:
“… eliminar a chamada responsabilidade penal objetiva, também conhecida como responsabilidade penal sem culpa ou pelo resultado, evitando-se, dessa forma, que o agente responda por resultados que sequer ingressaram na sua órbita de previsibilidade”.
À mesma conclusão se chega confrontando-se o revogadoe o atual dispositivo disciplinador da responsabilização penal individual nos crimes praticados em concurso de pessoas. Antes da reforma de 1984, o artigo 25 do Código Penal assim dispunha, in verbis: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas”.A previsão foi repetida no artigo 29, o qual acrescentou à dicção anterior, ao final, “na medida de sua culpabilidade”[12].
Em complemento, acolhendo-se as lições de Dworkine Alexy, a vedação da responsabilidade penal objetiva constituiria, quanto ao modo de aplicação, uma regra, e não um princípio constitucional. Isso porque a diretiva apresentada pelo “princípio” da culpabilidade é disjuntiva: ou é defesa aresponsabilização pelo resultado produzido por uma conduta não revestida de culpa ou dolo, ou não o é, viabilizando-se a responsabilidade objetiva na esfera criminal. Logo, não há a dimensão de peso, de modo que a culpabilidade, nessa acepção, não encerraria um comando de otimização, mas um comando de necessária e integral aplicação, quando ocorrentes os fatos estipulados na regra[13].
Em apertada síntese, a culpabilidade, princípio quanto ao conteúdo (porque traduz uma decisão política fundamental) e regra quanto ao modo de aplicação (por ser um comando definitivo), tem estatura normativa constitucional, vinculando a atuação do legislador, bem assim do constituinte derivado (por se tratar de direito individual fundamental, caracterizando-se, por isso mesmo, como cláusula pétrea).
Relacionando o tema sob exame com o direito comparado, pode-se afirmar a impossibilidade de prevalecer, no Brasil, o instituto de responsabilização penal semelhante à da responsabilidade sem culpa (liability without fault) norte-americano.
3. Rixa qualificada: a interpretação doutrinária tradicional e a consagração da responsabilidade penal objetiva
Retornando à indagação inicial, haveria algum caso de responsabilidade objetiva no direito penal brasileiro? É reiterado em doutrina e em jurisprudência a máxima segundo a qual o sistema penal inadmite tal espécie de responsabilidade penal, já que o princípio da culpabilidade, assimilado constitucionalmente, a vedaria[14].
Todavia, tal asserção, desprovida de mais acurada análise, pode revelar-se falaciosa, pois que, em casos específicos, levando-se a cabo uma interpretação literal ou histórica da norma penal, poderia ser excepcionada a norma-regra do nullum crimen sine culpa.
Basileu Garcia (2008, p. 350), ao comentar o conceito psicológico de culpabilidade, assinala:
“Decomposto idealmente o delito nos seus dois elementos – o subjetivo, também chamado psíquico ou interno, e o objetivo, também denominado material, físico ou externo – a culpabilidade integra o primeiro desses elementos, coincide com ele. Sem o pressuposto do dolo e da culpa strictu sensu – acentua a Exposição de motivos do nosso Código – nenhuma pena será irrogada. Nulla poena sine culpa. Em nenhum caso haverá presunção de culpa.”
Mas, já então, advertia: “Veremos que esse louvável propósito de intensa subjetivação do Direito repressivo não foi, em verdade, tão religiosamente seguido pelo nosso estatuto, quanto o fariam crer tais frases do Ministro da Justiça”.
Uma das hipóteses nas quais, à primeira vista, se admitiria a responsabilidade penal objetiva diz respeito ao crime de rixa qualificada.
Ao tipificar o referido delito, estatui o artigo 137 do Código Penal, in litteram:
“Art. 137 – Participar de rixa, salvo para separar os contendores:
Pena – detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único – Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se, pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de seis meses a dois anos.”
Nelson Hungria (in GRECO, 2012, p. 345), ofereceu-nos um conceito conciso do crime de rixa, entendida como “uma briga entre mais de duas pessoas, acompanhada de vias de fato ou violência recíprocas, pouco importando que se forme ‘ex improviso’ ou ‘ex proposito’”.
Trata-se de crime plurissubjetivo, ou seja, de concurso necessário de pessoas, somente se tipificando a rixa quando a luta envolve ao menos três contendores a se atacarem reciprocamente. Consoante a doutrina majoritária[15], é irrelevante o fato de ser um (ou alguns) dos contendores inimputável (e.g. menor de 18 anos), ou mesmo desconhecido; basta que se perfaça o número mínimo de três agentes, qualificado pelo concurso necessário divergente[16]. Somente não é considerado, para fins de tipificação delitiva, o sujeito que ingressar na rixa com o único propósito de apartar os rixosos, pois ele não praticará conduta típica, conforme se dessume do artigo 137, caput, do Código Penal.
Ademais, caso haja dois grupos bem identificados a brigarem entre si, tampouco se tipifica a rixa, conforme jurisprudência consolidada dos tribunais superiores[17], a acompanhar a doutrina[18]. Por essa razão costuma-se lastrear a finalidade da tipificação autônoma da rixa ao intento de evitar a impunidade verificada naquelas situações de tumulto e confusão generalizada, notadamente quando for difícil identificar, com precisão, os autores das agressões iniciais[19].
Não se vislumbra, na rixa simples, a imposição de responsabilidade penal objetiva, na medida em que os rixosos somente serão punidos se atuarem dolosamente, com a consciência e a vontade livre de integrar o embate.
Contudo, o parágrafo único do artigo 137, ao tipificar a rixa qualificada pela lesão corporal grave ou morte, consagrou, à primeira vista, situação de responsabilidade penal independentemente de culpa ou dolo. Isso porque, verificando-se um desses eventos qualificadores – lesão corporal grave ou morte -, todos os rixosos por ele responderão, “pelo fato da participação na rixa”. Noutros termos, uma interpretação gramatical do dispositivo em comento conduz à conclusão de que, independentemente da existência de culpa ou dolo em relação ao resultado qualificador, a todos os rixosos se imputará responsabilidade pela figura típica qualificada.
Assim, o mero fato de participar de uma rixa na qual ocorre lesão corporal grave ou morte impõe um pena mais severa, mesmo para aquele rixoso que não previu, quis, participou ou mesmo conheceu do resultado qualificador. Note que tal exegese pautada na gramaticalidade do artigo 137, parágrafo único, se aproxima sobremaneira ao sistema do versari in reillicita, porquanto os sujeitos ativos do delito responderão pelos resultados danosos mesmo quando não se apura, individualmente, a culpa ou o dolo de cada qual, ao fundamento de que, por meio de sua conduta inicial, contribuíram para o evento mais grave.
A propósito, obtempera Heleno Cláudio Fragoso (1962, p. 136):
“Sendo êste [a rixa qualificada] um crime autônomo, a pena cominada é sempre aplicável pelo simples fato de participar da rixa, independentemente do crime mais grave que tenha praticado um dos participantes […]. O evento morte ou lesões graves, que qualifica a rixa, como condição de maior punibilidade, comunica-se a todos os participantes. É indiferente que êsse resultado mais grave tenha sido ou não querido pelo agente, pois lhe será sempre imputado, salvo se fôr consequência de caso fortuito”.
Mesmo quando o resultado morte ou lesão corporal de natureza grave decorre de uma atitude lícita, como a legítima defesa, tem-se pugnado pela responsabilidade penal dos contendores pela forma qualificada do delito, pois a lei se compraz com o evento morte ou lesão corporal grave, enquanto fato signo de maior perigo da conduta criminosa[20].
Sobremais, o fato de a lesão grave ou a morte ser de um terceiro estranho à rixa não interferirá na incidência da qualificadora para todos os rixosos. Logo, se durante uma briga generalizada um dos contendores sacar uma arma de fogo e efetuar um disparo pretendendo acertar um de seus adversários, mas atingir terceiro, lesionando-o gravemente (aberratio ictus), todos responderão pelo resultado qualificador.
Indo além, mesmo o agente que se retirou da luta antes da ocorrência do evento morte ou lesão corporal grave responderá pelo resultado qualificador, entendimento prevalecente em jurisprudência. O escólio pretoriano assenta-se na tese segundo a qual para o resultado gravoso contribuiu o agente com a sua ação inicial (participação na rixa simples), conclusão, à semelhança, estreitamente sintonizada à teoria do versari in reillicita.
Até mesmo à vítima da lesão corporal será imputado o crime de rixa qualificada, consoante posição doutrinária prevalente. Mirabete explica que “não se trata de puni-lo [aquele que sofreu a lesão] pelo mal que sofreu, mas por ter tomado parte na rixa cuja particular gravidade é atestada precisamente pela lesão que lhe foi infligida”[21]. Releva notar a situação verdadeiramente inusitada: o sujeito passivo do crime será, igualmente, o sujeito ativo.
Buscando equalizar a contradição, assinala Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 307):
“… ninguém pode ser, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo do crime de sua própria conduta. Na realidade, o rixoso é sujeito ativo da conduta que pratica em relação aos demais e sujeito passivo das condutas praticadas pelos demais rixosos. Os rixosos agem uns contra os outros, por isso esse misto de sujeito ativo-passivo do mesmo crime.”
Não obstante, tratando-se de rixa qualificada, caso haja apenas uma vítima de lesão grave, não há como negar a concorrência, num único agente, da qualidade de sujeito passivo(vítima da lesão)e de sujeito ativo (da conduta qualificadora); se assim não fosse, responderia apenas pela rixa simples.
Por esse motivo, melhor interpretação é a de que, caso exista somente uma vítima da lesão corporal de natureza grave, ela não responderá pela rixa qualificada. Conclusão diversa implicaria clara ofensa ao princípio da alteridade (denominada por alguns como princípio da transcendentalidade), cuja aplicação incide de modo coordenado com o princípio da ofensividade (ou lesividade).
Por coerência lógica, havendo mais de uma vítima, poderá ocorrer a responsabilização de todas pela rixa qualificada, conquanto não será a própria lesão o resultado qualificador, mas sim a lesão ou morte de terceiro.
Das situações acima descritas deflui a responsabilidade penal objetiva, pois mesmo os rixosos que em nada contribuíram para o resultado qualificador responderão por ele. Por essa razão, adverte Rogério Sanches Cunha (2008, p. 76):
“A rixa qualificada, segundo alguns, é um dos últimos resquícios de responsabilidade objetiva que estão em vigor em nosso ordenamento jurídico, uma vez que a redação do tipo deixa claro que todos os participantes (inclusive a vítima machucada) respondem pelo crime agravado, independentemente de se identificar o verdadeiro autor da lesão grave ou morte.’
Sobreleva notar a pretensão legislativa de estabelecer uma punição mais severa em razão do resultado mais grave, despreocupando-se com as tendências subjetivas (dolo ou culpa) dos sujeitos ativos no caso concreto. É esta a inteligência extraída da exposição de motivos do Diploma repressivo:
“48. […] A participação na rixa é punida independentemente das conseqüências desta. Se ocorre a morte ou lesão corporal grave de algum dos contendores, dá-se uma condição de maior punibilidade, isto é, a pena cominada ao simples fato de participação na rixa é especialmente agravada. A pena cominada à rixa em si mesma é aplicável separadamente da pena correspondente ao resultado lesivo (homicídio ou lesão corporal), mas serão ambas aplicadas cumulativamente (como no caso de concurso material) em relação aos contendores que concorrerem para a produção desse resultado.”
Convém destacar o contexto histórico no qual elaborada a referida exposição de motivos. Estava-se sob a égide do Estado Novo, sendo exortados os motivos pelo então Ministro da Justiça e Negócios Interiores Francisco Campos. Como se sabe, o período não foi marcado pela observância aos direitos e às garantias individuais, senão pelo expansionismo do Estado na vida privada, por autoritarismos refratários ao devido respeito ao homem e pela utilização do Direito, mormente do Direito Penal, como instrumento de controle social.
Destarte, não espanta a pretensão de se firmar a responsabilidade objetiva inclusive na esfera criminal durante períodos de autoritarismos estatais, por ser forma de melhor aplicar a lei penal, facilitando, ao Estado, o exercício do ius puniendi. O que não é compreensível é a permanência da pregação da aplicação da norma penal com a visão existente àquela época.
Talvez por força de hábito, tem-se repetido uma equivocada interpretação do artigo 137, parágrafo único, do Código Penal, ao fundamento, inclusive, de uma interpretação histórica, servindo a exposição de motivos do Código Penal como amparo hermenêutico à responsabilidade objetiva.
Não se quer fazer tábula rasa da historicidade de um diploma normativo, ignorando a valia da análise dos trabalhos legislativos para fins hermenêuticos. Aliás, já advertia Aliomar Baleeiro (in AMARAL, 2006, p. 27), no exercício da função judicante:
“Não é demais recordar […] a reserva dos hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam dessas restrições, pois, não raro a "ratio iuris" brota vigorosamente da "exposição de motivos", da "justificação" do projeto, sobretudo quando provêm do líder representativo de considerável grupo parlamentar.”
Quer-se apenas a prevalência de um resultado interpretativo que se coadune aos ditames constitucionais e aos princípios fundamentais atualmente informadores do arcabouço normativo jurídico-penal.
Importante enfatizar que a intenção do legislador não é determinante, não condiciona e nem restringe a atividade hermenêutica. Daí ser possível reconhecer-se a inconstitucionalidade de determinada interpretação conferida a uma norma, ainda quando se trate de interpretação autêntica e contemporânea (como sói ocorrer na declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto).
Em suma, o hermeneuta deve voltar os olhos mais à mens legis do que à mens legislatoris, embora esta segunda possa lhe servir de recurso em alguns casos, mas sempre atentando-se aos parâmetros constitucionais. Não por acaso, ponderou Carlos Maximiliano (1965, pp. 42/43):
‘Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor.”
4. Artigo 317, parágrafo único, do Código Penal: uma interpretação conforme a Constituição
Segundo afirmado alhures, o princípio da culpabilidade encontra-se, ainda que implicitamente, previsto no artigo 1º, III, e artigo 5º, LVII e XLV, da Lei Maior. É dizer, a restrição da responsabilidade penal aos casos de atuação culposa ou dolosa está ínsita à dignidade da pessoa humana, presunção de inocência e pessoalidade da pena.
Ademais, em consideração à máxima efetividade a ser assegurada às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º, da Constituição Federal), e em vista da força normativa da Constituição, torna-se de rigor afastar qualquer interpretação indutora de conclusões conflitantes com o postulado constitucional que assimila o princípio da culpabilidade, o qual endossa a responsabilidade penal subjetiva e enjeita a objetiva. Afinal, como de há muito defende Canotilho (2006, p. 1.224), “A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê”.
Logo, acolhida a posição doutrinária e jurisprudencial tradicional, restará consolidada situação conflitante com a Carta Republicana, pois, como demonstrado acima, se estará a impor responsabilidade penal objetiva, instituto inconciliável com os ditames do princípio da culpabilidade. Assim sendo, a conclusão necessária seria pela inconstitucionalidade ou a não recepção do dispositivo legal.
Observe-se, entrementes, que no caso da rixa qualificada é possível proceder-se a uma interpretação conforme a Constituição para afastar a responsabilidade penal objetiva, a fim de conservar a vigência do artigo 137, parágrafo único, do Código Penal.
Para tanto, bastaria exigir-se prova idônea da previsibilidade do evento qualificador no caso concreto. Havendo tal prova – admitindo-se inclusive as regras ordinárias de experiência para tanto -, poderão os rixosos serem condenados na figura qualificada. Caso, ao contrário, se conclua pela imprevisibilidade do resultado morte ou lesão corporal de natureza grave, a condenação se restringirá à rixa simples.
Embora possa ser tarefa árdua a produção dessa prova, em algumas situações resulta evidente a imprevisibilidade.
Assim, caso durante um conflito tumultuário um terceiro ingresse na briga apenas para apartar os contendores, ele não responderá pelo crime, pois atuará em legítima defesa (própria ou, eventualmente, de terceiro). Contudo, caso ele se exceda, saque uma arma de fogo e mate, injustificadamente, um dos rixosos, responderá pelo homicídio em virtude do excesso (artigo 23, parágrafo único, do CP). Aos demais rixosos, acolhendo-se a posição tradicional, se imputaria necessariamente a prática de rixa qualificada pelo resultado morte. Contudo, demonstrado que todos os rixosos estavam desarmados e sabiam dessa condição, sendo que as agressões iniciais não passavam de vias de fato, poderá se considerar imprevisível o resultado morte. Nessa situação, seria adequada a responsabilização dos demais rixosos pela figura simples do crime, imputando-se o homicídio apenas àquele que se excedeu.
Ademais, deve-se apurar, no caso concreto, as tendências subjetivas de cada agente, individualmente. Caso não se constate a culpa ou o dolo de um dos contendores, deverá ele responder somente pela rixa simples. Evidentemente, o participante de uma rixa violenta é, quando menos, imprudente, sendo o resultado lesão grave ou morte previsível. Mas nem sempre será assim, e a prova da atuação culposa ou dolosa do rixoso relativamente ao evento qualificador será sempre imprescindível para sua condenação na modalidade qualificada do delito.
Em suma, haverá situações nas quais, mesmo ocorrendo o resultado morte ou lesão corporal grave, não se imputará a alguns rixosos o crime de rixa qualificada. Inadmitir essa possibilidade implicaria violar o preceito constitucional da culpabilidade.
Conclusão
Não é possível assentir a uma fórmula pré-pronta aplicável indistintamente a qualquer situação de rixa na qual se verifique o resultado qualificador, tal como: havendo morte ou lesão grave, todos os rixosos responderão necessariamente pela rixa na forma qualificada. Tal fórmula terminaria por consagrar a responsabilidade objetiva.
Será preciso verificar, casuisticamente, se a lesão grave ou morte estava dentro da cadeia fática, tendo como causa a rixa, e se este evento era previsível aos contendores, isto é, se ele se insere entre os resultados ordinariamente verificados no desdobramento causal da ação delitiva inicial.
Sobremais, deve-se apurar, no caso concreto, a culpabilidade psicológica dos rixosos, ou seja, se os acusados, individualmente, obraram com culpa (imprudência ou negligência), ou com dolo.
Não se demonstrando, em concreto, as tendências subjetivas próprias do crime de rixa qualificada, será o caso de condenar-se o rixoso pela forma delitiva simples, não se lhe podendo imputar o resultado qualificador para o qual não haja concorrido dolosa ou culposamente.
Parece tender a este raciocínio Noronha (2000, pp. 115/116), ao sustentar:
‘Os autores italianos, em regra, imputam esse resultado mais grave [lesão grave ou morte] aos rixadores, a título de responsabilidade objetiva (Manzini e outros). Como já vimos, ocorre esta quando o evento é atribuído ao agente pelo simples nexo de causalidade material; falta, por completo, o elemento psicológico. Ora, na rixa, os participantes querem a luta ou contenda, havendo consequentemente dolo; mas o evento lesão grave ou morte, embora não querido, é previsível, e, consequentemente, há culpa (strictu sensu). Poder-se-ia falar, então, em preterdolo. Todavia esse outro crime não é preterdoloso, porque falta aos rixosos a ação causal do evento mais grave, certo sendo que foi só um ou alguns deles que a praticaram. Não há, porém, responsabilidade objetiva, devido à previsibilidade.”
No mesmo sentido está Damásio de Jesus (2011, p. 233) que, não obstante divirja em certa medida de Magalhães Noronha, conclui pela imprescindibilidade de culpa no resultado qualificador:
“… em regra a rixa qualificada pelo resultado e um crime preterintencional ou preterdoloso, em que o primeiro delito, a rixa, é punido a título de dolo de perigo, enquanto o resultado qualificador, a morte ou a lesão corporal de natureza grave, é punido a título de culpa” (CP, art. 19).
Pode-se extrair das passagens acima a necessária concorrência da culpa lato sensu no resultado qualificador. Não obstante, para os mestres,essa culpa decorreria automaticamente da conduta anterior caracterizadora da rixa simples. Logo, haveria uma espécie de presunção absoluta de culpa. Nessa medida, divergem da proposta apresentada neste artigo, que defende a necessidade de prova em concreto, analisando-se casuisticamente as situações, a fim de conferir uma interpretação conforme a Constituição ao artigo 137, parágrafo único, do Código Penal. Somente assim se resguardará o princípio da culpabilidade, compreendido na acepção psicológica.
Não se desconhecem as motivações de ordem pragmática que levam muitos a defenderem, em qualquer caso, a responsabilização de todos os agentes pela rixa qualificada quando ocorrente a morte ou a lesão grave em razão dessa conduta delitiva, notadamente, a baixa pena da rixa simples (15 dias a 2 anos de detenção, ou multa), aliada à dificuldade de se apurar, individualmente, a culpabilidade de cada rixoso. Todavia, razões de ordem prática não podem conduzir à responsabilidade objetiva penal, sob pena de se viabilizar verdadeira arbitrariadade numa esfera que envolve um dos mais basilares e caros direitos: a liberdade.
Não se deve permitir que a ânsia por punições rigorosas e o sentimento generalizado de impunidade fomentem injustiças, consagrando-se uma sociedade iníqua, pois, como bem advertiu Santo Agostinho, “é preferível a tristeza de quem suporta a iniquidade do que a alegria de quem a comete”.
Sobretudo, é preciso repelir interpretações da legislação infraconstitucional conflitantes com cláusulas pétreas da Constituição Federal. Fazer vistas grossas não é a solução.
Nessa toada, não merece acolhida a interpretação gramatical do quanto estatuído no parágrafo único do artigo 137; tampouco é de ser chancelada a interpretação histórica fundada na exposição de motivos do Código Penal. Como bem asseverou o Ministro Carlos Maximiliano (in GODOY, 2000, p. 26):
“Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava todas as questões como se foram problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes de seu ‘veredictum’. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto, todavia este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação – o bem social.”
Por sem dúvidas, o bem social é melhor atendido observando-se a culpabilidade, princípio informador do moderno Direito Penal.Afinal, o “justiçado” de hoje poderá ser o “injustiçado” de amanhã, razão pela qual o Direito deve buscar realizar a Justiça e não o “justiçamento” suplantador das garantias individuais fundamentais. Deve-se sempre ter em mente que o fim não justifica os meios, porquanto o olvido desta máxima abrirá as portas para abusos de toda ordem.
Por fim, é certo que a atividade interpretativa do hermeneuta deve sempre ser iluminada pelo cânone constitucional da dignidade da pessoa humana, justamente porque, como bem assinala Ingo Sarlet (2013, p. 26):
“… a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, III, da CF/1988, não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional.”
Deste modo, tratando-se de “vetor determinante da atividade exegética da Constituição de 1988, consigna um ‘sobreprincípio’, ombreando os demais pórticos constitucionais” (BULOS, 2012, p. 60), condiciona a atividade interpretativa e permeia toda a ordem jurídica
Força reconhecer a inserção da dignidade da pessoa humana no núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, de modo a auxiliar não só no solucionar de casos concretos, ponderando interesses conflitantes (incidência principiológicadireta), como também na elaboração, interpretação e aplicação de todas as normas do arcabouço normativo brasileiro (incidência principiológicaindireta).
Ora, sabendo-se que a dignidade humana é infensa à responsabilização penal sem culpa, não há como subsistir, na atualidade, qualquer interpretação violadora do princípio da culpabilidade (psicológica). No âmbito penal, portanto, desvela-se imprescindível a prova da culpa lato sensu do agente para que se lhe possa censurar a conduta, impondo-lhe sanção. Os valores constitucionais devem sobrepairar e resistir aos pruridos de vingança social, mesmo diante do sentimento de generalizada impunidade que permeia os dias atuais.
Referências
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Notas:
[1] LOEWY, Arnold H. Criminal Law. West Group, Minnesota – USA, 2000, p. 123: "O conceito de mens rea ou intenção certamente satisfaz o teste de aplicabilidade geral. Trata-se de um princípio tão básico quanto a conhecida exculpatória de crianças: 'Mas eu não tive a intenção de fazê-lo'. A racionalidade é simplesmente que sanções criminais não são necessárias para aqueles que causam danos inocentemente." (tradução nossa: “The concept of mens rea or intent certainly meets the test of general applicability. It is as basic in principle as a child’s familiar exculpatory: ‘But, I didn’t mean to do it’. Its rationale is simply that criminal sanctions are not necessary for those who innocently cause harm”).
[2] "… as a rule there can be no crime without a criminal intent, but this is not by any means a universal rule […]. Many statutes which are in the nature of police regulations, as this is, impose criminal penalties irrespective of any intent to violate them, the purpose being to require a degree of diligence for the protection of the public which shall render violation impossible."
[3]"… though such laws are relatively few in number. Laws that don’t require mens rea – that is, laws that punish people despite their state of mind – are called “strict liability laws”. The usual justification is that the social benefits of stringent enforcement outweigh the harm of punishing a person who may be morally blameless."
[4] "• Statutory rape laws which in some states make it illegal to have sexual intercourse with a minor, even if the defendant honestly and reasonably believed that the sexual partner was old enough to consent legally to sexual intercourse […].
• Sale of alcohol to minors laws which in many states punish store clerks who sell alcohol to minors even it the clerks reasonably believe that the minors are old enough to buy liquor."
[5] "Strict liability laws like these punish defendants who make honest mistakes and therefore may be morally innocent. Because the legal consequences of innocent mistakes can be so great in certain circumstances, people who find themselves in situations governed by strict liability rules need to take special precautions before acting.". Tais conclusões jamais poderiam prevalecer no Brasil, por ser o princípio da culpabilidade uma garantia individual constitucional, não se podendo condenar o “moralmente inocente”, ainda que da imposição da pena pudesse decorrer algum benefício social, conforme veremos adiante.
[6] HC 84.580, Rel. Min. Celso de Mello, STF – Segunda Turma, DJE 18.09.2009.
[7] "As in discussion of other ethical issues, debate over the justification of punishment has tended to divide along consequentialist and deontological lines: consequentialist theories stress the beneficial consequences that follow from punishing wrongdoers, while deontological theories insist that punishment is intrinsically good as an end in itself, irrespective of any other benefits it may bring.
The key idea behind theories that hold that punishment is good in itself is retribution. A basic intuition underlying much of our moral thinking is that people should get what they deserve: just as they should benefit from behaving well, so they should suffer for behaving badly. […] Sometimes a further idea is brought in – the notion that wrongdoing creates an imbalance and that the moral equilibrium is restored by the wrongdoer ‘repaying his debt’ to society.
In stark contrast to retributivist positions, utilitarian or other consequentialist justifications of punishment typically not only deny that it is a good thing but regard it as positively bad […]. Punishment’s role in reducing crime is generally understood to take two main forms: incapacitation and deterrence […]. The other main strand in utilitarian thinking about punishment is reform of rehabilitation of the criminal."
[8]"Punishmentisnot for revenge, buttolessen crime andreformthe criminal” (www.brainyquote.com/quotes/quotes/e/elizabethf170233.html).
[9] Aprovado pelo Congresso Nacional por meio do decreto legislativo nº 27 de 1992, ratificado e promulgado por meio do decreto 678 de 1992.
[10] À semelhança, preconiza o artigo XI, 1., da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”, bem assim o artigo 6º, 2., da Convenção Europeia de Direitos Humanos: “Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
[11] O artigo 5º do Pacto San José da Costa Rica elenca, dentre os direitos à integridade pessoal, a garantia de que a pena não passará da pessoa do condenado.
[12] Comentando a alteração, consignou Dotti (1988, p. 88): “Trata-se de uma proclamação de princípio que ilumina todo o quadro do concurso e introduz uma autêntica clásulasalvatória contra os excessos a que poderia levar uma interpretação literal e radicalizante do disposto atualmente no art. 25 do Código Penal. Não é preciso dizer muito sobre a importância da inovação diante da sua perfeita sintonia com um direito penal da culpa”.
[13] Acerca do tema, ensina Luís Roberto Barroso (2014, pp. 230/231): “É, todavia, no modo de aplicação que reside a principal distinção entre regra e princípio. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada: ocorrendo o fato descrito em seu relato ela deverá incidir, produzindo o efeito previsto […]. Não há maior margem para elaboração teórica ou valoração por parte do intérprete, ao qual caberá aplicar a regra mediante subsunção: enquadra-se o fato na norma e deduz-se uma conclusão objetiva. Por isso se diz que as regras são mandados ou comandos definitivos: uma regra somente deixará de ser aplicada se outra regra a excepcionar ou se for inválida. Como consequência, os direitos nela fundados também serão definitivos. Já os princípios indicam uma direção, um valor, um fim. Ocorre que, em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e eventuais colisões entre eles […]. Como todos esses princípios têm o mesmo valor jurídico, o mesmo status hierárquico, a prevalência de um sobre outro não pode ser determinada em abstrato; somente à luz dos elementos do caso concreto será possível atribuir maior importância a um do que a outro. Ao contrário das regras, portanto, princípios não são aplicados na modalidade tudo ou nada, mas de acordo com a dimensão de peso que assumem na situação específica”.
[14] A propósito, afirmou o STJ no julgamento do RHC 33080/BA, que “… o Direito Penal pátrio repele a chamada responsabilidade penal objetiva”. À mesma conclusão chegou o Tribunal no julgamento do RHC 41075, AgRg no REsp 1201136 e HC 72422, bem como o STF no julgamento da AP 409, AP 516, entre outros casos.
[15] Nelson Hungria e Magalhães Noronha, dentre outros, adotam o entendimento de que um ou alguns dos rixosos poderão ser impuníveis. Em sentido contrário está Heleno Cláudio Fragoso.
[16] A doutrina amplamente majoritária defende ser preciso ao menos três agentes (Mirabete, Greco, Capez, Hungria). Contrariamente, Valdir Sznick, apoiando-se em Carrara e Manzini, entre outros, defende ser possível a rixa entre duas pessoas. A jurisprudência tem se posicionado pela necessidade de pelo menos 3 contendores: “Rixa é a luta violenta e perigosa entre mais de duas pessoas. Caracteriza-se por certa confusão e pela reciprocidade da agressão. O mero ataque de várias pessoas a outro grupo não a constitui” (TJSP, RT 593:325).
[17] A respeito, ver Apn. 35/GO, STJ.
[18] Neste sentido estão Damásio, Greco e Mirabete, entre outros.
[19] “A rixa pressupõe, portanto, uma confusão quanto à atividade das várias pessoas envolvidas; é tumulto, algazarra, sururu, sarilho, banzé, celeuma, desordem, rolo, baderna, chinfrin, fuzuê, exigindo desforço físico ou atos que provoquem perigo, como socos, tapas, empurrões, pontapés, lançamento de pedras ou objetos, disparos etc.” (MIRABETE & FABBRINI, 2011, p. 111).
[20] Sobre o tema, preleciona Noronha (2000, p.116): “Se a morte ou a lesão grave for lícita, isto é, praticada em legítima defesa, a rixa é também qualificada, pois a lei se preocupa somente com essas consequências: ‘Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave…’”.
[21] Pela responsabilização da vítima da violência pela rixa qualificada está Magalhães Noronha, Damásio de Jesus, Fernando Capez e Stela Prado, dentre outros. Em sentido contrário, entendendo ser indevida a responsabilização da vítima pela qualificadora está Rogério Greco.
Resumo: O princípio da culpabilidade constitui pedra angular do Direito Penal moderno. Assimilado pela Lei Maior, o conceito psicológico da culpabilidade alça a status constitucional a responsabilidade penal subjetiva, de modo que, sob o manto da Carta Republicana de 1988, ninguém poderá ser legitimamente punido por fato para o qual não haja concorrido culposa ou dolosamente. O presente artigo tem por objetivo analisar o crime de rixa qualificada, a fim de apurar se a tradicional interpretação e aplicação do quanto preconiza o artigo 317, parágrafo único, do Diploma repressivo consagra situação de responsabilização penal objetiva, em aparente violação à Carta Constitucional. Por fim, se propõe uma interpretação conforme a constituição do referido preceptivo legal, sintonizando-o com o conceito psicológico da culpabilidade.
Palavras-chave: Princípio da culpabilidade. Conceito psicológico. Responsabilidade penal objetiva. Rixa qualificada. Interpretação conforme a Constituição.
Abstract: The culpability principle is a cornerstone of modern Criminal Law. The psychological concept of culpability is well established in the Brazilian Constitution and proscribes punishment in cases of liability without fault. Therefore, under the Brazilian Constitution, no one can be rightfully condemned for an act practiced without mens rea. This article aims to analyze the qualified form of affray, crime that is defined by the Brazilian’s Penal Code article 317. This paper shoes that the traditional interpretation and application of the aforementioned article may lead to a situation of liability without fault, thus being unconstitutional. Furthermore, the paper proposes an interpretation in accordance with the Brazilian Constitution, so that the referred article may be deemed constitutional.
Keywords: Culpability principle. Psychological concept. Liability without fault. Affray. Interpretation in accordance with the Constitution.
Sumário: Introdução. 1. A culpabilidade no Direito Penal norte-americano: noções preliminares acerca do instituto da mens rea (intent). 2. A estatura constitucional do princípio da culpabilidade e a afirmação da responsabilidade penal subjetiva. 3. Rixa qualificada: a interpretação doutrinária tradicional e a consagração da responsabilidade penal objetiva. 4. Artigo 317, parágrafo único, do Código Penal: uma interpretação conforme a Constituição. Conclusão. Referências.
Introdução
Atribuindo notável valor ao livre-arbítrio, a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre propugnava por uma ampla responsabilização do homem por todas as suas ações: “O homem está condenado a ser livre, condenado porque ele não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz”.
Decerto, o ensinamento possui grande prestígio no âmbito filosófico, mas não encontra abrigo na sistemática da responsabilização penal moderna. Ao erigir a culpabilidade à condição necessária e indispensável para qualquer condenação, a dogmática jurídica consolidou a imprescindibilidade do dolo ou da culpa para fins de caracterização da infração penal. É dizer, ausente a vontade e a consciência de realizar a conduta prevista abstratamente no tipo penal incriminador (dolo) ou inexistindo comportamento violador do dever objetivo de cautela (culpa), não se cogitará da perfeita subsunção do fato à norma. Nesta hipótese inexistirá correspondência entre as tendências subjetivas que revestem a ação ou omissão do agente e o elemento subjetivo do fato tipificado na norma penal incriminadora.
Se é indubitável a irrelevância penal das intenções não convertidas em ações – cogitationis poenam nemo patitur, como proclamou Ulpiano –, é igualmente fora de dúvida que a qualificação de uma conduta como criminosa pressupõe a tendência subjetiva do agente – intelectual e volitiva –, a revestir a ação ou omissão.
Nessa esteira, consagrou-se, no Brasil, a responsabilidade penal subjetiva, ancilário da noção de culpabilidade pelo fato, somente se punindo condutas antijurídicas quando praticadas dolosa ou culposamente.
Esta é a regra geral, amplamente divulgada pela doutrina nacional, mas encontraria ela exceções no Direito Penal pátrio? Noutros termos, seria constitucionalmente aceitável, em determinados casos, impor-se responsabilidade penal objetiva, a fim de punir o agente por um resultado para o qual não haja concorrido com dolo ou culpa?
Considere, especificamente, uma briga de torcidas que se transforma em tumultuo geral. Certo momento, um dos contendores decide atirar um vaso sanitário de cima de uma varanda, vindo a atingir um transeunte. Nesse caso, todos os demais envolvidos (afora aquele que lançou o vaso) devem responder pelo resultado morte?
Este artigo se propõe à análise do crime de rixa qualificada, justamente porque, segundo parcela da doutrina nacional e estrangeira, se encontraria, na tipificação desta conduta, um resquício de responsabilidade penal objetiva. As questões ora postas, destarte, são: (i) o parágrafo único do artigo 317 do Código Penal de fato abriga uma hipótese de responsabilidade penal independentemente de culpa lato sensu? (ii) qual o método interpretativo que poderia justificar tal ilação? (iii) existe algum óbice constitucional à instituição da responsabilidade penal objetiva? (iv) se houver, há como se realizar uma interpretação do referido dispositivo legal de forma a coaduná-lo aos ditames constitucionais?
1. A culpabilidade no Direito Penal norte-americano: noções iniciais acerca do instituto da mens rea (intent)
Conforme se verá, inexiste unanimidade acerca da indispensabilidade da culpa ou do dolo para fins de responsabilização penal, mesmo em Estados democráticos.
No Direito norte-americano utiliza-se tradicionalmente a locução latina mens rea para representar genericamente esses elementos subjetivos da conduta (podendo englobar, a depender do contexto, o conhecimento da ilicitude)[1]. Embora normalmente não seja possível prescindir do intent, há casos de liability without fault naquele país, os cognominados strict e vicarious liability.
No caso Morissette v. United States (1952), o juiz Robert Jackson (in LOEWY, 2000, p. 206) fez coro ao anterior pronunciamento de Thomas Cooley em People v. Roby (1884), aquinhoando:
“… como regra geral, não poderá haver crime sem intenção criminosa, mas essa não é, de modo algum, uma regra universal […]. Muitas leis que se encontram na natureza das regulamentações policiais, tal como esta [ora em análise], impõe sanções penais independentemente de qualquer intenção de violá-las, com o propósito de estimular um grau de diligência na proteção da sociedade a impossibilitar violações”. (tradução nossa)[2]
Com base nesses precedentes e analisando casos de "responsabilidade estrita" ("strict liability"), Paul Bergman e Sara Berman-Barrett (2005, pp. 12/15) confirmam a existência de leis que, não obstante incriminem condutas desprovidas de dolo ou culpa, devem ser consideradas válidas:
“… embora tais leis sejam relativamente poucas em número. Leis que dispensam mens rea – isto é, leis que punem pessoas a despeito de sua orientação subjetiva – são chamadas leis de responsabilidade estrita. A justificativa usual é que os benefícios sociais do enforcement rigoroso superam os prejuízos de se punir uma pessoa que poderá ser moralmente inocente.” (tradução nossa)[3]
Exemplificam os autores com dois exemplos:
“• Leis incriminadoras do estupro de vulnerável que em alguns Estados torna ilegal a conjunção carnal com um menor, mesmo quando o réu honesta e razoavelmente acreditava ser a vítima suficientemente velha para consentir validamente ao ato sexual […].
• Leis regulamentadoras da venda de álcool a menores que, em muitos Estados, punem os vendedores de álcool a menores a despeito da crença razoável do vendedor de que se tratava de adquirente suficientemente velho para a compra de bebidas alcoólicas.”[4]
Interessante notar que o primeiro exemplo – referente ao statutory rape –, é caso típico de aplicação de erro de tipo no Brasil (art. 20, caput, do CP), a excluir, não por acaso, o dolo (erro vencível, inescusável) e a culpa (erro invencível, escusável). Na sistemática pátria, se o agente desconhece a condição de menor de 14 anos daquele com quem mantêm relações sexuais, não responderá pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Na espécie,
“… desaparece a finalidade típica, ou seja, não há no agente a vontade de realizar o tipo objetivo. Como o dolo é querer a realização do tipo objetivo, quando o agente não sabe que está realizando um tipo objetivo, porque se enganou a respeito de um de seus elementos, não age dolosamente”. (MIRABETE, 2009, p. 155)
Tal distinção entre o Direito estadunidense e o brasileiro obvia a incompatibilidade entre a strict liability e responsabilidade penal subjetiva.
Não é demais destacar a ponderação de valores levada a efeito pelas leis acolhedoras da responsabilidade estrita. Tem-se, por um lado, as consequências danosas decorrentes de certas condutas e, de outro, o prejuízo causado ao indivíduo condenado, a despeito de sua "inocência moral". Por razões de política criminal, prestigiou-se o primeiro, de modo a viabilizar a responsabilidade penal objetiva. A propósito:
“Leis de responsabilidade estrita punem réus que comentem erros honestos e, portanto, podem ser moralmente inocentes. Como as consequências jurídicas de erros honestos podem ser tão gravosas em certas circunstâncias, aqueles que se encontram em situações regidas por regras de "responsabilidade estrita" precisam adotar precauções especiais antes de agir.” (BERMAN & BARRET, 2005, p. 15, tradução nossa)[5]
A academia, muitas vezes em razão da obstinada e incauta repetição, consagra determinados aforismas que, por essa só razão, passam a ser admitidas como espécies de truísmos dogmáticos, incontestáveis e inderrogáveis. Parece ter ocorrido isso no Brasil quanto ao famigerado brocardo nullum crimen sine culpa, para uns, ou nulla poena sine culpa, para outros, incorporado, entre nós, como uma das facetas do princípio da culpabilidade.
Nesse sentido, não raro se aventa:
“Não existe, no ordenamento positivo brasileiro, ainda que se trate de práticas configuradoras de macrodelinquência ou caracterizadoras de delinquência econômica, a possibilidade constitucional de incidência da responsabilidade penal objetiva. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa (‘nullum crimen sine culpa’), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do ‘versari in re illicita’, banida do domínio do direito penal da culpa.”[6]
Logo, seguindo-se este entendimento, não seria possível, no Direito Penal pátrio, instituir-se a responsabilidade penal independentemente do intent do agente. Daí concluir-se pela prevalência, no Brasil, da responsabilidade penal subjetiva como única modalidade de responsabilização criminal.
2. A estatura constitucional do princípio da culpabilidade e a afirmação da responsabilidade penal subjetiva
No moderno Direito Penal brasileiro, a culpabilidade possui três relevantes dimensões:
“(i) concita o magistrado a dosar a pena de forma a manter estreita correlação com a reprovabilidade do injusto penal praticado pelo condenado. Sob esta ótica, a culpabilidade consubstancia-se num juízo de censura norteador da fixação da pena necessária e suficiente a prevenir e reprimir o crime (art. 59 do CP). Apresentando o pensamento de Hans Achenbach, Adriano Teixeira (2014, p. 22 e 27) anota:
“… [enquanto] critério medidor de pena, a culpabilidade “pode ser composto […] por diversos elementos a indicar menor ou maior gravidade do fato, como o desvalor da ação (dolo e culpa) e do resultado (grau de lesão ao bem jurídico), nível de consciência da ilicitude, maior ou menor capacidade (ou exigibilidade) de evitação do delito etc. […]. Portanto, a culpabilidade não deve ser vista como apenas mais uma circunstância judicial, mas sim ostentar o posto de critério central de aplicação da pena.”
Esta dimensão, consolidada pelo avanço do neokantismo, lastreia-se a uma concepção normativa da culpabilidade;
(ii) integra o conceito analítico de crime, ao lado do fato típico e da antijuridicidade (ou ilicitude), para os adeptos da teoria tripartida; ou constitui pressuposto necessário, mas não suficiente, para a aplicação da pena, para os filiados à teoria bipartida. Nesta dimensão, a culpabilidade seria composta por três elementos: a potencial consciência da ilicitude, a imputabilidade e a exigibilidade de conduta diversa; e
(iii) obstaculiza a responsabilidade penal objetiva. Nesta terceira dimensão entende-se a culpabilidade como nexo subjetivo estabelecido entre o agente e o fato delitivo, cunhada como conceito psicológico de culpabilidade.”
Como se permitiu antever, a presente reflexão se concentrará nesta terceira acepção: culpabilidade enquanto empecilho para o apenamento do acusado por fato para o qual não haja concorrido dolosa ou culposamente.
De partida, convém ressaltar a matriz constitucional do conceito psicológico da culpabilidade, ao menos sob três fundamentos, quais sejam: (i) a íntima relação com a dignidade da pessoa humana; (ii) cuidar-se de consequência natural da presunção de inocência; e (iii) decorrência do caráter intranscendente da pena. Impõe-se, portanto, a análise cuidadosa desses fundamentos. Vejamo-los.
Primariamente, a exigência da culpabilidade psicológica defluiria da dignidade da pessoa humana, porquanto a imposição de pena sem prévia perquirição de culpa lato sensu resultaria na percepção do indivíduo como meio para a satisfação de um suposto interesse do corpo social.
No mais, a responsabilidade penal objetiva acabaria por desvirtuar a função da pena, retirando sua feição preventiva especial positiva, pois inexistiria a necessidade de ressocialização do apenado.
No que tange às finalidades da pena, a doutrina inglesa tem oferecido valioso subsídio dogmático, notadamente a teoria utilitarista clássica esculpida por Jeremy Bentham, incluída entre as teorias consequencialistas (em sentido amplo), em oposição às teorias deontológicas. A respeito do tema, explica didaticamente o catedrático de Oxford, Ben Dupré (2007, pp. 192/195):
“Como nas discussões de outras questões éticas, o debate acerca da justificativa da punição tem tendido à divisão entre linhas consequencialistas e deontologicas: teorias consequencialistas acentuam as consequências benéficas que decorrem da punição dos malfeitores, enquanto teorias deontológicas insistem que a punição é intrinsicamente boa, como um fim em si mesma, independentemente de outros benefícios que dela poderão resultar.
A ideia central por trás das teorias que pugnam ser a punição boa em si mesma [deontológicas] é a retribuição. Uma intuição básica inerente a grande parcela do nosso raciocínio moral é a de que as pessoas devem receber aquilo que merecem: assim como elas devem se beneficiar dos comportamentos bons, também devem sofrer por terem se comportado mal. […] Por vezes outra ideia é trazida – a noção de que os malfeitos criam um desequilíbrio e que o equilíbrio moral é restaurado quando o malfeitor quita o seu débito para com a sociedade.
Em evidente contraste às posições retribucionistas, justificativas utilitárias ou consequencialistas não somente rejeitam a premissa segunda a qual é punição é boa, como a consideram ruim […]. A função da punição na redução da criminalidade é geralmente compreendida de duas formas: descapacitação e desincentivo […]. A outra concepção central do raciocínio utilitarista é a admissão da punição como meio de reforma e reabilitação do criminoso.” (tradução nossa)[7]
Está hoje sedimentada a inteligência segundo a qual a sanção aplicada ao malfeitor não objetiva “vingar” a sociedade. Somente se justifica o apenamento quando atingidas as suas finalidades preventiva e repressiva (art. 59 do CP). Desta forma, restaria igualmente violada a dignidade da pessoa humana, mesmo quando a responsabilização independentemente de culpa facilitasse a punição daqueles que se comportassem em desacordo com o quanto esperado pela sociedade, trazendo, ao menos aparentemente, algum benefício social.
Sinteticamente, apenar-se alguém em razão de uma conduta praticada sem dolo ou culpa é incompatível com a dignidade imanente a toda pessoa, uma vez que implica reduzi-la a mero objeto, apequenando-o e reduzindo sua serventia à realização de anseios da coletividade. Esta visão de corte antiutilitarista pauta-se pela reconhecimento de um valor intrínseco encerrado por cada ser humano– sua dignidade –, merecedor de especial resguardo, de modo a deslegitimar investidas nesse contexto, mesmo quando delas resulte algum benefício social.
Cumpre rememorar as lapidares palavras de Elizabeth Fry: “A punição não serve à vingança, mas à diminuição do crime e à reforma do criminoso" (tradução nossa)[8]. Se inexistir consciência e vontade do agente de praticar um crime, ou não se verificar a ausência de cautelas, seria sem sentido aplicar-se-lhe uma sanção, porquanto não se conseguirá diminuir a criminalidade, nem reformar o criminoso. Evidentemente, o apenamento violaria a dignidade humana.
Reforça tal intelecção o artigo 5º, 6., da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos[9], ao estabelecer que “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”.
Secundariamente, a proscrição da responsabilidade penal objetiva seria consectário natural da presunção de inocência. Isso porque, se o estado de inocência é presumido, não poderia a lei impor a responsabilização por fato para o qual o apenado não haja concorrido ao menos culposamente. Significa afirmar que a culpa e o dolo devem ser provados no caso concreto. Neste sentido colocam-se André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves (2012, p. 117), os quais esclarecem:
“… se ninguém pode ser qualificado como culpado senão quando condenado por sentença penal transitada em julgado, significa, raciocinando inversamente, que somente se pode condenar, em sentença penal, quando se reconhecer a culpabilidade do agente; portanto: não há pena sem culpabilidade.”
Vale destacar que, à semelhança do princípio da dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência constitui direito materialmente fundamental, garantido não só pela Carta Constitucional, como também pela Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, em cujo artigo 8º, 2., lê-se: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa…"[10].
Terciariamente, decorreria a parêmia nullum crimen sine culpa do princípio da pessoalidade da pena[11]. Ora, se a pena há de ser sempre pessoal, respondendo um sujeito apenas pelas condutas por ele praticadas, não haveria como responsabilizá-lo pelos resultados derivados de condutas alheias. Aliás, desvelaria tarefa difícil, sob a ótica moderna do Direito Penal, estabelecer um juízo de censura, imprescindível para o adequado apenamento, quando inexistir culpa ou dolo do apenado. Aliás, o juízo de censura inerente à culpabilidade não há de recair sobre o resultado em si, mas sobre a conduta do agente que de alguma forma haja concorrido para a sua produção. Desta sorte, a culpabilidade se relaciona ao agente e à conduta delitiva por ele praticada, não se confundindo com as consequências do crime.
Destaque-se, por oportuno, que as três matrizes constitucionais comumente apontadas pela doutrina, previstas respectivamente no artigo 1º, III, e artigo 5º, LVII e XLV, da Constituição Federal, caracterizam-se como cláusulas intangíveis ao revisor constitucional, constituindo verdadeiras garantias de eternidade.
Vista a matriz constitucional do princípio da culpabilidade, convém perquirir a sua disciplina infraconstitucional. Nesta esfera, houve grande avanço no que respeita à consagração da responsabilidade penal subjetiva com a reforma da Parte Geral do Código Penal em 1984.
Tal reforma, operada pela Lei 7.209/84, teve, dentre outros objetivos, o de expugnar do ordenamento jurídico institutos procedentes da teoria do versari in re illicita, cuja origem remonta ao Direito Canônico. Neste sistema, o agente respondia por todas as consequências que derivassem de sua conduta incriminada, inclusive aquelas consequências imprevisíveis ou fortuitas. Significa dizer que aquele que praticava uma ação criminosa tornava-se, por esse fato, responsável também pelo resultado fortuito (qui in re illicita versatur tenetur etiam pro casu).
Atualmente, o artigo 19 do diploma repressivo, ao tratar da agravação pelo resultado, determina que “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. Logo, não é possível imputar ao agente um resultado para o qual não haja concorrido com culpa ou dolo.
Nesse toar, Greco (2012, p. 66) põe em evidência a finalidade da previsão legal, a saber:
“… eliminar a chamada responsabilidade penal objetiva, também conhecida como responsabilidade penal sem culpa ou pelo resultado, evitando-se, dessa forma, que o agente responda por resultados que sequer ingressaram na sua órbita de previsibilidade”.
À mesma conclusão se chega confrontando-se o revogado e o atual dispositivo disciplinador da responsabilização penal individual nos crimes praticados em concurso de pessoas. Antes da reforma de 1984, o artigo 25 do Código Penal assim dispunha, in verbis: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas”. A previsão foi repetida no artigo 29, o qual acrescentou à dicção anterior, ao final, “na medida de sua culpabilidade”[12].
Em complemento, acolhendo-se as lições de Dworkin e Alexy, a vedação da responsabilidade penal objetiva constituiria, quanto ao modo de aplicação, uma regra, e não um princípio constitucional. Isso porque a diretiva apresentada pelo “princípio” da culpabilidade é disjuntiva: ou é defesa a responsabilização pelo resultado produzido por uma conduta não revestida de culpa ou dolo, ou não o é, viabilizando-se a responsabilidade objetiva na esfera criminal. Logo, não há a dimensão de peso, de modo que a culpabilidade, nessa acepção, não encerraria um comando de otimização, mas um comando de necessária e integral aplicação, quando ocorrentes os fatos estipulados na regra[13].
Em apertada síntese, a culpabilidade, princípio quanto ao conteúdo (porque traduz uma decisão política fundamental) e regra quanto ao modo de aplicação (por ser um comando definitivo), tem estatura normativa constitucional, vinculando a atuação do legislador, bem assim do constituinte derivado (por se tratar de direito individual fundamental, caracterizando-se, por isso mesmo, como cláusula pétrea).
Relacionando o tema sob exame com o direito comparado, pode-se afirmar a impossibilidade de prevalecer, no Brasil, o instituto de responsabilização penal semelhante à da responsabilidade sem culpa (liability without fault) norte-americano.
3. Rixa qualificada: a interpretação doutrinária tradicional e a consagração da responsabilidade penal objetiva
Retornando à indagação inicial, haveria algum caso de responsabilidade objetiva no direito penal brasileiro? É reiterado em doutrina e em jurisprudência a máxima segundo a qual o sistema penal inadmite tal espécie de responsabilidade penal, já que o princípio da culpabilidade, assimilado constitucionalmente, a vedaria[14].
Todavia, tal asserção, desprovida de mais acurada análise, pode revelar-se falaciosa, pois que, em casos específicos, levando-se a cabo uma interpretação literal ou histórica da norma penal, poderia ser excepcionada a norma-regra do nullum crimen sine culpa.
Basileu Garcia (2008, p. 350), ao comentar o conceito psicológico de culpabilidade, assinala:
“Decomposto idealmente o delito nos seus dois elementos – o subjetivo, também chamado psíquico ou interno, e o objetivo, também denominado material, físico ou externo – a culpabilidade integra o primeiro desses elementos, coincide com ele. Sem o pressuposto do dolo e da culpa strictu sensu – acentua a Exposição de motivos do nosso Código – nenhuma pena será irrogada. Nulla poena sine culpa. Em nenhum caso haverá presunção de culpa.”
Mas, já então, advertia: “Veremos que esse louvável propósito de intensa subjetivação do Direito repressivo não foi, em verdade, tão religiosamente seguido pelo nosso estatuto, quanto o fariam crer tais frases do Ministro da Justiça”.
Uma das hipóteses nas quais, à primeira vista, se admitiria a responsabilidade penal objetiva diz respeito ao crime de rixa qualificada.
Ao tipificar o referido delito, estatui o artigo 137 do Código Penal, in litteram:
“Art. 137 – Participar de rixa, salvo para separar os contendores:
Pena – detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único – Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se, pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de seis meses a dois anos.”
Nelson Hungria (in GRECO, 2012, p. 345), ofereceu-nos um conceito conciso do crime de rixa, entendida como “uma briga entre mais de duas pessoas, acompanhada de vias de fato ou violência recíprocas, pouco importando que se forme ‘ex improviso’ ou ‘ex proposito’”.
Trata-se de crime plurissubjetivo, ou seja, de concurso necessário de pessoas, somente se tipificando a rixa quando a luta envolve ao menos três contendores a se atacarem reciprocamente. Consoante a doutrina majoritária[15], é irrelevante o fato de ser um (ou alguns) dos contendores inimputável (e.g. menor de 18 anos), ou mesmo desconhecido; basta que se perfaça o número mínimo de três agentes, qualificado pelo concurso necessário divergente[16]. Somente não é considerado, para fins de tipificação delitiva, o sujeito que ingressar na rixa com o único propósito de apartar os rixosos, pois ele não praticará conduta típica, conforme se dessume do artigo 137, caput, do Código Penal.
Ademais, caso haja dois grupos bem identificados a brigarem entre si, tampouco se tipifica a rixa, conforme jurisprudência consolidada dos tribunais superiores[17], a acompanhar a doutrina[18]. Por essa razão costuma-se lastrear a finalidade da tipificação autônoma da rixa ao intento de evitar a impunidade verificada naquelas situações de tumulto e confusão generalizada, notadamente quando for difícil identificar, com precisão, os autores das agressões iniciais[19].
Não se vislumbra, na rixa simples, a imposição de responsabilidade penal objetiva, na medida em que os rixosos somente serão punidos se atuarem dolosamente, com a consciência e a vontade livre de integrar o embate.
Contudo, o parágrafo único do artigo 137, ao tipificar a rixa qualificada pela lesão corporal grave ou morte, consagrou, à primeira vista, situação de responsabilidade penal independentemente de culpa ou dolo. Isso porque, verificando-se um desses eventos qualificadores – lesão corporal grave ou morte -, todos os rixosos por ele responderão, “pelo fato da participação na rixa”. Noutros termos, uma interpretação gramatical do dispositivo em comento conduz à conclusão de que, independentemente da existência de culpa ou dolo em relação ao resultado qualificador, a todos os rixosos se imputará responsabilidade pela figura típica qualificada.
Assim, o mero fato de participar de uma rixa na qual ocorre lesão corporal grave ou morte impõe um pena mais severa, mesmo para aquele rixoso que não previu, quis, participou ou mesmo conheceu do resultado qualificador. Note que tal exegese pautada na gramaticalidade do artigo 137, parágrafo único, se aproxima sobremaneira ao sistema do versari in re illicita, porquanto os sujeitos ativos do delito responderão pelos resultados danosos mesmo quando não se apura, individualmente, a culpa ou o dolo de cada qual, ao fundamento de que, por meio de sua conduta inicial, contribuíram para o evento mais grave.
A propósito, obtempera Heleno Cláudio Fragoso (1962, p. 136):
“Sendo êste [a rixa qualificada] um crime autônomo, a pena cominada é sempre aplicável pelo simples fato de participar da rixa, independentemente do crime mais grave que tenha praticado um dos participantes […]. O evento morte ou lesões graves, que qualifica a rixa, como condição de maior punibilidade, comunica-se a todos os participantes. É indiferente que êsse resultado mais grave tenha sido ou não querido pelo agente, pois lhe será sempre imputado, salvo se fôr consequência de caso fortuito”.
Mesmo quando o resultado morte ou lesão corporal de natureza grave decorre de uma atitude lícita, como a legítima defesa, tem-se pugnado pela responsabilidade penal dos contendores pela forma qualificada do delito, pois a lei se compraz com o evento morte ou lesão corporal grave, enquanto fato signo de maior perigo da conduta criminosa[20].
Sobremais, o fato de a lesão grave ou a morte ser de um terceiro estranho à rixa não interferirá na incidência da qualificadora para todos os rixosos. Logo, se durante uma briga generalizada um dos contendores sacar uma arma de fogo e efetuar um disparo pretendendo acertar um de seus adversários, mas atingir terceiro, lesionando-o gravemente (aberratio ictus), todos responderão pelo resultado qualificador.
Indo além, mesmo o agente que se retirou da luta antes da ocorrência do evento morte ou lesão corporal grave responderá pelo resultado qualificador, entendimento prevalecente em jurisprudência. O escólio pretoriano assenta-se na tese segundo a qual para o resultado gravoso contribuiu o agente com a sua ação inicial (participação na rixa simples), conclusão, à semelhança, estreitamente sintonizada à teoria do versari in re illicita.
Até mesmo à vítima da lesão corporal será imputado o crime de rixa qualificada, consoante posição doutrinária prevalente. Mirabete explica que “não se trata de puni-lo [aquele que sofreu a lesão] pelo mal que sofreu, mas por ter tomado parte na rixa cuja particular gravidade é atestada precisamente pela lesão que lhe foi infligida”[21]. Releva notar a situação verdadeiramente inusitada: o sujeito passivo do crime será, igualmente, o sujeito ativo.
Buscando equalizar a contradição, assinala Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 307):
“… ninguém pode ser, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo do crime de sua própria conduta. Na realidade, o rixoso é sujeito ativo da conduta que pratica em relação aos demais e sujeito passivo das condutas praticadas pelos demais rixosos. Os rixosos agem uns contra os outros, por isso esse misto de sujeito ativo-passivo do mesmo crime.”
Não obstante, tratando-se de rixa qualificada, caso haja apenas uma vítima de lesão grave, não há como negar a concorrência, num único agente, da qualidade de sujeito passivo (vítima da lesão) e de sujeito ativo (da conduta qualificadora); se assim não fosse, responderia apenas pela rixa simples.
Por esse motivo, melhor interpretação é a de que, caso exista somente uma vítima da lesão corporal de natureza grave, ela não responderá pela rixa qualificada. Conclusão diversa implicaria clara ofensa ao princípio da alteridade (denominada por alguns como princípio da transcendentalidade), cuja aplicação incide de modo coordenado com o princípio da ofensividade (ou lesividade).
Por coerência lógica, havendo mais de uma vítima, poderá ocorrer a responsabilização de todas pela rixa qualificada, conquanto não será a própria lesão o resultado qualificador, mas sim a lesão ou morte de terceiro.
Das situações acima descritas deflui a responsabilidade penal objetiva, pois mesmo os rixosos que em nada contribuíram para o resultado qualificador responderão por ele. Por essa razão, adverte Rogério Sanches Cunha (2008, p. 76):
“A rixa qualificada, segundo alguns, é um dos últimos resquícios de responsabilidade objetiva que estão em vigor em nosso ordenamento jurídico, uma vez que a redação do tipo deixa claro que todos os participantes (inclusive a vítima machucada) respondem pelo crime agravado, independentemente de se identificar o verdadeiro autor da lesão grave ou morte.’
Sobreleva notar a pretensão legislativa de estabelecer uma punição mais severa em razão do resultado mais grave, despreocupando-se com as tendências subjetivas (dolo ou culpa) dos sujeitos ativos no caso concreto. É esta a inteligência extraída da exposição de motivos do Diploma repressivo:
“48. […] A participação na rixa é punida independentemente das conseqüências desta. Se ocorre a morte ou lesão corporal grave de algum dos contendores, dá-se uma condição de maior punibilidade, isto é, a pena cominada ao simples fato de participação na rixa é especialmente agravada. A pena cominada à rixa em si mesma é aplicável separadamente da pena correspondente ao resultado lesivo (homicídio ou lesão corporal), mas serão ambas aplicadas cumulativamente (como no caso de concurso material) em relação aos contendores que concorrerem para a produção desse resultado.”
Convém destacar o contexto histórico no qual elaborada a referida exposição de motivos. Estava-se sob a égide do Estado Novo, sendo exortados os motivos pelo então Ministro da Justiça e Negócios Interiores Francisco Campos. Como se sabe, o período não foi marcado pela observância aos direitos e às garantias individuais, senão pelo expansionismo do Estado na vida privada, por autoritarismos refratários ao devido respeito ao homem e pela utilização do Direito, mormente do Direito Penal, como instrumento de controle social.
Destarte, não espanta a pretensão de se firmar a responsabilidade objetiva inclusive na esfera criminal durante períodos de autoritarismos estatais, por ser forma de melhor aplicar a lei penal, facilitando, ao Estado, o exercício do ius puniendi. O que não é compreensível é a permanência da pregação da aplicação da norma penal com a visão existente àquela época.
Talvez por força de hábito, tem-se repetido uma equivocada interpretação do artigo 137, parágrafo único, do Código Penal, ao fundamento, inclusive, de uma interpretação histórica, servindo a exposição de motivos do Código Penal como amparo hermenêutico à responsabilidade objetiva.
Não se quer fazer tábula rasa da historicidade de um diploma normativo, ignorando a valia da análise dos trabalhos legislativos para fins hermenêuticos. Aliás, já advertia Aliomar Baleeiro (in AMARAL, 2006, p. 27), no exercício da função judicante:
“Não é demais recordar […] a reserva dos hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam dessas restrições, pois, não raro a "ratio iuris" brota vigorosamente da "exposição de motivos", da "justificação" do projeto, sobretudo quando provêm do líder representativo de considerável grupo parlamentar.”
Quer-se apenas a prevalência de um resultado interpretativo que se coadune aos ditames constitucionais e aos princípios fundamentais atualmente informadores do arcabouço normativo jurídico-penal.
Importante enfatizar que a intenção do legislador não é determinante, não condiciona e nem restringe a atividade hermenêutica. Daí ser possível reconhecer-se a inconstitucionalidade de determinada interpretação conferida a uma norma, ainda quando se trate de interpretação autêntica e contemporânea (como sói ocorrer na declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto).
Em suma, o hermeneuta deve voltar os olhos mais à mens legis do que à mens legislatoris, embora esta segunda possa lhe servir de recurso em alguns casos, mas sempre atentando-se aos parâmetros constitucionais. Não por acaso, ponderou Carlos Maximiliano (1965, pp. 42/43):
‘Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor.”
4. Artigo 317, parágrafo único, do Código Penal: uma interpretação conforme a Constituição
Segundo afirmado alhures, o princípio da culpabilidade encontra-se, ainda que implicitamente, previsto no artigo 1º, III, e artigo 5º, LVII e XLV, da Lei Maior. É dizer, a restrição da responsabilidade penal aos casos de atuação culposa ou dolosa está ínsita à dignidade da pessoa humana, presunção de inocência e pessoalidade da pena.
Ademais, em consideração à máxima efetividade a ser assegurada às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º, da Constituição Federal), e em vista da força normativa da Constituição, torna-se de rigor afastar qualquer interpretação indutora de conclusões conflitantes com o postulado constitucional que assimila o princípio da culpabilidade, o qual endossa a responsabilidade penal subjetiva e enjeita a objetiva. Afinal, como de há muito defende Canotilho (2006, p. 1.224), “A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê”.
Logo, acolhida a posição doutrinária e jurisprudencial tradicional, restará consolidada situação conflitante com a Carta Republicana, pois, como demonstrado acima, se estará a impor responsabilidade penal objetiva, instituto inconciliável com os ditames do princípio da culpabilidade. Assim sendo, a conclusão necessária seria pela inconstitucionalidade ou a não recepção do dispositivo legal.
Observe-se, entrementes, que no caso da rixa qualificada é possível proceder-se a uma interpretação conforme a Constituição para afastar a responsabilidade penal objetiva, a fim de conservar a vigência do artigo 137, parágrafo único, do Código Penal.
Para tanto, bastaria exigir-se prova idônea da previsibilidade do evento qualificador no caso concreto. Havendo tal prova – admitindo-se inclusive as regras ordinárias de experiência para tanto -, poderão os rixosos serem condenados na figura qualificada. Caso, ao contrário, se conclua pela imprevisibilidade do resultado morte ou lesão corporal de natureza grave, a condenação se restringirá à rixa simples.
Embora possa ser tarefa árdua a produção dessa prova, em algumas situações resulta evidente a imprevisibilidade.
Assim, caso durante um conflito tumultuário um terceiro ingresse na briga apenas para apartar os contendores, ele não responderá pelo crime, pois atuará em legítima defesa (própria ou, eventualmente, de terceiro). Contudo, caso ele se exceda, saque uma arma de fogo e mate, injustificadamente, um dos rixosos, responderá pelo homicídio em virtude do excesso (artigo 23, parágrafo único, do CP). Aos demais rixosos, acolhendo-se a posição tradicional, se imputaria necessariamente a prática de rixa qualificada pelo resultado morte. Contudo, demonstrado que todos os rixosos estavam desarmados e sabiam dessa condição, sendo que as agressões iniciais não passavam de vias de fato, poderá se considerar imprevisível o resultado morte. Nessa situação, seria adequada a responsabilização dos demais rixosos pela figura simples do crime, imputando-se o homicídio apenas àquele que se excedeu.
Ademais, deve-se apurar, no caso concreto, as tendências subjetivas de cada agente, individualmente. Caso não se constate a culpa ou o dolo de um dos contendores, deverá ele responder somente pela rixa simples. Evidentemente, o participante de uma rixa violenta é, quando menos, imprudente, sendo o resultado lesão grave ou morte previsível. Mas nem sempre será assim, e a prova da atuação culposa ou dolosa do rixoso relativamente ao evento qualificador será sempre imprescindível para sua condenação na modalidade qualificada do delito.
Em suma, haverá situações nas quais, mesmo ocorrendo o resultado morte ou lesão corporal grave, não se imputará a alguns rixosos o crime de rixa qualificada. Inadmitir essa possibilidade implicaria violar o preceito constitucional da culpabilidade.
Conclusão
Não é possível assentir a uma fórmula pré-pronta aplicável indistintamente a qualquer situação de rixa na qual se verifique o resultado qualificador, tal como: havendo morte ou lesão grave, todos os rixosos responderão necessariamente pela rixa na forma qualificada. Tal fórmula terminaria por consagrar a responsabilidade objetiva.
Será preciso verificar, casuisticamente, se a lesão grave ou morte estava dentro da cadeia fática, tendo como causa a rixa, e se este evento era previsível aos contendores, isto é, se ele se insere entre os resultados ordinariamente verificados no desdobramento causal da ação delitiva inicial.
Sobremais, deve-se apurar, no caso concreto, a culpabilidade psicológica dos rixosos, ou seja, se os acusados, individualmente, obraram com culpa (imprudência ou negligência), ou com dolo.
Não se demonstrando, em concreto, as tendências subjetivas próprias do crime de rixa qualificada, será o caso de condenar-se o rixoso pela forma delitiva simples, não se lhe podendo imputar o resultado qualificador para o qual não haja concorrido dolosa ou culposamente.
Parece tender a este raciocínio Noronha (2000, pp. 115/116), ao sustentar:
‘Os autores italianos, em regra, imputam esse resultado mais grave [lesão grave ou morte] aos rixadores, a título de responsabilidade objetiva (Manzini e outros). Como já vimos, ocorre esta quando o evento é atribuído ao agente pelo simples nexo de causalidade material; falta, por completo, o elemento psicológico. Ora, na rixa, os participantes querem a luta ou contenda, havendo consequentemente dolo; mas o evento lesão grave ou morte, embora não querido, é previsível, e, consequentemente, há culpa (strictu sensu). Poder-se-ia falar, então, em preterdolo. Todavia esse outro crime não é preterdoloso, porque falta aos rixosos a ação causal do evento mais grave, certo sendo que foi só um ou alguns deles que a praticaram. Não há, porém, responsabilidade objetiva, devido à previsibilidade.”
No mesmo sentido está Damásio de Jesus (2011, p. 233) que, não obstante divirja em certa medida de Magalhães Noronha, conclui pela imprescindibilidade de culpa no resultado qualificador:
“… em regra a rixa qualificada pelo resultado e um crime preterintencional ou preterdoloso, em que o primeiro delito, a rixa, é punido a título de dolo de perigo, enquanto o resultado qualificador, a morte ou a lesão corporal de natureza grave, é punido a título de culpa” (CP, art. 19).
Pode-se extrair das passagens acima a necessária concorrência da culpa lato sensu no resultado qualificador. Não obstante, para os mestres, essa culpa decorreria automaticamente da conduta anterior caracterizadora da rixa simples. Logo, haveria uma espécie de presunção absoluta de culpa. Nessa medida, divergem da proposta apresentada neste artigo, que defende a necessidade de prova em concreto, analisando-se casuisticamente as situações, a fim de conferir uma interpretação conforme a Constituição ao artigo 137, parágrafo único, do Código Penal. Somente assim se resguardará o princípio da culpabilidade, compreendido na acepção psicológica.
Não se desconhecem as motivações de ordem pragmática que levam muitos a defenderem, em qualquer caso, a responsabilização de todos os agentes pela rixa qualificada quando ocorrente a morte ou a lesão grave em razão dessa conduta delitiva, notadamente, a baixa pena da rixa simples (15 dias a 2 anos de detenção, ou multa), aliada à dificuldade de se apurar, individualmente, a culpabilidade de cada rixoso. Todavia, razões de ordem prática não podem conduzir à responsabilidade objetiva penal, sob pena de se viabilizar verdadeira arbitrariadade numa esfera que envolve um dos mais basilares e caros direitos: a liberdade.
Não se deve permitir que a ânsia por punições rigorosas e o sentimento generalizado de impunidade fomentem injustiças, consagrando-se uma sociedade iníqua, pois, como bem advertiu Santo Agostinho, “é preferível a tristeza de quem suporta a iniquidade do que a alegria de quem a comete”.
Sobretudo, é preciso repelir interpretações da legislação infraconstitucional conflitantes com cláusulas pétreas da Constituição Federal. Fazer vistas grossas não é a solução.
Nessa toada, não merece acolhida a interpretação gramatical do quanto estatuído no parágrafo único do artigo 137; tampouco é de ser chancelada a interpretação histórica fundada na exposição de motivos do Código Penal. Como bem asseverou o Ministro Carlos Maximiliano (in GODOY, 2000, p. 26):
“Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava todas as questões como se foram problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes de seu ‘veredictum’. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto, todavia este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação – o bem social.”
Por sem dúvidas, o bem social é melhor atendido observando-se a culpabilidade, princípio informador do moderno Direito Penal. Afinal, o “justiçado” de hoje poderá ser o “injustiçado” de amanhã, razão pela qual o Direito deve buscar realizar a Justiça e não o “justiçamento” suplantador das garantias individuais fundamentais. Deve-se sempre ter em mente que o fim não justifica os meios, porquanto o olvido desta máxima abrirá as portas para abusos de toda ordem.
Por fim, é certo que a atividade interpretativa do hermeneuta deve sempre ser iluminada pelo cânone constitucional da dignidade da pessoa humana, justamente porque, como bem assinala Ingo Sarlet (2013, p. 26):
“… a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, III, da CF/1988, não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional.”
Deste modo, tratando-se de “vetor determinante da atividade exegética da Constituição de 1988, consigna um ‘sobreprincípio’, ombreando os demais pórticos constitucionais” (BULOS, 2012, p. 60), condiciona a atividade interpretativa e permeia toda a ordem jurídica
Força reconhecer a inserção da dignidade da pessoa humana no núcleo axiológico do constitucionalismo contemporâneo, de modo a auxiliar não só no solucionar de casos concretos, ponderando interesses conflitantes (incidência principiológica direta), como também na elaboração, interpretação e aplicação de todas as normas do arcabouço normativo brasileiro (incidência principiológica indireta).
Ora, sabendo-se que a dignidade humana é infensa à responsabilização penal sem culpa, não há como subsistir, na atualidade, qualquer interpretação violadora do princípio da culpabilidade (psicológica). No âmbito penal, portanto, desvela-se imprescindível a prova da culpa lato sensu do agente para que se lhe possa censurar a conduta, impondo-lhe sanção. Os valores constitucionais devem sobrepairar e resistir aos pruridos de vingança social, mesmo diante do sentimento de generalizada impunidade que permeia os dias atuais.
Advogado. Pesquisador do Economics and Politics Research Group UnB/CNPq. Pós-graduado em Direito. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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