Sumário: 1. A moderna Criminologia: uma ciência empírica e transdisciplinar – 2. A vertente psicológica da Criminologia; breve nota sobre o comportamentalismo – 2.1. Alguns aspectos da Execução Penal no Brasil: a supressão do exame criminológico – 3. Conclusão
1. A moderna criminologia: uma ciência empírica e transdisciplinar
Na conferência que inaugurou o 1o Congresso Nacional do Ministério Público, em junho de 1942, no Teatro Municipal de São Paulo, Nelson Hungria defendeu, com o brilho que lhe era peculiar, o divórcio irremediável entre os saberes criminológicos e os jurídico-penais, influenciando, desde então, diversas gerações – no foro e na academia. De lá para cá, seja sob as brumas neokantistas2 da época, seja por reminiscências positivistas no modelo cientifico, verificou-se entre nós não apenas a dissociação entre o Direito Penal e “essa Teia de Penélope que se intitula Criminologia”, mas também a afirmação do tecnicismo jurídico no estudo do Direito Penal positivo.3 A Criminologia, a seu turno, foi relegada a um plano secundário, sobretudo nos programas dos cursos de Direito, que prestigiavam o dogmatismo em detrimento do saber empírico, em contato com os acontecimentos, preocupado em conhecer e transformar a realidade social.
O discurso dominante encontrou campo fecundo no solo do ensino superior brasileiro, em que o curso de Direito foi “reservado”, tradicionalmente, para a formação elitista das camadas privilegiadas da população. Erigiu-se, assim, um saber acessível exclusivamente à classe dominante, que recorrendo a abstrações normativas, “aplica” o Direito e, mantendo-se longe da realidade da maioria do povo, despersonalizava os conflitos.4 Fora o componente ideológico de tais observações, pode-se diagnosticar entre os que atuamos na seara do Direito Penal, atualmente, o autêntico desconhecimento dos matizes que a criminalidade moderna apresenta. Noutras palavras, apesar de identificarmos o crescimento da criminalidade e procurarmos explicá-la e compreendê-la, recorremos tão somente ao exercício nato da intuição. Exercício filosófico, não-científico. Somos capazes de perceber a realidade, acumulando dados, não de conhecê-la. Daí nossa dificuldade no desenvolvimento de pesquisas de campo, em estabelecer padrões estatísticos confiáveis e em interpretá-los com eficiência. Se não conhecemos o problema social, não podemos apresentar soluções ou, quando as apresentamos, recorremos ao modelo de ciência que temos sedimentado em nossa formação. Nesse caso, as “soluções” repousam, com destaque, no plano legislativo (normativo), como fruto do raciocínio hegemônico da Dogmática Jurídica. A realidade não se altera.
Enquanto no Brasil a formação jurídico-penal permaneceu, como regra, atrelada a uma visão epistemológica positivista, técnico-jurídica e eminentemente dogmática, preterindo-se a efetiva contribuição do saber criminológico à formação do “jurista”, esta mesma Criminologia, paradoxalmente, ganhava fôlego. A moderna Criminologia, com efeito, ampliou seu objeto e, com isso, seu campo de atuação, para incluir entre seu domínio, inclusive, a problematização do sistema (de controle) social.
A Criminologia, encarando o crime como problema individual e social, ilumina-se com uma postura crítica para a investigação e compreensão dos “fatores, variáveis e correlações” que envolvem o comportamento criminoso, deixando para traz a postura causal, etiológico-explicativa do modelo clássico de ciência. Admitindo a limitação do próprio saber científico, a natureza empírica da Criminologia significa que se baseia mais em fatos que em opiniões, mais na observação que nos discursos ou silogismos.5 A Criminologia, porque pretende explicar a realidade (e transformá-la), procura conhecê-la. Para tal desiderato, compartilha dos saberes de outras disciplinas (interdisciplinariedade), figurando como instância superior que corrige as conclusões particulares, compartimentadas, conferindo-se uma visão peculiar, vale dizer, criminológica (transdisciplinar).
Verificando os modelos teórico-explicativos do comportamento criminoso, podemos identificar o destaque de três correntes, quanto à influência característica de outros ramos do saber: a) biologia; b) psicologia; c) sociologia.6 Quanto aos modelos de cunho psicológico, temos ainda uma subdivisão, também em três níveis: psicologia, psicopatologia e psicanálise criminal.7 No presente estudo, procuramos colocar em relevo, no âmbito das teorias psicológicas da aprendizagem, a origem do movimento comportamentalista e sua influência na afirmação da Psicologia Conductista – seguindo-se, por último, o exercício crítico em prol da recuperação dos postulados da psicanálise criminal em sede de Execução Penal.8
2. A vertente psicológica da criminologia; breve nota sobre o comportamentalismo
Aproximadamente quarenta anos após o advento da Psicologia, operou-se, sobretudo nos EUA, profunda evolução no modelo científico, passando-se de uma visão estruturalista para funcionalista9. Nesse contexto, nos idos de 1913, como reação às Escolas estruturalista e funcionalista, eclode o movimento Behaviorista10, que assume, então, papel preponderante na vida cultural e social da época. Seus princípios básicos indicavam uma Psicologia preocupada unicamente com atos observáveis de conduta, objetivamente descritos em termos de estímulo e resposta – uma ciência do comportamento11; experimental, demonstrável empiricamente12.
O Behaviorismo tem como ponto de partida o fato observável de que os organismos (animais ou humanos) se ajustam ao ambiente a partir do equipamento hereditário e do hábito. Em segundo momento, alguns estímulos levam os organismos a apresentar determinadas respostas. Conhecendo-se a resposta, portanto, é possível predizer o estímulo; dado o estímulo, é possível prever a resposta. Reduzido ao nível de estímulo e resposta (visão mecanicista), o comportamento poderia, então, ser compreendido, antevisto e, principalmente, controlado objetivamente, em detrimento de variáveis mentais não-demonstráveis13. Todo esse ideário, agrupado como sistema, aponta a relevância dos trabalhos de Watson ao propor o behaviorismo metodológico (perspectiva de uma ciência do comportamento – objetiva). A transição para o behaviorismo radical se completa com Skinner14, a partir de um programa para o controle comportamental da sociedade e da introdução de técnicas de modificação de comportamento.
Para Skinner, a tarefa da investigação científica consiste em estabelecer relações funcionais entre as condições antecedentes de estímulo controladas pelo experimentador, empiricamente, e a resposta subseqüente do organismo15. Já na situação de condicionamento proposta por Pavlov, um estímulo conhecido é relacionado a uma resposta, sob condições de reforço. Skinner denominou comportamento respondente a resposta comportamental suscitada por um estímulo específico e observável; e comportamento operante o que ocorre sem quaisquer estímulos externos observáveis.16 Assim, a resposta é aparentemente espontânea, não se relacionando a qualquer estímulo observável conhecido. Isso não significaria, segundo Schultz, a inexistência de estímulo provocador da resposta; apenas nenhum estímulo é identificado quando ocorre a resposta. A abordagem mais eficiente de uma ciência do comportamento, segundo Skinner, é o estudo do condicionamento e da extinção dos comportamentos operantes17.
O programa de Skinner para o controle comportamental da sociedade existe apenas na ficção, mas o controle ou modificação do comportamento de pessoas (e pequenos grupos) é consideravelmente difundido, ainda que sem adesão formal, sendo a modificação do comportamento mediante o reforço positivo18 técnica usual nas escolas, prisões etc. A partir das idéias do controle comportamental da sociedade, verifica-se, sobretudo nos EUA, uma crescente aplicação da “tecnologia científica” ao campo da modificação do comportamento carcerário.19 Em várias instituições prisionais estadunidenses, processos e métodos baseados nos postulados behavioristas foram empregados: economia de fichas, sistemas estratificados, recompensas em forma de privilégios, condicionamento aversivo etc.20 Ainda hoje, embora com mecanismos diversos, a abordagem comportamentalista permanece como referencial para os sistemas de recuperação social de criminosos.
2.1. Alguns aspectos da Execução Penal no Brasil: a supressão do exame criminológico
Na concepção original da Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, o comportamentalismo aparece de forma moderada, relacionado à disciplina carcerária, elegendo-se também outras referências teóricas, inclusive mentalistas (psicanalíticas?), como instrumentais à ressocialização do indivíduo. O sistema penitenciário brasileiro, no plano teórico, preocupa-se (ou preocupava-se) não apenas com o comportamento carcerário, mas o comportamento do indivíduo em liberdade, principalmente para prevenção da reincidência. Com efeito, no sistema concebido pela LEP se constata a preocupação do legislador também com os aspectos internos, identificadores da personalidade do criminoso, visando interferir, por intermédio da individualização (e personalização) da pena, na formação e substituição de valores. Nesse sentido, declara-se como objetivo da execução penal “propiciar condições para a harmônica integração social do condenado” (art. 1º, LEP). Tal mister apenas seria alcançado a partir do “conhecimento” do sujeito (histórico psicológico, familiar, sociológico etc.), “classificado” (art. 5º, LEP) segundo a sua personalidade, como condição de individualização do “tratamento”. A par da classificação e da submissão a exame criminológico21, nos moldes do que previa o art. 8º, LEP, também o modelo assistencial tem por escopo o “amparo ao preso e preparação para o retorno à liberdade” (art. 11, LEP), a partir da valorização do sujeito (resgate de valores éticos, sociais e religiosos) e sua mobilização para o trabalho (valor social de referência – art. 28, LEP).
O “sistema”, propriamente dito, é estruturado, teoricamente, de maneira escalonada: o regime fechado é cumprido na Penitenciária (art. 87, LEP); o semi-aberto em Colônia Agrícola ou Industrial (art. 91, LEP); o aberto em Casa do Albergado (art. 93, LEP). Em todos os regimes, observadas as peculiaridades, o aspecto referencial é o trabalho (art. 25, LEP), estimulado ainda pela remição (art. 126, LEP).
Enfim, o que se observa é que a LEP não se mostrou atrelada à questão comportamental do preso. Pretendeu que o sistema fosse capaz de “introjetar” valores, modificar conceitos e personalidade, interferindo em seu processo de formação mentalista. Até mesmo a progressividade da execução (art. 112, LEP) estaria condicionada ao parecer da Comissão Técnica de Classificação e ao exame criminológico (e aos seus resultados), o que só seria possível através de um acompanhamento individualizado do preso.
Na prática, o que se vê é a deturpação absoluta do aparato normativo: a) presos definitivos em estabelecimentos destinados a presos provisórios; b) presos de regimes distintos submetidos ao mesmo tratamento; c) ausência de condições para o trabalho; d) inexistência de estabelecimentos prisionais de característica industrial (semi-aberto); e) insuficiência de colônias agrícolas; f) corrupção; g) ausência de classificação, individualização e assistência efetivas.
Se, no plano estrutural, o sistema entrou em colapso antes mesmo de sua efetiva implantação, a situação judiciária não é diferente. O que se constata é a perpetuação de uma interpretação “comportamentalista” na aferição meritória dos institutos da execução penal. A “classificação” se restringe ao comportamento carcerário. Cumprido o requisito objetivo-temporal para o benefício, revelado comportamento satisfatório no cárcere, não mais se indaga a real possibilidade de integração no convívio social pacífico. Na prática forense, o que se exige para a saída temporária é comportamento adequado (art. 123, LEP); para progressão de regime, o “mérito” se traduz em cumprimento dos deveres (art. 39, LEP) com “disciplina” carcerária (art. 44, LEP); para o livramento condicional, comportamento satisfatório (art. 83, III, CP e 131, LEP). No caso de crimes hediondos, o regime “legal” integralmente fechado, para alguns inconstitucional (para o STF não!) é transformado, na condenação “judicial”, em inicialmente fechado. A progressão ao regime semi-aberto é deferida, portanto, cumprido um sexto da pena, baseada em atestado carcerário firmado pelo agente de segurança pública (que certifica o comportamento, fazendo as vezes do “conhecimento multidisciplinar para fins criminológicos” – exames criminológico e de classificação). Uma vez no regime semi-aberto, o preso não pode, à falta de estabelecimento prisional adequado ao regime, permanecer “fechado”, submetido a regras mais rigorosas. Portanto, como o trabalho é direito do preso e o Estado não o disponibiliza, autoriza-se o trabalho externo, sem fiscalização, com recolhimento à noite e aos finais de semana. Na prática, o regime semi-aberto é transformado em aberto. Cumprido mais um sexto da pena, mantido o “bom comportamento”, agora representado pelo recolhimento à prisão a tempo e modo determinados, há nova progressão: regime aberto. Como o estabelecimento não é o adequado – e em muitos casos estamos falando ainda da cadeia pública -, defere-se, praeter legem, prisão domiciliar, via de regra cumprida também sem qualquer acompanhamento efetivo. Nesse ciclo, cuja ilustração acima pode parecer simbólica e sensacionalista para os mais otimistas com relação à efetividade de nosso “sistema”, merecem destaque dois “expedientes”, fundamentais para a compreensão da lógica institucional, seja estrutural do sistema carcerário, seja instrumental do aparelho judiciário: a) o atestado de comportamento firmado pelo carcereiro; b) a proposta de trabalho, sem qualquer repercussão trabalhista ou previdenciária (quanto à remuneração ou outros direitos do preso), firmada por qualquer “suposto empregador”.
Fato é que a classificação e o exame criminológico foram previsões legais que se frustraram. Primeiro porque muitos presos definitivos permaneciam (como permanecem ainda) encarcerados em estabelecimentos inadequados, destinados a presos provisórios (cadeias ou presídios) sob a custódia da Polícia, onde não havia aparato técnico suficiente para a realização de análise interdisciplinar do preso. Segundo porque, mesmo quando o exame era realizado, na maioria das vezes se argumentava, no cotidiano forense, que os dados mentalistas (relacionados à personalidade, ao caráter, aos valores) seriam “subjetivos”, não servindo de critério para indeferimento de “direitos públicos subjetivos” do condenado. Terceiro porque a formação de um saber criminológico (seja do ponto de vista social, assistencial ou psicológico) no âmbito do sistema penitenciário demanda investimento, sem que os resultados possam ser quantificados de maneira imediata (ou imediatista). Logo, a solução preconizada pela Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, foi a supressão do exame criminológico.22 Suprimiu-se, no mesmo passo, a possibilidade de superação do comportamentalismo como única fonte de conhecimento do comportamento no cárcere. “Empobreceu-se” o discurso criminológico; declarou-se a falência de uma empresa que nunca foi posta em atividade produtiva. Ainda que se pudesse defender a possibilidade de realização, ainda com base na novel previsão legislativa, do exame criminológico, permaneceriam algumas indagações: a) poderia, com base em exame cuja previsão de realização foi extirpada do texto legal, ser negada a progressão de regime, o livramento condicional etc.? b) haverá no sistema, dentro em breve, profissionais qualificados que o realizem?
3. Conclusão
O que se pretende demonstrar é que a LEP, na sua estrutura sistemática original (que para alguns era anacrônica, para outros até autoritária23), para o qual se preconizava (e se preconiza sempre) severa reformulação (para variar, com ares de inconstitucionalidade), jamais foi implementada.
O Estado concebe o preso como objeto de atenção paternalista, num pacto entre direção de estabelecimento e “liderança” de presos, que ditam as regras de um código particular de valores e que representam, na verdade, fator de dessocialização.
O bom comportamento carcerário pode representar adaptação às regras da prisão, que se distanciariam gradativamente das regras do convívio social em liberdade.
Por outro lado, em juízo, a execução penal permanece atrelada ao dado comportamentalista para concessão de benefícios, relegando à inutilidade os aspectos inerentes à personalidade do indivíduo e à sua efetiva possibilidade de integração social, como ato de vontade, intenção deliberada em incorporar valores sociais, morais e éticos – talvez por isso, por se distanciar do sistema estatal, o método APAC represente, atualmente, uma das poucas esperanças em favor do ideal de “ressocialização”.
No contexto da Execução Penal, o comportamentalismo aparece como referência à avaliação meritória do condenado para aquisição de benefícios legais. Quanto a esse aspecto, a supervalorização pragmática da abordagem comportamentalista, agora afirmada, também, com a supressão do exame criminológico, representa obstáculo à efetivação do ideal ressocializador da pena, haja vista que a exteriorização do comportamento carcerário, submetido a regras dessocializadoras, não corresponde ao comportamento que se espera, em liberdade, do condenado.
Sob certas condições, em contextos sociais fechados como a prisão, poderíamos admitir que a modificação do comportamento traga resultados, apesar da dificuldade em se admitir um modelo disciplinar (com todos os seus problemas e questionamentos políticos e constitucionais25) sem punição (art. 53, LEP) – mas raramente em contextos sociais abertos, naturais. A manutenção do comportamento modificado, após o retorno ao convívio social livre, encontraria sua limitação na própria estreiteza do método behaviorista.
A visão mecanicista do homem, como uma máquina que interage em termos de estímulo-resposta, a ignorância da reciprocidade entre o homem e a comunidade em que se insere; sua limitação, enfim, para controlar a multiplicidade de fatores externos que atuam sobre o indivíduo numa sociedade aberta, além da desconsideração de fatores introspectivos, revelam a limitação da vertente comportamentalista, quando posta em desequilíbrio com outros aspectos de relevo – como referência exclusiva ao estudo do sistema penitenciário enfim.
Parece urgente uma reflexão crítica (e na medida do possível infensa ao discurso demagógico) sobre a formação e desenvolvimento da argumentação jurídica em torno dos institutos da Execução Penal. Parece urgente, sobretudo, o reconhecimento de que as soluções para o problema da crescente criminalidade passam, antes, pela revolução do estudo e da pesquisa (empírica) criminológica no Brasil (e não no estudo dogmático, normativo e abstrato do Direito Penal!); incorporação dos diversos saberes (inter)disciplinares numa ciência plural, capazes de fomentar o desenvolvimento de alternativas à sistemática de execução da sanção penal; ou medidas capazes de estruturar um sistema que, além de mais humano, seja aplicado de verdade – de preferência com eficácia resolutiva!
Promotor de Justiça/MG; Professor de Direito Penal da Unileste/MG; Mestre em Ciências Penais pela UFMG.
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