Resumo: O presente artigo se propõe a analisar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicação aos grupos econômicos, tecendo a posição jurisprudencial e doutrinária acerca da matéria.
Palavras-chave: desconsideração; personalidade jurídica; grupos econômicos; confusão patrimonial.
Abstract: This article intends to analyze the disregard doctrine and its application in the business groups, including courts decisions and authors opinions about the subject.
Keywords: disregard doctrine; business groups; patrimonial confusion.
No direito brasileiro, para as sociedades limitada e anônima – maioria das sociedades constituídas para a exploração empresarial –, a limitação da responsabilidade dos sócios depende da personalização jurídica do ente coletivo. As pessoas naturais buscam a personalidade jurídica para realização de empreendimentos empresariais, limitando a sua responsabilidade.
Portanto, o ente personalizado é uma ficção jurídica instituída pela lei para suprir a inquietação humana. Permite que os empresários enfrentem os desafios e a incerteza inerentes à prática comercial. Para abrir um comércio ou uma indústria os sócios se expõem a riscos variados, que podem resultar em dilapidação patrimonial.
No Brasil, com o advento do Decreto 3.708 de 10/01/1919, que instituiu a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, inaugurou-se a regra da limitação da responsabilidade dos sócios ao valor total subscrito a título de capital social. Com esta limitação, criou-se a possibilidade de abuso da personalidade jurídica por parte dos sócios, por meio de excesso de poderes ou desvio de finalidade dos entes personalizados.
Portanto, podemos dizer que a personalidade da pessoa jurídica tem o efeito de escudo do patrimônio pessoal do sócio. A pessoa jurídica é uma máscara atrás da qual são ocultados os verdadeiros protagonistas das relações jurídicas, o que permite, em alguns casos de má-fé, o abuso do ente personalizado para blindar patrimônio pessoal e lesar credores.
Neste panorama, configurou-se terreno fértil para o surgimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, cuja origem é atribuída à evolução jurisprudencial ocorrida no Direito Anglo-Americano com dois precedentes consagrados pela doutrina como os primeiros casos de incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quais sejam, os casos State vs. Standard Oil Co. (julgado pela Suprema Corte do Estado do estado americano de Ohio em 1892) e Salomon vs. Salomon & Co. (julgado pela Câmara de Londres, na Inglaterra, em 1897).
Atualmente, a desconsideração da personalidade jurídica é positivada em nosso ordenamento jurídico, encontrando previsão no Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, na legislação ambiental, entre outros diplomas legislativos.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica permite ao juiz relevar a autonomia jurídica da empresa, com o objetivo de atingir o patrimônio pessoal dos sócios, toda vez que a sociedade tiver sido utilizada para fins ilegais ou que acarretem prejuízo a seus credores, tendo em vista que a personificação tem como limites a ocorrência da fraude e/ou do abuso de personalidade.
Nesse panorama, o juiz pode determinar a constrição sobre os bens dos sócios para pagar dívidas da empresa, ou também sobre os bens da empresa para pagar dívidas particulares dos sócios, ou, principalmente, sobre bens de uma empresa para pagar dívidas de outra empresa do mesmo grupo econômico.
Desconsiderando-se a personalidade jurídica, afasta-se a noção de limitação da responsabilidade dos integrantes da sociedade empresarial, pois a pessoa jurídica foi utilizada em desconformidade com o direito e em desrespeito ao princípio básico da autonomia do ente coletivo em relação aos seus integrantes.
No caso dos grupos econômicos, a doutrina denomina o procedimento para superar o véu da personalização de desconsideração indireta da personalidade jurídica, que é aquela que ocorre quando estamos diante da criação de constelações de sociedades coligadas, controladoras e controladas, e uma delas se vale dessa condição para fraudar seus credores. Deste modo, a desconsideração se aplica a toda e qualquer das sociedades que se encontre dentro do mesmo grupo econômico, para alcançar a efetiva fraudadora que está sendo encoberta pelos outros entes do agrupamento.
No caso de uma pessoa jurídica isolada, esta é o véu que encobre os sócios, que realizam ilícitos abusando da proteção conferida pela personalidade jurídica. Já no caso dos grupos econômicos, uma pessoa jurídica agrupada, ou mais de uma, serve como véu para encobrir os ilícitos cometidos pelas coligadas ou pela controladora.
A previsão legal para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica encontra-se no Código Civil, em seu art. 50, in verbis:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Nos termos do dispositivo acima, o abuso da personalidade se dá por desvio da finalidade e por confusão patrimonial. Em ambas as hipóteses está implícita a figura da fraude, a qual invariavelmente lesará os credores.
O desvio de finalidade ocorre quando a pessoa jurídica transborda as finalidades declinadas no seu ato constitutivo, extingue-se para se eximir de responsabilidades ou extingue-se irregularmente. A confusão patrimonial ocorre quando um ou todos os sócios constituem uma nova sociedade e para ela transferem os seus bens particulares com o objetivo de lesar seus credores.
Na seara dos grupos econômicos, há autores que defendem que a confusão patrimonial e o controle de uma empresa sobre a outra seria elemento inerente aos agrupamentos, inclusive com permissão legal para ocorrer, eis que é da essência dos grupos societários o controle ou direção unitários e a utilização comum de móveis, imóveis e demais recursos, motivo pelo qual a desconsideração da personalidade jurídica não estaria autorizada nestes casos.
Pedimos venia, mas o argumento não pode subsistir. A confusão patrimonial que desautoriza a desconsideração da personalidade jurídica nos grupos econômicos é apenas a que não possui o móvel de dificultar a recuperação dos créditos dos credores, assim como o controle ou direção não podem ocorrer com abuso das disposições legais.
A ordem jurídica não pode aceitar a confusão patrimonial como inerente aos grupos econômicos, inibindo a desconsideração da personalidade jurídica dos entes agrupados, nos casos em que determinada empresa agrupada é praticamente esvaziada, lesando seus credores, ou nos casos em que imóveis são transferidos inúmeras vezes entre os entes agrupados, impossibilitando penhoras e satisfação de direitos creditórios.
Igualmente, a empresa responsável pelo controle ou direção não pode usar do seu poder para induzir a controlada a concluir negócios danosos, tomar decisões ou incorrer em omissões que lhe sejam prejudiciais. Tais previsões, inclusive, há tempo são positivadas no direito alemão.
A jurisprudência aceita sem maiores problemas a desconsideração da personalidade jurídica dos entes integrantes dos grupos econômicos como forma de proteção dos credores, pois o ordenamento jurídico não pode, sob o argumento de que a confusão patrimonial é inerente aos grupos, renegar o direito à análise da real intenção dos entes agrupados ao praticamente fundirem seus patrimônios.[1]
Portanto, podemos concluir que é legítima a desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora para que os efeitos da execução alcancem as demais sociedades agrupadas.
Em julgado mais recente, o Superior Tribunal de Justiça manteve o mesmo posicionamento, lavrando acórdão que consignou o entendimento de que a desconsideração da personalidade jurídica, no caso de grupos econômicos, deve ocorrer “quando verificado que a empresa devedora pertence a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, e, ainda, quando se visualizar a confusão de patrimônio, fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores”.[2]
Como podemos perceber, a desconsideração da personalidade jurídica não afronta a natureza dos grupos societários, pois a confusão patrimonial, quando usada de forma a provocar fraudes, abuso de direito e prejuízo a credores, não pode subsistir, ao contrário do que afirma parte da doutrina, para a qual a confusão patrimonial seria inerente à idéia de grupos econômicos.
Ainda, é importante ter em mente que a pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial que serve de estímulo ao empresariado, não podendo sofrer deturpações, pois ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (venire contra factum proprium). Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se justifica o Judiciário ter de respeitá-lo caso descumprido, transformando-o, destarte, numa regra unilateral. Desse modo, quem desrespeita a separação patrimonial conseqüente à personalização das sociedades não pode, depois, invocar essa mesma separação para pôr seus bens ao abrigo das execuções.
Em conclusão, afirmamos que caso não seja permitida a desconsideração, a manutenção da personalidade e a limitação de responsabilidade das sociedades agrupadas servem de barreira ao alcance dos responsáveis pelo controle e patrimônio, fraudando a legítima cobrança dos créditos existentes contra um ou mais sociedades agrupadas.
Em outras palavras, a manutenção do privilégio da separação patrimonial, quando as próprias empresas agrupadas não a respeitam, ofende não só os credores, mas o próprio Direito em si.
Procurador da Fazenda Nacional em Brasília – DF Pós-graduado em Direto Público. Pós-graduando em Direito Tributário.
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