Resumo: O artigo discute as diferentes concepções de justiça de transição à luz da doutrina internacional. É questionado em que medida é possivel avaliar os avanços e retrocessos da justiça de transição no Brasil.
A “justiça de transição” tornou-se tema recorrente no debate público brasileiro principalmente após a publicação do livro “Direito à Verdade e à Memória”[1], em 2007, resultado de 11 anos de trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. O livro recupera a história de 479 militantes políticos, que foram vítimas da ditadura militar no Brasil durante o período de 1961 a 1988. Desta forma o governo brasileiro admitiu de forma explícita a responsabilidade por crimes contra a humanidade cometidos de forma sistemática pelo regime ditatorial do passado.
Apesar do progresso promovido pela investigação oficial, o debate brasileiro acerca da responsabilidade em crimes contra dos direitos humanos está longe de se tornar página passada[2]. Neste sentido, a Carta de São Paulo[3], produto do Debate Sul-Americano sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes contra os Direitos Humanos, organizado pelo Ministério Público Federal de São Paulo considera que “a efetiva transição para a democracia republicana somente estará concluída quando houver a promoção da verdade e a responsabilização dos autores dos graves crimes cometidos durante a ditadura militar”, e conclui que o Ministério Público deverá perseguir a “atuação e provocação do sistema de justiça brasileiro para reverter o quadro de impunidade e esquecimento”. Não obstante, a Carta de São Paulo enfatiza o contexto regional: “as trasições democráticas na região se fizeram respeitando o direito coletivo ao conhecimento público das violações aos direitos humanos, mas o Brasil continua sendo uma penosa exceção”.
Com o fim da guerra fria, várias sociedades passaram por transições radicais, do regime ditatorial para a democracia na América Latina, do regime comunista para a democracia liberal no Leste Europeu, e do regime Apartheid para o regime democrático na África do Sul. Os diversos dilemas enfrentados por sociedades em transição, revelam os diferentes interesses e valores conflitantes, e os motivos que levam cada sociedade a adotar concepções distintas de justiça de transição[4].
A proposta deste artigo é avaliar as diferentes concepções de justiça de transição e a prática de diferentes sociedades à luz do debate nacional e internacional. A primeira parte deste artigo discute as principais concepções de justiça de transição existentes na doutrina internacional. A segunda parte discute brevemente a prática da justiça criminal de transição no contexto global e regional. Por fim, levando-se em conta a teoria e prática da justiça de transição no contexto regional e global, é questionado em que medida é possível avaliar os avanços e retrocessos do Brasil na transição da ditadura para a democracia?
I. As Diferentes Faces da Justiça de Transição
A justiça criminal de transição é comumente identificada como a principal resposta a crimes sistemáticos perpetrados por regimes ditatoriais. Tal concepção de justiça de transição, entretanto, revela apenas uma face das diferentes respostas possíveis, de maneira que o papel do Direito em períodos de mudança política pode ser explorado a partir das várias formas de ação: punição, investigação histórica, reparações, purificação, e constitucionalização. Assim, estas práticas podem oferecer uma maneira de tanto deslegitimar o regime político do passado, quanto legitimar seu sucessor ao estruturar a oposição política dentro da ordem democratizante.[5] De acordo com Ruti Teitel, há ao menos cinco concepções de justiça associadas à justiça de transição: a justiça penal, a justiça histórica, a justiça reparatória, a justiça administrativa e a justiça constucional de transição.[6]
Enquanto a justiça criminal e a justiça reparatória são consideradas comumente as principais expressões da justiça de transição, a investigação histórica e a narrativa desempenham papel importante na transição, ligando o passado ao presente. Recordes transicionais são incorporados ao legado repressivo do Estado, e o recorde traça uma linha que tanto redefine o passado quanto reconstrói a identidade política do Estado. A justiça histórica de transição ilumina a relação construtiva entre regimes da verdade e regimes políticos, clareando a relação dinâmica de conhecimento para o poder político. A justiça histórica pode ser alcançada através de “Comissões de Verdade”, as quais muitas vezes clamam pela realização da justiça criminal de transição. Além disso, os precedentes jurisprudenciais também se transformam em documentos históricos que revelam as injustiças cometidas pelo regime repressivo.
Além da justiça histórica, a justiça administrativa e o uso o Direito Público para redenifinir os parâmetros da qualidade de membro político, participação e liderança que constituem a comunidade política, também representam um modelo de justiça de transição. Mais do que outras respostas transicionais, medidas coletivas explícitas representam um desafio para a construção do Estado Democrático de Direito. A justiça administrativa ilumina o potencial distintivo do Direito para reestruturar a relação entre o individuo e a comunidade política em transição. Tais medidas de Direito Público definem novas condições limítrofes em uma base política explícita. Através da justiça administrativa, o Direito Público é utilizado para responder ao regime passado, e também para remodelar a ordem política sucessora[7].
Por fim, a justiça constitucional e o constitucionalismo transicional cumprem os propósitos do constitucionalismo constitutivo convencional, mas também cumprem propósitos transformativos. De acordo com Ruti Teitel “Enquanto nossas instituições são concebidas como textos fundadores voltados para o futuro; em períodos de mudanças políticas radicais, constituições são, ao invés de textos mediadores, simultaneamente voltadas para o passado e o futuro, compreendendo modalidades constitucionais e graus de incorporação variáveis.”[8] Neste sentido, o constitucionalismo transicional e a justiça criminal compartilham afinidades na relação de contigência que as normas protegidas carregam para o sistema anterior, bem como para a nova ordem política.
As diferentes concepções de justiça de transição procuram mediar dilemas intrisecos ao papel do direito na transição política radical. O direito deve garantir não apenas a justiça, mas também a ordem e a conciliação.[9]
II.Refexões sobre a Justiça Criminal de Transição
Historicamente, a justiça de transição é comumente associada com a punição e com os julgamentos dos ancien régimes. Os simbolos duraroudos das revoluções inglesa e francesa que marcam a transição da monarquia para o regime republicano são os julgamentos do Rei Charles I e Luís XIV. Na história contemporânea, os julgamentos de Nuremberg permanecem como monumento que marca a derrota nazista na Segunda Guerra Mundial. Com o fim da Guerra Fria, a onda de transições do regime não-democrático, na América Latina, Leste Europeu e África, revigorou o debate acerca da necessidade de punir no âmbito nacional[10]. A instauração de dois tribunais internacionais ah hoc para julgar crimes internacionais cometidos na ex-Iugoslávia e Ruanda, e a criação do Tribunal Penal Internacional revigoraram o debate pós-Nuremberg, estabelecendo novos precedentes no âmbito internacional. Segundo Ruti Teitel, o debate referente à justiça penal de transição é marcado por profundos dilemas: Punir ou anistiar? Quem deve ser responsabilizado pela repressão do passado? Em que medida a atribuição de responsabilidade é adequada ao indivíduo, em oposição ao coletivo, ao regime, e mesmo à sociedade como um todo?[11]
Tais dilemas não são de fácil solução, e em muitos casos a punição seletiva compromete o senso de justiça almejado pela justiça criminal de transição. A responsabilidade criminal individual deve ser aplicada a todos aqueles que cometeram crimes contra os direito humanos, ou somente aqueles envolvidos no comando devem ser responsabilizados criminalmente? Em alguns casos, as violações sistemáticas são tão duradouras e difundidas na sociedade, tal como no caso dos países dos Leste Europeu, que dificulta a responsabilidade criminal individual de todos os envolvidos, desde o mais baixo ao mais alto escalão do regime repressivo.[12] Em outros casos, como ocorreu na Argentina, foi preciso o transcurso de cerca de duas décadas até que fosse conquistada estabilidade necessária para promover o julgamento de oficiais do alto escalão da Junta argentina.[13]
No contexto Latino-Americano, a noção de justiça criminal de transição encontra-se interligada a evolução dos Direitos Humanos no Continente, e sobretudo influenciada pela jurisprudência da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos. No caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile (2006), a Corte afirmou que o Estado tem o dever de continuar a investigação de graves violações de direitos humanos, bem como o dever de persecução penal e punição dos responsáveis[14]. Na opinião concorrente, o jurista brasileiro e Juiz da CIDH Cançado Trindade afirmou que “apesar das circunstâncias relativas ao caso em espécie, é relevante focar um tipo específico de anistia: a chamada “auto-anistia”, que busca proteger aqueles responsáveis por graves violações dos direitos humanos do alcance da justiça, assim promovendo impunidade. Para iniciar, é importante relembrar que as leis verdadeiras não devem ser arbitrárias; as leis não devem proteger o nome daqueles que se encontram acima da lei. As leis incorporam principios, que formam e informam, e são apreendidos pela razão humana, isto é, possuem sua própria vida. Elas dão expressão a valores duradouros.”[15]
III – Conclusões: avanços e retrocessos da Justiça de Transição no Brasil
Apesar da afirmação contundente do Ministério Público Federal de São Paulo, e outros participantes da Carta de São Paulo, que o Brasil é uma penosa exceção no Continente, é possível observar a justiça de transição no Brasil sob perspectivas distintas. Enquanto a Constituição Federal de 1988 pode ser considerada como símbolo da justiça de transição administrativa e constitucional, a divulgação do livro “Direito à Verdade e à Memória”, e as reparações, iniciadas com a promulgação da Lei 9.140 (1995), são certamente expressões da justiça histórica e reparatória, respectivamente.
Todavia, a importância central da justiça criminal de transição na construção do Estado Democrático de Direito, bem como a importância desta concepção de justiça como símbolo da transição, sinalizando que ninguém está acima da lei, apontam os retrocessos da justiça de transição no Brasil. A principal mensagem avançada pela justiça criminal é o fim da impunidade, e neste sentido, a posição da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos é clara: os Estados tem o dever de investigar e punir violações de Direitos protegidos pela pela Convenção Inter-Americana de Direitos Humanos[16].
Professora de Direito Internacional na Escola Superior Dom Helder Câmara. Bacharel e Mestre em Direito pela PUC-MG, LLM com tese pela Faculdade de Direito Buchman da Universidade de Tel Aviv. Pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Direito Zvi Meitar (Fellowship, 2005-8). Advogada e Consultora Jurídica em Belo Horizonte.
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