Resumo: A presente pesquisa tem por fim analisar os parâmetros e limites da transmissibilidade causa mortis da obrigação de prestar alimentos. Através da analogia entre a legislação atual e dispositivos anteriores, das concepções jurisprudenciais e doutrinárias e da análise de sistemas estrangeiros, poderão ser verificadas diferentes perspectivas acerca do referido instituto, assim como a constatação da absoluta possibilidade de transmitir-se aos herdeiros do de cujus, o ônus alimentar, porém respeitando-se os pressupostos da necessidade do requerente e possibilidade do espólio deixado.
Palavras-chave: Transmissibilidade; Herdeiros; Obrigação alimentar; Necessidade; Possibilidade.
Abstract: This research aims to analyze the parameters and limits of transferability causa mortis of the obligation to pay maintenance. Through the analogy between the current legislation and earlier devices, the jurisprudential and doctrinal concepts and analysis of foreign systems, different perspectives can be checked on the referred institute, as well as finding the absolute ability to transmit to the heirs of de cujus, the food onus, but respecting the assumptions of necessity and possibility of the applicant's estate left.
Keywords: Transferability; Heirs; Maintenance obligation; Need; Possibility.
Sumário: Introdução 1 O dever de mútuo auxílio transformado em lei 1.1 Aporte histórico à obrigação de prover o sustento da família 1.2 A definição de alimentos e sua finalidade 1.3 O conteúdo da prestação alimentar 1.4 Os alimentos naturais e os alimentos civis 1.5 Os alimentos legítimos, os voluntários e os indenizatórios 1.6 Os alimentos provisórios, provisionais e os definitivos 1.7 Os meios para garantir o direito e o adimplemento da obrigação de prestar alimentos 2 O direito e a imposição do dever de alimentar 2.1 Os alimentos como um direito personalíssimo 2.2 Os alimentos como um direito essencial 2.3 Os alimentos como um direito impenhorável 2.4 Os alimentos como um direito incompensável 2.5 Os alimentos como um direito imprescritível 2.6 Os alimentos como um direito intransacionável 2.7 Os alimentos como um direito irrepetível 2.8 Os alimentos como um direito irrenunciável 2.9 Os alimentos como uma obrigação divisível 2.10 Os alimentos como uma obrigação condicional 2.11 Os alimentos como uma obrigação recíproca 2.12 Pressupostos da obrigação alimentar 2.12.1 A existência de vínculo de parentesco, casamento ou união estável 2.12.2 A necessidade do reclamante 2.12.3 A possibilidade da pessoa obrigada 2.12.4 A proporcionalidade 3 A transmissibilidade causa mortis da obrigação de prestar alimentos 3.1 Acepção do termo Sucessão 3.2 A transmissão da herança e o princípio da Saisine 3.3 Os alimentos como uma obrigação transmissível causa mortis 3.4 A responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do de cujus, Conclusão, Referências.
1 O DEVER DE MÚTUO AUXÍLIO TRANSFORMADO EM LEI
Os princípios que fundamentam a tipificação da obrigação alimentar é o da preservação da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade familiar, o primeiro é inato ao indivíduo que deve ter sua vida preservada em qualquer hipótese desde o momento de sua concepção, o segundo é intrínseco do vínculo de parentesco; trata-se da responsabilidade atribuída a cada membro de um grupo familiar de contribuir para o desenvolvimento dos demais.
Neste sentido, tratando do referido tema, Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 499) aduz:
“O dever de prestar alimentos funda-se na solidariedade humana e econômica que deve existir entre os membros da família ou os parentes. Há um dever legal de mútuo auxílio familiar, transformado em norma, ou mandamento jurídico.”
No entanto, é necessário ressaltar a diferença existente entre a obrigação de prestar alimentos dos deveres familiares, estes podem decorrer da mútua assistência existente entre cônjuges/companheiros ou do pátrio poder exercido pelos pais em relação aos filhos menores, já a obrigação alimentar decorre do mútuo auxílio familiar. Conforme o disposto acima preceitua Maria Helena Diniz (2009, p. 577):
“A obrigação alimentar é recíproca, dependendo das possibilidades do devedor, e só é exigível se o credor potencial estiver necessitado, ao passo que os deveres familiares não tem o caráter de reciprocidade por serem unilaterais e devem ser cumpridos incondicionalmente.”
Para Maria Helena Diniz (2009, p. 577), é incumbência do Estado a responsabilidade de amparar àqueles que, diante de uma situação excepcional, se encontra incapacitado de prover o seu próprio sustento, garantindo-lhe a vida, no entanto, diante do enorme crescimento das obrigações positivas do Estado e das suas limitações orçamentárias, o mesmo delegou este dever aos parentes, cônjuges e companheiros, a fim de garantir a dignidade da pessoa humana, instituindo assim, através de lei, o dever de solidariedade familiar.
1.1 Aporte histórico à obrigação de prover o sustento da família
Foi no direito romano que se observou as primeiras formas da obrigação alimentar, primeiramente elas foram verificadas nas relações de tutela, nas convenções, no patronato, nos testamentos, posteriormente é que verificou-se a aplicação deste instituto nas relações familiares (CAHALI, 2013, p. 41).
A aplicação da obrigação alimentar foi tardia pela própria estrutura da família romana. Segundo Cahali (2013, p. 41), o grupo familiar era organizado sob o princípio da autoridade, representado pelo pater familias que concentrava em si as prerrogativas de sacerdote, dirigente e magistrado, inclusive, possuindo o ius vitae et necis, ou seja, o direito de expor ou matar o filho, assim, o pater não tinha qualquer obrigação que o vinculasse aos seus dependentes.
Cahali (2013, p.41) ainda destaca que, naquela época, o vínculo existente entre os membros da família e o pater familias não se desfazia com o casamento, ou seja, o filho ao contrair matrimônio não constituía nova família, continuava sob sua autoridade. Todos eram extremamente dependentes (alieni juris), pois não possuíam qualquer tipo de autonomia ou capacidade patrimonial, assim, inexistia qualquer possibilidade de pretensão dos descendentes em desfavor do pai e deste para com os demais membros, mesmo que referida pretensão fosse de caráter alimentar.
Não há um marco histórico do momento em que se pode observar a exigibilidade do dever de prestar alimentos no âmbito das relações familiares, no entanto, gradativamente as relações consanguíneas adquiriram maior relevância na sociedade romana simultaneamente com significativas transformações dos deveres morais de assistência, assim, durante o império de Justiniano foi reconhecida a obrigação alimentar, conforme leciona Cahali (2013, p. 43):
“No direito justinianeu foi seguramente reconhecida uma obrigação alimentar recíproca entre ascendentes e descendentes em linha reta ao infinito, paternos e maternos na família legítima, entre ascendentes maternos, pai e descendentes na família ilegítima.”
O direito canônico foi introduzido no Brasil através da colonização Portuguesa, país onde a referida lei eclesiástica teve importante participação na elaboração das normas vigentes à época da descoberta das terras brasileiras. Foi no direito canônico que a conceituação da obrigação alimentar ganhou maior amplitude, atingindo não só as relações familiares, mas, também aquelas provenientes das relações espirituais e religiosas como o clericato, o monastério, a obrigação imposta entre padrinhos e afilhados ou ainda, no dever da igreja de prestar alimentos ao exilado. Neste sentido, preceitua Cahali (2013, p.44): “o direito canônico, em seus primeiros tempos, dilargou substancialmente o âmbito das obrigações alimentares, inclusive na esfera das relações extrafamiliares”
Foi neste mesmo período, sob a égide do direito canônico, que ocorreu o reconhecimento do dever alimentar entre os cônjuges e o reconhecimento do direito a alimentos para os filhos espúrios, sendo que, neste último, não havia a possibilidade de utilização da exceptio plurium concumbetium para privar o filho do direito alimentar, ou seja, não se podia alegar que a mãe do alimentado mantinha relações com outros homens. Assim, o direito canônico desempenhou um papel fundamental, ampliando o direito alimentar para aqueles que encontravam-se desprotegidos pelas leis (CAHALI, 2013, p. 44).
Atualmente, cada país disciplina o instituto dos alimentos de acordo com seus costumes e tradições, adequando-o à sua própria realidade. No Brasil, as Ordenações Filipinas, permaneceram vigentes até a promulgação do Código Civil de 1916, e apesar da sua codificação ter ocorrido no ano de 1603, seus textos já apresentavam disposições significativas acerca da responsabilidade alimentar, como por exemplo, o que instituía a proteção orfanológica (CAHALI, 2013, p. 45).
Acerca do tema, Gonçalves (2012, p. 32), assim destaca:
“É notório que o nosso direito de família foi fortemente influenciado pelo direito canônico, como consequência principalmente da colonização lusa. As Ordenações Filipinas foram a principal fonte e traziam a forte influência do aludido direito, que atingiu o direito pátrio”.
O Código Civil de 1916 estabeleceu a obrigação alimentar entre cônjuges e companheiros em consequência do dever de mútua assistência e socorro, assim como nas relações entre pais e filhos está presente o dever de sustento, guarda e educação e entre parentes o da solidariedade familiar. Posteriormente, inúmeras leis extravagantes foram editadas a respeito do tema, tivemos assim a Lei de Proteção à Família, o Estatuto dos Funcionários Públicos, a Lei do Divórcio, a Lei que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, a Lei que regula o direito dos companheiros aos alimentos e à sucessão, entre outras, surgindo assim, a necessidade de sistematização do instituto em um único documento, de forma a viabilizar a sua efetividade (CAHALI, 2013, p.46).
Todavia, apesar da referida necessidade, o Código Civil de 2002 não contemplou as questões controversas existentes no código anterior, seja pelo enorme tempo decorrido entre a proposta de lei e a promulgação do novo código, seja pelas constantes inovações na legislação familiar, permanecendo omisso em relação aos alimentos devidos nos casos de divórcio-repúdio direto; igualando cônjuges e companheiros aos parentes, na impossibilidade de renunciar aos alimentos; permitindo a transmissibilidade sucessória da obrigação alimentar ou ainda exigindo a averiguação de culpabilidade quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.
1.2 A definição de alimentos e sua finalidade
A definição de alimentos segundo Orlando Gomes (apud GONÇALVES, 2012, p. 498): “são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si; tem por finalidade fornecer a um parente, cônjuge ou companheiro o necessário à sua subsistência”.
Neste sentido Cahali (2013, p. 15) aduz que:
“O ser humano, por natureza, é carente desde a sua concepção; como tal, segue o seu fadário até o momento que lhe foi reservado como derradeiro; nessa dilação temporal, mais ou menos prolongada, a sua dependência dos alimentos é uma constante, posta como condição de vida”.
Apesar de a lei resguardar a subsistência daquele que está impossibilitado de provê-las por si, não se verifica no Código Civil de 2002, especificamente no capítulo destinado aos alimentos, qualquer definição da abrangência do conteúdo da obrigação alimentar.
No entanto, por interpretação analógica, referida omissão foi suprimida pelo conteúdo disposto no art. 1.920 do referido código, ao tratar do legado dispondo que “o legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor”; trata-se de institutos de mesma natureza, que visam a conservação do indivíduo e a preservação da sua dignidade.
É irrefutável o interesse público em garantir a efetividade do adimplemento da obrigação alimentar, pois, o seu descumprimento contribui significativamente para o aumento do número de pessoas dependentes do amparo assistencial do Estado, que diante das suas limitações orçamentárias, não será capaz de garanti-lo. Neste sentido preleciona Diniz (2009, p. 577):
“Há uma tendência moderna de impor ao Estado o dever de socorrer os necessitados, através de sua política assistencial e previdenciária, mas com o objetivo de aliviar-se desse encargo, o Estado o transfere, mediante lei, aos parentes daqueles que precisam de meios materiais para sobreviver, pois os laços que unem membros de uma mesma família impõem esse dever moral e jurídico”.
Destarte, a obrigação alimentar fundamenta-se na solidariedade familiar e na preservação da dignidade da pessoa humana, logo, deve satisfazer as necessidades elementares para uma vida em sociedade, garantindo o desenvolvimento físico, intelectual e moral daquele que não pode prover a própria subsistência.
1.3 O conteúdo da prestação alimentar
No ordenamento jurídico, os alimentos possuem ampla significação, pois não se referem somente à obrigação que deverá ser prestada, mas também, ao seu conteúdo, o qual deverá compreender todo o necessário para o sustento, cura, vestuário, casa, educação e até mesmo o sepultamento, conforme preveem os arts. 872 c/c 1.920 do atual Código Civil.
Do mesmo modo, o Código Português em seu art. 2003 estatui que:
“Por alimentos entende-se tudo que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, compreendendo também a instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor”.
Neste sentido, Martinho Garcez Filho (apud CAHALI, 2013, p. 16) preleciona: “constituem os alimentos uma modalidade de assistência imposta por lei, de ministrar os recursos necessários à subsistência, à conservação da vida, tanto física como moral e social do indivíduo”.
A prestação alimentar deve ser capaz de suprir todas as necessidades intrínsecas do homem, sejam elas de caráter físico, moral ou intelectual, deste modo, deve compreender a alimentação, moradia, educação, tratamento médico, remédios, lazer, profissionalização, vestuário e demais necessidades que eventualmente lhe possa suceder, pois, a ausência dos elementos necessários à sua manutenção não pode ser a justificação da supressão do seu completo desenvolvimento.
1.4 Os alimentos naturais e os alimentos civis
O art. 1.694 do CC/02 articulado com o seu parágrafo 2º, estatuiu o conceito e a distinção entre alimentos naturais e civis, senão vejamos:
“Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
Parágrafo 2º. Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de quem os pleiteia.”
Deste modo, os alimentos naturais são aqueles destinados a assegurar somente o essencial à subsistência de quem os pleiteia, compreendendo tão somente a alimentação, cura, habitação, vestuário, ou seja, somente o mínimo capaz de garantir a preservação da vida do credor.
De maneira diversa, os alimentos civis visam garantir o padrão de vida e a condição social do alimentado, porém, de acordo com as possibilidades da pessoa obrigada. Logo, os alimentos civis garantem muito além dos elementos essenciais à preservação da vida, eles garantem todo o necessário para o completo desenvolvimento físico, moral e intelectual daquele que os pleiteia.
Consoante preleciona Silvio de Salvo Venosa (2009, p.352):
“Os alimentos naturais ou necessários são aqueles que possuem alcance limitado, compreendendo estritamente o necessário para a subsistência; alimentos civis ou côngruos, os que incluem os meios suficientes para a satisfação de todas as outras necessidades básicas do alimentando, segundo a possibilidade do obrigado.”
O atual diploma civil estabeleceu a distinção entre alimentos naturais e civis ao consignar acerca da conduta culposa daquele que se encontra em situação de necessidade, prescrevendo à estes, somente o necessário à sua subsistência. Por conseguinte, na inexistência da referida conduta, os alimentos deverão resguardar a educação e a condição social do alimentado.
1.5 Os alimentos legítimos, os voluntários e os indenizatórios
Existem distinções quanto à causa jurídica dos alimentos legítimos, voluntários e indenizatórios. Os alimentos legítimos são aqueles decorrentes de uma determinação legal, seja pelo vínculo consanguíneo, de relação familiar ou em decorrência da união estável ou matrimônio; são os únicos inseridos no direito de família, portanto, diferentemente dos demais, são os únicos a permitir a prisão civil do devedor (GONÇALVES, 2012, p.502).
Os alimentos voluntários, por sua vez, decorrem da manifestação de vontade daquele que, apesar de não ser onerado legalmente com a obrigação alimentar, demonstrou interesse em fornecê-los; poderão decorrer de atos inter vivos, contratualmente, ou causa mortis, através de testamentos e sob a forma de legado, conforme prevê o art. 1920 do Código Civil (CAHALI, 2013, p.21).
A constituição dos alimentos voluntários, conforme preceitua Gonçalves (2012, p. 503) pode se dar por meio de renda vitalícia, onerosa ou gratuita; do usufruto; de um capital vinculado ou na exigência comportamental de uma das partes em relação à outra, conforme se verifica nos contratos de doação, em que ocorrerá a revogação das doações, caso o donatário se recuse a fornecer ao doador os alimentos de que necessita, salvo nos casos em que não puder ministrá-los (art. 557, IV CC).
Por fim, os alimentos indenizatórios são aqueles oriundos da prática de um ato ilícito; objetiva compensar os danos sofridos em virtude da conduta delitiva, conforme exposto no art. 948, II e 950 do Código Civil, preservando assim, o caráter obrigacional, típico das obrigações alimentares que tem como causa a atividade humana.
Destarte, diversas são as causas que podem ocasionar a obrigação alimentar, inviabilizando a regulamentação unitária do referido instituto, visto que não conseguiria alcançar todas as situações originárias da obrigação.
Quanto à diversidade de causas que originam a prestação alimentar, preleciona Cahali (2013, p. 23):
“Neste campo, mais do que em outro, se não se reconhece a existência de uma disciplina unitária para as obrigações alimentares resultantes de diversas causas (o que, efetivamente, mostra-se inviável), admite-se, pelo menos, uma certa migração normativa entre os vários ramos do direito, com fulcro na analogia justificada pela unicidade na destinação do benefício.”
Deve-se ressaltar que o direito obrigacional e sucessório podem se utilizar das normas que regem os alimentos legítimos, no entanto, a bilateralidade entre esses ramos é inexistente, pois, a recíproca não é verdadeira. Neste sentido, Pontes de Miranda (apud CAHALI, 2013, p. 26), estabelece que: “do dever de alimentar deriva o direito a alimentos, pessoal, razão por que não se podem invocar regras jurídicas do direito das obrigações, analogicamente”.
Corroborando este entendimento, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a pensão alimentícia decorrente de ato ilícito também integra o conjunto de exceções à regra geral da impenhorabilidade dos bens de família, e não apenas as obrigações fundadas na solidariedade familiar, assim os bens de família poderão ser penhorados para pagamento de dívida alimentar de caráter indenizatório, senão vejamos:
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. AÇÃO REPARATÓRIA POR ATO ILÍCITO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ONOPONIBILIDADE DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA.
O comando do artigo 3º, III, da Lei nº 8.009/90, excepcionando a regra geral da impenhorabilidade do bem de família, também se aplica aos casos de pensão alimentícia decorrente de ato ilícito – acidente de trânsito em que veio a falecer o esposo da autora -, e não apenas àquelas obrigações pautadas na solidariedade familiar, solução que mostra mais consentânea com o sentido teleológico da norma, por não se poder admitir a proteção do imóvel do devedor quando, no pólo oposto, o interesse jurídico a ser tutelado for a própria vida da credora, em função da necessidade dos alimentos para a sua subsistência.
Recurso especial provido.” (Recurso Especial nº 437144, Terceira Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Ministro Castro Filho, Julgado em 07/10/2003).
1.6 Os alimentos provisórios, provisionais e os definitivos
Alimentos definitivos ou regulares são aqueles estabelecidos pelo juiz em sentença ou provenientes do acordo entre as partes, devidamente homologado; são periódicos e permanentes, no entanto, embora haja o trânsito em julgado da referida decisão, sujeita-se à revisão judicial, tendo em vista a possibilidade da ocorrência de fatos supervenientes que intervenham diretamente na concessão do direito alimentar ou no quantum da decisão proferida (GONÇALVES, 2012, p. 504).
Em relação aos alimentos definitivos preleciona Gonçalves (2012, p. 504) que: “são os de caráter permanente, estabelecidos pelo juiz na sentença ou em acordo das partes devidamente homologado, malgrado possam ser revistos”.
No que concerne aos alimentos provisionais e provisórios, ambos possuem uma mesma finalidade, qual seja, assegurar a subsistência do requerente durante o curso do processo, incluindo as custas processuais e honorários advocatícios. Os alimentos provisórios são deferidos em sede de liminar nas ações de alimentos, exigindo-se para tanto, tão somente o devido requerimento e apresentação das provas pré-constituídas da relação de parentesco, matrimônio ou união estável, não sendo cabível qualquer análise discricionária do magistrado para o seu deferimento (GONÇALVES, 2012, p. 504).
Na lição de Gonçalves (2012, p. 504) os alimentos provisionais são deferidos quando demonstrados o fumus boni jures e o periculum in mora, em sede de medida cautelar preparatória ou incidental, nas ações de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento ou ainda na ação de alimentos, não se exige para a propositura da ação a constituição de prova pré-constituída, somente a demonstração da existência dos requisitos essenciais para o deferimento de medida cautelar constantes no art. 801 e 854 do Código de Processo Civil, senão vejamos:
“Art. 801. O requerente pleiteará a medida cautelar em petição escrita, que indicará:
IV- a exposição sumária do direito ameaçado e o receio da lesão.
Art. 854. Na petição inicial, exporá o requerente as suas necessidades e as possibilidades do alimentante.”
Apesar da divergência verificada entre a Lei de Alimentos e a Lei que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, acerca do momento em que os alimentos serão devidos, os alimentos deverão retroagir à data da citação, isto, em obediência ao Princípio Constitucional da Igualdade entre todos os filhos, à Súmula 277 do Superior Tribunal de Justiça e ao art. 13, § 2º da Lei 5.478, de 25 de julho de 1968. A respeito do tema, preceitua Gonçalves (2012, p. 505):
“Fixar-se-ão os provisionais somente na sentença, a partir de quando serão devidos, mesmo que tenha havido recurso. Entretanto, a isonomia imposta pela Constituição Federal torna-os devidos a contar da citação, pois atribuem-se aos filhos nascidos fora da relação de casamento os mesmos direitos concedidos aos nascidos das justas núpcias. Incide assim, de tal modo, também em relação àqueles a regra do art. 13, § 2º, da Lei Federal n. 5.478, de 1968, segundo o qual os alimentos retroagem à data da citação”.
Ainda, neste sentido dispõe a Súmula 277 do STJ: “Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação”.
Como característica comum das ações cautelares, os alimentos provisionais são passíveis de modificação ou revogação, pois, fatos supervenientes ao deferimento da medida podem fazer cessar a necessidade da obrigação alimentar ou podem justificar alterações no quantum dos alimentos, assim, o juiz deverá atentar-se à exequibilidade da decisão proferida.
Saliente-se que a própria lei, por diversas vezes, não discerne entre alimentos provisórios e provisionais, em virtude da sua ínfima distinção procedimental, senão vejamos:
“Art. 7º da Lei 8.560/92
Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.
Art. 22 da Lei 11.340/06
Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.”
Neste sentido, versa Cahali (2013, p. 26):
“Dizem-se provisionais, provisórios ou in litem os alimentos que, precedendo ou concomitantemente à ação judicial de divórcio, de nulidade ou anulação de casamento, ou ainda à própria ação de alimentos, são concedidos para a manutenção do suplicante na pendência do processo, compreendendo também o necessário para coibir as despesas da lide.”
E ainda, Venosa (2009, p. 357):
“Quanto à finalidade, denominam-se alimentos provisionais ou provisórios aqueles que precedem ou são concomitantes a uma demanda de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento, ou mesmo ação de alimentos”.
Logo, entende-se que, sejam denominados provisórios ou provisionais, ambos, possuem o mesmo fim, a saber, fornecer ao requerente o suficiente para sua mantença até o deferimento dos alimentos definitivos, garantindo-lhe a subsistência durante o curso do processo.
1.7 Os meios para garantir o direito e o adimplemento da obrigação de prestar alimentos
O Estado é o principal interessado em garantir o adimplemento da obrigação alimentar, pois, quando inexiste a regularidade da prestação, um crescente número de pessoas passam a depender da sua tutela assistencial, onerando-o ainda mais em suas obrigações. Assim, vários são os meios que podem ser utilizados pelo credor, de modo a assegurar a efetividade do seu direito aos alimentos, dentre eles, verifica-se a prisão civil do devedor.
A ação de alimentos, a execução e a prisão civil do devedor inadimplente são os principais instrumentos jurisdicionais utilizados para garantir o adimplemento da obrigação. O foro competente para ajuizamento da ação de alimentos é do domicílio do alimentando, conforme aduz art. 100 do Código de Processo Civil; o rito a ser seguido é especial, consoante art. 1º da Lei nº 5.478/68; tratam-se de exceções ao procedimento comum, de modo a viabilizar a concessão da tutela jurisdicional e garantir a vida e dignidade daquele que as pleiteia (DINIZ, 2009, p. 611).
O direito aos alimentos é imprescritível, pois enquanto vivo, o alimentante poderá pleiteá-los judicialmente, no entanto, se proferida sentença determinando o quantum da prestação, o prazo prescricional para cobrança das parcelas em atraso será de dois anos; referido prazo não incide quando o credor é menor absolutamente incapaz, ascendente ou descendente sob o exercício do pátrio poder, conforme exposto nos arts. 206,§2º, 197, II e 198, I, do Código Civil (GONÇALVES, 2012, p. 564).
A lei prevê ainda a intervenção do Ministério Público e o momento em que deverá ser ofertada a proposta de conciliação entre as partes; os alimentos fixados na sentença serão devidos a partir da citação do devedor, pois de outro modo, perderia sua finalidade, a de prover a subsistência (GONÇALVES, 2012, p. 567).
Os arts. 732 a 735 do Código de Processo Civil preveem acerca da execução da prestação alimentícia, incluindo a possibilidade da decretação da prisão do devedor, senão vejamos:
“Art. 733. Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em três dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá‑lo.
§ 1º se o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar‑lhe‑á a prisão pelo prazo de um a três meses.”
Por tratar-se de medida extrema, em que pese a restrição da liberdade do devedor, outras formas de cobrança da dívida alimentar foram previstas, de modo a viabilizar o adimplemento das parcelas em atraso, evitando, por conseguinte a decretação de prisão. O desconto em folha de pagamento; a reserva de aluguéis de prédio; a constituição de garantia real, fidejussória ou de usufruto ou até mesmo a expropriação são exemplos de instrumentos viáveis ao adimplemento da obrigação. Corroborando este entendimento, preleciona Gonçalves (2012, p. 564):
“Trata-se de exceção ao princípio segundo o qual não há prisão por dívidas, justificada pelo fato de o adimplemento da obrigação de alimentos atender não só o interesse individual, mas também ao interesse público, tendo em vista a preservação da vida do necessitado, protegido pela Constituição Federal, que garante a sua inviolabilidade.”
Apesar da incongruência existente entre a Lei de Alimentos e o Código de Processo Civil, que prescrevem prazos diversos para a prisão civil, o entendimento é de que deverá prevalecer o prazo de sessenta dias, por tratar-se de norma especial, prevista na Lei 5.478/68 e por ser mais benéfica ao réu (GONÇALVES, 2012, p. 568).
Ao cumprir o período de prisão, o devedor não se exime da dívida contraída, devendo adimpli-las em sua totalidade, no entanto, a sansão não poderá ser novamente imposta quando tiver por fundamento as mesmas parcelas em atraso, contudo, a decisão que decretar nova prisão será legítima caso ocorra o inadimplemento de outras prestações que se vencerem (GONÇALVES, 2012, p. 571).
A prisão referente ao débito alimentar visa constranger o devedor a adimplir com as parcelas em atraso, provendo as necessidades imediatas do credor alimentício, desta forma, o cumprimento do período de encarceramento, não elide a dívida. Nesta linha, escreve Cahali (2013, p. 735):
“Prende-se o executado não para puni-lo, como se criminoso fosse, mas para força-lo indiretamente a pagar, supondo-se que tenha meios de cumprir a obrigação em queira evitar sua prisão, ou readquirir sua liberdade”.
Em função do seu caráter excepcional, a prisão civil somente poderá ser decretada, caso se verifique a inadimplência das três últimas parcelas, uma vez que, a restrição da liberdade tem por escopo garantir que as necessidades atuais de credor sejam supridas. O Superior Tribunal de Justiça, em sua Súmula nº 309, prescreve que:
“O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”.
No entanto, caso o inadimplemento das parcelas persista mesmo após o cumprimento da prisão, nada obsta que o credor opte pelo prosseguimento da execução por quantia certa, de modo a ver a dívida alimentar totalmente adimplida (GONÇALVES, 2012, p. 565).
2. O DIREITO E A IMPOSIÇÃO DO DEVER DE ALIMENTAR
Os indivíduos necessitam de assistência, amparo e socorro para que possam desfrutar da vida em sua plenitude. Essas necessidades, inatas aos seres humanos, são percebidas desde o momento da concepção até o instante da morte, todavia, em proporções distintas, a depender do momento em que ocorrem.
O desígnio comum do ser humano é tornar-se independente e inteiramente responsável pela satisfação das próprias necessidades, entretanto, vários fatores podem concorrer, ou não, para que esse fim seja alcançado. O acometimento por doenças, desemprego, ausência de capacitação profissional, analfabetismo, acidentes ou qualquer outro fato danoso, são meros exemplos que podem prejudicar o completo desenvolvimento físico, mental e intelectual do indivíduo.
Diante dessas limitações, o indivíduo, que em momento anterior, era completamente capaz de prover-se por si, retorna ao estado de dependência, necessitando de amparo e assistência.
O Estado é o ente constitucionalmente incumbido de garantir a vida, assim, é o primeiro convocado a suprir as necessidades daquele que está incapacitado de provê-las sozinho, no entanto, diante da amplitude de suas obrigações e consequentes limitações, delega tal encargo àqueles que, por um enlace familiar, compartilham de um vínculo afetivo mais forte, tornando elementar o adimplemento da obrigação alimentícia (DINIZ, 2009, p. 577).
2.1 Os alimentos como um direito personalíssimo
Os alimentos têm por finalidade fornecer todo o conteúdo necessário à subsistência daquele que os pleiteia, garantindo-lhe o necessário para sua formação física, mental e intelectual, resguardando-lhe assim, a vida. Neste sentido, leciona Dias (2005, p. 450):
“O direito a alimentos não pode ser transferido a outrem, na medida em que visa a preservar a vida e assegurar a existência do indivíduo que necessita de auxílio para sobreviver”.
E ainda, Gonçalves (2012, p. 519): “A sua qualidade de direito da personalidade é reconhecida pelo fato de se tratar de um direito inato tendente a assegurar a subsistência e integridade física do ser humano”.
Deste modo, trata-se de direito personalíssimo, insuscetível de transmissibilidade, devido à particularidade intrínseca das suas características.
2.2 Os alimentos como um direito incessível
A finalidade dos alimentos é de sustento, sem a qual, não pode o credor subsistir, dessarte, os alimentos não podem ser objeto de cessão, pois, de maneira oposta, violaria sua própria natureza. O art. 1.707 do CC/02, assim prescreve: “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”.
Neste sentido, prescreve Venosa (2009, p. 359): “Sua titularidade não se transfere, nem se cede a outrem. Embora de natureza pública, o direito é personalíssimo, pois visa preservar a vida do necessitado”.
No entanto, no tocante às prestações vencidas, elas já não possuem a capacidade de alcançar o fim da norma, a saber, a preservação da vida do credor, pois o mesmo conseguiu sobreviver, neste ínterim, sem a devida assistência do devedor, logo, pode ser objeto de cessão, pois trata-se de crédito comum (GONÇALVES, 2012, p. 520).
Nesta esteira preleciona Gonçalves (2012, p. 520):
“O crédito constituído por pensões alimentares vencidas é considerado um crédito comum, já integrado ao patrimônio do alimentante, que logrou sobreviver mesmo sem tê-lo recebido. Pode assim ser cedido”.
Destarte, a incessibilidade dos alimentos visa assegurar que o alimentando seja integralmente amparado em suas necessidades, sem que outrem, porventura, esteja sendo beneficiado em virtude do pensionamento realizado pelo credor, pois, assim como não é possível ceder as próprias necessidades vitais, impossível também é a cessão dos recursos que visam suprir referidas necessidades.
2.3 Os alimentos como um direito impenhorável
Como característica decorrente da natureza pessoal do direito alimentar, o crédito alimentar é impenhorável, pois, é inadmissível comprometer o sustento do alimentando com o escopo de adimplir as dívidas contraídas pelo mesmo.
Acerca do tema, ensina Cahali (2013, p.86):
“Tratando-se de direito personalíssimo, destinado o respectivo crédito à subsistência da pessoa alimentada, que não dispõe de recursos para viver, nem pode prover às suas necessidades pelo próprio trabalho, não se compreende possam ser as prestações alimentícias penhoradas; inadmissível, assim, que qualquer credor do alimentando possa privá-lo do que é estritamente necessário à sua subsistência”.
Há de se mencionar que a impenhorabilidade dos alimentos está preconizada nos arts. 649, IV in fine do Código de Processo Civil e 1.707 do CC/02, senão vejamos:
“Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
IV, in fine. As quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família.
Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora” (grifo nosso).
Quanto às prestações vencidas, por tratar-se de crédito comum, existem posicionamentos que sustentam que não há qualquer óbice quanto à sua penhorabilidade, no entanto a matéria não está disciplinada (CAHALI, 2013, p. 87).
2.4 Os alimentos como um direito incompensável
A incompensabilidade dos alimentos advém, como forma de proteção àqueles que se encontram em situação de devedores do alimentante, garantindo-lhes que este, não denegue o pagamento das prestações alimentícias, em virtude da dívida contraída, garantindo, portanto, o sustento e a mantença do alimentando.
Ensina-nos Gonçalves (2009, p. 327) que:
“Compensação é o meio de extinção de obrigações entre pessoas que são, ao mesmo tempo, credor e devedor uma da outra. Acarreta a extinção de duas obrigações cujos credores são, simultaneamente, devedores um do outro. É modo indireto de extinção das obrigações, sucedâneo do pagamento, por produzir o mesmo efeito deste”.
Para Cahali (2013, p.90), o princípio da não compensação da dívida alimentar deve ser aplicado ponderadamente, para que dele não resulte eventual enriquecimento sem causa por parte do beneficiário. Neste mesmo sentido tem reconhecido a jurisprudência, ao permitir a compensação, nas prestações vincendas, de valores pagos a mais, entendendo tratar-se de mero adiantamento a ser considerado nas prestações futuras (GONÇALVES, 2012, p. 522).
Ratificando esse entendimento o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR, 2ª Câm. Cív., 22.10.1986, Rel. Negi Calixto, RT 616/147) reconheceu espécie de compensação, matéria repugnada pela doutrina ao tratar de alimentos, no entanto, no caso em questão, o pai desejava ver reconhecidos os adiantamentos que ele prestava para estadia e estudos da filha na Inglaterra, em contraposição ao desejo da mãe, que pretendia que o pai continuasse a depositar a pensão alimentícia em juízo, além da remessa de dinheiro que mandava ao estrangeiro. Assim, reconheceu-se que o pai não estava desvirtuando ou desviando a pensão devida, pois continuava a sustentar a filha na sua estadia e estudos na Inglaterra, desta forma, entendeu-se que não se tratava de compensação, mas, sim, de espécie de adiantamentos feitos à filha (CAHALI, 2013, p. 91).
2.5 Os alimentos como um direito imprescritível
Mesmo quando presentes os pressupostos legais que concedem o direito aos alimentos, a legislação vigente não menciona prazo prescricional para o seu exercício, até mesmo porque, seria uma tarefa inexequível, precisar o momento exato do surgimento dos referidos pressupostos, a saber, a necessidade do requerente e a possibilidade do requerido. No entanto, prescreve em dois anos a pretensão de cobrar as prestações fixadas em sentença ou estabelecidas em acordo, quando vencidas e não pagas (GONÇALVES, 2012, p. 522).
Tratando do referido tema, Venosa (2009, p. 361, grifo do autor) assim dispõe:
“A necessidade do momento rege o instituto e faz nascer o direito à ação (actio nata). No entanto, uma vez fixado judicialmente o quantum, a partir de então inicia-se o lapso prescricional”.
Preconizam os arts. 197, II e 198, I, ambos do atual Código Civil que não correrá prescrição entre ascendentes, descendentes, durante o exercício do poder familiar e ainda contra os incapazes, impedindo nestes casos, que ocorra a aplicabilidade do prazo prescricional anteriormente citado (arts. 197, II e 198, I, CC/02).
2.6 Os alimentos como um direito intransacionável
Os alimentos tem por escopo a subsistência do alimentando, preservando-lhe a vida, desta forma é defeso ao credor alimentício renunciar a esse direito por sua própria volição, pois existe um óbice legal que o impede.
Acerca do tema, ensina Clóvis (apud CAHALI, 2013, p. 92):
“Embora seja indisponível o direito aos alimentos devidos por lei, consideram-se perfeitamente válidas as convenções estipuladas entre as partes com vistas a fixação da pensão, presente ou futura, e ao modo de sua prestação.”
No entanto, adverte Gonçalves (2012, p. 522) que a referida regra é aplicada somente ao direito de pedir alimentos, uma vez que a jurisprudência admite a transação das prestações vencidas e vincendas.
2.7 Os alimentos como um direito irrepetível
A irrepetibilidade dos alimentos se funda no caráter de subsistência do alimentando. Verifica-se que a pensão fornecida, tem por fim alimentar o credor, desta forma, impossível seria impor a sua restituição, destarte, ainda que a ação principal seja julgada improcedente ou que o quantum da prestação seja reduzido, a sua restituição não procede. Referida decisão possuirá efeito apenas ex nunc (DIAS, 2005, p. 452).
Nesta esteira, aduz Dias (2005, p. 452):
“A própria natureza dos alimentos justifica, por si só, a impossibilidade de serem restituídos. Por isso, a alteração, para menor, do valor da pensão não dispõe de efeito retroativo. Passa a vigorar tão-somente com referência aos valores vincendos.”
No entanto, a repetição tem sido admitida, excepcionalmente, nos casos de evidente erro ou dolo em seu recebimento, a fim de evitar o enriquecimento sem causa do alimentando (GONÇALVES, 2012, p. 523).
2.8 Os alimentos como um direito irrenunciável
Ao tratar acerca da irrenunciabilidade dos alimentos, o art. 1.707 do CC/02 aduz que: “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”. Referido artigo consubstancia o fim da norma, qual seja, a preservação da vida daquele que não é capaz de provê-los por si, assim, pode o credor não exercer o direito, no entanto, não poderá renunciá-lo, por tratar-se de direito indisponível, tutelado pelo Estado; todavia, no tocante às prestações vencidas e não pagas, estas poderão ser objeto de renúncia, visto que a lei prevê o não exercício do direito aos alimentos (GONÇALVES, 2012, p. 524).
O questionamento a ser feito acerca do tema é se o referido artigo aplica-se aos divorciados frente à Súmula 359 do STF que assim aduz: “No acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser renunciados ulteriormente”. Acerca do tema, ensina Francisco José Cahali (apud GONÇALVES, 2012, p. 527):
“Que a possibilidade de buscar os alimentos no rompimento matrimonial encontra seu limite no divórcio das partes, permitindo-se o exercício da pretensão apenas pelos separados judicialmente (e não divorciados), se não estabelecida anteriormente a obrigação no acordo ou decisão da separação ou do divórcio.”
Apesar das controvérsias existentes, para Gonçalves (2012, p.525), referida súmula não tem aplicabilidade aos divorciados, tendo em vista que com o divórcio extingue-se o vínculo conjugal, ou seja, extingue-se um dos pressupostos essenciais para que alguém possa ser considerado credor, logo, torna-se impossível a renúncia de um direito que não se possui.
2.9 Os alimentos como uma obrigação divisível
Diferentemente do caráter solidário, que decorre da lei ou ainda do acordo entre as partes, os alimentos tem como característica a divisibilidade, logo, havendo mais de um devedor, cada um responderá com a sua quota parte, a fim de cumprir com a obrigação. O credor alimentício poderá optar por acionar em juízo apenas um, ou todos os codevedores, no entanto, cada um será responsabilizado apenas por sua quota parte, não sendo possível efetuar a cobrança, em sua totalidade, de apenas um dos devedores (GONÇALVES, 2012, p. 512).
Ao tratar do referido tema, prevê o art. 1.698, segunda parte do CC/02 que “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todos devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas para integrar a lide”. A despeito da inovação sugerida pelo Código Civil, ao estatuir novo tipo de intervenção de terceiros, Gonçalves (2012, p. 514), assim destaca:
“Parece ter sido mesma a intenção do legislador: evitar que o credor escolha um devedor, deixando o outro de lado. Todavia, como foi dito, se assim fizer, sujeitar-se-á às consequências de sua omissão, obtendo apenas uma parte do montante que necessita. A inovação, além de ensejar um incidente que pode atrasar a decisão, tem o grave inconveniente de obrigar uma pessoa a litigar contra quem, por motivos que só a ela interessam, não deseja litigar. Pode, por isso, deixar de executar a sentença contra ela, tornando inócua a intervenção de terceiro, requerida pelo devedor escolhido pelo devedor”.
Ainda acerca da referida inovação, preleciona Fredie Didier Jr (apud GONÇALVES, 2012, p. 516) que:
“Não se poderia imaginar que o réu (devedor comum inicialmente citado) pudesse trazer ao processo um terceiro em face de quem o autor, e não ele, deveria propor a demanda. É situação no mínimo esdrúxula: o réu seria substituto processual do autor, aditando a petição inicial, mesmo contra a sua vontade”.
Necessário se faz salientar que a Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), instituiu a solidariedade, quando o credor for considerado idoso, sobrepondo-se à divisibilidade, prevista no Código Civil vigente, posto que lex specialis derogat generali.
Desta maneira, poderá o idoso requerer de apenas um dos devedores o adimplemento total da pensão, sem excluir, contudo, o direito de regresso contra os demais devedores. Não obstante, na ausência de recursos próprios ou daqueles a quem a lei incumbe o dever de mútuo auxílio, caberá ao Estado suprir-lhe a falta, conforme previsto no art. 14 da aludida lei, que assim aduz: “Se o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõe-se ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social”.
2.10 Os alimentos como uma obrigação condicional
A condicionalidade da obrigação alimentar está preconizada no art. 1.694, § 1º do CC/02, que assim aduz: “Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”. Assim sendo, caso inexista um dos pressupostos legais, inexistente será o direito aos alimentos.
A lei ainda prevê alternativa resolutiva, em seu art. 1.699 do CC/02, para os casos em que se verificar mutabilidade dos pressupostos legais para o deferimento do pedido, a saber, a necessidade do alimentando e a possibilidade do alimentante, ensejando, por conseguinte, a diminuição, o aumento ou até mesmo, o cancelamento da pensão.
2.11 Os alimentos como uma obrigação recíproca
O art. 1.694 combinado com o art. 1.696, ambos do CC/02, instituem a reciprocidade dos alimentos ao estabelecer o dever de mútuo auxílio entre aqueles que estão unidos por um vínculo de parentesco, casamento ou união estável. Neste sentido ensina Gonçalves (2012, p. 518):
“Há reciprocidade entre parentes, cônjuges e companheiros discriminados na lei quanto ao direito à prestação de alimentos e a obrigação de prestá-los, ou seja, ao direito de exigir alimentos corresponde o dever de prestá-los.”
Ainda nas palavras do referido autor (GONÇALVES, 2012, p. 519):
“Os direitos coexistem apenas no estado potencial. A reciprocidade não indica que duas pessoas devam entre si alimentos simultaneamente, mas apenas que o devedor de hoje pode tornar-se o credor alimentar no futuro”.
Destarte, a reciprocidade assegura que todos, ao tempo de sua necessidade, serão amparados por seus parentes, cônjuges ou companheiros, inexistindo a possibilidade de recusa, por parte dos mesmos, para o cumprimento da obrigação a eles imposta.
2.12 Pressupostos da obrigação alimentar
A obrigação alimentar nasce a partir do momento em que se verifica no contexto fático, a existência dos pressupostos previstos no art. 1.694, § 1º e 1.695 do CC/02, a saber, o vínculo de parentesco, casamento ou união estável, necessidade do reclamante e a possibilidade do devedor. Assim, é de fundamental importância, que os operadores de direito, sejam diligentes quanto à observância da existência dos referidos preceitos no caso concreto, pois sem os mesmos não há que se falar em direitos ou obrigações.
2.12.1 A existência de vínculo de parentesco, casamento ou união estável
A obrigação alimentícia não é imposta de forma aleatória, o requerente não pode escolher eventualmente aquele que melhor lhe aprouver para prestar-lhe alimentos. O atual Código Civil, em seus arts. 1.694, 1.696 e 1.697, prescreve de forma taxativa, aqueles a quem a lei incumbe a obrigação alimentar, senão vejamos:
“Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender as necessidades de sua educação.
Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns na falta de outros.
Art. 1.697. Na falta dos ascendentes, cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.”
Destarte, verifica-se que a obrigação alimentar origina-se tanto do dever de mútua assistência existente entre cônjuges e companheiros ou do vínculo de parentesco (jus sanguinis), abrangendo, este último, os ascendentes, descendentes irmãos germanos e unilaterais. No entanto, mesmo entre aqueles que pertencem a um mesmo grupo familiar, ao qual a lei atribuiu o ônus alimentar, deve-se respeitar a ordem preferencial, estabelecida em lei, para a assunção da aludida obrigação. Ao ensinar acerca do referido tema, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2012, p. 687-688) assim lecionam:
“A obrigação alimentar, vale acrescentar, também é sucessiva, entendida tal característica na circunstância de que, na ausência de ascendentes, passaria para os descendentes e, na ausência destes últimos, aos irmãos, assim germanos quanto unilaterais.”
Gonçalves (2012, p. 544-545), ao dispor sobre o assunto, preleciona que, a ausência, acima mencionada, deve ser aquela ocasionada pelo desaparecimento do genitor, por encontrar-se em local incerto e não sabido; pela ocorrência da sua morte, ou ainda, por assim ter sido considerada judicialmente, desta forma, as pessoas pertencentes às demais classes, não devem ser chamadas a assumirem o ônus alimentício, se o devedor principal estiver presente ou possuir capacidade financeira de arrogar com a obrigação alimentícia.
Salienta-se ainda que, a legislação pátria afasta a responsabilidade alimentar daqueles que estão ligados por vínculo de afinidade, como sogro, sogra, genro, cunhado, enteado, madrasta, padrasto. Neste sentido preceitua Cahali (2013, p. 479, grifo do autor):
“A obrigação legal de alimentos vincula-se a uma relação jus sanguinis, que não existe entre os afins; e nada recomenda a extensão do encargo para além das pessoas assim vinculadas”.
Acerca do tema, é imprescindível destacar que o Estatuto do Idoso, em seu art. 14, acrescenta mais uma pessoa a quem a lei impõe a obrigação alimentar. Referida lei, atribui ao Poder Público o dever de sustento, através do serviço de assistência social, aos idosos que não podem manter-se por si e não possuem familiares capazes de suprir-lhe a falta.
2.12.2 A necessidade do reclamante
A necessidade do reclamante, como já mencionado, trata-se de pressuposto à obrigação alimentar, assim, é considerada condição determinante, sem a qual, inexiste o direito a alimentos. Neste sentido, preceitua Carvalho Santos (apud CAHALI, 2013, p. 496):
“A regra é que cada pessoa deve prover-se segundo suas próprias forças ou seus próprios bens: a obrigação de prestar alimentos é, subsidiária, só nasce quando o próprio indivíduo não pode cumprir esse comezinho dever com a sua pessoa, alimentar-se com o produto do seu trabalho.”
A situação de necessidade, por vezes advém de um infortúnio da vida, tornando o indivíduo inapto para prover a própria mantença; Cahali (2013, p. 497) ensina que a impossibilidade de prover à própria mantença pode advir da incapacidade mental ou física, doença, idade avançada, ausência de capacitação para o exercício de atividades rentáveis ou ainda pela ocorrência de crises econômicas que resultem na ausência de trabalho.
Assim sendo, torna-se irrelevante o motivo causador da necessidade para o exercício da pretensão alimentícia, no entanto, àqueles que forem considerados culpados pela situação de necessidade, serão deferidos somente os alimentos necessários à sua sobrevivência, pois os alimentos não podem servir de recompensa àqueles que não conduzem a vida com seriedade (CAHALI, 2013, p. 499-500).
O art. 1.695, 1ª parte do CC/02, assim aduz: “são devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho à própria mantença”, logo, conclui-se que a situação de necessidade caracteriza-se não só pela incapacidade laborativa, mas também pela ausência de bens, os quais uma vez alienados, poderiam proporcionar ao requerente os meios necessários para subsistir, desonerando, por conseguinte, o devedor alimentício.
2.12.3 A possibilidade da pessoa obrigada
Ao estabelecer o quantum da obrigação alimentar, o operador do direito deve atentar para as reais possibilidades do devedor, para que não venha, através de sua decisão, sacrificar a subsistência do mesmo e de sua família, privando-os do mínimo necessário para mantença. Destarte, não há que se falar em obrigação alimentar, quando inexistem condições financeiras, capazes de suportar o ônus alimentício. Neste sentido, ensina Cahali (2013, p. 500):
“Para que exista obrigação alimentar é necessário que a pessoa de quem se reclamam os alimentos possa fornecê-los sem privação do necessário ao seu sustento; se o devedor, assim, não dispõe se não do indispensável à própria mantença, mostra-se injusto obriga-lo a privações acrescidas tão só para socorrer o necessitado.”
No entanto, se as possibilidades do alimentante forem abundantes, maior será a quantum destinado a suprir a necessidade do alimentando, pois, assim como não se deseja onerar demasiadamente o alimentante, sacrificando-o em sua própria mantença, também não se pode privar o credor alimentício de viver de modo compatível com a sua condição social, conforme previsto pelo art. 1.694 do CC/02. Nas palavras de Silvio Rodrigues (apud GONÇALVES, 2012, p. 531) “enormes são as necessidades do alimentário, mas escassos os recursos do alimentante, reduzida será a pensão; por outro lado, se se trata de pessoa de amplos recursos, maior será a contribuição alimentícia”.
2.12.4 A proporcionalidade
A proporcionalidade é o pressuposto que garante a efetividade do instituto dos alimentos, qual seja, suprir as necessidades do alimentando sem privar o alimentante do seu sustento.Gonçalves (2012, p. 531-532), neste aspecto, assim preconiza:
“Não deve o juiz, pois, fixar pensões de valor exagerado, nem por demais reduzido, devendo estimá-lo com prudente arbítrio, sopesando os dois vetores a serem analisados, necessidade e possibilidade, na busca do equilíbrio entre eles.”
Não obstante, o art. 1.695 do CC/02 não trouxe qualquer especificação de como o juiz deverá ponderar os critérios da necessidade e possibilidade, assim deverá utilizar-se de prudente arbítrio a fim de realizar justiça no caso concreto (GONÇALVES, 2012, p. 532).
3 A TRANSMISSIBILIDADE CAUSA MORTIS DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS
O ordenamento jurídico vigente prevê diferentes maneiras de garantir o adimplemento da obrigação alimentar, dentre elas, ressalta-se a transmissibilidade causa mortis da obrigação alimentar para os herdeiros do devedor alimentício.
O instituto da transmissibilidade visa garantir que o credor de alimentos esteja completamente assegurado em sua subsistência quando da ocorrência do falecimento do devedor, resguardando-lhe assim, a vida. A aludida norma visou garantir que o espólio do de cujus respondesse por suas obrigações, desonerando, por conseguinte o Estado, que estaria subsidiariamente obrigado a garantir a vida daqueles que estão impossibilitados de manter-se. Neste sentido, aduz Cahali (2013, p. 79): “resta incólume de dúvida que as pensões devidas pelo alimentante até a data do seu falecimento representam dívida de direito comum, a ser deduzida do monte partilhável”.
Dessarte, a transmissibilidade sucessória da obrigação alimentar intenta garantir a continuidade do adimplemento das prestações, como forma de resguardar a mantença daquele que, por situações adversas, não é capaz de prover-se.
3.1 Acepção do termo Sucessão
Dentre várias significações denotadas pelo termo sucessão, a mais adequada a ser utilizada no universo jurídico é o fato de alguém vir a ocupar o lugar de outrem, no entanto, esta troca de sujeitos pode decorrer de uma relação inter vivos ou causa mortis (GONÇALVES, 2009, p. 2).
A sucessão, em sentido amplo, refere-se à investidura de alguém, nos direitos pertencentes a outrem, mediante relação inter vivos; em sentido estrito, quando utilizada para designar a sucessão que decorre em virtude da morte do titular da herança, transferindo, neste momento, seu patrimônio aos herdeiros (DINIZ, 2009, p. 11). Neste sentido, aduz Gonçalves (2009, p. 1-2): “No direito das sucessões, o vocábulo é empregado em sentido estrito, para designar tão somente a decorrente da morte de alguém, ou seja, a sucessão causa mortis”.
Diniz (2009, p. 12, grifo do autor) apresenta diferenciações acerca da sucessão, quando analisada em seu sentido estrito; para a autora, sucessão “no conceito subjetivo, é o direito por força do qual alguém recolhe os bens da herança, e no conceito objetivo, indica a universalidade dos bens do de cujus, que ficaram com seus direitos e encargos”.
Dessarte entende-se que, concomitantemente com a morte do titular da herança, nasce a necessidade da sucessão, pois sem a devida substituição, os bens do de cujus perderiam o seu valor e o seu fim, e os negócios por ele assumidos perderiam validade, visto que não apresentariam continuidade, provocando, por conseguinte, relevante insegurança jurídica. Assim sendo, imprescindível se faz a sucessão post mortem.
3.2 A transmissão da herança e o princípio da Saisine
A partir do preceito de que a sucessão ocorre no mesmo instante do falecimento do de cujus (DINIZ, 2009, p. 20), podemos interpretar com melhor clareza o disposto no art. 1.784, que assim aduz: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Destarte, pode-se afirmar que da ocorrência do falecimento do de cujus, a herança é transmitida, desde logo, aos seus herdeiros. “Nisto consiste o princípio da saisine”, conforme ensina Gonçalves (2009, p. 19, grifo do autor).
Esclarece Pontes de Miranda (apud GONÇALVES, 2009, p. 21) acerca do princípio da Saisine que:
“Foi o alvará de 9 de novembro de 1784, seguido de Assento de 6 de fevereiro de 1786, que introduziu no direito luso-brasileiro a transmissão automática dos direitos que compõem o patrimônio da herança, aos sucessores, legítimos ou não, com toda a propriedade, a posse, os direitos reais e os pessoais. O que era propriedade e posse do de cujo passa a ser propriedade e posse do sucessor, ou dos sucessores, em partes iguais, ou conforme a discriminação testamentária. Dá-se o mesmo com os créditos transferíveis e as dívidas, as pretensões, as obrigações e as ações”.
Assim, o que ocorre com a morte do de cujus é a transmissibilidade imediata, aos seus sucessores, da posse e propriedade de tudo que lhe pertencia ao tempo da morte, com exceção dos direitos e obrigações consideradas personalíssimas, as quais não são passíveis de transmissão, devido à sua natureza (DINIZ, 2009, p. 22).
Logo, conclui-se que aos herdeiros é transferido, através do princípio da saisine, não só a titularidade das relações que pertenciam ao de cujus, mas também as atribuições que lhe são devidas, em consequência da posição assumida.
3.3 Os alimentos como uma obrigação transmissível causa mortis
Antes de examinarmos a despeito da transmissibilidade da obrigação alimentar, é mister que esclareçamos acerca da distinção existente entre a obrigação alimentar, estabelecida no art. 1694 do CC/02 e o dever de sustento, conferido à ambos os cônjuges em relação aos filhos menores e inválidos, conforme previsto no art. 1.566, IV do CC/02.
Após alcançarmos a maioridade ou, no caso dos incapazes, a capacidade, é natural que sejamos responsáveis por nosso próprio sustento e desenvolvimento, no entanto, circunstâncias supervenientes podem contribuir negativamente para que esse fim seja alcançado, ensejando uma situação de dependência em relação aos demais membros da família, cônjuge ou companheiro. Nisto funda-se a obrigação alimentar, na existência dos pressupostos legais, a saber, o vínculo, a necessidade do requerente e a possibilidade do requerido, sem contudo, deixar de mencionar, a reciprocidade existente entre as pessoas constantes no art. 1.694, possibilitando que as mesmas possam pleitear alimentos entre si.
No entanto, o dever de sustento tem maior alcance do que a obrigação alimentar, visto que não se limita a existência de pressupostos, como a necessidade do requerente ou a possibilidade do requerido, pois ainda que o menor possua bens suficientes ao suprimento das necessidades, o dever de sustento permanecerá. Cahali (2013, p.331) acerca do tema, assim leciona:
“Quanto aos filhos, sendo menores e submetidos ao poder familiar, não há um direito autônomo de alimentos, mas sim uma obrigação genérica e mais ampla de assistência paterna, representada pelo dever de criar e sustentar a prole. O titular do poder familiar, ainda que não tenha o usufruto dos bens do filho, é obrigado a sustenta-lo, mesmo sem auxílio das rendas do menor e ainda que tais rendas suportem os encargos da alimentação: a obrigação subsiste enquanto menores os filhos, independente do estado de necessidade deles, como na hipótese, perfeitamente possível, de disporem eles de bens (por herança ou doação).”
Portanto, ao tratarmos da transmissibilidade causa mortis da obrigação de prestar alimentos, estaremos nos referindo somente à transmissão da obrigação existente entre parentes, cônjuges e companheiros, mencionada no art. 1700 e 1.694 do CC/02, excluindo assim, a possibilidade de transferência do dever de sustento, imputado aos cônjuges.
Não obstante, os filhos menores e inválidos não restarão desamparados no caso do falecimento dos genitores, pois o seu direito aos alimentos encontra-se embasado no pátrio poder e na solidariedade familiar, desta forma ainda que não haja previsibilidade legal da transmissibilidade do dever de sustento, o art. 1.700 do CC/02 prevê a transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros do de cujus, quando requerente e requerido encontram-se unidos pelo vínculo de parentesco.
A transmissibilidade sucessória da obrigação alimentar apresenta diferentes abordagens quando analisada sob a ótica dos sistemas jurídicos estrangeiros.
Em Portugal a obrigação cessa com a morte do devedor ou do credor de alimentos, porém, o alimentado poderá pleitear a prestação alimentícia em face dos herdeiros do de cujus, quando fundados na existência de um direito próprio e autônomo, consubstanciado em um vínculo familiar, no entanto, com fito de proteger o cônjuge supérstite necessitado, prescreveu que este deverá ser alimentado pelos frutos dos bens herdados, conforme ensina Clarisse Faria (2009, p. 214).
Semelhantemente do que prescreve o Código Civil Português, os sistemas da Espanha, Argentina e Alemanha também estabelecem o término da prestação alimentar após constatada morte do devedor ou credor alimentício. A diferença entre referidos sistemas refere-se aos alimentos devidos em virtude da separação ou do divórcio, pois enquanto os regimes Espanhol e Alemão admitem a transmissibilidade da obrigação, até os limites da herança, o regime Argentino só admite referida transmissibilidade nos casos em que o divórcio ou a separação houver sido ocasionada pela constatação de dependência de drogas, perturbações graves ou alcoolismo (FARIA, 2009, p. 214-215).
Portanto, infere-se da sucinta análise dos referidos sistemas que a transmissibilidade causa mortis, via de regra, não é admitida, possibilitando, apenas em casos específicos, o seu deferimento.
No Brasil, a transmissibilidade causa mortis da obrigação alimentar foi instituída como regra geral somente no CC/02, pois o Código Civil de 1916 previa em seu art. 402 a impossibilidade dos herdeiros do de cujus assumirem referida obrigação, devido ao caráter personalíssimo do instituto. No entanto, apesar da existência do referido preceito, a Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) inovou, possibilitando a transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros do falecido, quando na separação judicial haviam sido fixados ou convencionados os alimentos (GONÇALVES, 2012, p. 509).
Mesmo diante da inovação instituída pela Lei do Divórcio, preponderava o entendimento que o art. 23 da mencionada lei, havia sido elaborado apenas para ratificar o preceito de que o espólio deveria responder pelo adimplemento das prestações alimentícias que encontravam-se em atraso à data do óbito do devedor (DIAS, 2005, p. 453), restringindo, por conseguinte, a eficácia da norma. Neste sentido, prescreve Caio Mário (apud CAHALI, 2013, p. 62):
“A disposição somente se poderá entender como referindo às prestações devidas até a época da morte, inseridas desta sorte como dívida do espólio. Se se entender diferentemente, contraria o princípio da personalidade do débito alimentar, e poderá gerar situações absurdas, que o legislador não pode querer ou estabelecer.”
Apesar da existência do mencionado posicionamento, existiam aqueles que entendiam que o art. 23 da Lei do Divórcio deveria ser aplicado conjuntamente com o art. 402 do CC/16, visto que a inovação abordada pela mencionada lei tinha aplicabilidade somente aos pensionamentos estipulados nas separações ou nos divórcios, tanto para o cônjuge como para os filhos, permanecendo aos demais casos a intransmissibilidade sucessória, conforme prevalecia (CAHALI, 2013, p.64).
Ademais, para os defensores deste posicionamento, a transmissibilidade sugerida não possuía qualquer dificuldade em sua aplicação, devendo apenas obedecer ao que fora instituído pelo art. 1.796 do CC/16 (a que o art. 23 da Lei 6.515/77 remete), que assim aduz: “A herança responde pelas dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual, em proporção da parte, que na herança lhes trouxe” (CAHALI, 2013, p. 64). Desta forma os herdeiros não assumiam a qualidade de devedor, tão somente eram responsabilizados pelo adimplemento das dívidas do falecido de forma proporcional ao quantum recebido na partilha. Conforme disposto acima, preceitua Cahali (2013, p. 64):
“Portanto, o art. 23 da Lei do Divórcio representa simples exceção à regra do art. 402 do anterior CC. Assim, mantido como norma geral o princípio da intransmissibilidade, a transmissibilidade introduzida pela reforma inovadora teria caráter excepcional: coexistiria com aquela, aplicando-se tão somente à situação nela implícita”.
Foi em meio a este cenário controvertido, que a transmissibilidade causa mortis foi instituída como geral, amparando, não só cônjuges e filhos, mas também, companheiros e parentes, sejam eles, ascendentes, descendentes ou colaterais até o segundo grau. Senão vejamos:
“Art. 1700. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694.
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.”[1]
A inovação estabelecida pelo novo Código Civil inviabilizou qualquer negativa de se transmitir aos herdeiros do de cujus, o adimplemento das parcelas alimentícias já estabelecidas ao tempo de sua morte, tendo em vista que, o art. 1.694 a que o art. 1.700 faz menção, igualou as pessoas nele descrito, desta forma, a norma que em momento anterior se tratava de uma exceção, tornou-se regra geral, com aplicabilidade plena.
Ainda concernente à remissão realizada pelo art. 1.700 ao art. 1.694, é manifesta a intenção de que fossem observados os pressupostos da necessidade do credor e a possibilidade do devedor, assim, quanto a este último critério, a interpretação mais adequada seria: possibilidade do espólio, visto que, a referida remissão não revoga o conteúdo disposto nos arts. 1.792, 1.821 e 1.997, todos do CC/02, que limita a responsabilidade dos herdeiros aos limites da herança. Corroborando este entendimento, Cahali (2013, p. 81), assim aduz:
“A obrigação de pagamento da pensão alimentícia devida aos parentes ou cônjuge do falecido não se dimensiona “na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada” (art. 1.694, § 1.º, a que faz remissão o art. 1.700), mas encontra seu limite natural na força da herança e do quinhão hereditário que coube ao sucessor.”
Vejamos jurisprudência nesse sentido:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. ESPÓLIO. TRANSMISSIBILIDADE. O pedido de alimentos fundamenta-se aqui na transmissibilidade da obrigação alimentar, contemplada no art. 1.700 do CCB. Seu deferimento depende de prova da necessidade da requerente e da possibilidade do patrimônio deixado pelo falecido alimentante produzir frutos suficientes para suportar a verba. Desta forma, para a procedência do pedido, imprescindível a prova da necessidade da autora. Necessidade esta que, de acordo com o disposto no art. 1.695 do CCB, caracteriza-se pela impossibilidade de prover, pelo seu trabalho, ou bens, à própria subsistência. Considerando: (a) a idade da apelante (45 anos), (b) a falta de demonstração de sua incapacidade laboral, (c) o fato de que possui ofício, não sendo, por certo, difícil sua colocação no mercado de trabalho, (d) a circunstância de que possui renda própria, proveniente de pensão por morte, (e) que possui a integralidade de um bem imóvel e parte de outro, e (f) que ficou com valores depositados em conta bancária, cujo montante não se tem conhecimento, não está caracterizada a necessidade da recorrente ao recebimento da pensão de modo a justificar a reforma da sentença. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”. (Apelação Cível Nº 70054523949, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 04/07/2013).
O que adquiriu ampla discussão em meio aos doutrinadores foi quanto aos limites da referida transmissibilidade. Um dos principais questionamentos propostos foi se os herdeiros receberiam apenas os débitos alimentares já estabelecidos ao tempo da morte do de cujus, vencidos e vincendos, ou se herdariam a própria obrigação alimentar em toda a sua potencialidade (GONÇALVES, 2012, p. 510), possibilitando neste último caso que parentes, cônjuges ou companheiros, mesmo em momento posterior à morte do principal devedor, pudessem pleitear a prestação alimentar dos herdeiros. Neste sentido, prescreveu Diniz (2009, p. 585, grifo do autor):
“A dívida alimentar continuará sendo do de cujus, visto que o espólio por ela responderá. Trata-se, na verdade, de débito do espólio em razão do disposto no art. 1.792 do Código Civil. Os herdeiros não são devedores; só tem a responsabilidade pelo pagamento da dívida alimentícia, exigível até o valor da herança”.
Ratificando este entendimento, a jurisprudência tem acentuado em suas decisões acerca dos limites da responsabilidade incumbida aos herdeiros do de cujus. Vejamos decisão elucidativa a esse respeito:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. IMPUGNAÇÃO. RESPONSABILIDADE DO ESPÓLIO. TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. Configurados os pressupostos necessidade-possibilidade, é cabível a estipulação dos alimentos, ensejando a disposição legal da transmissibilidade da obrigação alimentar, tornada inquestionável pelo artigo 1.700 do Código Civil. Não cabe interpretar o referido artigo de lei como abrangendo apenas eventuais parcelas inadimplidas até a ocasião da morte do devedor de alimentos, sob pena de tornar a regra inteiramente vazia, pelo simples fato de que o artigo 1.997 do CC torna o Espólio responsável pelo pagamento das dívidas do falecido, não havendo, portanto, necessidade de que a mesma disposição constasse em local diverso. O art. 1.700 prevê a transmissão da obrigação, abrangendo parcelas que se vençam inclusive após o óbito do devedor. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO”. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Agravo de Instrumento Nº 70029006640, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 08/07/2009)
Extremamente enigmático seria sustentar que o instituto introduzido pelo art. 1.700 do CC/02 foi a própria transmissibilidade da condição de devedor aos herdeiros do falecido, pois, desta forma, também se faria necessário permitir a possibilidade da decretação da prisão dos mesmos, coagindo-os ao adimplemento das prestações em atraso, conforme estabelecido no art. 5º, LXVII da Constituição Federal de 1988. A hipótese coercitiva apresentada coaduna com a tese da transmissibilidade do dever de prestar alimentos, haja vista que, os herdeiros do falecido assumiriam, de forma pessoal, a própria condição de devedor, permitindo, por conseguinte, o deferimento da prisão.
Em consonância a este posicionamento e à inviabilidade da transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros, decidiu-se:
“HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS, SOB O RITO COERCITIVO – ART. 733, CPC – AJUIZADA CONTRA UM DOS HERDEIROS, INVENTARIANTE DOS BENS DEIXADOS PELO ESPÓLIO. Embora se reconheça a transmissibilidade da obrigação alimentar, por conta do disposto nos arts. 1.700 e 1.997 do CCB, pela qual os herdeiros respondem pela obrigação alimentar do de cujos, nas forças da herança, descabida a execução de alimentos, sob o rito coercitivo, contra um dos herdeiros, nem que este seja inventariante dos bens deixados pelo falecido, como no caso em exame. Isto porque, em face da especificidade da execução pelo rito do art. 733 do CPC e pela limitação de temas que podem ser suscitados em justificativa, no exíguo prazo de 3 dias, somente o devedor originário é que pode ser compelido a tal pagamento por esta forma. Consequentemente, o herdeiro, mesmo que na qualidade de inventariante, não pode ser compelido ao pagamento do débito do espólio por meio de execução sob a modalidade coercitiva. CONCEDERAM A ORDEM E, DE OFÍCIO, EXTINGUIRAM A EXECUÇAO. UNÂNIME.” (Habeas Corpus Nº 70051744126, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 29/11/2012)
Ademais, estabelece o art. 1.228 do CC/02 que “o proprietário tem a faculdade de usar , gozar e dispor da coisa”, assim, diante da transmissibilidade do dever alimentar, os herdeiros do de cujus, seriam impedidos de exercerem os atos próprios da propriedade, como por exemplo, efetuar uma doação ou até mesmo, a alienação do bem, tendo em vista que, a qualquer momento, poderiam ser acionados para prestarem alimentos, pois, se assim fizessem, ao serem demandados, teriam que se desfazer do próprio patrimônio para adimplir com a referida obrigação (CAHALI, 2013, p. 76).
Desta forma, mesmo respeitados os limites da herança, os herdeiros seriam impedidos de usufruírem dos bens deixados em virtude da possibilidade de responderem por uma dívida que era inexistente ao tempo da morte do de cujus, gerando uma enorme insegurança jurídica. Polissier (apud CAHALI, 2013, p. 76, grifo do autor) assim estabelece:
“Se se pretendesse conservar à obrigação alimentícia o seu caráter móvel, era necessário admitir que o credor de alimentos poderia sempre, em qualquer época, reclamar uma pensão dos herdeiros do de cujus no limite das forças da herança: dez ou vinte anos após a morte do devedor de alimentos, os herdeiros poderiam ser compelidos a pagar uma determinada importância que absorveria sempre o ativo hereditário; e isso implicaria reconhecer-se que os herdeiros jamais seriam verdadeiramente proprietários dos bens recebidos em sucessão; esta insegurança prolongada seria fonte de desordem jurídica, não se podendo admitir tal solução.”
Logo, a transmissibilidade da obrigação alimentar em sua potencialidade, inviabiliza que os herdeiros exerçam, com plenitude, o seu direito à herança, considerando que são privados de praticar atos próprios da propriedade, provocando, por conseguinte, instabilidade aos negócios realizados pelos mesmos, tendo em vista que estes acordos poderiam ter como garantia o patrimônio herdado.
Alguns autores ainda defendem que os cônjuges somente seriam beneficiados pelo princípio da transmissibilidade da obrigação alimentar, caso não fossem herdeiros do de cujus, ideal consonante com a finalidade do Projeto de Lei n. 276/2007, que pretende dar ao art. 1.700 do CC/02 a seguinte redação: “A obrigação de prestar alimentos decorrente do casamento e da união estável transmite-se aos herdeiros do devedor, nos limites da força da herança , desde que o credor da pensão alimentícia não seja herdeiro do falecido”. Neste aspecto, preceitua Gonçalves (2012, p. 511):
“Assim, o cônjuge é herdeiro necessário e, conforme o regime de bens, concorrerá ou não com descendentes e ascendentes, com participação variável segundo o grau de parentesco do herdeiro com o falecido. Somente se justifica a transmissão do direito ao cônjuge se, em razão do regime de bens no casamento, não estiver assegurado o seu direito à herança. O direito do companheiro não é prejudicado, porque não é havido como herdeiro necessário”.
Consolidando este entendimento, vejamos o julgado a seguir:
“ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE DO ESPÓLIO. TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. Configurados os pressupostos necessidade-possibilidade, cabível a estipulação dos alimentos. Isso nos remete ao tema da transmissibilidade da obrigação alimentar, agora tornada inquestionável pelo artigo 1.700 do Código Civil. E não se diga que a transmissão se restringe apenas às parcelas eventualmente vencidas, deixando de abranger as vincendas. É que, em primeiro lugar, esse dispositivo legal refere-se a obrigação e não a dívidas, o que, por si só, deve bastar. Há mais, porém. É que interpretá-lo como abrangendo apenas eventuais parcelas inadimplidas até o ensejo da morte do devedor de alimentos é tornar a regra inteiramente vazia, pelo simples fato de que o artigo 1.997 do CC já torna o Espólio responsável pelo pagamento das dívidas do falecido, não havendo, portanto, necessidade de que a mesma disposição constasse em local diverso. Por isso, e não podendo entender-se que a lei contém palavras inúteis, é evidente que o art. 1.700 determina a transmissão da obrigação, abrangendo parcelas que se vençam inclusive após o óbito do devedor, como no caso. LIMITE DA OBRIGAÇÃO. É certo que o apelante, como filho que é do autor da herança, é também seu herdeiro, em igualdade de condições com os demais descendentes. Logo, mais cedo ou mais tarde lhe serão atribuídos bens na partilha que se realizará no inventário recém iniciado. Nesse contexto, os alimentos subsistirão apenas enquanto não se consumar a partilha, pois, a partir desse momento desaparecerá, sem dúvida, a necessidade do alimentado. PROVERAM. UNÂNIME.” (Apelação Cível Nº 70007905524, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 22/12/2004)
O atual posicionamento nos tribunais é o deferimento da transmissibilidade causa mortis da obrigação alimentar, quando verificados os pressupostos da necessidade-possibilidade, porém, a concessão se dá somente até a efetivação da partilha, momento em que será concedido ao credor alimentício, a sua quota parte da herança, fazendo inexistente o requisito da necessidade.
Diniz (2009, p. 586) acerca do tema, propõe o seguinte questionamento: “Por que recusar tal transmissibilidade do dever de pagar pensão alimentícia, se o credor for herdeiro do de cujus, se uma das condições dessa obrigação é a necessidade do alimentando?”; há de se mencionar ainda que, o quinhão herdado pelo credor alimentício, pode ser ínfimo, sendo incapaz de suprir-lhe a mantença, tornando vulnerável o ideal proposto pelo Projeto de Lei 276/2007.
Apesar das decisões neste sentido, imprescindível se faz salientar a vulnerabilidade de referidos posicionamentos, pois, além da herança poder apresentar valor módico, fazendo com que a necessidade cesse apenas provisoriamente, o credor alimentício pode não ser herdeiro do de cujus, assim, a efetivação da partilha em nada modificaria a sua necessidade.
Logo, a resposta jurídica a determinadas situações deve se dar de forma adequada ao caso concreto, com fito de preservar a vida daquele que não pode supri-la por si, preservando-lhe a dignidade.
3.4 A responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas do de cujus
A responsabilidade dos herdeiros decorre diretamente da abertura da sucessão, momento em que será transferido aos herdeiros todo o patrimônio do de cujus, conforme interpretação conferida ao art. 1.784 do CC/02, que assim aduz: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Neste sentido, leciona Diniz (2009, p. 21, grifo do autor):
“Com o óbito do hereditando, seus herdeiros recebem por efeito direto da lei (son saises de plein droit) as suas obrigações, a sua propriedade de coisas móveis e imóveis e os seus direitos”.
No direito romano não havia qualquer limitação à responsabilização dos herdeiros em relação às dívidas do falecido, logo, os herdeiros tornavam-se pessoalmente responsáveis ao adimplemento do montante passivo da herança, mesmo que para isso tivesse que se desfazer do próprio patrimônio (GONÇALVES, 2009, p. 35).
Destarte, diante das consequências e inseguranças causadas pelo referido instituto, a saber, a transmissibilidade plena da condição de devedor, no governo Justinianeu, possibilitou-se aos herdeiros efetuar a renúncia da herança nos casos em que o passivo superasse o ativo. No Brasil, durante a égide das Ordenações Filipinas, vigorou esse mesmo entendimento (GONÇALVES, 2009, p. 35).
No atual Código Civil, percebe-se que houve notória diligência na delimitação das responsabilidades dos herdeiros, conforme se pode depreender da análise dos arts. 1.792, 1.821 e 1.997. O limite imposto para o referido encargo foi o exaurimento da herança, impedindo assim, que o patrimônio pessoal dos herdeiros fosse responsabilizado pelo adimplemento das dívidas contraídas pelo de cujus. Conforme o disposto, preceitua Gonçalves (2009, p. 507-508):
“Só serão partilhados os bens ou valores que restarem depois de pagas as dívidas, isto é, depois de descontado o que, de fato, pertence a outrem. Se estas ultrapassarem as forças da herança, os herdeiros não responderão pelo excesso, pois toda aceitação é feita em benefício do inventário”.
Vejamos jurisprudência nesse sentido:
“ALIMENTOS. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. MORTE DO ALIMENTANTE. I – A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, respondendo a herança pelo pagamento das dívidas do falecido. Lei nº 6. 515, de 1977, art. 23, e Código Civil, art. 1796. Aplicação.
II – A condição de alimentante é personalíssima e não se transmite aos herdeiros; todavia, isso não afasta a responsabilidade dos herdeiros pelo pagamento dos débitos alimentares verificados até a data do óbito.
III. – Falecido o alimentante após a sentença que o condenou a pagar prestação alimentar, deve o recurso de apelação ter prosseguimento, apreciando-se o meritum causae.
IV – Recurso especial conhecido e provido.” (Recurso Especial nº 64112/SC, Terceira Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Antônio de Pádua Ribeiro, Julgado em 16/05/2002).
A lei não só estabeleceu limites à responsabilização dos herdeiros, mas também instituiu garantias aos credores do falecido, impossibilitando que os mesmos sejam privados dos seus direitos creditícios, enquanto subsistisse patrimônio capaz de garantir a liquidez do crédito. Neste sentido, leciona Gonçalves (2009, p. 507):
“A ultimação da partilha não pode frustrar o direito dos credores, que só se extingue pelo pagamento ou pela prescrição. Portanto, mesmo depois de sua efetivação podem os credores exigir dos herdeiros, proporcionalmente, o pagamento dos créditos que tenham com o falecido”.
Partindo do pressuposto que a transmissibilidade instituída pelo art. 1.700 do CC/02 é apenas da dívida alimentar e não da condição de devedor, a liquidação do referido débito deverá respeitar os limites da herança, devendo o juiz designar a reserva de tantos bens quanto bastem para o pagamento do débito, conforme estatuído no art. 1.997, § 1º do CC/02.
Cahali (2013, p. 77), acerca do tema, ensina que, em relação aos filhos menores, a obrigação cessa ao tempo em que se adquire a maioridade; aos incapazes, com a capacidade; ao cônjuge supérstite, quando verificado novo matrimônio, mencionando ainda acerca da possibilidade do cancelamento da sentença ou do acordo, nos casos em que o cônjuge sobrevivente procedesse de forma indigna ou que passasse a viver em união estável ou concubinato.
Destarte, para que o instituto seja eficaz e exequível, é elementar que se estime a duração do pensionamento, precisando assim, o quantum devido, a fim de viabilizar a designação dos bens necessários à satisfação da dívida alimentar.
Desta forma, há de se considerar a hipótese de que a reserva dos bens necessários à satisfação da dívida alimentar poderá comprometer todo o patrimônio deixado pelo de cujus, restringindo o direito à herança dos demais herdeiros, conforme previsto no art. 5º, XXX da CF/88.
No entanto, é sabido que o devedor alimentício, enquanto vivo, possuía a plena administração de seus bens, podendo comprometê-los inteiramente, de acordo com seu próprio arbítrio, pois, ninguém é obrigado a deixar herança para aqueles que lhe sucedem.
Também é verdade que o direito à herança é garantido a todos, no entanto, para que os herdeiros possam exercer este direito, é imprescindível a existência de bens deixados pelo de cujus, logo, se as dívidas, sejam alimentares ou não, consomem todos os recursos deixados, o patrimônio se faz inexistente. Acerca do tema, leciona Silvio Rodrigues (2003, p. 331, grifo do autor):
“Em rigor, o patrimônio transmissível aos herdeiros do de cujus é apenas o saldo entre o seu ativo e o seu passivo. Portanto, para se apurar o montante da herança, isto é, aquilo que será objeto da sucessão, mister se faz, primeiramente, apurar o montante de suas dívidas, para resgatá-las”.
Destarte, não há que se falar em direito à herança, quando o espólio está completamente onerado com as dívidas contraídas pelo de cujus, pois semelhantemente à inexistência de bens, é a existência de dívidas que sobrecarregam o patrimônio herdado.
Neste sentido, prescreve o art. 391 do CC/02, “pelo inadimplemento das obrigações respondem os bens do devedor”, logo, se as dívidas consomem todos os bens deixados pelo de cujus, o direito dos herdeiros restará prejudicado.
Não obstante, à mencionada restrição do direito à herança, os alimentos é instituto que visa garantir a vida de quem os pleiteia, possuindo como princípio basilar a dignidade da pessoa humana (DINIZ, 2009, p. 575), logo, se sobrepõe a qualquer outro direito.
Ao tratar do direito à vida, Vicente de Paulo e Marcelo Alexandrino (2009, p. 46), aduzem que: “O direito à vida é o mais elementar dos direitos fundamentais; sem vida, nenhum outro direito pode ser fruído, ou sequer cogitado”. Referidos autores ainda ressaltam que, os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto, pois encontram seus limites nos demais direitos previstos pela Constituição (PAULO e ALEXANDRINO, 2009, p. 40).
Sendo assim, não se poderia permitir que o direito à herança fosse resguardado à custa da vida daqueles que dependem dos alimentos para sobreviver.
CONCLUSÃO
O tema exposto no presente trabalho possui grande relevância no universo jurídico devido à sua complexidade e características, pois envolve em um só universo, matéria de natureza patrimonial e familiar, ensejando, portanto, dedicação e diligência daqueles que se dedicam ao estudo do referido instituto ou dos que se encontram na condição de operadores do direito.
Ademais, o direito aos alimentos tem por fim garantir a vida de quem os pleiteia, garantindo, a sua preservação e dignidade, o que por si só, reitera a magnitude do tema.
O art. 1.700 do atual Código Civil ratificou o entendimento já disposto no art. 23 da Lei do Divórcio, a saber, a transmissibilidade causa mortis da obrigação alimentar, no entanto, o fez de forma mais abrangente, igualando parentes, cônjuges e companheiros, a fim de contemplar a todos que, por um infortúnio da vida, encontram-se desamparados.
Através da análise crítica do instituto da transmissibilidade causa mortis da obrigação alimentar, da doutrina e jurisprudência contemporânea e dos sistemas estrangeiros, pode-se concluir que a transmissibilidade, introduzida pelo art. 1.700 do atual Código Civil, foi da dívida já existente ao tempo da morte do de cujus, e não da própria condição de devedor, uma vez que o instituto é revestido de caráter pessoal, fundamentado na existência de um vínculo entre credor e devedor.
No entanto, o referido artigo inovou ao estabelecer pressupostos para o deferimento da transmissibilidade sucessória da obrigação alimentar, quais sejam, a necessidade do requerente e a possibilidade, não do devedor falecido, mas do espólio deixado por este, isto posto, conclui-se que, inexistindo bens, os herdeiros estarão imunes ao adimplemento da dívida.
Anteriormente à inovação do art. 1.700 CC/02, os herdeiros eram compelidos a continuar adimplindo com a obrigação alimentar, mesmo diante da inexistência da necessidade do credor, considerando que os pressupostos exigidos eram apenas que os alimentos houvessem sido estabelecidos ao tempo da morte do devedor e que os limites da herança fossem respeitados, desonerando o patrimônio dos herdeiros.
Logo, diversamente do posicionamento de muitos doutrinadores, a remissão realizada pelo art. 1.700 ao art. 1.694 do CC/02 não restou equivocada, considerando que promoveu a igualdade entre cônjuges, companheiros e parentes, extinguindo, por conseguinte, a divergência introduzida pelo art. 23 da Lei do Divórcio, que autorizava a transmissibilidade sucessória da obrigação alimentar, somente nos casos em que os alimentos haviam sido instituídos ou convencionados nas separações judiciais, enquanto o art. 402 do CC/16 prescrevia a intransmissibilidade do referido ônus.
Igualmente, a referida remissão estabeleceu quesitos, como a observância da necessidade do credor, para o deferimento da transmissibilidade sucessória da obrigação alimentar, instituindo limites e garantias à responsabilização dos herdeiros, conferindo maior segurança ao instituto.
Ademais, diversas seriam as consequências advindas da possibilidade dos herdeiros assumirem a situação de devedores e avocarem para si as obrigações do de cujus, como a ocorrência de confusão patrimonial, insegurança das relações jurídicas e comerciais, incluindo a possível decretação de prisão, nos casos de inadimplemento das prestações alimentares.
Em suma, a transmissibilidade causa mortis tem por fim principal garantir o sustento dos que se encontram em situação de penúria, devido à morte do devedor alimentício, porém, deseja alcançar seu objetivo, sem deixar de proteger os direitos e garantias concedidos aos herdeiros do de cujus.
Logo, as peculiaridades intrínsecas do caso concreto devem ser exaustivamente examinadas, pois, o texto legal não consegue abranger as numerosas circunstâncias levadas à análise da justiça e o bem a ser tutelado na aludida conjuntura, é a vida.
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