Resumo: O artigo pretende esboçar algumas considerações sobre a tutela coletiva na França. Partindo da análise do sistema jurídico-constitucional vigente na República Francesa, tece considerações sobre a organização do Poder Judiciário e do Ministério Público franceses para então alcançar o cerne do trabalho: um panorama geral da tutela coletiva na França. Procura, ademais, não descurar da análise do objeto de estudos no contexto da União Europeia. Em sua elaboração, trilharam-se constantemente as veredas do direito constitucional e do direito processual civil, em especial do direito processual civil coletivo.
Palavras-chave: França. Constituição. Tutela Coletiva. Processo Coletivo.
Sumário: 1. Sistema jurídico-constitucional vigente: A Constituição Francesa de 04 de outubro de 1958; 2. O Poder Judiciário e o Ministério Público na França: Aspectos gerais; 3. A tutela coletiva na França: panorama geral; 4. A omissão constitucional sobre o tema e a legislação ordinária; 5. A União Europeia e os direitos ou interesses coletivos; 6. As propostas e projetos de lei para a tutela coletiva na França; Conclusões; Referências.
1. Sistema jurídico-constitucional vigente: A Constituição Francesa de 04 de outubro de 1958.
A atual Constituição Francesa é datada de 04 de outubro de 1958, sendo considerada o texto fundador da Quinta República. Foi aprovada por referendo em 28 de setembro de 1958, tratando-se da norma suprema do sistema jurídico francês.
A Constituição Francesa organiza os poderes públicos, define seus papéis e suas relações. É o décimo quinto Texto Constitucional aplicado desde a Revolução Francesa[1]. Se contados os Textos Constitucionais não aplicados, é a vigésima segunda Constituição Francesa.
Composto por 89 artigos, a Constituição Francesa de 1958 tem a seguinte estrutura: Preâmbulo e art. 1º; Da Soberania (arts. 2º a 4º); O Presidente da República (arts. 5º a 19); O Governo (arts. 20 a 23); O Parlamento (arts. 24 a 33); Das relações entre o Parlamento e o Governo (arts. 34 a 51-2); Dos Tratados e Acordos Internacionais (arts. 52 a 55); O Conselho Constitucional (arts. 56 a 63); Da Autoridade Judiciária (arts. 64 a 66-1); A Alta Corte (arts. 67 e 68); Da responsabilidade penal dos membros do governo (arts. 68-1 a 68-3); O Conselho econômico, social e de meio ambiente (arts. 69 a 71); O Defensor dos direitos (art. 71-1); Das coletividades territoriais (arts. 72 a 75-1); Disposições transitórias relativas à Nouvelle-Calédonie (arts. 76 e 77); Da francofonia e dos acordos de associação (arts. 87 e 88); Da União Europeia (arts. 88-1 a 88-7) e da Revisão (art. 89).
É importante destacar que o Preâmbulo da Constituição Francesa de 4 de outubro de 1958 afirma que o povo francês proclama solenemente sua vinculação aos Direitos do Homem e aos Princípios da soberania nacional definidos na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, confirmada e complementada pelo Preâmbulo da Constituição Francesa de 1946, bem como os direitos e deveres definidos na Carta do Meio Ambiente de 2004[2].
A França é uma República indivisível, laica, democrática e social, de organização descentralizada e que expressa, na Constituição, igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem, raça ou religião[3]. Diferentemente da República Federativa do Brasil, é um Estado Unitário[4], sendo a sua Constituição de 04 de outubro de 1958 norma regente de toda a unidade nacional.
A língua da República Francesa é o francês; seu emblema nacional é a bandeira tricolor: azul, branca e vermelha; seu hino nacional é a Marseillaise; seu lema é “liberdade, igualdade e fraternidade” e seu princípio é: governo do povo, para o povo e pelo povo[5].
A soberania nacional na França pertence ao povo que a exerce pelos seus representantes e por meio do referendo.
O sufrágio pode ser direto ou indireto, nas condições previstas na Constituição Francesa. De qualquer forma, é sempre universal, igualitário e secreto[6].
2. O Poder Judiciário e o Ministério Público na França: Aspectos gerais.
O primeiro destaque a se fazer é a ocorrência de dualidade de jurisdições na França: a Administrativa e a Judiciária. Ambas são encabeçadas, respectivamente, pelo Conselho de Estado e pela Corte de Cassação. A existência destas duas ordens de jurisdição é historicamente atribuída à tentativa de afastar o Poder Judiciário (a jurisdição comum) das questões envolvendo a Administração Pública.
A jurisdição do Poder Judiciário (ou jurisdição comum) é competente, e.g., para a matéria penal e para processo e julgamento dos litígios entre particulares. Atua na jurisdição contenciosa e na jurisdição gracieux (jurisdição voluntária). Excepcionalmente será competente mesmo para litígios entre Estado e particulares, como na hipótese de fixação do valor da indenização em desapropriação, não tendo sido possível acordo entre expropriante e expropriado.
Por seu turno, a Jurisdição Administrativa é competente, e.g., para processar e julgar os litígios entre Estado, coletividades territoriais ou pessoas jurídicas (personnes morales) de direito público em um polo da ação e em outro polo particulares ou no casos dos polos consistirem em pessoas jurídicas de direito público.
Na cúpula do sistema se encontra o Conselho Constitucional, criado pela Constituição de 1958. Têm duas precípuas funções: o controle de constitucionalidade de normas e atividades eleitorais[7].
Nos termos do art. 56 da Constituição francesa, o Conselho Constitucional é composto por nove membros, com mandato de nove anos, vedada a recondução. Sua composição é renovada a cada três anos, à proporção de um terço. Seus membros têm origem em nomeações do Presidente da República, do Presidente da Assembleia Nacional e do Presidente do Senado, cada um com o poder de nomear três dos membros que compõem o Conselho.
Além dos nove membros assim nomeados, tomam parte no Conselho Constitucional os ex-presidentes da República Francesa.
O presidente do Conselho Constitucional é nomeado pelo Presidente da República, gozando do voto de qualidade em caso de empate.
Merece destaque dentre as competências do Conselho Constitucional o seu papel de controle abstrato de normas. Com efeito, dispõe o art. 61 da Constituição Francesa que as leis orgânicas, antes de sua promulgação, os projetos de lei a que se refere o art. 11 da Constituição Francesa[8], antes de serem submetidos a referendo e os regulamentos das Assembleias Parlamentares, antes da sua aplicação, devem ser submetidas ao Conselho Constitucional, que se pronunciará sobre a sua conformidade com a Constituição. Um dispositivo declarado inconstitucional com fundamento no art. 61 da Constituição não pode ser promulgado ou aplicado.
Igualmente, com o fim de realizar controle de sua constitucionalidade, leis ordinárias e compromissos internacionais podem (facultativamente) ser submetidas ao Conselho Constitucional pelo Presidente da República, pelo Primeiro-Ministro, pelo Presidente da Assembleia Nacional, pelo Presidente do Senado, por sessenta deputados ou sessenta senadores antes da sua promulgação.
As decisões do Conselho Constitucional não estão submetidas a qualquer tipo de recurso e se impõem aos poderes públicos e a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.
Competem ainda ao Conselho Constitucional atribuições diversas da jurisdição constitucional. Com efeito, cabe também ao Conselho velar pela regularidade da eleição do Presidente da República (art. 58), examinar reclamações e proclamar os resultados do escrutínio (art. 58), velar pela regularidade dos referendos previstos nos arts. 11 e 89 da Constituição Francesa e proclamar seus resultados (art. 60).
O Título VIII da Constituição de 4 de outubro de 1958 dispõe sobre a “autoridade judiciária”. Prevê o art. 64 que o Presidente da República garantirá a independência da autoridade judiciária, assistido em tal mister pelo Conselho Superior da Magistratura[9].
O Conselho Superior da Magistratura compreende uma formação competente para os assuntos que digam respeito aos “Magistrats du Siége” e uma formação para os assuntos atinentes ao “Magistrats du Parquet”.
A Constituição Francesa de 1958 assegura aos “Magistrats du Siège” a inamovibilidade.
A expressão constitucional “Magistrats du Siège” se refere aos magistrados competentes para instrução e julgamento dos conflitos. Estes exercem o papel que cabe, no direito brasileiro, à Magistratura. A expressão os diferencia dos chamados “Magistrats du Parquet”, referente à atividade análoga à do Ministério Público no Brasil.
Por fazerem uso da palavra de pé, os membros do Ministério Público francês ganharam a designação de “Magistrats Debout”, em contraposição aos “Magistrats du Siège” ou “Magistrados Assentados” (Magistrature Assise ou Magistrats du Siège, na expressão constitucional), que permanecem assentados, mesmo quando estão com a palavra.
Importante destacar que o Ministério Público francês, encarregado de defender, com exclusividade o denominado interesse geral é representado também por outros funcionários do Estado e não gozam (constitucionalmente) da garantia da inamovibilidade. Sua independência por vezes é questionada pelo fato de seus membros serem colocados sob direção e controle hierárquicos e sob a chefia “suprema” (na expressão de André Holleaux[10]) do Ministro da Justiça (Garde des Sceaux).
Expondo sobre a legitimação na defesa processual dos interesses ou direitos gerais, Joaquín Silgueiro Estagnan levou fortemente em conta o perfil do Ministério Público na França, criticando-o. Inicialmente, esclarece Estagnan que ao Ministério Público francês se reconhece a legitimação ativa para tutela de interesses ou direitos gerais, “si bien, al igual que en otros países, se insiste em que resulta insuficiente”, após o que acrescenta:
“Como disse Boy, el monopólio de la acción del Parquet aunque se justifica frente a incriminaciones precisas y en un sistema que garantice seriamente la independencia deste órgano, perde su justificación cuando el elemento legal de la infracción se diluye e cuando queda sometido ao Ministro de Justicia (Garde des Sceaux), personaje eminentemente politico[11]”.
Em contraposição, afirma André Holleaux que a subordinação hierárquica do Parquet ao Garde des Sceaux não constitui “nenhum anomalia”. Com efeito,
“Ele [o Parquet] está sob autoridade do ministro [da Justiça], mas permanece magistrado e um magistrado não é um funcionário. […] Ele pode, sem que haja escândalo, manifestar sua reprovação a uma intenção ministerial. Em definitivo, ele deve se submeter, mas todos sabem que a palavra é livre[12]”.
A respeito da falta da garantia constitucional de inamovibilidade, afirma André Holleaux que “os membros do Parquet não são inamovíveis, contudo, se se vai a fundo, eles são tratados, de forma mais ou menos igual aos seus colegas du Siège. A transferência de ofício de um procurador é um evento muito raro[13]”, de tal modo que se os membros do Ministério Público francês não possuam de direito a garantia da inamovibilidade, esta vem sendo reconhecida de fato.
Por fim, pertinente chamar a atenção para a denominada “Alta Corte”, prevista no art. 68 da Constituição Francesa. Em verdade, trata-se de Corte destinada à destituição do Presidente da República na hipótese de falta aos seus deveres de caráter manifestamente incompatível com o exercício de seu mandato. Esta destituição é pronunciada pelo Parlamento constituído em Alta Corte. A Alta Corte é presidida pelo Presidente da Assembleia Nacional[14].
3. A tutela coletiva na França: panorama geral.
Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Linda Mullenix, na obra Os Processos Coletivos nos Países de Civil Law e Common Law: uma análise do direito comparado, resultado do relatório geral conduzido por Ada Pellegrini Grinover do tema nº 5 – Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas – do XIII Congresso Mundial de Direito Processual, ocorrido em Salvador-Bahia, de 16 a 22 de setembro de 2007 dividiram a estrutura geral do relatório agrupando os países de acordo com os seguintes critérios:
“1. Países que apresentam um sistema de processos coletivos;
2. Países que contam com algumas disposições ou técnicas em matéria de processos coletivos;
3. Países que apresentam leis setoriais em matéria de processos coletivos (consumidor, ambiente etc.)[15]”.
E, com base neste critério, inseriram no grupo dos países que apresentam um sistema de processos coletivos Brasil, Portugal, Colômbia, Suécia, Noruega, Israel e as Províncias de Catamarca (Argentina) e Rio Negro (Argentina). Dentre os países que contam com algumas disposições ou técnicas em matéria de processos coletivos se encontram Uruguai, Holanda, Costa Rica, Argentina, Peru, Venezuela, Japão, Bélgica, Dinamarca e Rússia. Já do último grupo constam Alemanha, Áustria, Espanha, Itália, Suíça, Chile, México, Paraguai e França, todos apresentando leis setoriais em matéria de processos coletivos[16].
Destaca Aluisio Gonçalves de Castro Mendes duas importantes características históricas da tutela coletiva na França. A primeira, a de estar a tutela coletiva quase sempre vinculada à denominada action civile do art. 2º do Code de Procédure Pénal, nos termos do qual a ação civil de reparação de danos causados por um crime, um delito ou uma contravenção cabe a todos aqueles que tenham pessoalmente sofrido um dano diretamente causado pela infração[17], dispositivo a partir do qual “foi-se ampliando gradativamente através de autorizações legais, para que organizações coletivas pudessem atuar como partie civile, propondo a referida ação coletiva[18]”. A segunda importante característica é a ligação umbilical da tutela coletiva aos sindicatos, na proteção dos interesses coletivos da profissão.
Na França, a existência apenas de leis setoriais em matéria de processos coletivos acaba conduzindo à restrição da legitimação ativa. Por um lado – nas hipóteses de interesse geral – é legitimado exclusivo o Ministério Público e por outro – nas hipóteses de interesse coletivo – os sindicatos, de forma mais estreita em algumas associações e, excepcionalmente, pessoas físicas[19].
Ao Ministério Público, na França, caberá com exclusividade a legitimação ativa para ações coletivas que busquem tutela de ‘interesses gerais’[20]. Ocorre que o conceito é impreciso, como bem assinalou Joaquín Silguero Estagnan não se distinguindo com clareza dos ‘interesses coletivos’, para os quais a legitimidade ativa pode recair em sindicatos, associações e até mesmo (em hipóteses bem restritas) em pessoais naturais. A imediata consequência desta imprecisão é que “la infracción a este [aos ‘interesses gerais’] unicamente legitima al ministério público para la obtención de tutela procesal[21]”. A jurisprudência francesa, embora submetida a críticas, apresenta tendências restritivas ao proibir a constituição de partes civis nas hipóteses em que o interesse individual ou coletivo se confunde com o interesse geral[22].
Na tutela dos denominados – mas não definidos, nem claramente delimitados – interesses coletivos devem ser destacados os sindicatos. Na França os sindicatos podem, perante todas as jurisdições, com fundamento no art. L. 411-11 do Code du travail exercer todos os direitos reservados à parte civil relativamente aos fatos que acarretem direta ou indiretamente prejuízos ao interesse coletivo da profissão que o sindicato respectivo representa[23].
A legitimação dos sindicatos remonta à Lei de 21 de março de 1884. Em 1913, “as Câmaras reunidas da Corte de Cassação proferem julgamento, considerado fundamental, reconhecendo o direito das entidades sindicais de ajuizarem ações visando à proteção dos interesses coletivos da profissão[24]”. Estes interesses coletivos tuteláveis pelos sindicatos, alerta Joaquín Silguero Estagnan, não devem ser confundidos nem com o interesse geral, nem com interesses individuais dos membros do sindicato[25]. É essencial que se relacione diretamente com a profissão representada pelo legitimado ativo e que o sindicato invoque um prejuízo direito ou indireto ao interesse coletivo desta profissão, quer de natureza material ou moral[26].
Os sindicatos assumem no direito francês papel de relevo na tutela coletiva, ainda que a “tendencia sigue siendo restrictiva y la própria noción e interés colectivo se emplea para limitar dicha legitimación[27]”.
Posteriormente a autorização para os sindicatos agirem em juízo na defesa dos interesses coletivos se estendeu para as associações, embora com considerável lapso temporal entre uma e outra. Com efeito, de acordo com Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, foi sobretudo nas décadas de 70 e 80 que as associações passaram a ter reconhecida a legitimidade para a defesa de interesses coletivos, quer na jurisprudência, quer na legislação[28].
Destaca o relatório francês do XIII Congresso Mundial de Direito Processual, entrementes, que diferentemente dos sindicatos, as associações não têm o poder geral de agir em juízo na defesa de um interesse ou direito coletivo considerado independentemente de seus interesses pessoais ou do interesse pessoal de seus membros. Excepcionalmente, algumas associações alcançam o reconhecimento de poder agir em juízo para a salvaguarda de interesses coletivos determinados, por meio de uma habilitação especial da lei. Habilitações estas que, tomadas de empréstimo no dispositivo legal que legitima os sindicados para agir em juízo nas ações coletivas, vem se multiplicando nos últimos anos[29].
Também aqui a diferenciação entre interesse geral e interesse coletivo pesa em desfavor das associações. Com efeito,
“mayores dificultades ha encontrado la acción colectiva de las asociaciones y, fuera de los supuestos en que la ley les habilita para la defensa de intereses colectivos determinados, la jurisprudência ha sido restrictiva amparándose en la dificuldade de caracterizar el interés colectivo[30]”.
A dificuldade de caracterizar nitidamente o ‘interesse coletivo’ no caso concreto, requisito imprescindível para firmar a legitimação da associação que pretende atuar em juízo acarreta frequentemente a inadmissibilidade de ações coletivas por elas propostas. Grupos de pressão da sociedade civil, entretanto, têm provocado ampliação da admissibilidade pelo poder judiciário francês de ações coletivas propostas por associações[31]. No mesmo sentido, o legislador francês vem multiplicando as exceções atribuindo às associações o poder de agir em juízo na defesa de interesses ou direitos coletivos[32]. O sistema se revela parcialmente diferente do brasileiro. Neste, de lege lata adota-se o critério ope legis, ou seja, enumeração expressa em lei dos legitimados ativos para as ações coletivas, caracterizando a legitimação extraordinária.
As regras para propositura de ações coletivas por associações são variáveis. Ainda que haja um conjunto mínimo de normas comuns a todas as associações, tendo por condições de fundo, por exemplo, antiguidade e representatividade adequada, há hipóteses de diferenciação de tratamento: Em certos casos o preenchimento daqueles requisitos bastará e a associação poderá agir livremente, sem autorização ou mesmo informação prévia ao grupo interessado; em outros casos, todavia, a associação só poderá agir mediante comprovação de estar autorizada pelo grupo representado[33].
Nestes três atores – Ministério Público, sindicatos e associações – se encontram os principais legitimados ativos para ações coletivas de tutela do interesse geral (Ministério Público) ou coletivo (sindicatos e associações). Como sintetizou Joaquín Silguero Estagnan,
“[…] lo certo es que por la evolución legislativa y jurisprudencial em Francia, se reconoce ‘qualité’ sólo a las personas jurídicas, distinguiéndose los supuestos de grupos de naturaliza professional de los que no lo son. Otros casos encontrarían el obstáculo del art. 32 del Code de Procédure Civile al declarar inadmisible toda pretensión emitida por o contra una persona desprovista de derecho de acción (‘droit d’agir’)[34]”.
Com a devida vênia, deve-se discordar parcialmente do posicionamento de Joaquín Silguero Estagnan exclusivamente no trecho em que afirma que no direito francês “se reconoce ‘qualité’ sólo a las personas jurídicas”. Isso por que ao lado dessas pessoas jurídicas (personnes morales, na expressão francesa), às pessoas físicas é reservado um campo – embora assaz diminuto, verdade seja dita – mas de qualquer forma um espaço de participação nos processos coletivos. Há previsão legal de legitimação ativa para pessoas naturais, por exemplo, no art. L. 622-20 do Código Comercial francês, segundo o qual o mandatário judicial designado pelo tribunal pode agir, em nome e no interesse coletivo dos credores[35].
De qualquer modo, as hipóteses de legitimação ativa para pessoas naturais são excepcionais, como destacado no relatório francês do XIII Congresso Mundial de Direito Processual[36]. Esta situação levou Laurence Boy, citado por Joaquín Silguero Estagnan, a afirmar que “lo que ocorre con los interesses colectivos es que están juridicamente protegidos (legítimos) pero no están conceptualizados al no conferirse sobre los mismos prerrogativas precisas para su defensa por el individuo[37]”.
Tendo-se em conta a afirmação de Laurence Boy, citado por Joaquín Silguero Estagnan, de que “a regulación de la acción es el punto de contacto entre la ideologia jurídica y los datos materiales históricos, económicos y sociales de una sociedad con lo que se entende que en ella confluyan las contradicciones en la problematica de la defensa por los grupos de sus interesses colectivos[38]”, as particulares características da tutela coletiva francesa podem assumir mesmo contornos esclarecedores do próprio espírito de seu povo. Um contraponto interessante está, por exemplo, na cultura da class action americana. Em “The Political Theory of the Class Action”, escreveu Owen M. Fiss:
“Enquanto temos uma forte tradição, de origem no fim do século dezenove, que autoriza ações civis iniciadas pelo governo como alternativa à persecução penal, temos sido relutantes em fazer destas ações a única alternativa disponível para lidar com tais casos. Esta relutância pode refletir a característica descrença americana no governo e o desejo de preservar um espaço para os cidadãos engenhosos e criativos. Mais concretamente, a indisposição de fazer do processo iniciado pelo governo a única opção civil nestas situações pode estar enraizada na desconfiança com o sistema oficial de governança e com o modo como os servidores públicos desempenham seus deveres. […] Como resultado, a ideia do procurador geral privado surgiu. O cidadão é legitimado ativo para iniciar o processo, mas a função da ação é a mesma da conduzida pelo procurador geral, nomeadamente, reivindicar a tutela do interesse público[39]”.
Neste particular o Brasil adotou uma solução intermediária. Nos termos do art. 5º, inc. LXXIII “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. Para as outras ações coletivas (Ação Civil Pública, Ação de Improbidade Administrativa, Mandado de Segurança Coletivo, Mandado de Injunção Coletivo etc.) não existe previsão de legitimação ativa para pessoas naturais.
No tocante à coisa julgada coletiva no direito francês, a única informação disponível revela a filiação à regra tradicional do direito processual civil comum segundo a qual a coisa julgada se dá entre as partes que tomaram parte no processo[40].
Em síntese, pode-se afirmar que nenhuma das ações coletivas francesas “corresponde à hipótese das class actions dos Estados Unidos da América do Norte ou às ações[41] coletivas do direito quebequense[42]” limitando-se a defesa dos interesses ou direitos coletivos na França à atuação das associações como parte civil[43], naquilo que não seja campo dos sindicatos e, de forma muito incipiente, às pessoas naturais.
4. A omissão constitucional quanto ao processo coletivo e a legislação ordinária.
Não há na Constituição Francesa qualquer regra que diga respeito ao processo coletivo. Na legislação infraconstitucional, por seu turno, se encontram poucas regras esparsas sobre os processos coletivos, de maneira geral, exclusivamente atribuindo a determinados representantes a necessária legitimação ativa para agir em juízo.
As mais importantes destas regras são os já mencionados art. 2º do Code de Procédure Pénal, nos termos do qual a ação civil de reparação de danos causados por um crime, um delito ou uma contravenção cabe a todos aqueles que tenham pessoalmente sofrido um dano diretamente causado pela infração[44]e o art. L. 411-11 do Code du travail, de redobrada relevância e marco da tutela coletiva francesa, nos termos do qual os sindicatos podem perante todas as jurisdições exercer todos os direitos reservados à parte civil relativamente aos fatos que acarretem direta ou indiretamente prejuízos ao interesse coletivo da profissão que o sindicato respectivo representa[45].
Para as associações, merece destaque o art. L. 421-1 do Code de la Consommation que dispõe poderem as associações regularmente declaradas, tendo explicitamente por objeto estatutário a defesa dos interesses dos consumidores, se autorizadas para este fim, exercer todos os direitos reconhecidos à parte civil, relativamente aos fatos que acarretem prejuízo direto ou indireto ao interesse coletivo dos consumidores[46].
Aluisio Gonçalves de Castro Mendes informa ainda a existência de leis ambientais prevendo a legitimação de associações para a propositura de ações civis, a possibilidade de ações civis propostas por associações de defesa de investidores em valores mobiliários ou financeiros e, por fim, a previsão do Código de Saúde Pública dispondo sobre legitimação para associações antitabagistas, em ações relativas a infrações estabelecidas no próprio Código[47].
5. A União Europeia e os direitos coletivos.
O Estado Francês faz parte da União Europeia[48], sendo um de seus principais protagonistas.
A União Europeia é uma parceria econômica e política única entre 27 países europeus. Atualmente tem moeda única (o Euro) e mercado único sem fronteiras onde as pessoas, as mercadorias, os serviços e os capitais circulam livremente. Surgida logo após a Segunda Guerra Mundial, “o que começou como uma união puramente económica converteu-se numa organização activa em inúmeras áreas, que vão da ajuda ao desenvolvimento à política do ambiente[49]”.
No tocante aos direitos coletivos a União Europeia se concentra na tutela dos consumidores, não se ocupando nem de interesses ou direitos difusos, nem de outras categorias de interesses ou direitos coletivos[50].
“A coisa se entende se se examina a história. A União Europeia […] nasceu como um mercado comum para a livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas. Com a máxima atenção, por isso, em todos os mecanismos jurídicos que facilitem a livre concorrência. Dentre estes mecanismos a tutela dos consumidores constitui um fator de extrema importância[51]”.
Com o fulcro de atingir seus objetivos a União Europeia tomou dois rumos: introdução de mecanismos jurídicos capazes de assegurar uma tutela coletiva aos interesses ou direitos dos consumidores e a introdução de mecanismos alternativos de solução dos litígios, em especial a conciliação.
A União Europeia expediu diretivas aos seus Estados membros no sentido de introduzir em seus ordenamentos jurídicos nacionais formas de tutela coletiva dos direitos dos consumidores.
Os Estados nacionais, todavia, permanecem com grande liberdade de escolher o modelo a seguir (tutela administrativa ou judicial; legitimação processual a ente públicos, a associações privadas ou, ainda, às pessoas naturais)[52]. De igual modo, a União Europeia não tomou posição sobre aspectos particulares relativos ao processo coletivo (por exemplo, legitimação e coisa julgada), remetendo-as aos legisladores nacionais, aos costumes e à discussão acadêmica[53].
Do exposto vislumbra-se certo distanciamento da União Europeia e do próprio direito francês das questões envolvendo os direitos difusos, coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos, tais como conceituados no parágrafo único do art. 81 da Lei Brasileira nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), com exceção daqueles relativos às relações consumeristas.
6. As propostas e projetos de lei para a tutela coletiva na França.
O relatório francês do XIII Congresso Mundial de Direito Processual[54]noticia a existência de propostas e projetos de lei voltados a “uma modificação da legislação para permitir aos grupos de consumidores e às suas associações propor ações coletivas contra práticas abusivas encontradas em certos mercados[55]”.
Um grupo de trabalho interministerial apresentou em dezembro de 2005 um relatório com duas propostas principais. Ao relatório se seguiu no Congresso Francês a apresentação de dois diferentes projetos de lei.
Das duas propostas do governo francês, a primeira seria de uma “ação inspirada na class action dos Estados Unidos da América e na ação[56]coletiva do direito quebequense[57]”. O procedimento judicial seria bifásico: A primeira fase voltada para o exame de admissibilidade da ação coletiva proposta e a segunda fase concentrada no julgamento das questões de fundo das pretensões (mérito), ou seja, julgamento do pedido de reparação de perdas e danos. A ação poderia ser proposta por qualquer pessoa física ou jurídica (morale), advogado ou associação interessada. O sistema poderia ser o opt-in, no qual os membros potenciais da ação devem indicar seu desejo de serem representados no quadro da ação proposta ou o opt-out, no qual os membros do grupo representado têm a faculdade de se excluir da ação proposta. É de se destacar, porém, que “para a quase unanimidade da doutrina, a jurisprudência do Conselho Constitucional, fundada na liberdade pessoal de ação proíbe no direito francês o sistema opt-out[58]”.
A segunda proposta seria uma “ação de declaração de responsabilidade por danos coletivos[59]”, desenhada também como procedimento bifásico: a primeira fase com a declaração da responsabilidade pela ocorrência dos danos; e a segunda fase com o comparecimento individualizado em juízo dos consumidores diretamente atingidos pelos danos (inclusão voluntária no processo ou opt-in) para que o juiz decida sobre cada um dos pedidos de reparação por perdas e danos (Dans une seconde phase […] Le juge statuerait sur chacune des demandes de dommages et intérêts[60]).
Nesta esteira, dois projetos de lei foram apresentados no Congresso Francês em 2006: um no Senado e outro na Assembleia Nacional, embora não haja certeza de que nenhum dos dois venha a ser analisado e debatido pelo Parlamento “por que na França é em princípio o governo quem tem o controle da ordem do dia parlamentar[61]”.
O projeto apresentado no Senado por um grupo de parlamentares de esquerda se identifica melhor com o segundo modelo proposto pelo relatório governamental (a denominada “ação de declaração de responsabilidade por danos coletivos”); já o projeto apresentado na Assembleia Nacional por um deputado[62] de direita é inspirado no primeiro modelo proposto (de inspiração na class action americana).
Em artigo publicado em 13 de abril de 2011, Aurélia Lauby, Frédéric Nunes e Sandra Kahn afirmam que “depois de 2005, numerosas tentativas de introdução de ações coletivas na França foram abortadas[63]”, sendo que “a introdução da class action ou ação de grupo no direito francês encontra fortes resistências[64]”. De qualquer forma, expressam estar claro que a introdução de ações coletivas é uma das prioridades do mandato da nova Comissão Europeia, sendo que uma consulta pública foi aberta em novembro de 2010 na perspectiva de uma proposição legislativa em 2011[65].
Conclusões
A tutela de direitos coletivos lato sensu na França está concentrada em poucos legitimados ativos: No Ministério Público, nas hipóteses de direitos ou interesses gerais e nos sindicatos, associações e, excepcionalmente, em pessoas naturais, nas hipóteses dos denominados direitos ou interesses coletivos.
A delimitação entre direito ou interesse geral e direito ou interesse coletivo não é clara na doutrina francesa, acarretando inadmissibilidade de ações propostas por associações, sob alegação de se estar pleiteando interesse geral, de legitimidade exclusiva do Ministério Público.
Não há, na França, um sistema organizado de tutelas coletivas. Trata-se de país que apresenta apenas leis setoriais em matéria de processos coletivos, em especial na tutela do consumidor, o que, aliás, se repete em outros países europeus, possivelmente por ser o direito do consumidor foco principal das diretivas da União Europeia.
Desde 2005, várias tentativas de introdução de ações coletivas na França não foram exitosas, caracterizando-se o direito francês como fortemente resistente às class actions ou outras formas de tutela de direitos coletivos, possivelmente por uma arraigada compreensão do processo como técnica exercida individualmente pelo titular do direito lesado. Confirma esta conclusão a jurisprudência majoritária do Conselho Constitucional impondo – com fundamento na liberdade pessoal de agir em juízo – o sistema opt-in.
Noutro giro, eventos recentes amplamente divulgados pela mídia, como grandes passeatas contra a reforma previdenciária, podem ser indicativos de uma nova mobilização popular conducente a reformas no direito francês, inclusive no campo das tutelas coletivas.
Bacharel em Direito – Faculdades Integradas de Direito Cândido Mendes Ipanema/RJ – (1990); Graduação em Pedagogia com Habilitação em Orientação Educacional pela PUCMinas (1983) e Habilitação em Supervisão Escolar pela PUCMinas (1982); Mestre em Direito pela UFMG (1994) e Doutora em Direito pela UFMG (2003). Professora Associada de Processo Civil na graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) na UFMG
Bacharel em Direito (UFMG). Especialista em Direito Processual (PUCMinas). Mestrando em Direito (UFMG).
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