“Esta água não é apenas para mim. Ela pertence a todos: homens, mulheres, pássaros, plantas, animais. Ela não pode ser consumida de modo ganancioso por um ou por poucos.” Mahatma Ghandi
A ÁGUA é um líquido formado por moléculas de hidrogênio e oxigênio, como também um dos bens mais preciosos para a existência da vida.
A água existente na Terra forma a hidrosfera. Ela se distribui da seguinte maneira no planeta: 97,5% constituem os oceanos e mares, e 2,5 % é água doce. Da água doce, 68,9% formam as calotas polares, geleiras e neves eternas que cobrem os cumes das montanhas altas da Terra, 29,9% constituem as águas subterrâneas e 0,9 % respondem pela umidade do solo e pela água dos pântanos[1]. Oportuno ressaltar que o Brasil possui a maior disponibilidade hídrica do planeta, ou seja, 13,8% do deflúvio médio mundial.
Dentro dessa projeção, podemos constatar que as fontes hídricas diretamente disponíveis representam uma baixa porcentagem, e podemos observar que estão mal distribuídas, na superfície do planeta.
Como fator agravante, desde o surgimento da vida no planeta, há cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, a expansão das atividades exploratórias do homem vem transformando esse valioso elemento da natureza, causando um desequilíbrio nos recursos hídricos disponíveis e degradando os ecossistemas aquáticos.
Esses são os motivos pelos quais, no século XXI, em que nos encontramos, tem havido uma conscientização de todos para o aprimoramento de uma política que vise a melhoria e preservação dos recursos hídricos, como uma questão de sobrevivência, na certeza de que a água vem se caracterizando como um insumo escasso no planeta.
Pelos ensinamentos de Marlusse Pestana Daher, por políticas públicas entende-se “um conjunto de idéias a serem concretizadas, mediante uma pedagogia especificamente elaborada para consegui-lo”[2], sendo certo que, em se tratando de recursos hídricos, em 1997, foi instituída a “Política Nacional de Recursos Hídricos”, através da Lei n. 9.433, que definiu a água como recurso natural limitado, dotado de valor econômico, e com utilidades múltiplas.
Ocorre, porém, que apenas políticas públicas prevendo, por exemplo, o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com gestão desses recursos de forma descentralizada, e contando com a participação do Poder Público, usuários e comunidades, não bastam para que haja uma efetiva proteção das águas, sendo imprescindível a existência de uma legislação jurídica específica.
A tutela jurisdicional das águas na esfera criminal, objeto principal do presente estudo, tem por objetivo combater ações violadoras do ecossistema aquático.
A proteção dos recursos hídricos, apesar de ter seu primórdio no primeiro Código Penal da República[3], nunca teve por objetividade jurídica o meio ambiente, mas sim a saúde pública, e hoje a proteção penal das águas está limitada a dois artigos, dentre os 361 existentes no Código Penal Brasileiro, e no artigo 54 da Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente.
Os artigos 270 e 271, que no Estatuto Repressivo cuidam, respectivamente, do envenenamento e da corrupção ou poluição de água potável, ao tutelarem a saúde pública, com toda a certeza não podem receber a denominação de “delitos ecológicos”, na amplitude exigida pelo artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal, que dispõe:
“As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente da obrigação de reparar os danos causados.”(grifamos).
Na formulação dos tipos penais, ao mencionar “água potável”, o legislador de 1940 limitou o objeto material desses dois crimes, pois assim se tem “a água destinada a alimentação, seja bebida, seja empregada no preparo de alimentos”[4], excluindo-se a água que não se presta a esses fins; é oportuno observar que hodiernamente todos sabemos que não só a água potável é de relevante importância ao ecossistema de nosso planeta.
O dolo, como vontade livre e consciente de querer tornar a água imprópria para o consumo ou nociva à saúde, há que estar presente na conduta do agente, sendo a forma culposa consagrada com pena substancialmente menor.
Imprescindível ressaltar que a Lei dos Crimes Hediondos[5] incluiu o mencionado artigo 270 na relação dos delitos que receberam a designação dessa Lei e, muito embora tenha sido retirado desse rol, com o advento da Lei n. 8.930/94, a pena então majorada assim permaneceu.
Ocorre, porém, que apesar de apenar-se o delito de envenenamento de água potável com excessivo rigor[6], o Código Penal se mostra totalmente em defasagem, com relação às novas modalidades de dano ambiental; a título de exemplos, pode ser mencionada a destruição das nascentes, a poluição das águas não potáveis, a erosão e áreas degradadas, etc.
A Lei dos Crimes Ambientais, por sua vez, reordena a legislação ambiental brasileira, no que se refere às infrações e punições, e, na abalizada opinião do mestre Édis Milaré[7], ao tipificar o crime de poluição em seu artigo 54, porque não há referência a um tipo específico de poluição, a Lei dos Crimes Ambientais englobou também a hídrica, reforçando sua fundamentação, com a afirmativa de que esse crime será qualificado se “causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade”.[8]
De fato, por poluição podemos entender toda e qualquer contaminação dos mais variados ambientes vitais existentes no planeta, vale dizer, terra, ar, mar e água, em face de condutas realizadas pelo homem, que introduz nesses ambientes elementos nocivos, gerando danos e prejuízos aos recursos naturais.
A mencionada Lei n. 9.605/98, preocupada com a efetiva proteção do meio ambiente, estabelece a possibilidade de ser extinta a punibilidade do agente – pessoa física ou jurídica – quando comprovada a recuperação do dano ambiental.
Questiona-se hodiernamente a eficácia do direito penal para a tutela do meio ambiente, e também até que ponto poderíamos nos valer de uma legislação repressiva extravagante, nesse ramo do direito, para proteger de forma efetiva as águas.
Por um lado, na medida em que o meio ambiente ecologicamente equilibrado representa, sem sombra de dúvida, um dos direitos fundamentais da pessoa humana[9], há doutrinadores que afirmam a imprescindibilidade da tutela penal do meio ambiente, justificando a utilização do direito penal como ultima ratio, com a afirmativa de que “muitas vezes, as normas gerais não penais não se mostram suficientes para a tutela de interesses sociais, impondo-se assim o socorro do direito penal, com suas sanções severas, para tutelar um bem jurídico que se encontra ameaçado por condutas que venham a lesionar ou pôr em perigo este bem”.[10]
Nessa esteira de pensamento segue Milaré, defendendo que “preservar e restabelecer o equilíbrio ecológico em nossos dias é questão de vida ou morte” e, ao ressaltar o valor dado pelo legislador constitucional à questão ambiental, conclui que “arranhada estaria a dignidade do direito penal caso não acudisse a esse verdadeiro clamor social pela criminalização das condutas antiecológicas”.[11]
Porém, deve-se advertir que a proteção penal do meio ambiente não pode se sobrepor aos princípios inerentes ao nosso ordenamento jurídico, aos quais se chegou após séculos, sendo certo que a garantia do meio ambiente saudável não pode, de igual sorte, representar uma perseguição atroz, incansável e violadora dos direitos da pessoa – humana ou jurídica.
Tal afirmativa é feita, pois a tripla penalidade inserida no texto constitucional acima transcrito vale dizer, civil, administrativa e penal aplicada muitas das vezes de forma cumulativa, não faz do direito penal um instrumento de ultima ratio, mas viola os mais comezinhos princípios inseridos em nosso ordenamento jurídico.
Afirmamos certa vez que “A dimensão das liberdades do cidadão na Constituição Federal de 1988 não deixa margem a dúvidas de que não há mais espaço no direito penal moderno para uma política criminal intervencionista. A função dos princípios constitucionais penais, ao contrário do que possa parecer a primeira vista, não é de legitimar o exercício absoluto do poder punitivo, mas antes condicioná-lo, vinculá-lo, servindo de obstáculos à indiscriminada utilização da punição”.[12]
Assim, se o direito penal deve atuar como resposta social à lesão ao meio ambiente, em face da natureza do bem tutelado, o direito de punir estatal deve ser utilizado em última instância, vale dizer, deve intervir somente depois que outros ramos do direito não se mostrarem eficazes contra as condutas antiambientais, lembrando-se que o escopo maior não é a sanção à pessoa (física ou jurídica), mas a obrigação reparatória dos danos causados aos recursos hídricos, efetividade essa que é perfeitamente alcançada pelo direito civil e pelo direito administrativo.
Apartando-se dessas questões que envolvem uma política criminal de lei e ordem ou de defesa social por uma intervenção mínima, certo é que, a partir da Constituição de 1988, cujo texto acima foi transcrito, o direito penal ecológico tem galgado espaços em busca da proteção do meio ambiente, sendo importante destacar que a Carta Magna consagra a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes ambientais, tendo a Lei n. 9.605/98 cominado sanções adequadas à sua natureza.
Finalizando este estudo sobre a tutela penal das águas, não podemos deixar de consignar que o direito penal, como ultima ratio para preservar e restabelecer o equilíbrio ecológico estará sendo invocado em vão se não houver em paralelo uma política de educação ambiental em nossa sociedade, com capacitação de pessoas e agentes multiplicadores da conscientização da comunidade para a importância da preservação da qualidade da água e de vida dos habitantes de todo o planeta. Merece destaque nesta oportunidade a Lei n. 9.795, de 27.4.1999, que, ao instituir a Política Nacional de Educação Ambiental, disciplinou, em seu artigo 1º, que “A Educação Ambiental é um componente essencial e permanente da Educação Nacional, de desenvolvimento da cidadania, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal”.
As atitudes individuais de cada cidadão, quer fazendo uso racional desse recurso natural, quer colaborando para a preservação e proteção dos recursos hídricos, garantirão o direito da humanidade de dispor de água, permitindo que esse elemento vital para o ser humano seja usufruído em sua plenitude.
A preservação dos rios e de todos os recursos hídricos depende de educação ambiental, e se não houver um trabalho de esclarecimento sobre o lançamento de lixo nos cursos d’água, a necessidade de se combater as erosões e o perigo que gera o desvio das águas, por exemplo, toda a repressão penal representará, como sói acontecer, a existência de um direito penal simbólico, dentro de uma legislação penal já comprometida.
Urge um trabalho integrado – Estado e sociedade – com investimentos em obras, fiscalização e educação, para reverter os graves problemas de saneamento que comprometem a qualidade da água e a vida dos rios brasileiros.
Procuradora do Estado de São Paulo, Doutora em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); Coordenadora do Curso de Direito e Professora de Direito Penal na Universidade Paulista (UNIP), Campus Eden – Sorocaba e Professora da Escola Superior do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP).
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