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A vigilância coletiva e o direito de privacidade

Resumo: A partir do momento que deixamos nossa residência, somos constantemente monitorados por câmaras públicas e privadas instaladas na via pública. Muitas vezes é através das imagens de tais câmaras que há possibilidade de se resolverem crimes e punir seus responsáveis, ou seja, há uma vigilância aprimorada da que é descrita por Foucault na obra “Vigiar e Punir”. O presente artigo tem como espoco questionar até que ponto o direito à privacidade é respeitado em face da constante vigilância humana. Partimos de uma impressão geral para a formalização de um conjunto de conclusões a respeito da vida moderna, sobre os conceitos de segurança pública e, portanto, de intrincadas questões apresentadas a nós no diário desafio de viver em sociedade. Começamos nos perguntando se os engenhos tecnológicos mais recentes podem ter gerado conflitos teóricos mais profundos do que as questões debatidas nos fóruns filosóficos da Antiga Grécia, onde o cidadão, homem, deveria expor suas idéias num contexto que entrou para a História como o nascimento do conceito de vida que hoje chamamos de Democracia. Notamos, de saída, que a noção de crime, e de seus correlatos, punição, prisão, sentença de morte, provém da organização das sociedades humanas em modos diversos e crescentes ao longo do tempo, sendo, portanto, parte do que se convencionou chamar em Antropologia de “sociedade complexa”, em comparação àqueles formatos tribais de organização social. Nosso estudo pretende analisar os conflitos da “sociedade complexa”, por entendermos que as sociedades simples já se esgotaram como modelo, pelo menos como referência para um trabalho que se volta para os códigos de previsão do que seja crime e suas correlações numa sociedade regida por leis escritas e por códigos de interpretação que no mínimo levam em conta a realidade social, diversa entre países diversos, sempre móvel e sempre sujeita a mudanças.  Como demonstram episódios recentes, como os dados divulgados pelo site Wikileaks, vigiar parece ser um termo tão primário quanto complexo, tão absurdo quanto indispensável. Pois se vigiar na Antiguidade era um ato estritamente ligado ao olhar humano em seu sentido mais óbvio, o vigiar numa sociedade moderna é “olhar” em sentido amplo. E quando já finalizávamos nossa dissertação duas informações importantes vieram a público. A primeira era sobre o rebaixamento do Brasil, por uma entidade inglesa, no ranking de países ditos democráticos, ficando na categoria “democracia imperfeita”. A Segunda notícia dava conta da aprovação pelo Senado Brasileiro do novo Código de Processo Penal (CPP). A notícia diz que com isso o País deu um passo decisivo para modernizar um dos mais defasados institutos do ordenamento jurídico brasileiro. Diz a notícia: “Graças a inovações tecnológicas, o novo Código consagra medidas inimagináveis na época em que o atual entrou em vigor, tais como monitoramento eletrônico de presos, realização de videoconferências para depoimentos e interrogatórios e utilização da internet para remessa de informações”. Ou seja, uma notícia de última hora nos deu uma resposta que buscávamos no início deste trabalho. Por que, como mostramos logo mais abaixo, a questão da vigilância e da punição diz respeito ao tipo de país, portanto, que tipo de democracia construímos, até mesmo pela alienação absoluta, isso porque um dos pontos que levou ao rebaixamento brasileiro em Londres foi à falta de participação política dos brasileiros no processo representativo.


Palavras-chave: vigilância na sociedade democrática, vigilância pública eletrônica , punição de crimes.


Abstract: We left an impression for the formalization of a set of conclusions about the modern life, the concepts of public safety and therefore intricate questions presented to us in the daily challenge of living in society. We started wondering if the latest technological devices may have led to conflict theorists deeper than the philosophical issues discussed in the forums of ancient Greece, where citizens, men should express their ideas in a context that made history as the birth of the concept of life we ​​now call democracy. We note at the outset that the concept of crime and its correlates, punishment, imprisonment, death sentence, comes from the organization of human societies in different ways and growing over time, therefore, part of what is conventionally called Anthropology of “complex society” compared to those formats tribal social organization. Our study aims to examine the conflicts of “complex society”, because we understand that companies have been exhausted as a simple model, at least as a reference for a job that turns to the code’s prediction of what is crime and their correlations in a society governed by written laws and codes of interpretation that at least take into account the social reality, different between different countries, always moving and always subject to change. As recent events demonstrate, as data released by the website Wikileaks, seems to be a watch word as primary and complex, as absurd as indispensable. For if you watch in ancient times was an act strictly linked to the human eye in its most obvious sense, the watch in a modern society is “looking” at large. And when it finalizávamos our thesis two important information became public. The first was on the downgrade of Brazil by a British organization, the ranking of countries that consider themselves democratic, being in category “imperfect democracy”. The news yesterday gave an account of the Brazilian Senate approved the new Code of Criminal Procedure (CPP). The report says that with the country took a decisive step to modernize one of the most outdated institutions of Brazilian law. Says the article: “Thanks to technological innovations, the new Code contains measures unimaginable at the time the current took effect, such as electronic monitoring of prisoners, videoconferencing for interviews and interrogations and the use of Internet for delivery of information.”  That is, a breaking news story gave us an answer we were looking at the beginning of this work. Why, as soon as we show below, the issue of surveillance and punishment with regard to the type of country, so what kind of democracy we built, even the absolute alienation, because one of the points that led to the demotion was Brazilian in London the lack of political participation of Brazilian representative process.


Keywords: surveillance in a democratic society, public surveillance electronics, punishment of crimes.


Sumário:1. Introdução. 2. Vigiar e punir, ontem e hoje. 3. A sociedade vigia e teme. 4. O direito de comprar e de usar. 5. Considerações finais. 6. Referências.


1 – INTRODUÇÃO


Vigiar é preciso, punir também é. Não existe sociedade sem um conjunto de regras que exclua essas duas linhas de ação humana. Nos tempos modernos, as discussões parecem ter incorporado sutilezas desnecessárias em tempos remotos. Parece-nos que isso ocorre por que um grande número de pessoas partilha, nos dias de hoje, de direitos básicos, garantindo, assim, o fortalecimento de uma noção universal, a da prevalência do Direito Coletivo. Mas a questão que ficará sempre a serviço desta discussão é em que tipo de democracia se vive nos tempos modernos, que ordem de vigilância e punição é possível, e até mesmo desejável, num regime democrático?


Nossas cidades estão cheias de câmeras de filmagem, nossas calçadas cheias de pessoas portando dispositivos eletrônicos de fotografia e filmagem, constituem elas um grupo de direitos adquiridos? Isso para não levarmos em conta a existência de milhares de equipes de telejornalismo, “internetjornalismo” e de “blogjornalismo”, todos necessitados de captar imagens de pessoas com finalidade dupla, informar e faturar.


Nossa tese nos leva a pensar que os aparatos técnicos e tecnológicos, masmorra na antiguidade, câmeras de vigilância e injeção letal na modernidade, tornam-se mera coleção de elementos, que podem perfeitamente ilustrar um inventário das engenhocas inventadas pelos seres humanos, mas a discussão de base, que realmente faz sentido, é que forma de humanismo se revela e que tipo de regime esse humanismo sustenta.


Para sermos mais claros, o fundamental é como o ser humano se organiza e como defende sua forma de organização. Nesse sentido, abordamos as obras de pensadores que refletiram sobre esses temas, mas notamos que mais importante é exercer um pensamento livre sobre as experiências registradas tanto nos livros quanto na sociedade em seu estado de existência.


Em outros termos, não é tão importante se seremos uma sociedade totalmente calcada na idéia da imagética, ou seja, que se move a partir da noção do uso que faz das coisas e das pessoas. É possível dizer que todas as formas de arte surgiram e se desenvolveram em torno da noção de imagem.


2 – VIGIAR E PUNIR, ONTEM E HOJE


Conforme as sociedades foram se tornando complexas, também se tornaram sutis e complexas as regulamentações em torno do crime e do castigo, como mostra Foucault logo após apresentar um relato de caso, mas ainda na introdução, de Vigiar e Punir:


“Apresentamos exemplo de suplício e de utilização do tempo. Eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinqüentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal. Menos de um século medeia entre ambos. E a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos “modernos”: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, uma era nova”.


E nessa nova era, acrescenta Foucault, “um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal”.


Mas de modo algum essa constatação significa estabilidade e coesão entre o ato punível e a punição. É ainda Foucault quem nos alerta:


“Devemos levar em consideração também as acelerações e recuos que o processo global seguiu entre 1760 e 1840, a rapidez da reforma em certos países, como a Áustria, a Rússia, os Estados Unidos, a França no momento da Constituinte, depois, o refluxo da Contra-Revolução na Europa e o grande temor social de 1820 a 1848; as modificações, mais ou menos temporárias, ocasionadas pelos tribunais ou pelas leis de exceção; a distorção entre a teoria da lei e a prática dos tribunais (longe de refletir o espírito da legislação). Tudo isto torna bem irregular o processo evolutivo que se desenvolveu na virada do século XVIII ao XIX”.


Pois muito bem, o longo trabalho de Foucault tem um valor imenso como documentação, mas para nosso trabalho importa reter de Vigiar e Punir a idéia de que vários elementos externos tanto ao crime quanto ao criminoso passam a ser considerados. São as milhares de condicionantes que se formaram ao longo do tempo que finalmente são acomodadas em capítulos e títulos, tais como jusnaturalismo, mais tarde positivismo, sempre ocorrendo na base de elaboração dos códigos alguma noção que se apresentava como sendo racionalidade.


Desse modo, nos alerta Foucault, vai se formando um conjunto de dogmas, administrado pelo que se convencionou chamar “mundo jurídico”, tornando-se esse mundo um agrupamento de ordens e de racionalizações, chegando mesmo a constituir uma ideologia, já que nas defesas dos procedimentos aplicados vinga a idéia de que o “mundo jurídico” é permeável, aberto, renovável, atravessado pelos hábitos e costumes, mentalidades e posturas, modos de ser dos humanos no mundo. Mas até chegar a esse ponto, ocorrem eventos que escapam a regulamentações, como as ações do carrasco, por exemplo, que poderia ser perdoado caso uma execução não se cumprisse ou “os grandes casos judiciais em que a opinião das pessoas esclarecidas intervém junto com a dos filósofos e magistrados”. Foucault faz um detalhado relato de mil circunstâncias que estão explícitas ou implícitas no ato de vigiar e punir.


Na segunda parte da obra de Foucault começar a surgir um dos aspectos que mais nos colocam na linha de discussão que nos interessa, a noção de segurança pública como um fator reforçador tanto de justiça quanto de injustiça social.


 “Na França, a legislação sobre a vadiagem fora renovada e agravada várias vezes desde o século XVII; um exercício mais apertado e mais meticuloso da justiça tende a levar em conta toda uma pequena delinqüência que antigamente ela deixava mais facilmente escapar. Ela torna-se no século XVIII mais lenta, mais pesada, mais severa com o roubo, cuja freqüência relativa aumentou e contra o qual toma agora ares burgueses de justiça de classe; o crescimento na França principalmente, mais ainda em Paris, de um aparelho policial que impedia o desenvolvimento de uma criminalidade organizada e a céu aberto” (página 65).


Mas como tudo isso se junta e implica a noção do direito das pessoas, sentido genérico, a partir da plena vigência do Direito Positivo, isto é, o conjunto de regras determinadas por lei? E de que modo à gravação da imagem pessoal na vida urbana moderna afeta, para o bem e para o mal, direitos e a própria cidadania como um todo?


Segundo Bernard Bailyn, muito antes de a Revolução Francesa construir suas regras baseadas na busca de garantia dos direitos individuais, a Revolução Americana, com quase um século de antecedência, mostrou que hábitos partilhados e discutidos, poderiam perfeitamente servir de base a procedimentos jurídicos, como segue:


“Em quase todas as colônias britânicas, o direito de voto e o direito de participar da vida política eram acessíveis a quase todo homem livre, o que em nada decorria de uma reivindicação popular, nem das grandes teorias democráticas, mas do fato de que as leis britânicas tradicionais, segundo as quais o sufrágio era necessariamente vinculado à posse da terra, verificaram-se na América extremamente extensivas, pois a propriedade era ali amplamente disseminada”.


Portanto, vemos várias causas se juntando e formando um enorme caudal em direção à modernidade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada durante a Revolução Francesa, é um exemplo da incorporação de princípios do direito natural ao direito positivo. Dessa forma, ao lado do fazer diário das sociedades, consolidava-se a reflexão sobre esses fazeres no campo da Justiça.


Parece essencial notar que as datas apresentadas por Foucault e demais autores nos levam para o território das idéias que ganharam força como princípio de justiça social, como estado de direito, como civilização, como educação, como cultura. Assim, temos em 1848 o Manifesto Comunista de Karl Marx, praticamente ao lado da formatação final dos governos e representações no Novo Mundo, amadurecendo então o conceito de Estado e de Direito, idéias que nasceram na polis grega, acalentadas por Platão e Aristóteles.


Dessa forma, nos adverte Andrieu, o papel de um documento, a Constituição,  como referência universal ganha força, sendo um documento regulador do processo de se produzir leis, ou seja, de regular com base em critérios de racionalidade os comportamentos aceitáveis e os comportamentos inaceitáveis.


A cada processo, ensina Andrieu, corresponde uma nova espécie de desafio, pois os códigos de lei são mais do que livros de registros: “O Direito é a um só tempo o reflexo de uma sociedade e o projeto de atuar sobre ela, um dado básico do ordenamento social e um meio de canalizar o desenrolar das relações entre os indivíduos e os grupos”.


Vai mais longe o pensador francês. Segundo ele, “Se o Direito é uma realidade social, é também uma teoria ativa da sociedade, uma avaliação do que existe cuja meta é determinar o que deverá existir. Portanto, o Direito é uma realidade social de feição dupla”. Mais ainda, o Direito se alimenta de valores sociais, que ultrapassam os limites demarcados por questões de produção, portanto, de caráter econômico.


O Direito na sociedade moderna, resume Andrieu, está sempre desafiado a rever o seu estado de aplicações, dependendo de aportes críticos, daí a importância do surgimento de disciplinas como a Antropologia Jurídica e a Filosofia do Direito. Ou seja, podemos concluir com facilidade que o Direito é um fenômeno jurídico, político e filosófico.


“As mais variadas causas governam a ordem dos homens: o clima, o relevo, a economia, a demografia, as idéias religiosas e, também o espírito da nação”. Esse conjunto, portanto, configura as regras do jogo.  “As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”


Mas a natureza das coisas parecem cada vez mais intrincadas à medida que pensamos nela. Hobsbawn aparece aqui como um caminho a ser seguido no sentido de detectar os problemas que a modernidade trouxe numa larga extensão do mundo. A começar pela questão do tempo histórico, o qual segundo ele, precisa ser melhor entendida. Para esse autor, o século 20 foi mais curto, mais dramático e mais difícil de analisar. Segundo ele o século 20 começa com a Primeira Guerra Mundial e termina com a Queda do Muro de Berlim.  É claro que ele não está se referindo ao tempo cronológico estrito. “Era dos Extremos” é o tempo do acúmulo de ocorrências boas e más, de guerras que iniciam um período de prosperidade e que produzem oportunidades, guerras que matam milhões, momento em que também se acelera a criação de instrumentos tecnológicos, de reações políticas, de movimentos reivindicatórios.


A visão de Hobsbawn faz todo o sentido aqui por ser a voz do historiador que tem plena consciência do movimento das ruas:


 


“Para os historiadores de minha geração e origem o passado é indestrutível, não apenas porque pertencemos à geração em que ruas e logradouros públicos ainda tinham nomes de homens e acontecimentos públicos (a estação Wilson na Praga de antes da guerra, a estação de metro Stalingrado em Paris), em que os tratados de paz ainda eram assinados e, portanto, tinham de ser identificados (Tratado de Versalhes) e os memoriais de guerra lembravam acontecimentos passados, como também porque os acontecimentos públicos são parte da textura de nossas vidas”.


O historiador diz não haver dúvidas de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra teve início.


“Esta é a informação essencial para os historiadores do século, pois embora eles possam especular sobre o futuro à luz de sua compreensão do passado, seu trabalho não tem nada a ver com palpites em corridas de cavalos. As únicas corridas de cavalos que esses historiadores podem pretender relatar e analisar são as já ganhas ou perdidas. Seja como for, nos últimos trinta ou quarenta anos o desempenho dos adivinhos, fossem quais fossem suas qualificações profissionais como profetas, mostrou-se tão espetacularmente ruim que só governos e institutos de pesquisa econômica ainda têm, ou dizem ter, maior confiança nele. É possível mesmo que depois da Segunda Guerra Mundial esse desempenho tenha piorado”.


Hobsbawn chama a atenção para o fato de que houve condições para um crescimento da economia mundial nos 25 anos seguinte à Primeira Guerra Mundial, “anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável”, afirma ele.


Mas, apesar das esperanças, o historiador relata uma decepção crescente no panorama histórico:


 “À medida que a década de 1980 dava lugar à de 1990, o estado de espírito dos que refletiam sobre o passado e o futuro do século era de crescente melancolia fin-de-siècle. Visto do privilegiado ponto de vista da década de 1990, o Breve Século xx passou por uma curta Era de Ouro, entre uma crise e outra, e entrou num futuro desconhecido e problemático, mas não necessariamente apocalíptico”.


Antes de partir para um aprofundamento mais doméstico dessa questão levantada, uma frase bem simples mas muito significativa de Hobsbawn chamou a atenção e vai nos levar como um fio-narrador: “A única generalização cem por cento segura sobre a história é aquela que diz que enquanto houver raça humana haverá história”.


 


Aqui vamos tomar duas leituras que ajudaram a pensar o Brasil. Trata-se das obras de Sergio Rouanet: As razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade. Isso porque Rouanet lida com a realidade brasileira, vindo de uma orientação eminentemente filosófica.  Num dos capítulos “A Razão Cativa”, ele fala do fenônemo da “falsa consciência”, algo muito mais sociológico do que filosófico, mas em que pese isso, a discussão que ele propõe é filosófica.


Nesses trabalhos, Rouanet analisa o que ele chama de “três crises interligadas”, que estariam ocorrendo no Brasil de hoje, no Brasil e no mundo, e que toma a forma de negação das coisas, “três rebeliões”, contra a razão, contra a modernidade e contra a ilustração, no sentido de um processo de acúmulo de conhecimento e convivência. Rouanet pensa ser necessários um “resgate crítico” do conceito de razão, do projeto da modernidade e do legado do iluminismo. Esse estudioso não gosta de expressão pós-modernidade, um modismo para ele. “Depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Auschwitz e Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo se cansou da modernidade”


Mais adiante, e o texto é de 1987, ele atinge o ponto que nos interessa, que apresentamos com a voz da resenha feita por um periódico online científico (aaa) e que muito oportunamente condensa de modo perfeito a análise: “Nesta sociedade de valores massificados, especialmente no que respeita à cultura ocidental, a visibilidade dos aspectos particulares assumiu um caráter obsceno quando passou a excluir quase que completamente a dimensão da subjetividade e da privacidade das pessoas. Ou seja, com o alastramento dos meios de comunicação, anulou-se a dimensão do privado, tornando “tudo e todos” público, desde o cotidiano dos ansiosos por fama e ex-anônimos de programas midiáticos similares ao Big Brother, aos já famosos que figuram em revistas de frivolidades, como a Caras. Também se incluiu nesta categorização os rituais histéricos e cada vez mais midiáticos de evangélicos, carismáticos católicos e islâmicos, que se vendem para a televisão usando como desculpa a pregação de “causas justas” aos miseráveis, igualmente noticiados e fotografados por decorrência de algum fato merecedor da atenção jornalística. Dada esta extrapolação da privacidade e de sua utilização como moeda de troca, os sintomas do hedonismo na sociedade pós-moderna passaram a operar através de mecanismos de promoção da visibilidade do que era privado, como se decretando o fim do segredo ou o fim da intimidade”


3 – A SOCIEDADE VIGIA E TEME


Depois de ver em três grandes pensadores os caminhos da humanidade, digamos assim, precisamos considerar a partir de agora os temores que foram se acumulando e que também ganharam representação na literatura. Nos referimos a George Orwell e seu conhecido “1984”, escrito em 1948, em que se prevê um mundo debaixo de um grande temor, a do socialismo, precisamente o socialismo que em 1989 desce muro a baixo dando margem a uma nova interpretação da própria noção de século.


A obra retrata o mundo dividido em três grandes superestados: Eurásia, Lestásia e Oceania. Em uma ou outra aliança, esses três superestados estão em guerra permanente. O objetivo da guerra, contudo, não é vencer o inimigo nem lutar por uma causa, mas manter o poder do grupo dominante. O enredo, sob a perspectiva da Oceania, mostra como o Estado vigia os indivíduos e mantém um sistema político cuja coesão interna é obtida não só pela opressão da Polícia do Pensamento, mas também pela construção de um idioma totalitário, a Novilíngua, que, quando estivesse completo, tornaria o pensamento das pessoas cada vez mais igual e impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao Partido.


Existe nessa obra uma força de argumentação que assusta. A idéia de que o próprio idioma delimite o maior número possível das palavras, de tal forma que não existiria palavras para expressar oposição ao Partido e ao Big Brother – o Grande Irmão.


Uma forma duplicada de pensar, mas controlada, existiria, o duplipensar, que consiste basicamente em se ter duas idéias contrárias, opostas, e aceitar ambas como verdade. Essa característica fica evidente quando se conhece os três lemas do Estado: Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força. O duplipensar fica ainda mais evidente quando conhecemos os nomes dos Ministérios: O Ministério da Fartura, que é encarregado de manter a fome para a prole e membros do Partido Externo, ocultando a baixa produtividade e a péssima distribuição de alimentos sob falsas estatísticas; o Ministério da Verdade, onde trabalhava o protagonista da história Winston Smith, que tem o dever de manipular fraudulentamente as notícias, levando os cidadãos à crença somente do que lhes é permitido, mudando constantemente o passado para que o Grande Irmão estivesse sempre certo; o Ministério da Paz, que se ocupa em engendrar a guerra, levantando a estima dos cidadãos com notícias sempre positivas da guerra; e o Ministério do Amor, que reprimia o sexo e estimulava o ódio entre as pessoas, para que o amor se dirigisse apenas ao Grande Irmão. O Ministério do Amor também se encarregava de capturar, torturar, punir, reeducar e vaporizar quem cometesse crimidéia através da Polícia do Pensamento


Orwell deixa evidente que o objetivo do Partido era suprimir a individualidade com o propósito de destinar toda a vida dos cidadãos aos seus interesses. Para manter a população entorpecida e influenciada eram freqüentes os eventos com fachadas políticas e patrióticas. Os “Dois minutos do ódio” e as semanas especiais faziam as pessoas esquecerem suas vidas e amar apenas ao Grande Irmão. Aquele que não participasse era acusado de cometer crimidéia – ou idéias ilegais para o Partido, e, portanto um perigo à segurança nacional. O destino para os que fossem acusados de cometer crimidéia era o mesmo: ser vaporizado e virar impessoa, ou seja, o Estado apagaria todos os registros daquela pessoa como se ela nunca tivesse existido. Não tratava apenas de eliminar alguém que cometesse algum crime, mas fazer com que ela nunca tivesse nascido.


Orwell compõe com brilhantismo uma “utopia negativa” onde os cidadãos são vigiados todo o tempo em todo lugar pelas teletelas (aparelhos que transmitem e captam som e imagem) sob a liderança do Partido e do Grande Irmão. Em todos os lares dos membros do Partido, praças, ruas e locais públicos, as teletelas transmitem a ideologia do Partido. Mais do que isso, captam todos os movimentos de seus filiados.


Onipresente, o Grande Irmão é visto em cartazes espalhados por toda a Oceania. Apesar de estar sempre presente, ele jamais apareceu em público. O Grande Irmão talvez não seja uma pessoa real, pois ninguém nunca o viu. Mas o slogan do Partido “O Grande Irmão zela por ti”; seus feitos nas guerras; seu trabalho duro para melhorar a condição de vida do povo da Oceania; e sua liderança firme e constante nas propagandas do Partido, conduz o povo da Oceania a acreditar na sua presença e existência. A eficiência do Partido é maior: faz com que o povo não só acredite na existência do Grande Irmão, mas o ame e o idolatre. Em um mundo onde o Estado domina e nada é de ninguém, mas tudo é de todos, talvez, tudo que reste de privado seja alguns centímetros quadrados no cérebro.


4 – O DIREITO DE COMPRAR E DE USAR


Para alguns analistas, o livro 1984 é a imagem do que de fato está acontecendo hoje 62 anos depois de escrito, mas achamos que há evidente exagero em quem lê um livro desses e começa a encontrar fatos reais como se fossem extensão automática do livro.


Vamos dar uma olhada nas características da sociedade brasileira a partir de números, de dados econômicos, e vamos notar que o consumidor brasileiro entende democracia como a liberdade e a possibilidade de consumir. Cito a seguir, na íntegra, dados relativos ao Brasil de 2010 e que parecem mostrar um certo caminho na direção dessa era imagética:


Segundo estudo realizado recentemente com famílias da classe média, no Brasil, na Argentina e no México, o meio digital desempenha um papel central na vida da chamada Nova Classe Média Digital, que representa 63% dos 28 milhões de lares brasileiros que possuem computadores.


Esse público usa as tecnologias digitais e móveis para fazer mais do que se socializar e comunicar – a maioria utiliza o digital para ter acesso às oportunidades educacionais e empresariais. Como resultado, o digital tem papel de destaque na vida dessas famílias que, em 2010, adquiriram 9 em cada 10 computadores vendidos no Brasil.


Os aparelhos que permitem acessar a Internet já estão presentes em 66% dos lares da Nova Classe Média Digital. Esses dispositivos se dividem em desktops (40%), laptops (3%) e celulares com acesso à Web (23%).


“Apesar de praticamente todas as residências contarem com televisores, esse equipamento deixou de ser o centro das atenções. Dos 3,7 milhões de pessoas que pretendem comprar um computador, 57% pertencem à classe média. E mais: 42% dos usuários da Internet fazem parte dessa faixa da população, número que cresceu 44% em seis anos.”


São dados de consumo, evidentemente, o que não é necessariamente mau, mas provoca uma volta às idéias de Hobsbawn pois nada disso parece novo, aliás, a propósito de um fenômeno econômico anterior o autor escreveu no mesmo Era dos Extremos:


 “Essa sociedade, formada por um conjunto de indivíduos egocentrados sem outra conexão entre si, em busca apenas da própria satisfação (o lucro, o prazer ou seja lá o que for), estava sempre implícita na teoria capitalista. Desde a Era da Revolução, observadores de todos os matizes ideológicos previram a consequente desintegração dos velhos laços sociais na prática e acompanharam seu desenvolvimento. E conhecido o eloquente tributo do Manifesto Comunista ao papel revolucionário do capitalismo. (“A burguesia […] despedaçou impiedosamente os diversos laços feudais que ligavam o homem a seus ‘superiores naturais’, e não deixou nenhum outro nexo entre homem e homem além do puro interesse próprio.”). Mas não foi exatamente assim que a nova e revolucionária sociedade capitalista funcionou na prática, até porque, a nosso ver, segue o padrão de uma inclusão social de pessoas que passam também a desfrutar benefícios maiores mantidos por um sistema legal, o Direito, e que transpomos para o direito coletivo assegurado. Na prática, a nova sociedade operou não pela destruição maciça de tudo que o herdara da velha sociedade, mas adaptando seletivamente a herança do passado para uso próprio. Não há “enigma sociológico” na disposição da sociedade burguesa de introduzir “um individualismo radical na economia.”


 Parece inevitável, a esta altura, fazer um balanço a respeito. A questão da vigilância, em amplo senso, abriga e resume a vigilância que na prática já encontramos na prática das ruas, do comércio, dos institutos, dos bancos, dos supermercados, das empresas e até mesmo em milhares de residências. Se engenhoca filmadora é um instrumento universal, resta saber como será enquadrado e utilizado dentro de uma perspectiva coletiva. Então temos de pensar no  direito coletivo existente.


Numa primeira abordagem parece-nos que o direito coletivo está, hoje, mais voltado para obrigações, tais como votar e declarar imposto de renda.  O Direito Coletivo diz que a calçada é meio de transição de pedestres, sendo proibido o estacionamento de qualquer tipo de veículo sobre ela. Neste caso, então, os vários direitos individuais solaparam a noção de bem coletivo.


Por via de conseqüência, então, as pessoas que transitam em qualquer calçada neste país estão sujeitas a serem filmadas. Como vimos, o espaço público não assegura privacidade específica. Uma pessoa tem tanto o direito de filmar quanto o de ser filmada. O que representa o direito de filmar num quadro desses? É o direito do consumidor. Se a pessoa teve o direito de comprar, tem o direito de usar. Também é o direito de ir e vir e ter sua imagem preservada. Também é o direito de vigiar e ajudar no punir, ambos são partes de uma maquinaria que hoje podemos chamar sem medo de segurança pública, ainda que um conceito avançado de segurança pública ainda esteja por se realizar (em Nova York o tempo que uma pessoa perde num ponto de ônibus é parte das preocupações da segurança pública, em São Paulo, nem se discute o assunto).


Portanto, ao finalizar este estudo, depois de visitar as páginas de homens sábios, de ver uma quase universalidade nos comportamentos humanos, racionalizados nos discursos que tentam explicar seus desatinos, não podemos esquecer que o Brasil foi o último dos grandes países do mundo a abolir a escravidão. A cidade de São Carlos, no interior de São Paulo, ainda abrigava redutos de escravidão entre fazendeiros de gado no ano de 1920, sendo, sem surpresa, uma das cidades mais conservadoras do mais moderno Estado do Brasil.


Também não podemos esquecer que na região Norte temos bolsões de habitantes que vivem no século 16, no Nordeste bolsões do século 18, em Sul-Sudeste “tudo junto e misturado”, do século 16 ao 21, para usarmos um paródia televisiva, é um luxo um povo todo esperar um ordenamento jurídico adiante do seu tempo, atento a filigranas que, uma vez conhecidas, daremos um jeito de burlar.


Teremos de evoluir politicamente, como cidadãos que paulatinamente ganham consciência das condições gerais do mundo, do país, da cidade em que vivem, e passam a cobrar ao mesmo tempo em que juntam forças que influenciem tanto o parlamento quanto as outras instâncias de poder. Pendências jurídicas terão de ser encaradas, e por isso reproduzimos aqui um trecho da conclusão de uma tese escrita no Rio Grande do Sul: “Atualmente está se desenvolvendo, no Rio Grande do Sul, uma corrente que defende a ampla liberdade do juiz na decisão das lides, podendo, até mesmo, decidir contra a lei expressa”.


Avanço ou retrocesso? Como escreve Benedito Bonfim, “do desencontro entre a lei e o direito, entre códigos e justiça, nasce o direito Alternativo, que nada mais é do que a aplicação da lei em função do justo, sob a ótica do interesse social e das exigências do bem comum”. 


E tudo isso, válido lembrar, num tempo e num país em que as condições de vida parecem cada vez mais adversas, como mostra a tese de Ricardo Antunes “As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital”:


 


 “A classe trabalhadora no século XXI, em plena era da globalização, é mais fragmentada, mais heterogênea e ainda mais diversificada. Pode-se constatar, neste processo, uma perda significativa de direitos e de sentidos, em sintonia com o caráter destrutivo do capital vigente. O sistema de metabolismo, sob controle do capital, tornou o trabalho ainda mais precarizado, por meio das formas de subempregado, desempregado, intensificando os níveis de exploração para aqueles que trabalham”.


Seguindo as linhas de Andrieu, aprendemos que as sociedades são mais do que meros operadores de códigos e textos legais. O cidadão comum, a contar com câmeras de vigilância e recursos modernos na apuração de crimes, terá de entender que o bem público é sua garantia de liberdade individual, de manifestação de sua consciência política, de ação do seu direito de consumidor, mas também do lugar de respeito ao outro, de respeito às civilidades a duras penas conseguidas, de preservação do bem comum, ainda que ilusório, ainda que sempre sob risco.


Se “As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”, então a modernização dos códigos jurídicos é missão essencial de uma sociedade. E como dissemos no início o Senador Brasileiro decidiu, em segunda votação, aprovar novo código de processo penal, passando a incorporar modernidades tais como monitoramento eletrônico de presos, realização de videoconferências para depoimentos e interrogatórios e utilização da internet para remessa de informações.


Conforme revela notícia divulgada pelo jornal O Estado de São Paulo, em 17 de dezembro de 2010, o Código Penal (CPP) foi concebido com base nas diretrizes de política criminal que foram propostas em 1903 pela antiga Liga das Nações, tendo sido imposto pela ditadura de Getúlio Vargas há quase 70 anos, quando eram outras as condições políticas, sociais, econômicas e culturais do País.


O projeto do referente Código de Processo Civil que aguarda analise no Senado foi preparado por uma comissão de advogados, promotores, juízes e professores de direito e teve uma tramitação surpreendentemente rápida no Senado. A iniciativa foi tomada em 2007, a comissão iniciou seus trabalhos no ano seguinte e as linhas gerais do projeto foram definidas no início de 2009. Com mais de 700 artigos, o projeto recebeu 214 emendas, das quais 100 foram acatadas pelo relator Entre 2009 e 2010, o projeto substitutivo foi submetido à apreciação de conselhos profissionais, órgãos de classe e entidades da sociedade civil.


Diz a notícia, e chamamos a atenção aqui pelo tipo de condução em relação ao tempo das decisões e ações:


 “Embora o texto pudesse ter sido submetido ao plenário em junho, o relator propôs que a Comissão de Constituição e Justiça o reexaminasse no segundo semestre deste ano, com o objetivo de descobrir – e corrigir – eventuais equívocos conceituais e técnicos. Foi uma iniciativa ditada pela prudência, tal a quantidade de inovações que o novo código introduz no ordenamento jurídico brasileiro. Além de adequar a legislação processual penal à Constituição de 1988, o novo CPP extingue a prisão especial para quem tem curso superior, estabelece os direitos das vítimas em capítulo especial e agiliza a tramitação das ações criminais, reduzindo o número de recursos e fechando brechas para as manobras protelatórias de advogados de defesa, com o objetivo de obter a prescrição dos crimes cometidos por seus clientes”.


Além de tudo, o novo Código Penal aumenta o rigor no tratamento do réu, permitindo que a Justiça autorize o sequestro de seus bens e a alienação do material apreendido, antes do julgamento de mérito; redefine a função dos promotores, procurando criar as condições para que o Ministério Público e a polícia possam produzir inquéritos criminais e acusações mais robustas; amplia os casos de decretação de prisão preventiva e, por fim, atualiza os valores da fiança, permitindo aos juízes reduzi-los ou aumentá-los conforme a situação econômica do réu.


A inovação mais polêmica é a que prevê a condução das ações criminais por dois magistrados. O primeiro atuará como um “juiz de garantias” e ficará encarregado da fase de instrução do processo, podendo acolher ou denegar as medidas cautelares pedidas durante as investigações. O segundo magistrado fará o julgamento de mérito e prolatará a sentença, mas não poderá requerer a produção de novas provas. Hoje, um único magistrado exerce as duas funções, o que muitas vezes o leva a exorbitar, pondo em risco os direitos de defesa do acusado.


A notícia também é útil, e por isso é citada aqui extensivamente, por que mostra que uma coisa é a melhoria da lei, outra é a aplicação da lei. “Embora a inovação seja oportuna, ela esbarra num problema operacional, pois em 50% das comarcas do País só há um juiz criminal. Assim, quando concluir uma investigação, ele terá de se declarar impedido de prolatar a sentença e os autos precisarão ser remetidos para outra comarca, o que pode gerar atrasos e custos. A Justiça poderá nomear um “juiz de garantias regional” para atender essas comarcas. Mas, se ficar assoberbado de trabalho, isso pode inviabilizar a tramitação mais rápida dos inquéritos e ações – como pretende o novo Código de Processo Penal. O novo Código acolheu as propostas que contavam com maior apoio entre os especialistas. Por isso, o texto não deverá ser objeto de mudanças significativas, quando for votado pela Câmara dos Deputados”.


5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS


Abrimos está conclusão com a certeza de que os problemas discutidos foram, na verdade, apontando para outras direções, não necessariamente em conflito com o tema que procuramos abordar.


Assim, quando discutíamos o problema da necessidade, a nosso ver eterna, de vigiar, nos demos conta de que antes mesmo de esgotá-la estava a descoberto o tema da segurança pública. É falso, cremos nós, discutir se uma pessoa tem o direito de exercer o papel de vigilância apenas por estar munida com uma câmera fotográfica, quando perdemos de vista a enorme sensação de insegurança que acompanha todo cidadão brasileiro em qualquer cidade deste imenso país. Aliás, o Direito nos diz que todo cidadão pode exercer o poder de Polícia, sempre que presenciar crime ou ameaça de crime contra pessoas ou contra patrimônios nacionais, como a bandeira, a moeda e até mesmo contra a Constituição.


Que atitudes teríamos, munidos de instrumentos tecnológicos modernos e caros, se vivêssemos uma plena sensação de segurança pública? Seríamos tentados a apelar para quaisquer meio de reaver nossos bens pela força de uma milícia vista como mais eficiente e punitiva do que os instrumentos próprios do Estado, como as polícias e os meios jurídicos? Muito provavelmente não.


Resta a questão da punição, a qual, também nos levou a abrir o campo de percepção. Sentimentos de várias espécies surgiram ao longo dos vários estudos de caso, seja no primeiro relato de Foucault, no qual nos mostra em detalhes o grau de crueldade usada pelo aparelho de punição autorizado, seja nas discussões subseqüentes, quando vimos em Rouanet a imensa rede de atitudes que a vida coletiva toma, principalmente se desprovidas de uma consciência profunda.


A noção de punição está largamente presente em nossos dias. Até mais do que a própria noção de vigilância. É um paradoxo a ser mais profundamente pensado. Revela essa característica o fato de que somos essencialmente cavilosos quando pensamos em direitos e deveres, vigilância e punição? Se é nosso direito, aceitamos a vigilância. Se é o direito do outro, pensamos em punição.


Por isso, achamos meio irrelevante a discussão sobre se o direito de imagem das pessoas está sendo respeitado ou desrespeitado. A discussão de fundo mesmo é que tipo de direito coletivo estamos praticando. Na prática está sendo respeitado e desrespeitado o tempo todo e há muito tempo. E não por falta de leis e de meios, mas porque fomos levados ao longo do tempo a fazer a lei com a nossa noção de sobrevivência em estado de alerta.


Diz um velho lema que lei a gente não discute, que lei a gente simplesmente tem que cumprir.  Mas esse lema talvez valha somente para um classe que deseja fazer respeitar direitos duramente, ou suavemente, conquistados.


Pensamos que seria insuportável viver num país onde as regras são rigorosas e plenamente aplicadas num bairro rico e totalmente abandonadas num bairro pobre. As periferias brasileiras cresceram como cresceu a noção de informática no Brasil, por contrabando, por todas as formas de contrabando, seja o material, seja o imaterial, seja por medo, seja por respeito, seja por precarização ou estabilização.


Talvez a grande resposta esteja mesmo na classificação daquele instituto inglês que sai mundo afora distribuindo classificações tendo a Democracia como eixo de referência. A democracia nasceu imperfeita, com o direito a homens, com a exclusão das mulheres. O Brasil parece precisar reunir todos os brasis que vivem juntos, uni-los e liberá-los.


Mas o desafio passa pela Educação, processo que leva muito tempo e quem nem mesmo um governo trabalhista conseguiu fazer avançar. Nesse contexto de desafios gigantescos já estamos acostumados a ser filmados, e sempre que tivermos um aparelho moderno na mão vamos querer usá-lo. Democracia plena será feita no dia em que não importem o meios, mas os modos de aplicá-la, e que tipo de consciência aparece no comando mental de um povo, hoje necessitado de Deus e de Televisão.


 


Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Brasil, 2004, 29ª edição.

ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas, Brasil, 2001

BAILYN, Bernard. Democracia, Brasil, 2001, organizadores Robert Darnton e Olivier Duhamel

Hobsbawn, Eric, Era dos Extremos, Brasil, 1992

ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital

MAGALHÃES, Aldeci de Aquino, Brasil, http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2750/Interpretacao-da-lei-Racionalismo-puro

(ASSIER-ANDRIEU, 2000: p. 101).>>>https://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/3343.pdf)<<<<

Aguarrás, periódico online (http://aguarras.com.br/tag/literatura/)

 


Informações Sobre o Autor

Jose Eduardo Parlato Fonseca Vaz

Informações sobre sua principal atividade profissional e graus acadêmicos : advogado militante em São Paulo e consultor juríidco, especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie, mestrando em Direito Constitucional pelo Centro Universitário FIEO.


Equipe Âmbito Jurídico

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