Resumo: O presente trabalho tem por escopo discutir o abuso de direito de credores na recuperação judicial de empresas, bem como a Lei nº 11. 101/2005 – Lei de Recuperação de Empresas, que ao ser promulgada revogou por completo a antiga Lei de Falências, trazendo muitas inovações na seara do direito econômico e empresarial. Um dos principais focos deste nova lei é viabilizar aos empresários que passam por uma crise financeira momentânea a possibilidade de reerguer a sua empresa, tendo por base um replanejamento econômico, denominado de plano de recuperação judicial, o qual deve ser aprovado pelo credores da própria empresa. Porém, em grande parte dos casos, os credores, com o único intuito de receber o crédito que possui e abusando do direito de voto que tem, acaba votando contra o plano de recuperação judicial, levando a empresa à falência, fazendo com que essa falência tenha efeitos em toda a sociedade. Este trabalho foi orientado pelo Professor Cristiano Gomes de Brito.
Palavras-chave: Lei nº 11. 101/2005. Recuperação de Empresas. Plano de Recuperação. Abuso de direito de credores.
Abstract: The scope of this work is to discuss the abuse of rights of creditors in the bankruptcy of enterprises as well as Law No. 11. 101/2005 – Corporate Recovery Act, which, when enacted completely abrogated the old bankruptcy law, bringing many innovations in the mobilization of economic law and business. A major focus of this new law is to enable entrepreneurs who go through a temporary financial crisis to revive the possibility of your company, based on an economic redesign, called the judicial recovery plan, which must be approved by the creditors of the company itself . However, in most cases, the creditors, with the sole intention to get the credit you have and abusing the right to vote that has just voting against the plan of reorganization, leading to failure, making this bankruptcy has effects throughout society.
Keywords: Law No. 11. 101/2005. Corporate Recovery. Recovery Plan. Abuse of rights of creditors.
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico da Teoria do Abuso do Direito. 2.1. origens da teoria do abuso de direito e sua evolução no mundo. 2.2. o abuso do direito no estrangeiro. 2.2.1. Na França. 2.2.2. Na Alemanha. 2.2.3. Na Suiça. 2.2.4. Na Itália. 2.2.5. Em Portugal.. 3. Aspectos relacionados ao abuso do Direito. 3.1. O conceito do abuso do direito. 3.2. Características do abuso do direito. 3.3. Natureza do abuso do direito. 3.3.1. Teses que fundamentam o abuso do direito. 3.3.1.1. O abuso do direito como conflitos de direitos. 3.3.1.2. O “conflitos de sistemas”. 3.1.1.3. O abuso como uma violação à funcionalidade social do direito subjetivo. 3.1.1.4. Os limites externos e internos de um direito subjetivo. 3.4.. A Constituição Federal de 1988 e o abuso do direito. 3.5. O abuso do direito no Código Civil como cláusula geral e as formas de aplicação de sanção para os atos abusivos. 3.6. O âmbito de incidência e aplicação do abuso do direito. 4. Lei nº 11.101/2005 – Recuperação judicial. 4.1. Lei nº 11. 101/2005 – Denominada de Lei de Recuperação de Empresas. 4.2. Conceito de recuperação e a Recuperação Judicial. 4.2.1. Natureza jurídica da recuperação judicial. 4.3. As inovações conquistadas pela nova LRE. 4.4. A finalidade da LRE. 4.5. O plano de recuperação judicial. 5. Relação do abuso do direito com a recuperação judicial. 5.1. A Assembleia-Geral de credores relacionada com o abuso de direito na recuperação judicial. 5.2. Credores da Assembleia-Geral, distribuição do direito do voto, quórum de instalação da assembleia-geral e quórum de aprovação do plano. 5.3. Possível solução para as hipóteses de abuso de direito de credores na recuperação judicial. 5.4. O estado de recuperação em si, os efeitos da recuperação judicial e o seu encerramento. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Este trabalho, que tem como escopo realizar um estudo sobre o abuso do direito de credores na recuperação judicial de empresas que estejam passando por crise econômica financeira, mas com perspectivas de reerguimento, irá ser feito também um breve histórico a respeito do surgimento e consolidação do abuso do direito.
Em um primeiro momento, será abordado as origens do abuso do direito bem como sua evolução pelo mundo, além de falar um pouquinho sobre como foi a origem desse abuso em alguns países estrangeiros.
No segundo capítulo, discutiremos sobre alguns aspectos que se relacionam com o abuso do direito, como por exemplo, o seu conceito, as características, a natureza, a sua vinculação com a Constituição Federal de 1988 bem como sua inserção no Código Civil de 2002 e o âmbito de incidência e aplicação do abuso do direito.
Logo em seguida, analisar-se-á a Lei 11. 101/2005, no que diz respeito ao conceito que ela possui, a natureza e as inovações que ela trouxe; além disso, demonstraremos qual é o objetivo desta lei, para que ela foi criada, citando também o plano de recuperação judicial.
E, por fim, será feito um relacionamento do abuso do direito com a recuperação judicial, e para isto, será debatido a questão da assembleia-geral de credores na recuperação judicial, os votos dos credores nessa assembleia-geral e as possíveis soluções que se tem para os casos desses abusos.
2. Histórico da teoria do abuso do direito
2.1. Origens da teoria do abuso de direito e a sua evolução no mundo
Ao fazer análises em documentos do direito antigo, o leitor pode ter a impressão de não haver indícios da concepção do que é o abuso de direito; porém, ao fazer uma leitura minuciosa da história antiga, pode-se comprovar que existia, sim, a noção do abuso de direito naquela época.
Se na Antiguidade já existia uma ideia do que era o instituto do abuso do direito, mesmo que este não fosse expresso em corpo de lei estrangeiras e inclusive no Brasil, hodiernamente, no Código Civil brasileiro, ele ganha uma redação clara e específica ao ser inscrito no artigo 187; todavia, antes de analisarmos esta teoria através do dispositivo, será feito um retrospecto quanto a sua origem e evolução no mundo.
O abuso do direito é uma teoria que teve, em Roma, o início de sua construção por meio da atividade jurisprudencial em casos concretos[1], já que os legisladores romanos não formularam princípios tratando diretamente deste instituto.Os juízes aplicavam esta teoria na prática – mesmo ela não sendo codificada -, pelo fato da existência do brocardo neminemlaeditquiiure suo utitur[2], com o qual muitos abusos grosseiros não eram punidos como deveriam ser, ao alegar que estavam exercitando um direito reconhecido por lei, e assim causavam dano injusto a terceiros e desviavam a finalidade social atribuída ao direito.
Diante disso, diz-se que foi com os pretores romanos que a teoria do abuso do direito encontrou respaldo para o começo da sua solidificação, pois estes pretores não ficavam presos estritamente ao texto da lei, e quando observavam, em um caso concreto, um abuso de direito que ocasionasse injustiças à direito de terceiros, repreendiam este abuso com base na equidade, atendendo às necessidades reais dos indivíduos.
Lembra Paulo Nader[3] que, “a figura do abuso do direito, se não chegou a ser teorizada pelos romanos, pelo menos foi conhecida do ponto de vista doutrinário”. De acordo com Inácio de Carvalho Neto[4], “Não se duvida que os romanos não elaboraram uma teoria sobre o abuso do direito. Aliás, os romanos eram infensos às teorias, só estabelecendo soluções casuísticas conforme as situações práticas iam aparecendo”.
Ensina Keila Pacheco Ferreira[5] que
“[…] as noções repressoras do abuso de direito, no direito romano, faziam-se presentes por meio de soluções casuísticas, haja vista que a jurisprudência em Roma era fonte de direito”.
Não é só em Roma que se verifica a ausência de uma codificação que trate diretamente do abuso direito – pois o que se originou neste país foi a jurisprudência -, verificando-se esta situação no Direito Medieval também. Apesar de ter sido em Roma que se iniciou a construção indireta da teoria do abuso do direito, é de conhecimento dos profissionais desta área que esta teoria tem sua origem recente na segunda metade do século XIX, quando fez-se a recuperação da teoria dos atos emulativos, tendo sua sede no Direito Medieval e o seu desenvolvimento na jurisprudência francesa desta mesma época.
No Direito Medieval existia a teoria da aemulatio[6], que consistia no exercício de um direito sem utilidade com a única intenção de ferir um direito ou um bem alheio, ou seja, era um ato praticado pelo proprietário ou pelo vizinho com a finalidade de prejudicar terceiros. Esta teoria teve um grande desenvolvimento no Direito Medieval, sendo considerada a teoria precedente da teoria do abuso de direito.
Ela é considerada precedente, porque o Direito Romano condenava o indivíduo quando este cogitasse a possibilidade de desviar o curso das águas dos rios, por meio de reformas em seu terreno, com a finalidade de prejudicar ou causar danos aos vizinhos, ao fazer com que as águas não atingissem o terreno alheio, ficando este sem o benefício do recurso. Pelo fato das práticas dos atos emulativos tornarem-se frequentes nesta época, foi necessário impor limites ao exercício dos direitos subjetivos dentro dos que já haviam sido estabelecidos pela própria finalidade social e econômica do direito.
Dessa forma, afirma-se que “Passou-se, assim, a relativizar o direito subjetivo, deixando de lado seu caráter absoluto para se falar numa função social dos direitos”.[7]
Por a teoria dos atos emulativos ser precedente da teoria do abuso do direito, é importante ressaltar que a aemulatio, na sua origem, convergia o exercício de um direito que tivesse como consequência um dano a outrem e, mesmo que este exercício do direito fosse inútil ao agente, era praticado com o único fim de prejudicar. Sendo assim, afirmar-se que o núcleo do conceito do ato emulativo não é o resultado de dano causado pelo agente, mas sim a intenção exclusiva de causar prejuízo do agente e, é isto que o direito condena.
Conforme as palavras de Bruno Miragem[8]
“Todavia, o ambiente medieval favorecia uma construção teórica desta natureza, a qual poderíamos caracterizar como espécie de abuso subjetivo, por intermédio do qual, embora não desviando do preceito legal, o titular do direito lhe frauda a finalidade.”
Este maior desenvolvimento da teoria da aemulatio no Direito Medieval se deu porque este direito sofreu muitas influências dos princípios do cristianismo, o que levou o Direito Medieval a reprovar e repreender atos de exercício de um direito que acarretasse prejuízos e danos, intencionalmente, em relação à direitos alheios, já que a sociedade como um todo também pensava assim. Então, não se pode dizer que o grande desenvolvimento da teoria da aemulatio foi fruto de uma concepção teórico-científico e, sim, fruto do empirismo, pelo fato de ter sido influenciado por princípios do cristianismo e do senso comum.
Neste contexto, Milton Flávio de Almeida CamargoLautenschläger[9] ensina que
“Não há qualquer dúvida sobre a ocorrência do abuso do direito no comportamento emulativo, ou seja, na ação ou omissão destinada a causar prejuízo a outrem. Da mesma forma, resta incontestável a presença do abuso do direito no comportamento que, embora desprovido do caráter emulativo, não gera vantagem ao agente e revela-se desvantajoso ao terceiro. O problema surge, em verdade, quando o comportamento do agente impõe utilidades para um e desutilidades para outro, sem que imediatamente seja possível sopesar estas utilidades em função das desutilidades”.
É na segunda metade do século XX que a teoria do abuso do direito começa a ganhar força e presença, surgindo como uma doutrina autônoma e científica em um contexto de uma sociedade liberal.
Desta maneira, ensina Fabrício CastagnaLunardi[10]
“Se, antes, o que gerava injustiça era o abuso pelo poder do Estado na vida das pessoas, com o positivismo jurídico exacerbado, o que passou a preocupar é esse novo modelo hermético, que tem a pretensão falaciosa de prever todas as situações fáticas. Com efeito, o modelo oitocentista dá ensejo a abusos no exercício do direito subjetivo pelos particulares, que são encarados de forma absoluta pelo modelo individualista imposto pela classe burguesa. O Estado Liberal, entretanto, não atendia aos interesses do proletariado, classe popular mais densa. Então, o povo passa a exigir prestações positivas do Estado, pois a “mão invisível do mercado”, cerne do liberalismo, gerava abusos pela classe burguesa em relação ao proletariado. Em contraposição a esse modelo, o WelfareState (Estado do Bem-Estar Social) ergue suas bases, com uma visão socializadora dos direitos. Preconiza que os direitos subjetivos devem ser exercidos em benefício não só do indivíduo, senão de toda a sociedade, no afã de proteger as minorias, os hipossuficientes. Com supedâneo nesses ideais, torna-se necessário o combate aos abusos gerados pelo modelo individualista, que concebe o direito subjetivo como um direito absoluto.”
Apesar de os pretores romanos já fazerem o uso da teoria da equidade quando percebiam um abuso em casos concretos, foram os tribunais franceses os primeiros a reconhecerem, de fato, a teoria do abuso do direito nos primeiros anos de vigência do Código Francês; entretanto, é importante ressaltar que o tema não foi inserido no Código Francês de 1804.
O Código Francês, por defender a liberdade individual e a autonomia da vontade nesta época, criou um direito com base em uma particularidade sem limites, com prerrogativas absolutas. Porém, com o advindo da sociedade industrial, começaram a surgir conflitos que não poderiam ser solucionados com o uso dos princípios dos direitos individuais.
Sendo assim, a jurisprudência francesa teve um papel fundamental no período da industrialização, pois ao resolver os conflitos, percebeu a incidência do abuso de direito nos casos concretos e, assim, tentou solucioná-los conciliando, ao mesmo tempo, a liberdade e a autonomia individual juntamente com o interesse social, tentando extinguir os excessos cometidos através do abuso de direito e também reparando os danos que sobrevieram destes abusos.
Conforme preleciona Eduardo Ferreira Jordão.[11],
“[…] fulcrados nos postulados da ciência jurídica do século XIX, alguns indivíduos valiam-se de dispositivos normativos que lhes eram favoráveis para realizar atos cujo único escopo era o de causar danos a outros. Neste contexto, impulsionada pela necessidade de apresentar alguma construção doutrinária para dar subsídio teórico às decisões que reprimiam tais atos, a doutrina francesa elaborou a teoria do abuso de direito.”
Percebe-se, diante do exposto anteriormente, que mesmo com a falta de um texto legislativo tratando especificamente do abuso de direito no Código Francês, os tribunais franceses fizeram surgir as primeiras noções de abuso do direito, aplicando-as nos conflitos da sociedade industrial e, dessa forma, já atenuavam as vontades individualistas em detrimento do interesse social e da solidariedade.
Na França do final do século XIX, o interesse não era somente estabelecer uma teoria científica coerente e sólida, mas sim obter algumas considerações doutrinárias para subsidiar, teoricamente, as decisões nas quais eram aplicadas a noção do abuso do direito.
Keila Pacheco Ferreira[12] ensina que
“A origem da expressão abuso do direito é atribuída ao autor belga Laurent, que a utilizava para denominar alguma situações, nas quais os tribunais franceses reconheciam irregularidades no exercício do direito, embora o direito em si fosse reconhecido pela ordem jurídica ao seu titular.”
Campion[13], em obra de data 1925, afirma que a teoria do abuso do direito, em sua evolução, passou por três fases: inconsciente e fragmentária; construtiva; e socialização jurídica. A primeira fase, da inconsciente e fragmentária, é assim denominada porque não tinha características próprias, sendo aplicada à ela os mesmos princípios que se aplicavam à responsabilidade civil. A segunda fase, mostra uma evolução na teoria do abuso do direito conquistada pela jurisprudência, que ao percebê-la e aplicá-la em casos concretos, permitiu o início da sua sistematização, distinguido-a da responsabilidade civil. A terceira fase demonstra uma significativa ampliação dos princípios aplicados ao abuso do direito, tratando este como base do fundamento do direito.
Mas ainda podemos falar, hodiernamente, em uma quarta fase da teoria do abuso do direito, que existe em virtude do desenvolvimento das teorias finalistas, onde o abuso é avaliado em sua contrariedade ao elemento valorativo do direito.
Diante disso, pode-se enumerar teoria afirmativas, que são as que admitem a existência da teoria do abuso do direito, com os respectivos autores: “o abuso do direito como a anormalidade do dano resultante do exercício do direito”, que é atribuída à Savatier[14]; “o abuso do direito como corretivo de moralidade que a legalidade postula ou como a carência de legitimidade ética para o exercício do direito”, de autoria deRipert; e, por último, “o abuso do direito como contrariedade ao elemento valorativo do direito subjetivo”, teoria defendida por Josserand, dentre outros autores.
Josserand[15], ao analisar as sentenças de tribunais franceses, e tendo-se em mente que o Código Francês de 1804 não fazia referência direta à teoria do abuso do direito em seus dispositivos, propõe descobrir quais eram os critérios adotados pelos juízes dos tribunais para o reconhecimento do abuso do direito em cada caso concreto. Desta procura pelos critérios que foram adotados, encontrou-se quatro dominantes: intencional, onde procurava verificar se o titular do direito tinha a intenção de abusar do mesmo com o escopo de prejudicar coisa alheia; técnico, caracterizado pela prática incorreta no exercício de um direito, ao falhar na sua execução; econômico, que é exercer um direito com a única finalidade de satisfazer interesses ilegítimos; e, por fim, funcional.
SegundoKeila Pacheco Ferreira[16], “Com efeito, a evolução das concepções que tentam encontrar um critério identificador do ato abusivo apontam na direção de que este venha a ser revelado por um elemento valorativo interno do direito subjetivo”.
Após a sua fixação como uma base de fundamento do direito e a evolução pelo qual passou, o abuso do direito começa a ser visto como um exercício de um direito em desconformidade com o seu próprio valor. Apesar de o direito ser uma estrutura de interesse individual, o seu exercício deve respeitar os limites que os valores sociais e culturais lhe impõe.
Com sua dedicação, ensina Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[17] que
“[…] identifica-se a ocorrência do abuso do direito: a) no comportamento emulativo, ou seja, na ação ou omissão destinada a causar prejuízo a outrem; b) no comportamento que, embora desprovido do caráter emulativo, não gera vantagem ao agente e revela-se desvantajoso ao terceiro; e c) no comportamento que, embora imponha utilidades para um e desutilidades para outro, se mostre, numa análise da jurisprudência e/ou da doutrina pelo magistrado, contrário aos valores, princípios e máximas de condutas que compõem a “unidade conceitual e valorativa” do Código Civil.”
O conjunto de razões para justificar a aceitação ou a rejeição da teoria do abuso do direito situava-se no plano da possibilidade ou não de se praticar um ato conforme e, ao mesmo tempo, desconforme com o direito. Consoante os dizeres de Savatier, para definir o abuso do direito, faz-se o uso da proteção da equidade e da proibição do direito de causar dano ou prejuízo a outrem.
Afirmar-se que o elemento fundamental da teoria do abuso do direito é o animus nocendi, que é a intenção de causar prejuízo ou dano por parte do agente. Tendo-se em mente que o animus nocendi é o elemento fundamental, este passa a conceder ao exercício dos direitos subjetivos um conflito de consciência, pois que começa uma condenação moral das pessoas que fazem mau-uso e abusam do direito que possuem.
Conforme as palavras de Keila Pacheco Ferreira[18]: “O abuso do direito deve ser compreendido, portanto, como uma violação de valores que a norma jurídica procura realizar. Este entendimento permitirá a pronúncia de uma concepção autônoma da categoria”.
Portanto, pode-se afirmar que a ideia do abuso do direito não é uma construção completamente nova, tendo suas origens ligadas ao período clássico do direito romano.
2.2. O abuso do direito no estrangeiro
O abuso do direito está previsto em muitas legislações estrangeiras. Uma grande vantagem dele estar nas leis estrangeiras é que os tribunais e os doutrinadores desses mesmos países tem desenvolvido importantes interpretações a respeito do tema, o que justifica a contribuição do estudo do abuso do direito estrangeiro para construir e aperfeiçoar o assunto no direito brasileiro.
Comentar-se-á o estudo do abuso do direito nos seguintes países: França, Alemanha, Suíça, Itália e Portugal[19]. Estas escolhas foram feitas devido ao fato de que são estes os países que mais influenciam a doutrina, legislação e jurisprudência nacionais. Entretanto, a teoria do abuso do direito foi desenvolvida em outras nações, como por exemplo: Argentina, Espanha, Polônia, Rússia, Peru, Áustria, México, Venezuela, Turquia, China, Prússia e Grécia[20]. E, ao se estudar as diversas legislações em direito comparado, vê-se que o abuso do direito é previsto em várias formas normativas, mas todas elas convergem para o mesmo ponto: o exercício de um direito que excede os limites impostos pelo próprio direito.
2.2.1. Na França
Na França o trabalho da jurisprudência foi mais eficaz e que melhor contribuiu, de fato , para a elaboração do estudo da teoria em questão. Entretanto, o abuso do direito não possui um amparo legal que traga um dispositivo que trate especificamente do tema.
Isto ocorre pelo fato de que após a ocorrência da Revolução francesa, “[…] o Código francês ‘representa o triunfo do individualismo liberal, expresso no caráter absoluto do direito de propriedade e no princípio da liberdade contratual […] que afirma ser o contrato lei entre as partes’.”[21] Mesmo assim, preleciona Inácio de Carvalho Neto[22] que “Embora não se referindo expressamente à doutrina do abuso do direito, o certo é que vários julgados dessa época aplicaram efetivamente a fórmula”.
Apesar de se afirmar, categoricamente, a ausência de uma norma que estabeleça uma repressão ao abuso do direito no código francês, Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[23] preleciona que “Na França, no período que antecedeu o Código de Napoleão, as Máximas Gerais do Direito francês reprimiam o uso antissocial da propriedade, fato que, por si só, comprova um reconhecimento, ainda que limiar, do abuso do direito.”
Como já foi dito no tópico anterior, os tribunais franceses, diante da lacuna na legislação com relação ao abuso do direito, partiam do preceito da responsabilidade civil para aplicar a teoria do abuso com base na relatividade dos direitos, com a finalidade de impedir o exercício malicioso intencional de um direito, contrariando, assim, a concepção de um direito absoluto. Foi por causa do caráter absolutista dos direitos elencados no Código Francês após a Revolução francesa, que os tribunais começaram a configurar o abuso do direito, tendo, assim, uma maneira de acabar progressivamente com a absoluta discricionariedade e a imunidade em relação aos atos de liberdade e autonomia privada. Eles faziam o uso do critério da anti-sociabilidade do exercício do direito para caracterizá-lo como um ato abusivo.
“Para Luís Alberto WARAT, os direitos individuais aparecem como “absolutos”, deliberadamente disfarçados como tais e exageradamente estendidos em seu campo de ação”. E o abuso do direito aparece como reação a este amplo campo que as normas legais outorgam aos indivíduos para exercício de seus direitos”.[24]
Por ter sido nos tribunais franceses que nasceu e desabrochou o que viria a ser a teoria do abuso do direito, sentenças francesas, produzidas nos anos de 1855 e 1856, pelos tribunais de Colmar e Lyon, são muito lembradas por doutrinadores de vários países[25]. Descreveremos uma dessas sentenças, a de 1855, que é a seguinte:
“[…] refere-se ao caso de um proprietário que edificou sobre a sua casa uma volumosa e inútil chaminé em frente à janela de um vizinho, com a intenção de prejudicar-lhe a entrada de luz, ordenou a demolição da construção e ainda, declarou o direito de indenização do vizinho, reconhecendo que o exercício do direito de propriedade possui como limite a satisfação de um “interesse sério e legítimo”.[26]
Diante destes dois casos dos tribunais franceses, Eduardo Ferreira Jordão[27] afirma que
“Os dois casos foram extremamente importantes para o desenvolvimento e reconhecimento da teoria do abuso de direito. Nada obstante, convém corrigir um equívoco: não toca à jurisprudência francesa nem a primazia da noção do abuso de Direito, nem muito menos a autoria da teoria do referido instituto.”
Faz-se necessário ressaltar que, a princípio, o abuso do direito era aplicado no domínio do direito de propriedade, mas, posteriormente, foi aplicado também em outras áreas, como em contratos, família, liberdades individuais e corporativas, ora recorrendo à limites do próprio direito, ora recorrendo à intenção de prejudicar direito ou bem alheio.
Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[28] leciona que
“Resta evidente, portanto, que os franceses já utilizavam o critério da anti-sociabilidade para definir a existência ou não do abuso do direito. Sendo assim, havia abuso do direito quando ultrapassada a satisfação de um “interesse sério e legítimo”.
Dentre as teses que defendiam a teoria do abuso do direito na França, a que mais alcançou destaque nos sistemas jurídicos foi a tese de Josserand. Este mestre francês definiu os pontos principais da configuração do abuso direito e pediu atenção para a importância de se fixar, com muita precisão, qual seria o critério de identificação para o ato abusivo, sendo que esta identificação se submeteria a variadas interpretações.
Para LuisJosserand[29], o critério da identificação do abuso do direito seria a existência ou não de um motivo legítimo, que iria mover o exercício de um direito subjetivo. Segundo ele, a ideia de abuso irá representar uma grande evolução na interpretação e aplicação do direito, porque vai afastar a necessidade da existência de um elemento intencional qualquer ou de culpa do autor do ato descrito como abusivo.
Segundo LuisJosserand[30],
“[…] o ato abusivo é aquele que, praticado em virtude de um direito subjetivo, é, entretanto, contrario ao direito visto no seu conjunto, enquanto corpo de regras sociais obrigatórias. Assim, pode-se perfeitamente “ter por si tal direito determinado e, entretanto, ter contra si o direito em conjunto”.
Foi com estes dizeres que LuisJosserand formulou a primeira teoria do abuso de direito como uma construção científica com a finalidade de reprimir os atos abusivos e, afirmando que, embora os atos abusivos sejam praticados em conformidade com o direito subjetivo, são contrários ao direito objetivo, criando, desta forma, a “concepção tradicional” da teoria do abuso de direito.
Com suas ilustres palavras, Rosalice Fidalgo Pinheiro[31] afirma que
“Diante da perplexidade revelada pelas situações abusivas, estranhas à civilística moderna, e da lacuna encontrada no sistema jurídico, o ato abusivo insere-se no âmbito da responsabilidade civil o que significa que ele não surge como figura autônoma”.
Um dado interessante a respeito do abuso do direito na França é que a lei sobre a resilição unilateral do contrato de trabalho, de 1890, foi a primeira a prever expressamente uma repressão para situações em que houvesse um ato caracterizado como abusivo, coibindo a chamada despedida abusiva.
Destarte, não foi a falta de uma base legislativa que impediu, na França, que o abuso do direito tivesse um bom desenvolvimento, tendo como critério subjetivo a intenção e como critério objetivo a ausência da boa-fé.
2.2.2. Na Alemanha
Na Alemanha, ao contrário do que ocorreu na França, o abuso do direito teve uma fundamentação na legislação do BGB, de 1896[32].
No ordenamento jurídico alemão, o princípio da boa-fé impõe muitos limites ao exercício de um direito, já que este tem que ser exercido de acordo com as regras que a consciência social coloca nas relações jurídicas. Para este ordenamento, sempre que o ato do titular do direito estiver desconforme com o que estabelece o sentimento ético-jurídico que se impõe na sociedade, estará caracterizado o abuso do direito.
A teoria do abuso do direito, em se tratando do código alemão, tinha maior aplicabilidade no âmbito do direito das obrigações, fazendo o uso de cláusulas gerais, que tinham fundamentação nas concepções de lealdade e confiança.[33]
Conforme Keila Pacheco Ferreira[34],
“[…] a partir do § 242 do BGB, a jurisprudência e a doutrina alemãs, a fim de evidenciar os termos em que a boa-fé atua como “máxima de conduta ético-jurídica”, limitando o exercício de direitos, sistematizaram situações em que se identifica a boa-fé como elemento definidor do abuso do direito, muitas vezes associando-as a brocardos tradicionais”.
Portanto, o legislador alemão, com respaldo no princípio da boa-fé, inseriu o abuso do direito por meio de cláusulas gerais, estabelecendo limites ao exercício do direito por parte do titular.
2.3. Na Suíça
Com relação ao direito suíço, este consagrou no seu art. 2° do Código Civil a atuação conforme a boa-fé e a necessidade de não se abusar no exercício de um direito subjetivo. Deste raciocínio, Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[35] afirma:
“O Código Civil suíço de 1907, por sua vez, inclui o princípio da boa-fé como forma de identificar o motivo legítimo e, consequentemente, para caracterizar a natureza do ato praticado. Diz o artigo 2 de mencionado Codex: “Cada um é obrigado a exercer os seus direitos e a executar as suas obrigações segundo as regras da boa-fé. O abuso manifesto dum direito não é protegido pela lei”.
A legislação suíça dá uma importância bem relevante para o critério da boa-fé, pois é a partir desta que se determina ou não a caracterização do exercício de um ato abusivo, não tendo relevância a presença da intenção de prejudicar para se ter hipóteses de abuso[36].
O legislador suíço, ao conferir ampla redação para a cláusula geral do princípio da boa-fé, permitiu ao juiz caracterizar o abuso do direito a cada caso concreto, tendo como base a noção de ética e de senso de justiça reconhecidos pela consciência jurídica coletiva[37].
No que se refere ao Direito Suíço, afirma Jorge Americano[38] que
“[…] no direito suíço, basta que o abuso seja manifesto para que se lhe aplique a sanção legal, pouco importando que haja exclusiva intenção de prejudicar ou que ela seja preponderante, ou mesmo ausente, no caso de negligência frívola. E assim, toda a prova que deve fazer o autor é a evidência do abuso, e o prejuízo dele resultante.”
Como se depreende, no direito suíço, para se caracterizar o abuso do direito, basta que o abuso e o prejuízo advindo dele sejam evidentes, sem ter relevância a intenção de prejudicar por parte do titular do direito.
2.2.4. Na Itália
O sistema italiano não trouxe em seus artigos legais redação precisa, genérica e repressiva ao ato de abuso do direito, como o fez o sistema alemão e suíço. Desta maneira, seguiuas diretrizes do sistema francês, que é a ampla difusão do abuso do direito por meio de doutrinas e jurisprudências. No sistema italiano, o abuso do direito é um ato exercido que é contrário a própria função do direito. Apesar do que dizem a maioria dos autores, Inácio de Carvalho Neto[39] relata o seguinte
“Aliás, o art. 74 do Projeto franco-italiano do Código das obrigações e contratos já determinava o ressarcimento do dano causado a outros excedendo, no exercício do próprio direito, os limites impostos pela boa-fé ou o fim em vista do qual o direito lhe tenha sido reconhecido.”
Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[40] também afirmava a existência de um dispositivo referente a teoria do abuso de direito, ao lecionar que
“[…] ao abuso tão-somente no âmbito do direito das coisas – mais especificamente ao tratar das faculdades do domínio – assegurando de modo absoluto o gozo e a disposição da própria coisa, ressalvadas as limitações legais e regulamentares.”
Todavia, mesmo que o Código Civil italiano não possua uma norma geral que condene o abuso do direito, afirma-se que este mesmo código traz no recinto de alguns institutos limites, que caso sejam ultrapassados ou violados, caracteriza-seo abuso do direito. Ou seja, o Código Italiano optou por trazer em sua codificação diversas orientações de condutas de pessoas que deveriam observar a ética e a boa-fée, caso essas condutas ferissem estes princípios, estaria concretizado o abuso do direito. O Código Civil italiano, em seu artigo 1. 175 diz que “O devedor e o credor devem-se comportar de acordo com as regras da honestidade”.
Portanto, afirma-se que a teoria do abuso de direito teria previsão de maneira pontualíssima dentro do Código Civil italiano, sendo que ora teria um viés subjetivo pela necessidade de prejudicar outrem, e ora teria um aspecto apenas objetivo, estabelecido pelas relações negociais corretas[41].
De acordo com Bruno Miragem[42],
“O grande divulgador da teoria do abuso do direito no direito italiano foi Mario Rotondi, que em artigo publicado em 1923, estabelece a definição do abuso do direito, segundo afirma, não por intermédio de um conceito propriamente jurídico, mas também histórico e social, uma vez que representa o surgimento de uma nova consciência jurídica coletiva.”
Desta maneira, a doutrina italiana defende que há o abuso de direito quando podemos declarar a ilegitimidade dos atos do exercício do direito subjetivo que não são justificados com respeito ao interesse alheio ou com respeito ao interesse social e, que contraria a vontade de uma justiça substancial.
2. 2.5. Em Portugal
O Código Civil Português, de 1966, trouxe no ordenamento jurídico redação expressa e genérica do abuso do direito, encaixando-a no local de exercício e tutela dos direitos. Além disso, esta redação foi influência instantânea para o artigo 187 do Código Civil.
Apesar do abuso do direito ter sido inserido no Código Civil português apenas em 1966, no ano de 1928 se teve o primeiro acórdão que invocou este ato e que dizia o seguinte: “Tratava-se de uma chaminé construída de forma a prejudicar com o seu fumo os vizinhos de um prédio contíguo. O dono da chaminé foi condenado a elevá-la mais metro e meio”.[43]
O ordenamento jurídico lusitano tem uma forte tendência para a teoria objetiva, pois se contrasta o ato do agente em hipótese de caso concreto com a finalidade do direito de agir em causa, não interessando para os lusitanos averiguar qual era a intenção do agente titular do direito no momento da ação.
Os tribunais portugueses, ao fazer suas decisões, usavam o conceito de abuso do direito com uma forte ligação à uma ideia de um ato emulativo; posteriormente, eles começaram a aplicar de forma efetiva o instituto, não fazendo apenas a referência do mesmo.
Para o legislador português o abuso do direito é um ato ilegítimo, e o critério que ele utiliza para chegar à conclusão de que o exercício de um direito, dependendo da forma em que ele é exercido, pode se ter um abuso é o excesso aos limites impostos a esse mesmo direito pela boa-fé, bons costumes ou até mesmo o fim social ou econômico para o qual esse direito está sendo exercido; e é importante lembrar que esses critérios usados pelo legislador lusitano são os mesmos adotados pelo Código Civil brasileiro de 2002, para configurar o abuso do direito.
Além disso, é importante destacarnas palavras de Milton Flávio de Almeida Camargo[44], que “[…] a escolha pela incorporação legal do abuso do direito como solução para a difusão de seu conceito e mecanismos espalhou-se indistintamente pelos mais variados países e ordenamentos.”
Diante disso, percebe-se que o sistema francês e italiano fizeram a abordagem da teoria do abuso do direito e da boa-fé de forma semelhante, não trazendo no contexto de seu texto legal dispositivos gerais sobre o assunto, deixando para a doutrina e a jurisprudência o cargo de desenvolver e aplicar o princípio do abuso do direito; enquanto isto, o sistema alemão, suíço e português optaram por abordar o assunto em questão e o princípio da boa-fé em seus artigos, seguindo uma linha mais objetiva quanto ao tema.
3. Aspectos relacionados ao abuso do direito
3.1. O conceito do abuso do direito
O instituto do abuso do direito, em sentido estrito, define-se como um exercício de um direito subjetivo, no qual a finalidade deste ato é desconforme com o “interesse” ou “valor” inerente ao direito que se tem.
No sentido amplo, o abuso do direito é definido como um ato humano, contendo ou não um comportamento emulativo, que não gera vantagem ao agente possuidor do direito, mas que produza desvantagens ao terceiro; e, pode ser caracterizado também como um exercício, que mesmo impondo vantagens para o agente e desvantagens para o terceiro, a finalidade do ato é contrária aos valores, princípios e máximas de condutas que compõe o ordenamento jurídico civil.
Ensina Fabrício CastagnaLunardi[45] que
“A Teoria do Abuso de Direito […] tem o escopo de impedir que os direitos subjetivos sejam exercidos de maneira abusiva, contrariando o seu fim econômico e social, a boa-fé, os bons costumes. Constitui-se num obstáculo aos atos emulativos, ceifando intenções espúrias daqueles que se utilizam dos seus direitos com o único objetivo de prejudicar terceiros.”
Entretanto, ao se falar em abuso do direito, que no Código Civil brasileiro está expresso no artigo 187[46], tem-se uma visão e conceito diferenciados do que foi anteriormente exposto. Neste código, o instituto foi introduzido como uma cláusula geral, afastando a teoria do abuso do direito de sua antiga concepção subjetiva, relacionada aos atos emulativos e à existência de dolo ou culpa, sendo a favor de um conceito objetivo, que tem a necessidade da caracterização de um elemento anímico quando o titular do direito for exercê-lo e considerá-lo, assim, como abusivo.
Isto ocorreu desta forma, porque para se verificar o conceito do abuso do direito, é necessário recorrer a alguns princípios, como a boa-fé, os bons costumes e a função social. Deve-se lembrar, que este princípios exprimem valores ético-sociais que a sociedade reflete em cada época e lugar e, são eles que vão orientar o profissional do direito na aplicação do significado da teoria do abuso do direito; portanto, os princípios da boa-fé, dos bons costumes e da função social torna o conceito do dispositivo do abuso do direito muito maleável, tornando ele apto para absorver as novas exigências que a sociedade exigir a cada tempo, promovendo, assim, um contínuo desenvolvimento do direito.
Ao se estudar o abuso do direito e o artigo 187 do Código Civil, deve-se entender que este abuso não possui uma definição, reconhecimento e aplicação una em todos os ordenamento jurídicos, principalmente no brasileiro, sendo que o ponto mais relevante deste dispositivo é a amplitude e abrangência alcançada por ele, o que o conceituou como uma cláusula geral.
Neste contexto, ensina com precisão Fabrício CastagnaLunardi[47] que
“Para a ocorrência do abuso de direito, nos termos do art. 187 do CC, é imprescindível que a pessoa esteja no exercício de um direito, mas que este uso seja anormal, por não atender à finalidade econômica e social do direito, à boa-fé ou aos bons costumes, causando um dano a outrem. Portanto, são requisitos para a caracterização do abuso de direito: 1) o exercício de um direito; 2) que tal exercício ofenda a finalidade econômica e social, a boa-fé ou os bons costumes; 3) que haja um dano a outrem; 4) que haja nexo causal entre o dano e o exercício anormal do direito.”
Após transcorrer a respeito do conceito do abuso do direito, irá se discutir, no próximo tópico, as característica inerentes deste instituto.
3.2. Características do abuso de direito
Ao ler o artigo 187, a compreensão que se tem é que os limites impostos ao exercício do direito são externos, mas isso pressupõe, primeiramente, que ocorra a prática do direito subjetivo em si, sendo que será considerado ilícito apenas aquele direito exercido com excesso manifesto ao que foi imposto como limite pelo fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes.
Estabelecer características próprias do abuso do direito foi e continua sendo uma tarefa complexa, ao se tentar estabelecer uma noção da teoria do abuso do direito, isto porque, o abuso não era uma categoria autônoma, atribuindo a ele os mesmo princípios que eram aplicados à responsabilidade civil. Outro óbice que se impõe é que foram os juristas franceses que começaram a difundir esse pensamento da teoria do abuso do direito, porém não era admitido que eles exercessem atividade criadora e, como inexistia a figura do abuso do direito com características próprias, este era assemelhado ao ato ilícito.
São vários os estudiosos e pesquisadores[48] que buscam dar autonomia e independência para o abuso do direito, mas eles mesmos usam diversificados critérios para definir e justificar o que é o abuso do direito e quais são as suas características.
Uma característica que se pode ser atribuída ao abuso do direito é quando o titular do direito, ao agir formalmente em busca de um direito próprio, excede no ato e contraria os valores que norteiam aquele direito que lhe é concedido.
O abuso do direito consiste na violação do fundamento que emerge do direito subjetivo, no desrespeito aos valores buscados pelo mesmo direito, mesmo que o abuso preencha formalmente a estrutura do direito. Então, sua característica principal é ocultar uma aparência do direito, já que o titular do mesmo o exerce, porém de maneira excessiva e intencional. Esta linha de raciocínio segue as teorias externas, que é uma justificativa e fundamento para a compreensão do abuso do direito, as quais sustentam “que o abuso decorreria do desrespeito a normas jurídicas alheias ao direito subjetivo, a que o titular deveria observar, sob pena de exercê-lo abusivamente”.[49]
Por uma outra perspectiva, de acordo com as teorias internas, o abuso direito é revelado no interior da norma legal do próprio direito e, sendo assim, somente a análise sobre cada caso concreto para se verificar a incidência ou não do abuso com base nas normas que estabelece o direito é que se poderá dizer quais são os limites impostos à este. Porém, o fato destes limites serem variáveis, torna prejudicada a caracterização do abuso do direito em abstrato, fazendo com que o abuso não seja transformado em um instituto autônomo e, sim, sendo apenas um ato de interpretação e aplicação do direito.
Nas palavras de Inácio de Carvalho Neto[50], “Chama-se abuso do direito ao exercício, pelo seu titular, de um direito subjetivo fora de seus limites”.
De acordo com Keila Pacheco Ferreira[51], “ […]tanto o ato ilícito como o ato abusivo são capazes de gerar responsabilidade, devendo o seu agente responder por indenização na medida em que advierem consequências danosas do ato realizado”. Tanto os atos ilícitos quanto o abuso do direito tem como efeitos gerar uma obrigação para o agente que errou ou excedeu ao agir, entretanto não se pode confundir esses dois institutos, pois são bem diferentes, tendo apenas semelhança nos efeitos.
Sendo assim, faz-se necessário fazer a distinção entre o abuso do direito e o ato ilícito. O abuso do direito se caracteriza quando o indivíduo exerce um direito que possui e é permitido em lei e, durante o momento em que pratica o ato, excede os limites impostos à este direito, cometendo, assim, um ato ilícito, que fere o ordenamento jurídico brasileiro e prejudica terceiros. Já o ato ilícito, caracteriza-se pelo fato de ser, na sua essência, um ato desconforme com a obrigação específica normativa estabelecida.
Mesmo que o abuso de direito e o ato ilícito sejam institutos diferentes, ensina Eduardo Ferreira Jordão[52] que “[…] o ato abusivo é indubitavelmente ilícito. Trata-se de conduta proibida pelo ordenamento jurídico, na medida em que fere uma norma sua.”
Por mais que se tente distinguir o abuso do direito de ato ilícito, a origem do abuso é sempre principiado por um ato ilícito, que é o direito subjetivo definido. É a partir desse ato ilícito, que se excede e se transforma em um ato ilícito, lesionando um direito alheio, que se caracteriza o abuso do direito e o distingue do ato ilícito.
Preleciona Inácio de Carvalho Neto[53] que
“Ora, o exercício abusivo de um direito fere justamente a ordem jurídica, ainda que conforme à lei; como visto, é no desvio de sua finalidade social que o ato se caracteriza como um abuso – ferindo o ordenamento jurídico e, por conseguinte, caracterizando-se como ato ilícito.”
Portanto, é notório que ainda se busca a autonomia e a caracterização da teoria do abuso do direito. Mesmo assim, até hoje não se chegou a uma conclusão definitiva, restando aos estudiosos pesquisar mais sobre o assunto e tecer as conclusões que obtiveram dos estudos realizados.
3.3. Natureza do abuso do direito
Ao se questionar a natureza jurídica de algum instituto, quer se saber qual a localização do assunto dentro do sistema, para poder compreender e aplicar as regras que forem assim agrupadas. Não obstante, ensina Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[54]que “A análise das diversas teorias desenvolvidas para a identificação criteriosa do abuso do direito serve, ainda, para dedução dos seus traços característicos.”
Quando se trata da natureza do abuso de direito, não existe uma opinião unânime entre os doutrinadores, sendo que essa teoria pode ser considerada em três naturezas diferenciadas, a depender do autor. As três hipóteses são: abuso de direito como ato lícito, como ato ilícito ou como uma espécie sui generis.
Conforme Inácio de Carvalho Neto[55], “Já o ato abusivo, entretanto, atenta diretamente contra o espírito da lei, desviando-a de sua finalidade econômica ou social”.
Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[56] afirma que “O abuso do direito é, antes de tudo, um ato humano, ou seja, um ato proveniente da atividade humana com repercussão no âmbito do direito.”
Doutrinadores vão contra a ideia de classificar o abuso do direito como um ato ilícito e, dentre eles, pode-se citar Sílvio de Salvo Venosa[57], que inclusive aponta que “o instituto encontra-se a meio caminho, ou seja, ‘consiste em um ato jurídico de objeto licito, mas cujo exercício levado a efeito sem a devida regularidade acarreta um resultado que se considera ilícito’.”
Quando alguém abusa de um direito que possui, não faz o uso de expedientes ou de dissimulações, mas quer, sim, chegar ao fim que visa, não se preocupando em contornar os obstáculos que lhe são impostos pelos interesses de terceiros.
Diz-se que
“A consagração nesse contexto é tão evidente que há pouca ou nenhuma margem para discussões acerca da real natureza jurídica do instituto, assim definida pelo próprio legislador. A verdade é que, no caso concreto, ultrapassados os ‘limites lógicos-formais’ ou os limites ‘axiológicos-materiais’ da ordem jurídica, estar-se-á diante de uma ato ilícito.”[58]
Seguindo ou não qualquer uma das naturezas jurídicas referidas acima, o importante é que o Código Civil brasileiro adotou e definiu, expressamente, o abuso do direito, incluindo-o na categoria dos atos ilícitos. Desta forma, o ordenamento jurídico brasileiro possui meio de proibir, reprimir e punir agentes, que ao exercer o direito que obtém, excede os limites do mesmo, causando desvantagens e prejuízos à terceiros, promovendo ou não vantagens para si.
3.3.1. Teses que fundamentam o abuso de direito
A existência de algumas teses que buscam fundamentar o abuso de direito – como se verá a seguir – demonstra que são muitos os critérios que se buscam para identificar, implicando em afirmar que cada caso concreto possui variedades e particularidades e, isto faz com que seja reduzida a capacidade humana de compartilhar soluções equânimes e justas por meio de redação legal.
3.3.1.1. O abuso do direito como conflitos de direitos
Quem teve a noção inicial desta tese foi Desserteaux[59], quando publicou sua obra “Abus de Droit ou Conflit de Droits” (“Abuso de Direito ou Conflito de Direitos”) em 1906, afirmando que “o abuso de direito consiste em lesar um outro direito igualmente respeitável, e merecia em boa terminologia ser chamado de conflitos de direitos.”
Com esta afirmação, este autor esclarece que o sujeito, quando fosse exercer um direito próprio, garantido por lei, deveria ter o cuidado para não agir e, ao mesmo tempo, provocar danos ou violar direitos de terceiros.
Além desse autor, outros defenderam esta noção do que seria o abuso do direito,sendo que no Brasil os adeptos foram Alvino Lima, José de Aguiar Dias e Pontes de Miranda. Esta corrente ficou conhecida pelo dito popular “meu direito termina onde começa o do próximo.” Um exemplo claro para ilustrar esta posição doutrinária é o seguinte: “[…] a fábrica instalada legal e regularmente, cuja fumaça causa doenças ou prejuízos aos habitantes de área residencial próxima.”[60]
Uma das contribuições de José de Aguiar Dias foi explicitar a negação da contrariedade do ato abusivo ao direito objetivo ou ao direito subjetivo do agente abusador e, afirmar que “O abuso do direito seria contrario, apenas, ao direito de outro indivíduo: ‘Não o mero direito objetivo, mas o direito que o outro indivíduo, por sua vez, poderia exercitar’.”[61]
Segundo essa tese, a origem do cerne da questão do abuso de direito se situa no exercício irregular do direito que o indivíduo possui e, não no provável dano causado pelo abuso ou na violação deste ao direito alheio, como pensa a grande maioria doutrinária desta teoria.
3.3.1.2. O “conflitos de sistemas”
Esta tese é caracterizada pelo fato de constatar que não haveria fundamentos jurídico-dogmáticos para a repressão dos atos abusivos, sendo que a teoria possuiria uma natureza meta-jurídica.
Os principais juristas adeptos desta tese são Luis Alberto Warat, Mario Rotondi, Jean Dabin, Georges Ripert, René Savatier e Pedro Baptista Martins.[62]
Luis Alberto Warat[63], ao defender seu posicionamento, “refere-se à um ‘conflito de sistemas’ normativos. De acordo com esta ideia, os atos abusivos, a despeito de serem ‘juridicamente lícitos’, contrariam a Moral ou a consciência social de justiça, por exemplo”.
Jean Dabin[64], ao formular sua tese, não concorda com o posicionamento do francês Josserand e resume sua tese a respeito do abuso de direito da seguinte forma: “o uso de um direito legal se torna em abuso deste direito legal quando dele é feito um uso contrário à moralidade. O summum jus do direito positivo se torna, então, a summa injuria da moral”. Para este doutrinador, para se caracterizar o abuso, não basta que a prática do direito provoque um dano a outrem, há a necessidade que o ato abusivo seja reprovado por falta de moral, violando deveres morais de justiça, equidade e humanidade.
No tocante à tese formulada por Jean Dabin, afirma-se que como os princípios promovem a ilicitude das condutas que os contrariam, implica dizer que a prática do ato abusivo significa contrariar deveres e princípios impostos pelo direito objetivo. Sendo assim, não é possível sustentar um ato que seja exercido visivelmente malicioso e mal intencionado, pois ele fere o princípio da boa-fé e dos bons costumes.
Em suma, para esta tese, será caracterizado o abuso do direito, quando este, além de ferir um direito alheio ou causar danos e prejuízos, deverá também ir contra a boa-fé, a moral e os valores existentes dentro de um ordenamento jurídico.
3.3.1.3. O abuso como uma violação à funcionalidade social do direito subjetivo
Esta tese identifica o abuso de direito com a violação a um elemento ou uma característica imanente ao próprio direito subjetivo.
O principal defensor da tese que diz que o abuso de direito é a violação a uma característica imanente ao próprio direito subjetivo é o francês Louis Josserand, que inclusive já sofreu muitas críticas pelo seu posicionamento doutrinário.
Para Luis Josserand[65], a cada direito subjetivo existente se tem uma finalidade ou função social. Na linha de pensamento dele, o abuso de direito caracterizar-se-ia quando um ato, mesmo seguindo a formalidade estabelecida por um direito subjetivo, violaria a finalidade social atribuída a este mesmo direito. Portanto, para se ter um direito regularmente exercido, este teria que cumprir a função social para o qual foi reconhecido.
Eduardo Ferreira Jordão[66] ensina que “Dentro de uma ideologia jurídica individualista – como, aliás, era a do século XIX – , os direitos não visavam à satisfação (imediata) de um interesse social, mas de um interesse individual e privado.”
Logo, esta tese defende a ideia de que o abuso do direito ocorre quando o ato praticado viola uma função social que é destinado ao próprio direito, mesmo que este exercício esteja de acordo com as formalidades estabelecidas em lei.
3.3.1.4. Os limites externos e internos de um direito subjetivo
Ao esquematizar-se esse posicionamento doutrinário, tem-se três pontos fundamentais: o primeiro diz respeito ao fato de que o ato abusivo está fora dos limites internos do direito subjetivo; o segundo critério é o fato de que o ato abusivo age contrariamente ao direito objetivo, procedendo, implicitamente, à limitação interna; e o terceiro aspecto diz que a sanção e a repressão ao abuso de direito é de natureza jurídico-positivo, decorrente de sua ilicitude.
Esta é a tese defendida e predominante hodiernamente na doutrina francesa e que, conforme preleciona Pascal Ancel[67],
“De acordo com os autores modernos, seria necessário distinguir dois tipos de limites: os limites externos e os limites internos. Os primeiros são essencialmente fixados pelos textos (de lei): o sujeito que não os respeita sai evidentemente de seu direito, e seu comportamento deve ser sancionado. Por outro lado, no interior dos limites fixados pelos textos, o comportamento é a priori lícito, mas ele cessa de sê-lo se aparece anormal, desleal, abusivo.”
Seguindo este raciocínio, Jacques Ghestin[68] afirma que
“O ato abusivo não é, ao mesmo tempo, conforme ao direito subjetivo e contrário ao direito objetivo. Ele não é absolutamente conforme ao direito. Mas a originalidade da hipótese é que a ultrapassagem (dépassement) do direito subjetivo se situa no interior do quadro delimitador dos tipos de prerrogativas reconhecidas ao agente.”
Ensina Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschlänger[69] que
“Enfim, justifica-se a utilização da expressão abuso do direito porque com ela se busca, exatamente, ressaltar a situação fática que, embora encontre suporte no direito subjetivamente considerado, excede os limites do próprio direito, quando o ato praticado, ainda que fundado naquele direito subjetivo, é exposto ao crivo dos princípios sociais que atualmente norteiam nossos sistema jurídico.”
Após este estudo a respeito das teses que fundamentam a teoria do abuso do direito, irá se discutir o vínculo entre o abuso do direito e a Constituição Federal de 1998 e a inserção do mesmo no Código Civil.
3.4. A Constituição Federal de 1988 e o abuso do direito
Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil e a sociedade viviam em um Estado Liberal, onde era defendido a autonomia e a liberdade individual, a livre iniciativa na economia, além do Estado não intervir na relações privadas. Como a sociedade vivia em um Estado Liberal, o Código Civil de 1916, para estar em conformidade com a Constituição, defendia os valores individuais e os reflexos dos mesmo em detrimento do interesse social e coletivo.
Alfredo Valladão[70], em 1912, lutou pela inserção do abuso do direito no Código de 1916 e, publicou um texto com o título de O abuso do direito, no Jornal do Comércio de 4 de fevereiro. Entretanto, essa luta foi em vão, pois o referido código, ao editar o artigo 160, inciso I, o fez de forma que a interpretação do mesmo fosse a contrario sensu, fazendo com que a ilicitude do abuso do direito se concretizasse como um critério de regularidade do exercício de um direito, estando, assim, conforme o que estabelecia a Constituição.
Diante disso, percebe-se que pelo fato do Brasil, até 1988, ter vivido sob a égide de uma Constituição que dava grande importância para a liberdade individual e para os direitos individuais, fez com que isto influenciasse o Código Civil a não se manifestar satisfatoriamente a respeito do instituto do abuso do direito.
Ratificando este raciocínio, Milton Flávio de Almeida Camargo Lautenschläger[71], com suas ilustres palavras afirma que “Uma análise superficial dos textos do Código Civil brasileiro de 1916 é bastante para concluir que nosso legislador de outrora deixou de acolher a teoria do abuso do direito explicitamente […]”.
Entretanto, afirma-se a existência expressa da teoria do abuso do direito em Leis posteriores ao Código de 1916 e, Inácio de Carvalho Neto[72] leciona que
“No Anteprojeto de Lei Geral, de Haroldo Valladão, que se converteu no Projeto de Código de Aplicação das Normas Jurídicas, no art. 11, pretendeu-se consagrar expressamente a teoria: “Condenação do abuso do direito. – Não será protegido o direito que for ou deixar de ser exercido em prejuízo do próximo ou de momo egoísta, excessivo ou antissocial”.
Porém, com o advindo da Constituição Federal de 1988 e o estabelecimento do Estado Democrático de Direito, que enaltecia a dignidade da pessoa e lutava por uma sociedade mais justa e solidária, houve uma desarmonia muito grande entre o que estava vigorando no Código Civil de 1916 e o que impunha a Constituição Federal de 1988.
Neste sentido, leciona Fabrício CastagnaLunardi[73] que
“Observa-se, sob um viés constitucional, a valorização do indivíduo, o que reflete do direito privado. Assim, o centro de proteção passa do patrimônio para o indivíduo. A propriedade, como objeto de direitos, não pode ser exercida de forma absoluta, devendo, antes de tudo, respeitar os direitos individuais dos outros cidadãos.”
Por isso, fez-se necessário a elaboração de um novo Código Civil brasileiro, que estivesse mais de acordo com o estabelecido pela CF/88 em relação à teoria do abuso do direito. Foi neste contexto que foi aprovadoa Lei n. 10. 406, que estabelecia o novo Código Civil brasileiro, trazendo consigo novos paradigmas que refletiam a sociedade brasileira do século XXI.
Conforme Bruno Miragem[74], “A teoria do abuso do direito, aliás, nasce como reação ao individualismo jurídico e à concepção absolutista dos direitos subjetivos, como limite moral à concepção egoísta que por muito tempo circundou a esfera dos direitos subjetivos”.
Portanto, com a Constituição Federal de 1988 e a proteção desta à dignidade humanae à uma sociedade mais justa e solidária, a teoria do abuso do direito no Código Civil veio propor a censura do exercício abusivo de um direito pelo seu titular, traduzindo-se em uma revisão dos preceitos que solidificam o ordenamento jurídico brasileiro. Mas para adotá-la e aplicá-la de maneira ampla no sistema jurídico, é necessário revelar ela, demonstrando o seu significado e suas características e, ao mesmo tempo, delimitar o seu conteúdo de aplicação.
3.5. O abuso do direito no Código Civil como cláusula geral e as formas de aplicação de sanção para os atos abusivos
Deve-se ressaltar que o Código Civil grego de 1940 e o Código Civil português exerceram uma influência muito grande na redação final do artigo 187 do Código Civil brasileiro, podendo-se, inclusive, dizer que os dois primeiros são praticamente iguais a este.[75]
Inácio de Carvalho Neto[76] ensina que
“A necessidade da teoria do abuso do direito dever-se-ia, assim, à generalidade e abstração das normas jurídicas que ocasionariam, na sua aplicação às situações concretas da vida, injustiças e iniquidades; a utilidade da teoria do abuso do direito seria, pois, a de evitar essas soluções, quando elas fossem gravemente chocantes para o sentimento jurídico dominante.”
O Código Civil brasileiro, ao inserir a ideia do abuso do direito no ordenamento jurídico brasileiro, no artigo 187, o fez mediante cláusula geral, ao bipartir as cláusulas gerais da ilicitude, afastando a teoria do abuso do direito de sua antiga concepção subjetiva, relacionada aos atos emulativos e à existência de dolo ou culpa, sendo a favor de um conceito objetivo, que tem a necessidade da caracterização de um elemento anímico quando o titular do direito for exercê-lo e considerá-lo, assim, como abusivo.
Conforme o que ensina Bruno Miragem.[77],
“A nova lei, conforme se sabe, promoveu uma alteração estrutural, ao separar a definição de ilicitude da sua consequência típica – a imputação da responsabilidade. Da mesma forma, identificou uma hipótese de ilicitude em que se verifica desde logo a violação do direito subjetivo de outrem … e uma segunda hipótese, em que a ilicitude, ao contrario, pressupõe a existência e o exercício de um determinado direito subjetivo, mas de modo a desbordar os limites estabelecidos expressamente pelo próprio ordenamento jurídico. Nessa segunda hipótese, do artigo 187, não exigiu a culpa ou o dano como elementos integrantes do conceito, mas apenas a violação dos limites estabelecidos ao exercício do direito pretendido.”
O Código Civil, ao impor que o agente, quando praticasse um direito que é assegurado pelas normas legais, que atenda o próprio interesse, respeitando os fins sociais e éticos que lhe é inerente, fez com que se desse uma nova norma disciplinar ao direito de propriedade, passou a se compreender qual é a “função social do contrato”, valorizou-se a teoria da responsabilidade civil objetiva e, o mais importante, explicitou-se o instituto do abuso do direito, que é de grande importância social.[78]
Bruno Miragem[79] ensina que
“Já no Código Civil de 2002, segundo a opção legislativa consagrada fez co que o abuso do direito não se examine, no direito brasileiro, como categoria autônoma, mas como espécie de ilicitude objetiva, caracterizada pelo exercício do direito subjetivo com excesso aos limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa-fé, e pelos bons costumes.”
Com isso, afirma-se que o artigo 187, ao inserir o abuso do direito expressamente no Código Civil brasileiro, reuniu em si uma síntese de três princípios fundamentais da nova lei, que são: eticidade, socialidade e operabilidade.
Não obstante, não se pode esquecer que a noção do abuso do direito já estava inserida no Código Civil brasileiro de 1916, porém de maneira acanhada e indireta; a diferença é que o Código Civil brasileiro de 2002 deu uma renovada no que seria a teoria do abuso do direito, trazendo-a de forma direta no dispositivo 187.
Keila Pacheco Ferreira[80], ensina que:
“[…] se por um lado, não constituem atos ilícitos os praticados no exercício regular de um direito reconhecido, por outro, aqueles atos praticados no exercício irregular entrariam no âmbito da ilicitude, no qual se enquadrava o abuso do direito. Ou seja, em vez de dizer expressamente que o exercício abusivo de um direito não é admissível, o Código revogado excluía o exercício regular dos atos ilícitos, e o irregular seria ilícito. O abuso do direito era, portanto, o exercício irregular de um direito reconhecido.”
Conforme o código civil, quando o agente, titular de um direito, o exerce, mas sem atender a função social do direito e, este critério muda com o tempo e o lugar, já seria considerado um ato abusivo.
A definição do abuso do direito como ilicitude leva em conta duas premissas. A primeira se refere à falta de uma proibição específica para um dado comportamento, que de início é considerado como exercício de um direito subjetivo e a segunda diz respeito à imposição de uma proibição geral, que antes era vinculada apenas ao dever de não lesar, o que, por consequência, impunha o deve de indenizar, mas que hoje, essa proibição geral atinge outras formas de repreensão, como a invalidade do ato abusivo, a ineficácia do ato, etc. O exercício do direito de forma abusiva é o que caracteriza a ação como ilícita, sendo que esta violação pode ter origem em diversas causas.
Seguindo esta definição, não se exige para a aplicação do dispositivo 187 a ocorrência de um dano e nem uma relação jurídica entre as partes, mas sim a ação de um direito que provoque prejuízo a outra pessoa, sendo este atual ou potencial, ou que elimine vantagens jurídicas de outrem. “O ato abusivo, neste sentido, se dá no curso de uma relação jurídica, ou ele próprio constitui relação jurídica”.[81]
Além disso, segundo a redação do artigo 187, são dois os requisitos para a configuração do abuso do direito, que são: o exercício de direito próprio e a violação dos limites objetivos, que é o fim econômico ou social do próprio direito, a boa-fé e os bons costumes. Desta forma,
“A cláusula geral do abuso do direito, desse modo, ao tempo em que permite a limitação do exercício dos direitos subjetivos segundo os parâmetros da boa convivência social, oferece à proteção da pessoa humana em diversos setores da vida social, novas possibilidades para sua efetivação, a partir das normas constitucionais. Basta portanto, para a caracterização do abuso, o excesso aos limites impostos pelo direito subjetivo.”[82]
É importante dizer que para haver a caracterização do abuso do direito, este direito tem que ser exercido pelo seu titular, ou pelo seu representante legal ou convencional, caso contrário, não se poderá alegar o abuso do direito em relação a outrem. Sendo assim, só tem como identificar esse abuso quando aquele à quem se imputa o ato tenha o poder de usar, exercer e, portanto, de abusar do direito que lhe foi atribuído.
Entretanto, mesmo que se possa alegar o abuso do direito quando este é exercido pelo titular do direito, esse não pode ser responsabilizado conforme o artigo 187 do Código Civil, pois não é o titular do direito, cabendo a responsabilidade do titular. Por isso, afirma-se que
“Daí por que, interpretação que ora se sustenta é de que o titular do direito pode ser responsabilizado pelo exercício abusivo de um direito, ainda quando este tenha sido realizado por intermédio de representante, quando se trate de representação convencional”.[83]
O fato de o abuso do direito ter sido reconhecido expressamente pelo Código Civil, contribuiu para o fortalecimento e aplicação desta ideia, principalmente no que se refere aos tribunais. Esta inserção faz com que as condutas humanas sejam, ao mesmo tempo, legais, legítimas e adequadas para se fazer a justiça social.
Sendo assim, Tatiana Bonatti Peres[84] afirma que
“[…] a teoria do abuso do direito foi consagrada não apenas em razão da necessidade de proteção à confiança, como previsibilidade de condutas ( porque a conduta permissiva já era prevista pelo ordenamento), mas para recuperar a ética e justiça nas condutas permitidas por lei, isto é, no exercício de direitos.”
Desta forma, ensina Inácio de Carvalho Neto[85] que:
“A explícita menção, como regra de aplicação da lei pelo juiz, do atendimento aos fins sociais da norma, configura claramente o reconhecimento de que deve ser coibida a prática de atos que desatendam a esses mesmos fins sociais – por interpretação lógica do referido dispositivo – ou seja, deve ser coibido o abuso do direito, que, como visto, se caracteriza justamente pelo ato praticado em desatenção à finalidade da lei e do Direito enquanto sistema ético e moral.”
Então, o dever da lei é prever critérios para que se possa exercer, de forma coercitiva, os direitos e que estes atendam aos fins sociais que lhes são destinados; e, caso este fim social seja desatendido, dependendo do caso concreto, estar-se-á caracterizado o abuso do direito e, com ele o ato ilícito, advindo, assim, as responsabilidades devido aos efeitos, danos ou prejuízos que o abuso pode causar a terceiros e que deve ser repelido e reparado.
Existem duas teorias que definem a teoria do abuso do direito: a objetiva e a subjetiva. Neste aspecto, Fabrício CastagnaLunardi[86] ensina que
“A Teoria Subjetiva exige o elemento culpa para caracterizar o abuso de direito. Outros defensores dessa Teoria sustentam que não basta somente a culpa, sendo necessário, ainda, que haja uma finalidade específica de prejudicar terceiros com o exercício de um direito subjetivo. Assim, em síntese, pode-se dizer que a Teoria Subjetiva preconiza que o abuso de direito precisa dos seguintes elementos: a) exercício de um direito subjetivo; b) que resulte, desse exercício, prejuízo para um terceiro; c) que haja a finalidade específica de causar prejuízo ao terceiro; d) que não haja interesse legítimo do titular do direito em exercê-lo de forma a prejudicar terceiro. Surge, então, uma Teoria Objetiva, que preconiza que haverá abuso de direito simplesmente quando, no exercício de um direito, excede-se a sua finalidade social, a boa-fé ou os bons costumes, ou seja, quando é exercido fora da normalidade. Dessa forma, observa-se que prescinde do elemento culpa para caracterizar o abuso do direito.”
O legislador brasileiro, ao inserir o abuso do direito no texto da lei, optou pela linha de pensamento objetiva ou finalista, a qual não requer que o titular do direito exerça-o com culpa para figurar o abuso, mas sim que ao exercer o direito, faça-o de modo abusivo, caindo no excesso que não é permitido pela finalidade social, pelos bons costumes ou pela boa-fé. Sendo assim, não é necessário que o titular do direito tenha uma ação com a intenção de lesionar direito ou bem alheio, basta que o ato abusivo ocorra de fato. Caracteriza-se, assim, o abuso como um ato excessivo, que merece ter uma repreensão e reprovação pelo ordenamento jurídico.
Neste sentindo, afirma Sílvio de Salvo Venosa[87]:
“Assim, o abuso de direito não se circunscreve às noções de dolo e culpa, como pretendem alguns.Se isso fosse de se admitir, a teoria nada mais seria do que um capítulo da responsabilidade civil, ficando em âmbito mais restrito. Se, por outro lado, fosse essa a intenção do legislador, o princípio genérico do art. 186 (antigo artigo 159) seria suficiente, não tendo porque a lei falar em ‘exercício regular de um direito’ no artigo seguinte. Portanto, se de um lado, a culpa e o dolo podem integrar a noção, tal não é essencial para a configuração do abuso, uma vez que o proposto é o exame, em cada caso, do desvio finalístico do exercício do direito.”
Em um ato abusivo, a ilicitude surge como um resultado de um ato que era para ser lícito; ou seja, o ato ilícito se esconde dentro de um ato que deveria ser lícito, por violar o princípio da boa-fé e os bons costumes, além de ter desviado a finalidade econômica ou social para o qual aquele direito foi concedido.
Quando um agente, titular de um direito, comete um excesso ou um abuso ao exercê-lo, pode ter como uma das consequências desse abuso causar dano ou prejudicar alguém e, disto decorrerá a obrigação de indenizar aquele alguém a que se causou um dano ou um prejuízo.
Para que o ato abusivo produza efeitos de responsabilidade civil perante terceiros, é necessário a manifestação do excesso dos limites impostos por valores sociais e ético-jurídicos no exercício de um direito e que este excesso provoque algum prejuízo a terceiro.
Além disso, a posição de vinculação do abuso do direito com a concepção de ato ilícito não goza de significação una no direito brasileiro, sendo que a opção que o legislador escolheu, quando inseriu a teoria do abuso do direito no Código Civil, tem sido vítima de muitas críticas, por ser tão formal.
Desta forma, a preleção de Bruno Miragem[88] é que
“[…] a contradição de o ato ser ao mesmo tempo conforme e contrário ao direito desaparece quando se tem em conta que o termo direito tem duas acepções bem distintas, como direito subjetivo e juridicidade. E que, ao falarmos do abuso do direito, reportamos ao ato que é realizado em virtude do exercício de um direito subjetivo cujos limites formais foram respeitados, mas que, no entanto, é contrario à ordem jurídica, considerada como corpo de regras sociais obrigatórias.”
Sendo assim, para caracterizar-se o abuso do direito, deve haver a contrariedade do exercício dos direitos subjetivos sem a observância dos princípios que norteiam o direito exercido em si e o próprio ordenamento jurídico, colocando o exercício do direito contrário ao que dispõe a norma consagrada pelo direito.
Para que ocorra o abuso do direito, é necessário o exercício de um direito para que se abuse dele. Seguindo esse pensamento, pode-se dizer que o sistema jurídico permite o exercício de um direito, porém que este seja executado dentro dos limites impostos pela norma jurídica, respeitando, ao mesmo tempo, o direito subjetivo de outras pessoas e também a preservação dos valores que constituem o próprio ordenamento.
Neste sentido, afirma-se que ao praticar o abuso de direito, contraria-se a finalidade social e econômica de um instituto, além da boa-fé e dos bons costumes, sendo necessário verificar, no caso concreto, se esses valores foram violados; o agente exercita seu direito objetivo dentro dos limites objetivos, porém viola os princípios gerais que o direito impõe.
Desde o momento em que se estabeleceu que abusar significa excesso em um exercício de direito subjetivo, torna-se relevante os limites impostos para o exercício do direito, que são: o fim econômico ou social, a boa-fé e os bons costumes. Por se tratarem de elementos que possui muitos significados, cabe ao aplicador do direito estabelecer os significados desses quando da sua aplicação.
De acordo com as ilustres palavras de Fabrício CastagnaLunardi[89],
“A Teoria do Abuso de Direito destaca-se dentro da concepção de relativização dos direitos, em que se limita o libre arbítrio do indivíduo em relação ao exercício dos seus direitos. Os direitos subjetivos deixam de ter caráter absoluto, devendo ser exercidos de forma a não prejudicar ilegitimamente as outras pessoas, de acordo com a sua finalidade econômica e social, a boa-fé e os bons costumes.”
Por fim econômico ou social podemos entender que o exercício do direito subjetivo deve atender ao fim que interesse à sociedade e a coletividade e, quando isso não ocorre, ou seja, quando o exercício do direito é feito conforme o interesse do titular do mesmo, mas em contrariedade ao fim econômico ou social que lhe é destinado, está diante do abuso do direito.
Escreve Ruy Rosado de Aguiar Júnior[90] que
“A função social do direito tem por escopo estabelecer a finalidade para qual o ordenamento jurídico criou a norma concessiva do direito subjetivo. O direito é um instrumento para realizar os fins do Estado; as normas jurídicas são editadas para alcançar esse objetivo. Quando o direito concedido pela norma se desvia dessa finalidade, não estará sendo atendida a sua função social. A função econômica está ligada à realização do objetivo de ordem patrimonial visado pelo direito de que se trata.”
A boa-fé tem um papel de extrema importância quando se trata de limite ao exercício de um direito, já que é fonte de deveres anexos como a lealdade, a colaboração e o respeito às expectativas que tem o outro sujeito da relação jurídica e, assim, limita a liberdade individual do indivíduo que possui esses deveres.
A relação existente entre a boa-fé e o abuso do direito é intensa. Apesar de ambas serem desenvolvidas em separado, de acordo com o artigo 187 a boa-fé é um critério de identificação do abuso do direito, não sendo correto afirma que esta possui menor amplitude do que essa.
Antes, deve-se atentar ao fato de que se distinguem duas concepções para a expressão boa-fé. A primeira delas é a denominada boa-fé subjetiva, a qual, “para sua aplicação deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção”.[91]
Na concepção de Angelo Junqueira Guersoni[92],
“Onde há a boa-fé subjetiva, leva-se em consideração a intenção, a consciência individual das partes contratantes de atuarem conforme o direito aplicável, devendo o juiz levar em consideração o estado de consciência do sujeito da relação jurídica, seu estado psicológico, sua íntima convicção.”
A segunda concepção, é a da boa-fé objetiva, apresentando-se como um modelo jurídico. Esta ideia impõe que as pessoas tenham um comportamento honesto, correto e leal, principalmente com o objetivo de respeitar os interesses alheios, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado.
Sendo assim, conforme ensina Fabrício CastagnaLunardi[93],
“Como adota a Teoria Objetiva do Abuso de Direito, quando o Código Civil, no art. 187, se refere a “boa-fé”, está tratando da boa-fé objetiva, relacionada com conduta, e não de boa-fé subjetiva, relacionada à intenção do agente, já que esta é despicienda para caracterizar o abuso de direito.”
Com relação a boa-fé subjetiva, diz-se que um grande problema ao se fazer o uso dela é o juiz ter que saber qual a intenção dos agentes envolvidos no contrato, verificando se a conduta dos mesmos é ética ou não. A boa-fé subjetiva traz o inconveniente de premiar a incúria, a torpeza e o desconhecimento.
Os bons costumes, no que se refere à limite do exercício de um direito subjetivo, são costumes que possui a qualificação de éticos e dotados de valor em si, conforme a importância e a relevância que a sociedade lhe atribui. Os bons costumes expressa um dos limites externos ao exercício de um direito subjetivo e expressa, também, valores ético-sociais dominantes.
Dentro do contexto dos bons costumes, Milton Flávio de Almeida CamargoLautenschläger[94] leciona que
“O costume é, historicamente, a mais antiga das fontes do direito. Isto explica porque nos povos primitivos inexistiam normas jurídicas escritas, valendo o comportamento tradicional como limite para a conduta dos membros da sociedade e fonte substantiva do direito. Com o desenvolvimento da vida social, entretanto, as leis escritas passam a ter predominância na formulação do direito, fato que não impede a manutenção do costume jurídico, direito costumeiro ou direito consuetudinário como uma das fontes formais do direito.”
Além disso, Fabrício CastagnaLunardi[95] acrescenta que
“A exigência do art. 187 do CC de que, no exercício de um direito, se obedeça aos bons costumes é o ponto culminante na orografia da influência da moral sobre o direito. Nesse tocante, há a maior coincidência entre moral e direito, pois, quando, no exercício do direito, avilta os bons costumes, haverá o abuso de direito, um não direito e, portanto, um ato ilícito (em sentido amplo). Bons costumes, portanto, diz respeito à moral de uma determinada sociedade. Não se confunde com costumes, que diz respeito ao direito consuetudinário, ligado à ideia de uso reiterado por determinada comunidade acreditando ele ser obrigatório. A ideia de bons costumes está atrelada às convicções morais de uma sociedade.”
Após expor essas ideias a respeito dos três limites impostos ao exercício do direito – boa-fé, bons costumes e fins econômicos ou sociais – , deve-se tem sempre em mente que são estes institutos que vão servir de alicerce para a sistematização do exercício irregular dos direitos subjetivos.
Entretanto, fazer a distinção e a diferenciação entre esses elementos que limitam o exercício do direito e que dão maiores dimensões aos atos abusivos propicia um maior número de críticas ao afirmar que o abuso do direito é um instituto uno e, por isso, vê-se a necessidade de tipificar com mais exatidão quais são seriam as espécies do exercício abusivo do direito que seriam inadmissíveis pela ordem jurídica.
Todavia, afirma Bruno Miragem[96] que “É a convergência destas distintas proteções que permitem identificar a unidade substancial do instituto do abuso do direito, previsto no artigo 187 do Código Civil, como cláusula geral de proteção da confiança”.
A cláusula geral do abuso do direito se revela como cláusula de proteção da confiança na medida em que possui uma eficácia negativa – quando veda comportamentos abusivos, qualificando-os como ilícitos – e uma eficácia positiva – ao constituir o dever de respeitar os limites do exercício de um direito – assumindo, assim, a proteção das expectativas da sociedade e da coletividade. Portanto, pode-se afirmar que esta cláusula possui um eficácia dúplice.
O fato de ocorrer o exercício irregular de um direito ou o abuso do mesmo e, destes, advirem danos ou prejuízos a outrem, dá causa ao dever de indenizar. Estes danos ou prejuízos, ocorridos em virtude do abuso do direito, podem ser de várias espécies, como patrimoniais, danos à saúde, danos corporais, danos à integridade moral, à honra, à imagem, à vida privada, à intimidade, dentre tantas outras.
O Código Civil brasileiro apesar de ter inserido o abuso do direito, falhou ao deixar de mencionar, direta e imediatamente, quais seriam as possíveis sanções e os efeitos para quem cometesse o abuso. Há de se atentar para o fato de que existe diversas maneiras de se impor uma sanção para o titular do direito que age com abuso, sendo que nem sempre a sanção pecuniária é a melhor forma e a mais adequada para repreender o abuso do direito. Em hipóteses que o abuso do direito tenha como efeito causar dano ou prejuízo a alguém, deve sim ser aplicado a sanção pecuniária, sendo, neste casos, a forma mais adequada de punir o ato abusivo.
Seguindo este pensamento, diz-se que
“[…] a consequência mais visível do reconhecimento legislativo do abuso do direito, por intermédio da cláusula geral do artigo 187 do Código Civil, é a expansão das hipóteses de responsabilidade civil por danos decorrentes da conduta abusiva do titular de um direito, por ocasião do seu exercício.”[97]
Um exemplo que pode ser citado, no caso de abuso do direito com danos, é quando verifica-se a presença deste instituto na prática de um negócio jurídico, o que enseja não somente a obrigação de reparar os danos causados pelo abuso, morais e patrimoniais, mas também pode gerar a nulidade do ato ou negócio jurídico.
Todavia, se o abuso não ocasionar danos, prejuízos ou lesar direito de uma outra pessoa, a pena pecuniária já não é a melhor e a mais adequada para este tipo de situação. Sendo assim, embora se possa cogitar a possibilidade da existência de um ato abusivo que não provoque danos – e nem assim deixará de ser caracterizado como abusivo -, é imprescindível a ocorrência do dano para que exista a obrigação de indenizar; ou seja, se não houver prejuízo, o ato abusivo provoca apenas o desfazimento do ato.
Nos casos em que não ocorre danos ou prejuízos em decorrência de um ato abusivo, a melhor opção é a da sanção direta, com a possibilidade de se desfazer o ato ou até mesmo a nulidade do ato, pois esta tem demonstrado mais eficácia para coibir a abusividade do direito do que a indenização por perdas e danos.
Destarte, diante o exposto acima, é notório perceber que são várias as formas de se aplicar uma sanção ao abuso do direito e, a aplicação desta sanção pode variar de acordo com o exercício abusivo no caso concreto, podendo ser desde a reparação de dano ou prejuízo por responsabilidade civil, até outras maneiras de sanções, o que contribui para afirmar a distinção do ato abusivo de um direito com o ato ilícito.
Concluindo esta linha de raciocínio, Keila Pacheco Ferreira[98] afirma que “À vista de todo o exposto, pode-se concluir que o abuso do direito está definitivamente consagrado no Código Civil, e fundamenta-se no critério objetivo-finalístico”. Além disso, ensina Milton Flávio de Almeida Camargo[99] que
“De qualquer modo, a verdade é que o legislador pátrio andou bem ao adotar fórmula expressa para definir o abuso do direito, uma vez que, desta forma, elimina as discordâncias entre a lei e a orientação dos tribunais, evitando-se um inevitável descrédito da primeira, além de externar de modo claro a sua existência, o que colabora na orientação e melhor difusão de seu conceito e mecanismos perante a sociedade.”
Após a análise feita a respeito da inserção do abuso do direito no Código Civil e as possíveis sanções a serem aplicadas, o próximo tópico irá discorrer sobre o âmbito de incidência e aplicação do abuso do direito.
3.6. O âmbito de incidência e aplicação do abuso do direito
Com a finalidade de demonstrar qual é o campo de atuação e aplicaçãoda teoria do abuso do direito, cumpre-se ressaltar que ela pode ser utilizada tanto no direito subjetivo quanto em outras prerrogativas, como liberdades individuais, direitos potestativos.
Conforme os dizeres de Fernando Augusto Cunha de Sá[100],
“[…] se o sujeito viola o íntimo sentido da faculdade que lhe é reconhecida ou concedida, se o seu concreto comportamento é o oposto do valor que materialmente lhe preside e a orienta, mas se mascara, na aparência, com o respeito dos limites lógico-formais da norma que a concede ou reconhece, se finge (ou se acoberta com) os quadros estruturais de uma determinada faculdade, deparamo-nos com a mesma realidade dogmática que tecnicamente vem sendo individualizada como abuso do direito.”
Quando se fala em abuso do direito, alguns autores preferem dizer que há um abuso de posições jurídicas, relacionando o abuso do direito com alguma posição jurídica em que se evidencie atos abusivos que contrarie os valores fundamentais de um ordenamento jurídico. Ao dizer posição jurídicas, entende-se que a posição definidorado sujeito juridicamente e lhe atribui diversidades de direitos. Esta posição jurídica em uma relação obrigacional, que é o objeto de análise do estudo, compreende os direitos subjetivos, os deveres jurídicos, expectativas de direitos, dentre tantas outras, que cada uma das partes da relação possui.
O interesse de um direito é somente reconhecido ao sujeito quando atender ao interesse do titular e também atender ao interesse social e coletivo. Constata-se, então, que o exercício de um direito se encontra limitado tanto pela teoria do abuso do direito como pela noção de posição jurídica subjetiva, para que se possa conferir as vantagens individuais oferecidas pelo ordenamento jurídico ao sujeito de direito, desde que exerça o direito para atingir a função social que lhe é destinada.
Diante disso, o ato abusivo do direito pode ser a violação do fundamento valorativo de um direito subjetivo como também de uma outra vantagem individual de um sujeito qualquer.
“Conclui-se, portanto, pela aplicabilidade da teoria do abuso do direito nas relações obrigacionais, especialmente no campo de atuação da autonomia privada e liberdade contratual, posto que, independentemente da concepção teórica adotada para a sua definição, estas categorias podem ser agrupadas na noção mais ampla que as caracterizam como situação jurídica, cujo exercício, como sabemos, deve ser limitado pelo equilíbrio entre o interesse individual e o social”.[101]
O ordenamento jurídico só reconhece um direito a seu titular se ele for exercido dentro dos limites e das regras impostas pela lei; se desta forma não for exercido, o direito não será reconhecido ao seu titular e nem gozará de uma tutela, pois que quando o direito é exercido de maneira diversa do que foi estabelecido nas normas, será caracterizado como um ato abusivo.
Pode-se ainda afirmar que são duas as limitações genéricas impostas quando vai exercer um direito. A primeira diz que o exercício de um direito deve-se submeter aos princípios da boa-fé e dos bons costumes que reinam em uma sociedade e, a segunda diz que o titular do direito deve exercê-lo em consonância com a função social e econômica para os quais o direito foi lhe concedido ou atribuído.
Portanto, ao fim deste tópico, tem-se
“[…] que a função social do direito, a boa-fé e os bons costumes deverão atuar como limites impostos às variadas prerrogativas jurídicas, cuja inobservância prestará a conferir-lhes o atributo da abusividade, em virtude da não-observância do fundamento axiológico que constitui o direito.[102]
No capítulo seguinte, será abordado a relação existente entre o abuso do direito e os credores de uma empresa sujeita à falência e que requer recuperação judicial.
4. Lei nº 11. 101/2005 – Recuperação judicial
4.1. A Lei de Recuperação de Empresas
A Lei de Recuperação de Empresas é uma evolução para o direito empresarial, uma vez que tornou o meio mais moderno com os seus aspectos inovadores, atendendo, assim, às exigências da sociedade contemporânea.
Paulo Roberto Colombo Arnoldi e Taís Cristina de Camargo Michelan[103] ensinam que
“Com o processo de globalização e regionalização da economia, a empresa passa a desempenhar papel fundamental na sociedade contemporânea. Dela depende, diretamente, a subsistência da maior parte da população ativa do Brasil e dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. É dessa instituição social que provém a grande maioria dos bens e serviços consumidos pelo mercado, além de prover o Estado da maior parcela de suas receitas fiscais.”
Ao se falar na nova Lei de Falências, José Eli Salamancha[104] preleciona que “Seguindo a tendência do Código Civil de 2002, a preocupação principal da nova lei é a preservação da empresa, fundamentada na sua função social”.
A nova Lei de Falências, nº 11. 101/2005 foi aprovada e promulgada com o objetivo de atender às novas exigências requeridas pelas empresas modernas, tentando alcançar, simultaneamente, credores, devedores e toda a sociedade que usufrui dos serviços disponibilizados pelas mesmas. Além disso, ela possui duas naturezas: normas de direito processual e normas de direito material.
No tocante às normas de direito processual, a nova lei se preocupou com o bom encaminhamento dos procedimentos da falência, recuperação judicial e extrajudicial; com relação às normas de direito material, teve preocupação em definir quais seriam as condições que os empresários e as sociedades empresárias deveriam ter quando estivessem passando por uma crise financeira para que pudesse se recuperar sob a tutela do Estado.
Conforme os dizeres de Paulo Salvador Frontini[105],
“Diploma legal muito recente, a Lei de Recuperação e Falências revelará, ao longo de sua aplicação, se veio realmente acrescer à economia do país, e em especial ao meio empresarial, uma solução criativa e eficiente, de que o direito falimentar sempre se revelou carente.”
Com a aprovação desta nova lei, a sociedade deve ter em mente que, nos dias atuais, além dos credores e devedores, há também terceiros interessados em um atividade empresarial, como por exemplo os trabalhadores, que ao exerce sua atividade, dão prosseguimento ao desempenho da função social da empresa, gerando e mantendo a atividade econômica, além de desenvolver o país social e economicamente.
Consoante os dizeres de Écio Perin Júnior[106],
“Com maior ou menor preponderância, a empresa passou a ser peça fundamental da atividade produtiva nacional e um decisivo elemento, quer de economia regional, quer da vida local. Desta forma, a eliminação judicial da empresa representa uma verdadeira agressão ao equilíbrio social, de que o Estado não poderá se desinteressar.”
Além de aperfeiçoar o antigo sistema de concordatas, essa norma tem como escopo a busca de novos princípios que devem ser respeitados e seguidos quando um negócio estiver em um momento de crise financeira e quer superá-la. Estes princípios são: preservação da empresa, a função social, circulação de bens e serviços, movimento de capital, geração de riquezas, renda, tributos e postos de trabalho, entre outros. Nesta linha de pensamento, Maria Celeste Morais Guimarães[107] preleciona que “Vê-se que os principais inspiradores da reforma da Lei n. 11. 101/2005 foram a busca do crescimento econômico por meio da tutela do crédito e da sua circulação, e a recuperação das empresas em crise, em face da sua função social”.
Quando se fala em alcançar a função social de uma empresa, João Carlos Leal Júnior[108] afirma que
“Assim, a fim de desempenhar sua função social, deve a empresa observar princípios fundamentais como: solidariedade, promoção da justiça social e da livre iniciativa, respeito e proteção ao meio ambiente, redução das desigualdades sociais, busca do pleno emprego, valores sociais do trabalho, dentre outros, todos corolários do princípio da dignidade.”
Conforme as palavras de Moacyr Lobato de Campos Filho[109], a importância desse instituto ocorre pelo fato de que
“Particularmente, a recuperação judicial almeja a harmonização dos interesses intrinsecamente conflituosos, titularizados pelos credores, pelos empregados e pelo próprio devedor. […] Mencionou, expressamente, o estímulo à atividade econômica e o prestígio da função social da propriedade como paradigmas da recuperação judicial. “
Entretanto, mesmo que a nova Lei de Falências tenha o objetivo de promover a recuperação judicial de empresas que estão passando por uma crise econômico-financeira, pois se trata de uma atividade de risco, este novo instituto deve ser usado de forma coerente e apenas naquelas atividades empresariais que sejam economicamente viáveis para a sociedade, carecendo de meios para sua manutenção e reorganização.
Ao lecionar sobre os riscos, incertezas e a função social que envolvem as atividades empresariais, Rachel Sztajn[110] ensina que
“Mas, como no exercício da empresa a inovação na modelagem de contratos está associada às necessidades do tráfico mercantil, que, ademais, tem na especulação – compra-se determinado bem na crença de que ao revendê-lo se obterá preço maior – , estimulando-se, com isso, a alocação mãos eficiente dos recursos escassos, não resta dúvida de que risco e incerteza estão intrinsecamente ligados ao exercício da empresa. De outro lado, a empresa é forma de organização destinada a reduzir custos de transação; portanto, também ela tem função social.”
Deve ser salientado que o impacto da falência de uma empresa não afeta apenas a atividade empresarial e seus credores particulares, mas também atinge a economia, ocasionando alguns efeitos, tais como: problemas de liquidez, acirramento da concorrência e insolvência de fornecedores ou clientes da empresa falida.
Com a finalidade de destacar a importância da empresa dentro de uma sociedade, Fábio Konder Comparato[111] diz
“É dela que depende, diretamente, a subsistência da maior parte da população ativa do país, pela organização do trabalho assalariado. É das empresas que provém a grande maioria dos bens e serviços consumidos pelo povo, e é delas que o Estado retira a parcela maior de suas receitas fiscais. É em torno da empresa, ademais, que gravitam vários agentes econômicos não assalariados, como os investidores de capital, os fornecedores, os prestadores de serviços. Mas a importância social dessa instituição não se limita a esses efeitos notórios. Decisiva é hoje, também, na sua influência na fixação do comportamento de outras instituições e grupos sociais que, no passado ainda recente, viviam fora do alcance da vida empresarial. Tanto as escolas quanto as universidades, os hospitais e os centros de pesquisa médica, as associações artísticas e clubes desportivos – todo esse mundo tradicionalmente avesso a negóciosviu-se englobado na vasta área de atuação da empresa. A constelação de valores típica do mundo empresarial – o utilitarismo, a eficiência técnica, a inovação permanente, a economicidade de meios – acabou por avassalar todos os espíritos, homogeneizado atitudes e aspirações”.
É relevante dar atenção para o aspecto da viabilidade econômica, pois apesar da maioria das empresas de hoje serem atualizadas tecnologicamente, com uma boa organização administrativa e com um bom capital de giro, existem, mesmo que em minoria, algumas que estão obsoletas em tecnologia, administração e, isso pode afetar e prejudicar aquelas que possuem ótimas condições de funcionamento empresarial.
Seguindo essa linha de pensamento, Écio Perin Júnior[112] preleciona que
“Nessa medida, esse acaba sendo um processo natural de seleção, no qual o resultado é um melhoramento dos níveis médios de eficiência que pode gerar o estímulo à busca de inovações tecnológicas. A bem da verdade, isso significa endereçar de forma sustentável, recursos disponíveis, muitas vezes escassos, a fim de proporcionar uma maximização de resultados.”
Logo, por mais que se queira recuperar os negócios que estão na iminente falência, há casos que é melhor ser decretada a “quebra” do que permitir que uma atividade empresarial continue sem ter a menor perspectiva de melhora e, com isto, poder realocar os recursos – materiais, financeiros e humanos – empregados nesta para aquela que está em plena potência de produtividade de riquezas.
Fazer intervenções que possam ser inúteis futuramente pelo fato da empresa estar de fato condenada a falir faz com que coloque em risco e contamine outras empresas saudáveis que tenham capacidade suficiente para competir no mercado.
Além disso, conforme Vilson Darós[113] há custo para reorganizar uma atividade empresarial e alguém tem que se responsabilizar por este custeio; o pagamento destes custos far-se-á por meio de investimentos no negócio que está em crise. Entretanto, como no fim, os agentes acabam repassando para os consumidores os preços das mercadorias, o valor que desembolsou para reorganizar a empresa em recuperação judicial, o ônus dos custos acabam recaindo sobre a sociedade brasileira.
Como forma de corroborar o pensamento acima, Fábio Ulhoa Coelho[114] ensina que
“Nem toda a falência é um mal. Algumas empresas, porque são tecnologicamente atrasadas, descapitalizadas ou possuem organização administrativa precária, devem mesmo ser encerradas. Para o bem da economia como um todo, os recursos – materiais, financeiros e humanos – empregados nessa atividade devem ser realocados para que tenham otimizada a capacidade de produzir riqueza. Assim, a recuperação da empresa não deve ser vista como um valor jurídico a ser buscado a qualquer custo. Pelo contrário, as más empresas devem falir para que as boas não se prejudiquem. Quando o aparato estatal é utilizado para garantir a permanência de empresas insolventes, inviáveis, opera-se uma inversão inaceitável: o risco da atividade empresarial transfere-se do empresário para os credores…”
Existem empresas que apesar de serem evoluídas no quesito tecnológico e terem uma boa administração, também passam por momentos de crises financeiras, quer por motivos alheios ou não à própria vontade, mas que com uma reorganização dos custos e dos lucros, conseguem solver as dívidas. E é nestes casos que deve ser aplicada a recuperação judicial da empresa, pois esta é importante para a economia e, está apenas passando por um episódio ruim que todos os empresários estão sujeitos.
Os motivos da crise-financeira da atividade empresarial podem ser de ordem interna, externa e acidental. Dentre as de ordem interna, pode-se elencar a má administração, disputa entre sócios, constante endividamento, não atualização tecnológica, ausência de mão-de-obra qualificada, perda da qualidade ou falta de atualização do produto, inadimplência de devedores, etc. Com relação a não atualização tecnológica, Écio Perin Júnior[115] ensina que
“A aceleração da evolução técnica e dos rápidos processos inovativos relacionados aos processos produtivos (otimização de recursos para a maximização de resultados) são, em muitos setores, um favor extremamente relevante. A automatização ligada à computação, à robótica, à transformação do trabalho mecânico em eletrônico, são os aspectos essenciais desse fenômeno. Assim, o alto dinamismo que caracteriza os produtos (e via de regra os processos produtivos) se tornam insustentáveis para as empresas caracterizadas de uma escassa capacidade inovativa.”
No tocante às de ordem externa, citam-se a recessão, a retração de mercados, a concorrência acirrada, a pesada carga tributária, políticas econômicas desastrosas, escassez de créditos, catástrofes climáticas ou ecológicas na região de produção ou de fornecimento de matéria à transformação ou circulação da mercadoria, entre outros. Dentro do contexto da pesada carga tributária, o autor acima citado afirma que
“Outro fator, não menos importante, diz respeito à constante elevação da carga tributária incidente sobre a atividade produtiva, o que asfixia a capacidade de concorrer em mercados já extremamente acirrados, proporcionando uma instabilidade econômica relevante, capaz de propiciar a quebra de empresas.” [116]
Quanto às causas acidentais, ressalta-se o bloqueio de papel moeda e a maxidesvalorização da moeda nacional. [117]
Portanto, a falência de uma empresa só deve ser decretada, tendo o seu patrimônio liquidado em favor dos credores, somente quando a situação da atividade empresarial não tiver nenhuma perspectiva de manutenção e reerguimento. E esta conclusão deve ser obtida após uma análise célere da realidade econômica da empresa juntamente com todos os interesses nela envolvidos.
Sendo assim, Écio Perin Júnior[118] afirma que
“Em realidade deve-se observar atentamente e valorar-se os riscos caso a caso, para se verificar a conveniência ou não de uma intervenção de fato na empresa em crise. Isto porque, alguns interventos equivocados de “salvamento” da empresa em crise, ineficiente e obsoleta, pode gerar custos sociais ainda maiores e desproporcionais que significarão a manutenção das condições de dificuldade econômico-financeira dessa empresa.”
Enfim, espera-se que a finalidade dessa nova legislação seja o aumento da produção das atividades empresariais, melhorando por conseguinte o sistema econômico brasileiro e melhorar e aumentar a oferta de crédito para o setor produtivo do país.
4.2. Conceito de recuperação e a Recuperação Judicial
O verbo recuperar tem por significado o sentido de reaver, recobrar, readquirir algo que se perdeu, por exemplo. Traz a ideia de restabelecimento e, pode ser visto, também, como a noção de restauração de algum bem ou de algum valor.
A recuperação, em si, comporta o sentido de ressarcimento. Seja qual for o significado de recuperar ou de recuperação, haverá sempre a noção de uma iniciativa, de uma reconstrução ou preservação.
De acordo com os dizeres de Waldo Fazzio Jr.[119] ,
A ação de recuperação judicial tem por meta sanear a situação gerada pela crise econômico-financeira da empresa devedora. Nela, o devedor postula um tratamento especial, justificável, para remover a crise econômico-financeira de que padece sua empresa. Seu objeto mediato é a salvação da atividade empresarial em risco e seu objeto imediato é a satisfação, ainda que atípica, dos credores, dos empregados, do Poder Público e, também, dos consumidores.
Leciona Paulo Salvador Frontini[120] que
“A recuperação judicial de empresas é um processo, como diz a lei. É uma ação contenciosa, não se afigurando constitucionalmente o preceito legal que determina que o juiz, em plena função jurisdicional – dirimir conflito de interesse em nome do Estado – deva ficar submetido à posição de uma das partes.”
O conceito de recuperação judicial seguirá o pensamento de Paulo Salvador Frontini, porém um pouco mais complexo, pois envolve outros fatores sociais. A mesma é caracterizada conforme o contexto da nova lei, pela soma de providências de caráter econômico-financeiro, econômico-produtivo, organizacional e jurídica com a finalidade de reestruturar e aproveitar, da melhor maneira possível, a potência produtiva de uma empresa, conseguindo atingir uma renda que seja autossustentável e que permita a superação da crise financeira dos negócios, mantendo, assim, a produção e a sua função social.
4.2.1. Natureza jurídica da recuperação judicial
O que predomina na recuperação judicial é a autonomia privada da vontade das partes interessadas que querem atingir a finalidade recuperatória. Assim sendo, esta possui a natureza de ser um contrato judicial e com novas feições, mesmo que o plano de recuperação tenha que ser submetido a uma avaliação judicial.
Desta forma, Mirella Madureira[121] defende que “A recuperação judicial possui manifesto caráter contratual, estabelecendo compromissos de pagamentos entre devedor e credores a serem satisfeitos na forma estabelecida no respectivo plano”.
Quando o pedido recuperatório é concedido pelo juiz, isto não repercutirá no conteúdo do que foi estabelecido entre as partes, porquanto a decisão esteja vinculada a este conteúdo.
Moacyr Lobato de Campos Filho[122] afirma que
“A recuperação judicial, de iniciativa do devedor e consubstanciada num documento submetido à deliberação dos credores reunidos em assembleia e dependente da chancela judicial, encontra sua natureza mais próxima do acordo de vontades. As partes reconhecem que a adoção de tudo quanto esteja contido no plano servirá como meio propício ao soerguimento pretendido.”
A seguir, irá ser debatido alguns aspectos relacionados com as inovações na LRE.
4.3. As inovações conquistadas pela nova LRE
Segundo os ensinamentos de Paulo Roberto Colombo Arnoldi[123],
“Esta nova legislação introduz as seguintes inovações:
Estabelece sob o aspecto econômico um sistema de insolvências que tenha soluções mais previsíveis, célere e transparente para recuperação de empresas insolventes ou em vias de insolvência, de modo que os ativos tangíveis e intangíveis, sejam preservados, continuando assim a cumprir sua função social. Permite que a empresa possa continuar gerando e preservando empregos, tributos, renda, produção de riquezas, desenvolvimento científico e tecnológico, estímulo e proteção ao crédito.”
A nova Lei de Falências trouxe inúmeras novidades para o ramo empresarial, inclusive para aqueles que estão sujeitos à falência. Dentre as várias inovações formuladas, podem-se citar algumas, que são: extinção das concordatas e a atuação da recuperação judicial – sendo esta, inclusive, a principal novidade-; o pedido da quebra perde um pouco a sua intensidade coercitiva, utilizada na cobrança de dívida; pode-se fazer, de imediato, a realização do ativo; muda a participação do Ministério Público na falência, não sendo necessária a sua intervenção em todos os processos que tenha massa falida; alteração na ordem da classificação dos credores; a necessidade de apresentação de certidões negativas fiscais para a obtenção da recuperação judicial; entre outras.
4.4. A finalidade da LRE
Como já foi explicitado em momento oportuno, a existência de empresas que passam por dificuldades em realizar os pagamentos pontualmente, fenômeno denominado de crise econômico-financeira, é muito grande e as causas são as mais variadas possíveis.
Deve-se lembrar que o empresário, ao exercer uma atividade empresarial, enfrenta diversos obstáculos e dificuldades diariamente, como a luta constante pela conquista de novos mercados e pela manutenção da clientelacontra os assédios da concorrência, o gerenciamento da mão-de-obra e dos prestadores de serviços em geral, as exigências burocráticas, etc. Esses fatores, se não saneados a tempo, contribuem muito para o início do estado de crise econômico-financeiro de uma empresa.
Conforme os dizeres de Paulo Salvador Frontini[124], o estado de crise econômico-financeiro é caracterizado como
“[…] a situação efetiva (e não meramente contábil) de empresário ou sociedade empresária que, por insuficiência de ativo patrimonial, ou por indisponibilidade de liquidez monetária, não reúne condições de dar prosseguimento normal à sua atividade empresarial.”
Os primeiros indícios de que uma atividade empresarial está no início de uma crise financeira é quando: a empresa necessita pela primeira vez fazer o uso de seu limite de crédito para saque a descoberto, ou é forçada a solicitar um aumento do atual limite; a empresa começa a apresentar prejuízos; as contas a pagar excedem as a receber pela primeira vez; as contas a pagar sempre superam os créditos; ocorre o primeiro protesto contra a empresa; entre outros.[125]
Esta crise econômico-financeira, a partir dos anos 1970, deixou de ser um mero fenômeno episódico, ligada à incapacidade dos empresários e seus administradores, vinculado à um ato culposo, para passa a ser um fenômeno frequente, que a mídia veicula diariamente. “Percebe-se, pois, que a frequência dos períodos de crise na vida da empresa se torna constante, caracterizando-se hoje como um fenômeno difuso, coligado ao dinamismo da instabilidade do ambiente empresarial. Este não é um fenômeno apenas brasileiro, mas diz respeito a uma ampla gama de países economicamente desenvolvidos ou não”. [126]
Todavia, ao fazer a análise das situações de cada uma dessas atividades empresariais para se conceder a recuperação judicial, deve-se atentar para alguns requisitos, como por exemplo: viabilidade econômica, causas do inadimplemento, geração de riquezas e empregos, importância no mercado, atualização tecnológica, entre outros.
Para analisar os critérios acima citados, deve-se perquirir a respeito da viabilidade econômica da empresa, qual a importância desta atividade dentro do contexto social e econômico regional ou nacional, quais são os interesses que a ela estão ligados e fazer uma pesquisa de quais seriam os efeitos causados se fosse decretado a “quebra” desta empresa.
Ensina Écio Perin Júnior[127] que
“A decisão pela recuperação da empresa, portanto, em nossa opinião, deve estar fundada em uma prévia e profunda verificação das causas que levaram à crise, dos instrumentos idôneos para a reestruturação empresarial e respectivos custos, inclusive sociais, e por último, da avaliação da possibilidade de sucesso em relação aos resultados esperados na intervenção. A análise criteriosa da crise e o plano de recuperação são, pois, dois momentos essenciais deste necessário processo de verificação.”
Ao fazer a análise desses critérios relatados acima, além de outros que se julgar necessário, se ficar nítido que a empresa tem uma grande importância comercial e que a decretação de falência da mesma pode gerar efeitos desastrosos, a atitude certa a ser tomada é a concessão da recuperação judicial, alcançando o objetivo da LRE, que é a preservação da empresa, juntamente com a manutenção de empregos e a geração de riquezas.
Neste contexto, Maria Celeste Morais Guimarães[128] afirma que
“Desta forma, os interesses que gravitam em torno da empresa: os trabalhadores, fornecedores, prestadores de serviços e a própria comunidade, que são atingidos pela crise da empresa, passaram a ser reconhecidos e tutelados pelo Poder Público, que assumiu, portanto, papel de relevância na solução do conflito, buscando a recuperação da empresa e a manutenção da atividade empresarial.”
Também, durante o momento da análise dos critérios acima mencionados, deve-se fazer a distinção entre uma empresa que possui uma inviabilidade econômica irreversível daquela que está passando por crise financeira, mas que é possível se recuperar, pois gastar custos com a primeira situação é jogar dinheiro fora e um desgaste muito grande, sendo que na segunda situação, o gasto seria recompensado com a recuperação da atividade empresarial.
Uma outra questão que deve ser levada em consideração conjuntamente com o que foi dito acima é que se uma empresa, no momento em que está sendo analisada, possui um caixa positivo, ela tem boas perspectivas de pagamento de suas dívidas no futuro e, caso ela sofra uma crise econômica passageira, é passível de se recuperar. Se uma empresa possui um caixa negativo, mas sua atividade empresarial é viável e tem potência para continuar, gerando trabalho e riquezas, pode ser também beneficiada pela recuperação judicial, desde que tenha uma administração boa e competente.
Por outro lado, as empresas consideradas inviáveis e que possuem caixa atual negativo, devem sim ser falidas como forma de não prejudicar outros empresários, além de ser uma forma de sanear o sistema econômico do país.
Paulo Roberto Colombo Arnoldi[129] afirma que
“Nesta perspectiva, a legislação falimentar deve oferecer às empresas e a seus credores entre eles, fornecedores, trabalhadores, bancos e instituições financeiras as condições para buscar uma solução que produza o melhor desempenho possível para todos os agentes envolvidos, com a sua preservação e a reorganização da empresa.”
Além de poder exercer a função social, mantendo empregos e gerando riquezas obtendo a recuperação judicial, a empresa também pode exercer uma outra função muito importante, que é o investimento em projetos sociais. Neste aspecto em específico, Taís Cristina de Camargo Michelan[130] afirma que
“O Brasil, embora seja incipiente na construção e realizaçãoo de obras sociais, já há algum tempo vem cumprindo um importante papel social no campo empresarial. Nunca as empresas brasileiras investiram tanto em projetos sociais. […] Conclui-se que o engajamento das empresas em projetos voltados para a comunidade ultrapassou os estágios principiante em que encontrava no início da década de noventa para se firmar como estratégia corporativa.”
Um importante ponto que deve ser lembrado é que apenas o devedor empresário possui legitimidade para requerer o pedido da recuperação judicial, não se admitindo a implementação do mesmo por credores, administrador judicial, Ministério Público, ou de ofício pelo juiz.
Entretanto, em situações especiais, podem requerer o pedido o cônjuge sobrevivente, herdeiros do devedor, ou o inventariante, no caso do espólio do empresário individual.
Além disso, existem alguns requisitos, determinados no art. 48 desta lei, que os credores devem observar caso queiram se valer de alguns meios de recuperação judicial; e alguns desses requisitos são: o exercício regular de atividade empresarial há mais de dois anos; não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; não ter, há menos de cinco anos, obtido concessão de recuperação judicial, etc.[131]
Neste sentido, vale ressaltar os ilustres dizeres de Sérgio Campinho[132], quando este afirma que
“O instituto da recuperação vem desenhado justamente com o objetivo de promover a viabilização da superação desse estado de crise, motivado por um interesse na preservação da empresa desenvolvida pelo devedor. Enfatize-se a figura da empresas sob a ótica de uma unidade econômica que interessa manter, como um centro de equilíbrio econômico-social. É, reconhecidamente, fonte produtora de bens, serviços, empregos e tributos que garantem o desenvolvimento econômico e social de um país. A sua manutenção consiste em conservar o “ativo social” por ela gerado. A empresa não interessa apenas a seu titular – o empresário – , mas a diversos outros atores do palco econômico, como os trabalhadores, investidores, fornecedores, instituições de crédito, ao Estado, e, em suma, aos agentes econômicos em geral. Por isso é que a solução para a crise da empresa passa por um estágio de equilíbrio dos interesses públicos, coletivos e privados que nela convivem.”
De acordo com Paulo Salvador Frontini[133],
“[…] se essa crise for superável, a hipótese é de se invocar o instituto da recuperação judicial […]. Se a crise for insuperável – no entendimento do devedor – a hipótese é de pedido de autofalência; e se a convicção do juízo competente for na mesma linha, a hipótese será de decretação de falência. “
Sendo assim, se a empresa for viável e o devedor apresentar um bom plano de recuperação judicial, a superação da crise financeira da atividade empresarial só dependerá da boa vontade dos credores no momento do voto durante a assembleia-geral dos credores, e estes irão apenas confiar naquelas empresas que estejam ativas e que demonstrem produzir meios capazes de superar o inadimplemento por qual estão passando.
4.5. O plano de recuperação judicial
Como já foi dito anteriormente, o plano de recuperação judicial é o documento que deve ser apresentado pelo devedor aos credores para que estes façam a avaliação do estado em que se encontra a empresa, podendo aprovar ou vetar o mesmo.
Leciona com sua excelência Milton Barossi-Filho[134] que
“Do ponto de vista legal, o plano de recuperação foi concebido como um instrumento contendo intenções e estratégias capazes de conduzir a empresa a uma nova situação econômico-financeira. Na verdade, trata-se de um plano a ser apresentado e referendado pelas distintas classes de credores da empresa cuja reestruturação se pretende, com a finaldiade de manter suas operações.”
Ao elaborar o plano de recuperação, o devedor possui inúmeros meios de recuperação que tornem viável o reerguimento de sua atividade empresarial, desde que estes meios se adequem à realidade financeira a qual a empresa se situa. Sendo assim, o devedor tem ampla liberdade para confeccionar o plano, lembrando-se que este tem que ser atrativo para os credores, pois são estes que vão votar a favor ou contra o plano de recuperação judicial.
Dentre as medidas que podem recuperar uma empresa e ser constada em um plano de recuperação, pode-se citar algumas, como: concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas; alteração do controle societário; aumento de capital social; arrendamento ou trespasse de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados; constituição de sociedade de credores; venda parcial dos bens; usufruto da empresa; administração compartilhada; emissão de valores mobiliários; entre outros. [135]
Além dos meios com os quais uma empresa pode se recuperar da crise financeira, deve constar também no plano de recuperação judicial: a discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a serem empregados, bem como um resumo de cada ato que o compõe; demonstração analítica de sua viabilidade econômica; laudo econômico-financeiro e de avaliação dos ativos do devedor, subscrito por profissional habilitado ou por sociedade especializada.[136]
Portanto, destaca-se que “[…] os meios de recuperação devem estar contidos no plano, de modo a ficar demonstrado que, mediante correta e oportuna utilização dos meios, a crise restará superada e a atividade empresarial se normalizará”[137].
Dentro do contexto do plano da recuperação judicial, que é uma inovação da Lei 11. 101/2005, Maria Celeste Morais Guimarães[138] cita um exemplo de uma empresa que estava em crise, mas por ser economicamente viável e importante para a sociedade, conseguiu se recuperar, que é a seguinte:
“[…] a notícia da aquisição do controle acionário da VRG Linhas Aéreas – companhia área que opera a marca “Varig”, em recuperação judicial, pela Gol Linhas Aéreas, em uma bem-sucedida operação de salvamento de uma empresa em crise, na economia brasileira. Não se trata de uma empresa qualquer, mas da mais tradicional companhia do setor aéreo nacional, com reconhecida excelência na prestação de seus serviços, inclusive internacionalmente, constituindo-se uma referência no seu segmento, ao ponto de a mídia referir-se a ela como um verdadeiro “patrimônio nacional”.”
O empresário devedor deve estar continuamente atento aos prazos do processo, pois após o deferimento do pedido – que deve conter quais foram as razões para que a atividade empresarial seguiu o caminho de inviabilizar-se, procurando pela recuperação – de recuperação judicial feito pelo juiz, esse tem o prazo de sessenta dias para elaborar o plano de recuperação e apresentá-lo em juízo e, caso não faça isso dentro do prazo, o pedido será convalescido em falência. Nesta linha de pensamento, segue os dizeres de Paulo Salvador Frontini[139]:
“Assim, há, de fato, um raciocínio lógico a dizer que, se o devedor pede recuperação judicial para superar crise econômico-financeira, está na verdade em situação falimentar ou pré-falimentar. Revela, com seu pedido, que necessita da medida judicial para evitar a falência. Está, pois, implicitamente, admitindo, numa perspectiva de curto prazo, sua falência. Ora, se não apresenta o plano de recuperação, é coerente que a lei determine, desde logo, a convolação da ação de recuperação judicial em ação de falência.”
Depois que o devedor apresentar o plano de recuperação judicial em juízo, o juiz vai ordenar a publicação de um novo edital com a finalidade de que os credores tomem conhecimento do plano que foi apresentado pelo devedor, fixando um prazo para que esses apresentem as objeções com relação ao documento. As objeções são um mecanismo legal oferecido aos credores para que eles possam fazer alguma oposição ao pedido de recuperação judicial e também participar das decisões do plano, sendo uma forma de defender seus créditos.
Neste sentido, Maria Celeste Morais Guimarães[140] diz que
“A Lei não teve o cuidado de exigir que tal legitimidade devesse recair em um credor representativo do passivo ou que detivesse um percentual significativo de créditos para oferecer a oposição ao plano. Por que nos preocupa tal questão? Exatamente pelo fato de que um credor que não seja em nada relevante na solução do passivo da sociedade possa tumultuar o processo e dificultar a solução da recuperação. Não se pretende excluir a hipótese de manifestação dos credores, até porque são os interessados na solução do conflito. Contudo, tal permissão a qualquer credor parece-nos muito benevolente e irrazoável.”
É neste momento que o credor, ao exercer o direito de voto que possui com relação ao plano de recuperação, pode abusar deste direito, votando contra a recuperação da empresa, visando apenas obter o crédito que lhe é devido com a liquidação do ativo empresarial. E é importante ressaltar que basta apenas um credor apresentar objeção em relação ao plano para que o juiz convoque a assembleia-geral de credores com o objetivo destes deliberarem sobre o assunto.
5. Relação do abuso do direito com a recuperação judicial
5.1. A Assembleia-Geral de credores relacionada com o abuso de direito na recuperação judicial
Antes de iniciar o tema, faz-se necessário definir o que é esta assembleia-geral, que de acordo com Sérgio Campinho[141], caracteriza-se como a
“[…] reunião dos credores sujeitos aos efeitos da falência ou da recuperação judicial, ordenados em categorias derivadas da natureza de seus respectivos créditos, com o fim de deliberar sobre as matérias que a lei venha exigir sua manifestação, ou sobre aquelas que possam lhes interessar.”
Diante desta breve definição acima, percebe-se que a assembleia-geral de credores, quando constituída, adquire inúmeras funções, podendo deliberar a respeito de alguns assuntos, tais como: pedido de desistência do devedor de seu requerimento de recuperação judicial, formulado após o ato judicial que deferir o seu processamento; escolha do gestor judicial, quando do afastamento do devedor da condução de seus negócios.
Entretanto, no presente estudo será abordado a deliberação com relação à aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial que vier a ser apresentado pelo devedor, em ocasiões que este plano for contraposto por qualquer credor.
Neste contexto, Maria Celeste Morais Guimarães[142] leciona que
“Outra questão da maior relevância é a previsão da nova lei de submeter a aprovação do plano de recuperação à deliberação da Assembleia de Credores. A Lei n. 11. 101/2005 instituiu um procedimento, antes previsto em leis anteriores, que é o de submeter a solução da crise do devedor à vontade dos credores.”
A respeito desta questão, ensina Sérgio Campinho[143] com toda sua excelência que “A qualquer credor, independentemente do valor do crédito e da sua classificação, esteja ele vencido ou não, é assegurado o direito de manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor”. O prazo para apresentar esta objeção é o comum de 30(trinta) dias.
O fato da assembleia-geral de credores poder votar aprovando, rejeitando ou modificando o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, faz com que esses possuam um poder de veto ou de aprovação muito importante.Fábio Ulhoa Coelho[144] assevera que
“De maneira geral, nenhuma recuperação de empresas se viabiliza sem o sacrifício ou agravamento do risco, pelo menos em parte, dos direitos de credores. Por esse motivo, em atenção aos interesses dos credores (sem cuja colaboração a reorganização se frustra), a lei lhes reserva, quando reunidos em assembleia, as mais importantes deliberações relacionadas ao reerguimento da atividade econômica em crise.”
Entretanto, muitas vezes o credor abusa do direito de voto que possui com a única finalidade de satisfazer o interesse próprio, não se preocupando com os efeitos deste ato abusivo perante a sociedade e a coletividade.
Porém, os credores devem ter em mente que eles devem exercer esse poder sem abusar do direito que possuem, ou seja, devem votar visando não somente os próprios interesses, mas também o do empresário endividado e o da sociedade como um todo, desde que a empresa seja economicamente viável. “Ora, se o instituto tem cunho social e o escopo da nova lei é exatamente o de privilegiar a função social da empresa, não se justifica mitigar o interesse coletivo em favor do interesse dos credores”[145].
Pode-se imaginar que o credor, ao exercer o direito que possui com abuso, o faz desta forma, por entender que ele é o sujeito que ocupa a posição hierárquica superior em uma relação jurídica, podendo exigir, a qualquer custo, a prestação por parte do devedor. Entretanto, no viés da obrigação como um processo, a relação obrigacional e jurídica é composta de um complexo de direitos e deveres de credores e devedores, simultaneamente, com o escopo de satisfazer os interesses de ambas as partes da relação jurídica. Deste raciocínio resulta o fato da existência e imposição de limites ao exercício do direito que o credor possui, com a aplicação do artigo 187 do Código Civil.
O legislador descreveu duas formas de se ter um voto contra o interesse coletivo, que são: abusivo e conflitante.
“O voto abusivo envolve sempre um elemento subjetivo – o dolo – caracterizando-se pela intenção deliberada do acionista de causar dano à companhia ou a outros acionistas ou de obter vantagem indevida para si próprio ou para terceiros, em detrimento da companhia ou outros acionistas.
O voto conflitante é o que coloca o acionista em situação de conflito de interesse com a companhia, configurando uma colocação inteiramente objetiva. Ou seja, se o acionista em dada matéria, tem interesse pessoal diverso do da companhia, estará, ipso facto, impedido de votar”.[146]
O conhecimento geral é que o credor deve sim exercer o seu direito de voto em uma assembleia-geral de credores com o escopo de defender os interesses da empresa ou da companhia. Porém, a partir do momento em que este credor utiliza esse direito de voto que possui com o objetivo de apenas satisfazer o interesse próprio, causando danos ou prejuízos para a empresa ou à companhia, está-se diante de uma hipótese de abuso de direito.
Por isto, quando é realizado a assembleia-geral de credores, é de extrema importância a presença do devedor na reunião, já que ali reunidos, credores e devedor poderão conversar e discutir a respeito do plano de recuperação judicial, fazendo os reajustes devidos que atendam tanto às necessidades de um quanto às do outro. É este o escopo deste conclave: reunir em um só momento credores e devedores para ajustarem o plano de recuperação judicial e, quem sabe, impedir que os credores abusem do direito de voto que possui em relação ao plano.
Os credores devem manter a linha de pensamento no sentido de manter a preservação da empresa, porque se eles apoiarem e votarem a favor da manutenção e reerguimento da atividade empresarial em crise, desde que seja viável economicamente, a possibilidade de ter os créditos, se não for total pelo menos a maioria deles, satisfeitos é bem maior. Todavia, caso ocorra a decretação da falência, seguida de uma execução coletiva, a probabilidade de que uma parcela grande de credores não tenham seus créditos satisfeitos aumenta consideravelmente.
Neste contexto, Paulo Roberto Colombo Arnoldi[147] preleciona que
“Enfim, a boa aplicação da nova norma demandará observação e vigilância, principalmente no início de sua vigência. Eventuais desajustes e abusos, que naturalmente ocorrem, deverão ser coibidos pelo Poder Judiciário, a quem cabe em última instância, a prestação jurisdicional de preservação dos interessados entre as partes, em obediência ao princípio da igualdade baseado no equilíbrio de força entre os contendores.”
Ainda permanecendo nesta linha de pensamento, Jean Carlos Fernandes[148] afirma que
“A interação entre economia e direito principalmente no sistema falimentar, necessita de um Judiciário conscientizado do seu papel determinante no desenvolvimento econômico. O desempenho do Judiciário no mundo globalizado do século XXI deve ser avaliado segundo os serviços que ele produz em termos de garantia de acesso, previsibilidade e presteza dos resultados, além de remédios adequados.”
Sendo assim, para a aplicação do artigo 187 do Código Civil, discutido anteriormente como limitação dos direitos do credor, só pode produzir eficácia quando haver o inadimplemento do devedor, seja por motivos inerentes ou não ao seu domínio do negócio, mas principalmente por motivos que não dependem do controle do devedor.
Com o advindo da Lei n. 11. 101/2005, o Estado, por intermédio do Judiciário, pode oferecer o direito de pedir a recuperação à um devedor que tenha possibilidades de recuperar sua empresa economicamente; entretanto, não é o Estado quem concede de fato a recuperação, mas sim os credores, que na assembleia-geral de credores, tem o direito de voto para permitir ou não que o devedor usufrua de uma recuperação judicial, visando o interesse, ao mesmo tempo, dos credores e da sociedade.
Para que o plano de recuperação judicial seja apresentado pelo devedor e seja submetido à apreciação dos credores, é necessário que, primeiramente, seja feito um pedido de recuperação pelo devedor perante o juiz. O juiz, ao receber a petição inicial, deve verificar se nela constam todos os requisitos exigidos pelo artigo 51 da Lei 11. 101/2005 e, se estiver correto, deferirá o pedido, mandando processar a recuperação judicial.
Somente após o deferimento do pedido e o processamento da recuperação, é que o plano de recuperação judicial poderá ser apresentado pelo devedor aos credores para que estes votem aprovando, rejeitando ou modificando o mesmo.
É na concessão de uma recuperação judicial para um devedor, que os credores podem agir de modo abusivo ao exercer o seu direito de voto, pois visam apenas o próprio interesse financeiro, sem pensar nos efeitos que a falência da empresa devedora pode acarretar na sociedade como um todo.
O legislador pensou certo ao conferir aos credores a participação e a responsabilidade decisiva quando da recuperação judicial, pois assim os mesmos podem atuar na defesa de seus interesses econômicos e no interesse da própria empresa. Porém, o credor deve ter em mente que a não concessão da recuperação judicial para o devedor pode resultar em prejuízos tanto para os empregados da empresa que pede a recuperação, quanto para a sociedade, já que esta não vai mais poder contar com os benefícios que dispunha daquela.
Sendo assim, os credores devem analisar, de forma pormenorizada, o plano de recuperação proposto pelo devedor, entendendo se é viável ou não a recuperação da empresa, e votar refletindo não só o interesse próprio, mas também visualizando o interesse dos empregados e do mercado em si, sem abusar do seu direito de voto. Todavia, neste ponto o legislador falhou em relação ao devedor, pois não colocou nenhum dispositivo na Lei n 11. 101/2005 que puna ou repreenda o credor que faça o abuso do seu direito de voto na recuperação judicial.
Neste sentido, são as palavras de Moacyr Lobato de Campos Filho[149]: “A configuração do exercício abusivo do direito de voto e eventuais sanções decorrentes desse abuso não foram contemplados na nova Lei de Recuperação Judicial e Falência”.
Na verdade, esta lei, apesar de vir com a intenção de proporcionar a recuperação de empresas para aquelas economicamente viáveis, dificultou muito o processo da recuperação.
Percebe-se, com isto, que legalmente, o credor não tem nenhum dever de manter a preservação de uma empresa e nem de justificar ou motivar o seu voto, mesmo que deveria fazê-lo com o intuito de defender a função social da mesma.
Segundo Moacyr Lobato de Campos Filho[150],
“O art. 47 da Lei de Recuperação e Falência determina que a recuperação judicial servirá aos propósitos de manutenção da fonte produtora, do emprego de seus trabalhadores e dos interesses dos credores, como meio hábil a promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Com esse enunciado, a lei não elege o interesse dos credores apenas como relevante na recuperação judicial. O que o credor leva em conta, entretanto, é que a realização do crédito constitui o seu mais importante e legítimo interesse, pautando sua atuação na assembleia geral de credores.”
A seguir, falar-se-á de como é composta a assembleia-geral de credores, a distribuição dos votos e os quóruns necessários.
5.2. Credores da Assembleia-Geral, distribuição do direito do voto, quórum de instalação da assembleia-geral e quórum de aprovação do plano
Os credores que participam da Assembleia-Geral são divididos em três classes: (1) os titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; (2) os titulares de créditos com garantia real; e (3) os titulares de créditos com privilégio especial, com privilégio geral, quirografários e subordinados.
Verifica-se que os titulares de créditos tributários não integram a assembleia-geral de credores; todavia, as Fazendas Públicas Federais, Estaduais e Municipais, onde o devedor tiver estabelecimento, deverão ser comunicadas por carta sobre o processamento da recuperação judicial.
Exercem o direito do voto, tanto na recuperação judicial quanto na falência e, estão aptos para exercê-lo são as pessoas que não figuram de forma definitiva no quadro-geral de credores. Porém, permiti o legislador que se altere a constituição da assembleia-geral, de acordo com o andamento do procedimento de verificação de créditos: (a) se o quadro geral encontrar-se constituído, participarão da assembleia, com direito a voto, todos os credores ali arrolados; (b) se ainda não foi finalizada a verificação dos créditos, serão computados os votos dos credores constantes da relação provisória apresentada pelo administrador judicial após o decurso do prazo para as habilitações tempestivas; (c) se nem mesmo essa relação se encontra disponível, terão direito a voto os credores constantes da relação apresentada pelo devedor[151].
Complementando a ideia, Moacyr Lobato de Campos Filhos[152] diz
“Em qualquer das hipóteses, também estarão legitimados a votar as pessoas que estejam habilitadas na data de realização da assembleia ou que tenham, na forma do mesmo art. 39, crédito admitido ou alterado por decisão judicial, aí incluídas as que tenham obtido reserva de importâncias, excluídos os titulares de créditos retardatários à exceção dos créditos derivados da relação de trabalho (art. 10, § 1).”
Para que se instale a assembleia-geral de credores, em primeira convocação, é necessário a presença de quórum de mais da metade dos valores dos créditos que cada classe que a compõe e, em segunda convocação, com qualquer número de credores. Estabelece a lei que o edital deve ser publicado com antecedência mínima de 15 (quinze) dias para a primeira convocação ou 5 (cinco) dias para a segunda convocação.
Ao ensinar como se dá a contagem dos votos, Moacyr Lobato de Campos Filho[153] afirma que
“[…] o voto do credor será proporcional ao valor de seu crédito, excepcionando a hipótese dos titulares de créditos decorrentes da legislação trabalhista ou de acidente de trabalho que, na recuperação judicial, poderão aprovar a proposta apresentada pelo devedor pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito […].”
Para que o plano de recuperação judicial seja aprovado, é necessário que a proposta obtenha os votos favoráveis dos credores que possuam mais da metade do valor do crédito total presente à assembleia-geral.
5.3. Possível solução para as hipóteses de abuso de direito de credores na recuperação judicial
Diante do que foi dito anteriormente, vê-se a importância de impor limites que definam o exercício regular de voto dos credores em uma assembleia geral, principalmente no tocante à recuperação judicial e, a partir de qual momento esse exercício do direito pode ser considerado abusivo, prejudicando os interesses da empresa e da sociedade.
Visando este aspecto descrito acima, os credores devem zelar pelos interesses próprios, que são os créditos não pagos e, também, pela manutenção da empresa devedora que passa por crise econômica financeira, por ser uma fonte produtora de serviços e bens, se ainda for viável economicamente. Sendo assim, os credores, ao analisar o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, devem ver neste plano a possibilidade de ver os créditos que possuem solvidos, mas também garantir que a função social da empresa seja efetivada.
Todavia, na maioria dos casos de recuperação judicial, os credores usam o direito do voto que possuem somente para servir aos próprios interesses e, como já foi explicitado antes, a nova Lei de Recuperação e Falência não figurou o exercício abusivo do direito e nem as prováveis sanções para tais abusos.
Neste contexto, pode-se inserir a incidência da cláusula geral do abuso do direito, pois este parte da ideia de que há um direito a ser exercido, em princípio regularmente, mas que vai se tornar irregular devido ao excesso no seu exercício pelo seu titular. E, é por se ter a possibilidade do exercício do direito além do permitido, que essa cláusula permite impor limitações ao exercício do direito pelo titular. Sendo assim, Bruno Miragem[154] assevera que, “[…] ao juiz que é dado conhecer a existência ou não do abuso, permitindo-se sua atuação no sentido de impedir, fazer cessar ou imputar a responsabilidade pelas consequências do comportamento abusivo”.
É neste ponto que o juiz terá um papel fundamental e de extrema importância, pois ao decidir se os credores estão corretos ou não na votação para conceder a recuperação judicial ao devedor, deverá analisar se os votos dos credores não foram exercidos de maneira abusiva -pois estes votos dos credores não precisam ser justificados- e, se isto ocorrer, deverá aplicar uma sanção para estes credores, devido ao comportamento abusivo dos mesmos.
Neste aspecto, Rosalice Fidalgo Pinheiro[155] ensina que “No momento em que não se cumpre com sua função social, em ‘manifesta desproporção’ de interesses, revela-se o ato abusivo e, consequentemente, a necessidade de intervenção judicial”. Portanto, o juiz não terá apenas a função homologatória, principalmente quando se tratar de recuperação judicial, mas exercer uma função de punir o abuso do direito, além de manter em equilíbrio uma sociedade.
Neste contexto, Paulo Salvador Frontini[156] leciona que
“[…] fica a dúvida, ou seja, saber se o juiz, rejeitado o plano, tem, ou não, poderes para, caso não se convença dos fundamentos adotados pela assembleia geral para rejeitar o plano: a) conceder a recuperação; ou, b) determinar a apresentação de novo plano; ou, c) simplesmente extinguir o processo sem julgamento de mérito.”
Ao se verificar uma situação de crise econômico-financeira de uma empresa e for notório que os agentes econômicos mais interessados em solucionar o conflito, que são credor e devedor, não conseguem chegar a um acordo favorável às duas partes e que mantenha e reerga a atividade empresarial, é preciso a intervenção do Poder Judiciário. Assim, o Poder Judiciário usará de procedimentos concursais, porém que alcance uma solução que reserve os interesses das pessoas que estão relacionadas com a crise da empresa.
Destaca-se, neste ponto, os dizeres de Moacyr Lobato de Campos Filho[157]:
“Não obstante a ausência de parâmetros sobre exercício abusivo do direito de voto na lei falimentar, o juiz poderá reconhecê-lo em razão do exercício manifestamente excedente dos limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes pelo titular do direito de voto.”
A seguir, irá se discutir a respeito da recuperação judicial em si, os seus efeitos e o encerramento da mesma.
5.4. O estado de recuperação em si, os efeitos da recuperação judicial e o seu encerramento
Quando finalmente é decretado pelo juiz, por meio de sentença, o estado de recuperação judicial de uma empresa, o magistrado ordenará ao Registro Público de Empresas Mercantis a anotação no registro correspondente que o devedor está em fase de recuperação judicial.
Leciona o doutrinador Sérgio Campinho[158] que “Permanecerá o devedor nesse estado até que se cumpram todas as obrigações ajustadas no plano de recuperação que se vencerem até dois anos após a decisão de sua concessão”.
Durante o estado de recuperação o devedor deve estar atento e cumprir todas as obrigações que se comprometeu a cumprir no plano de recuperação, pois a desobediência à qualquer uma delas terá como consequência a convolação do plano em falência. E quem tem legitimidade para requerer esta convolação é qualquer um dos interessados ou de ofício pelo juiz.
A empresa continuará funcionando normalmente durante o período da recuperação judicial, exercendo sua atividade empresarial, atingindo a finalidade de adimplir com os deveres propostos.
No tocante as obrigações assumidas pelo devedor na recuperação judicial, Paulo Salvador Frontini[159] preleciona que
“O fato é que, em acréscimos à já difícil função de gerir a atividade empresarial, o devedor deverá assumir obrigações. Estas se projetam não apenas em face dos credores, inclusive empregados e fisco, como em face de sócios ou acionistas estranhos ao controle, colaboradores, comunidade, etc., tudo de molde a permitir a manutenção da fonte produtora.”
Resta claro que os deveres assumidos pelo devedor são de inúmeras naturezas, sendo mais fácil destacar as de natureza contratual, que incluem pagamentos e, dinheiro, para credores atingidos pelos efeitos da recuperação, credores por fornecimento, credores por tributos, credores por financiamento e empregados.
Além da natureza contratual, há também as obrigações no sentido produtivo, como por exemplos: alcançar uma meta de produção, criar um número certo de empregos, exportar uma determinada quantidade de volume de produtos. Todas essas tarefas devem ser adimplidas com a finalidade de não ser decretada a falência da empresa.
Paulo Salvador Frontini[160] afirma que “Se o devedor, estando em estado de recuperação judicial, deixando de pagar obrigações dessa natureza, ficará sujeito a ter sua falência decretada”.
Deve-se salientar que as obrigações compactuadas após o pedido de recuperação judicial devem ser adimplidas no modo, tempo e lugar que foram combinadas.
Quanto aos efeitos que advém da recuperação judicial, Deborah Pierri[161] leciona que
“Além de manter a empresa ativa, não afastar o devedor de seus negócios, salvo nas hipóteses previstas no art. 64 […], a recuperação judicial implica em:
a) suspensão de ações e execuções pelo prazo improrrogável de 180 dias (período de paz) no qual nada pode ser “cobrado” do devedor. (arts. 52, III, e 6, § 4.°).
b) impossibilidade dos credores descritos no art. 49, § 3. °retirarem do devedor bens (essenciais ao capital produtivo) pelo mesmo prazo de 180 dias;
c) no afastamento da sucessão fiscal e previdenciária (LC 118 de 09.02.2005) para os casos de alienação de filiais ou unidades produtivas;
d) privilégio dos créditos daqueles que fornecem bens e serviços ao devedor em recuperação no caso de falência (arts. 67, 83 e 84);
e) novação dos créditos anteriores ao pedido (art. 59);
f) vinculação do devedor ao cumprimento das obrigações em até dois anos da data da concessão da recuperação (art. 61), sob pena de falência.”
Decorrido os dois anos da recuperação judicial, tendo o devedor adimplido todas as obrigações perante os seus credores, o juiz irá decretar o encerramento do estado de recuperação e, juntamente com esta decisão, determinará alguns pontos, tais como: a apuração do saldo das custas judiciais a serem recolhidas; a apresentação de relatório circunstanciado do administrador judicial, no prazo máximo de quinze dias, sobre a execução do plano de recuperação; a dissolução do comitê de credores e a exoneração do administrador judicial; entre outros.[162]
6.Conclusão
Ao iniciar todo o estudo e pesquisa sobre o tema deste trabalho, alcançou-se o objetivo de demonstrar a importância do abuso do direito, tanto no Brasil como no estrangeiro e, isto se fez notar por meio do estudo histórico da questão em foco.
Percebeu-se que desde o início da história, o abuso do direito já era praticado, devido a má-fé das pessoas, mas pelo fato de elas terem muito poder, o que contava muito na época, esse abuso acabava sendo camuflado.
Entretanto, com o passar dos anos, esse abuso do direito começou a ser reprimido de várias formas e, atualmente, ele pode ser requerido em todos as searas do Direito, inclusive no direito empresarial, principalmente quando se fala em abuso de credores na recuperação judicial quando uma empresa está passando por uma crise temporária.
Entende-se hoje que, quando uma empresa, que faz o diferencial no mercado, gerando muitos empregos e que faz circular as riquezas do país, sendo que a mesma está passando por uma crise econômica passageira e por motivos que não sejam internos, o empresário deve requerer a recuperação judicial, pois é um caminho e direito dele fazer um replanejamento de gastos para que ele consiga reerguer a empresa.
É para isto que veio a Lei 11. 101/2005, recuperar aquelas empresas que tem um papel importante dentro da sociedade, mas que por razões alheias, está em situação de crise financeira.
Para corroborar a importância de uma empresa dentro da sociedade, Marcelo José Ladeira Mauad[163] ensina que
“A empresa é uma organização de pessoas para um fim comum, portanto uma instituição, que interessa, sobretudo, à coletividade. Para se chegar a esta conclusão – que, aliás, integra-se perfeitamente ao disposto no Código Civil de 20002-, afiguram-se elementos essenciais, a saber: (a) o fim comum, eis que o resultado obtido pelo empreendimento, socialmente útil, supera os interesses individuais do empresário (lucro) e dos empregados (salário); (b) o poder de comando do empresário em relação aos trabalhadores; (c) a relação de cooperação entre trabalhadores e empresário; e (d) a consequente formação de um ordenamento interno da empresa, que amplifica as relações de trabalho para algo além do contrato e do patrimônio, conferindo-lhe, portanto, um particular aspecto institucional.”
Todavia, durante o processo de recuperação judicial, os devedores devem ficar atentos para os casos de abuso de direito dos credores no momento de votação da assembleia-geral, porque estes ao visarem somente o recebimento do seus créditos pela empresa, esquecem de analisar e refletir sobre a importância que a empresa tem dentro da sociedade, podendo ter efeitos muito negativos quando negarem o plano de recuperação judicial para a empresa.
Eles devem ter em mente que uma empresa gera riquezas, gera fonte de trabalho para os desempregados, atende ao interesse da população com suas mercadorias, fazendo com que o local cresça física e economicamente. Neste sentido são as palavras de Francisco José de Oliveira[164]: “A circulação dos bens e riquezas realiza-se sob novas formas, o número de pessoas interessadas em determinado bem, de determinada empresa cresce, as necessidades aumentam, e, o modo de vida exige que as trocas aconteçam com certa velocidade.”
Portanto, o abuso de direito de credores na recuperação judicial de empresas deve ser reprimido e punido, como forma de demonstrar a importância que tem uma empresa em uma sociedade ao proporcionar tantos benefícios que ela proporciona e, que caso ela seja fechada por crise financeira temporária, pode ter resultados bem piores, do que os credores aprovarem o plano de recuperação judicial da mesma para que ela se recupere.
Estudante de Direito.
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