Sumário: 1. Introdução 2. Não incidência de prescrição das ações de reparação de danos morais decorrentes de acidente do trabalho 3. Conclusão 4. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Muito se tem discutido a respeito da prescrição da ação de reparação de dano moral decorrente de acidente do trabalho, especialmente após a entrada em vigência do novo Código Civil em 2002, e com a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004 que expressamente atribui à Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações reparatórias de danos morais decorrentes da relação de trabalho[1] a polêmica acentuou-se ainda mais.
Existem em verdade três correntes a respeito da questão da prescrição das ações reparatórias de danos morais decorrentes de acidente do trabalho.
A primeira sustenta que sendo o dano originário da relação de trabalho ou emprego e tendo sido atribuída à Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações de reparação por danos morais e patrimoniais decorrentes dessa relação, o prazo de prescrição para o ajuizamento da ação reparatória seria aquele previsto no inciso XXIX, do art. 7º da Carta Maior.
Neste sentido o jurista mineiro Sebastião Geraldo de Oliveira[2] afirma que “a indenização por acidente do trabalho é também um direito de natureza trabalhista, diante da previsão contida no art. 7º, XXVIII, da Constituição da República de 1988, devendo-se aplicar, portanto, a prescrição de cinco ou dois anos prevista no inciso XXIX do mesmo art. 7º”.
Do mesmo sentir Eduardo Fornazari Alencar[3] que, citando Arnaldo Süssekind[4] e Raimundo Simão de Melo[5] argumenta que a partir do momento em que a Constituição expressamente coloca a indenização de dano moral decorrente do acidente do trabalho, quando requerida em face do empregador, como um direito do trabalhador, seja porque a controvérsia se dá necessariamente entre empregado e empregador e tem como objeto um fato do contrato de trabalho, que é o acidente, não se poderia deixar de reconhecer que a pretensão respectiva se revestiria um verdadeiro crédito resultante da relação de trabalho, e por conta disso a ação reparatória estaria sujeita ao prazo prescricional previsto no inciso XXIX, do art. 7º da Carta da República.
A outra corrente defende o oposto, ou seja, tratando-se de ação de reparação de dano decorrente de ato ilícito, ou seja, baseada na responsabilidade civil, o prazo prescricional deve ser aquele previsto no art. 206, inciso V do Código Civil, contado do evento danoso.
Para essa corrente, embora a ação de reparação de dano seja de natureza pessoal, a prescrição não ocorre no prazo geral de dez anos previsto no art. 205 do Código Civil, na medida em que o art. 206 estabelece prazos especiais para o ajuizamento desse tipo de ação.
Assim, se a ação de reparação de danos decorrentes de acidente do trabalho contém uma pretensão de natureza civil, embora o fato tenha acontecido no seio de uma relação de trabalho ou emprego, o prazo a ser aplicado é de três anos previsto no inciso V, do art. 206 do Código Civil de 2002[6].
Há ainda, uma terceira corrente a qual empresto minha adesão afirmando que a ação seria imprescritível dado ao fato de tratar-se de ação que visa a reparação de danos a direitos da personalidade que, por irrenunciáveis, o seu exercício não estaria sujeito a prescrição face aos termos do que disposto no art. 11 do Código Civil e pela natureza do bem envolvido, ou seja, a personalidade, a dignidade do ser humano.
É essa tese que pretendo defender nesta modesto trabalho.
2. Não incidência de prescrição das ações de reparação de danos morais decorrentes de acidente do trabalho
Antes de mais nada, deve-se registrar que a ação de reparação de danos morais decorrentes de acidente do trabalho ou de doença ocupacional – equiparada a acidente de trabalho por força de expressa disposição legal – tem por objetivo indenizar o trabalhador pelos danos a à saúde, à vida, à integridade física ou mental enfim, direitos ligados à personalidade e à dignidade do ser humano.
Essa categoria de direitos fundamentais constitucionalmente é garantida ao ser humano enquanto pessoa e não porque ostenta a condição de cidadão trabalhador ou empregado. Por conseguinte, de natureza indisponível, não podendo o seu titular a eles renunciar.
Essa indisponibilidade dos direitos fundamentais se mostra sob duplo aspecto: o ativo, na medida em que os direitos humanos são inalienáveis pelo seu titular, bem como o passivo, já que não podem ser expropriados por outros sujeitos, começando pelo próprio Estado que tem o dever de garanti-los e protegê-los.
Assim, são irrenunciáveis e por conseqüência, imprescritíveis.
Lembra com acerto Luigi Ferrajoli[7]:
“Que los derechos fundamentales son indisponibles quiere decir que están sustraídos tanto a las decisiones de la política como al mercado. En virtud de su indisponibilidad activa, no son alienables por el sujeto que es su titular: no puedo vender mi libertad personal o mi derecho de sufragio y menos aun mi propia autonomía contractual. Debido a su indisponibilidad pasiva, no son expropiables o limitables por otros sujetos, comenzando por el Estado: ninguna mayoría, por aplastante que sea, puede privarme de la vida, de la libertad o de mis derechos de autonomía”.
De fato, estando-se diante direito humano fundamental, sua agressão implica violação à personalidade, à dignidade do ser humano enquanto tal e não como cidadão exercente de uma função ou integrante uma categoria profissional, nem tampouco porque mantém um vínculo de emprego.
A Constituição de 1988 assegura o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente desse tipo de violação ao ser humano enquanto pessoa portadora de uma dignidade pessoal que independe da profissão, do sexo, da crença religiosa, da cor da pele, etc. (arts. 1º, III e 5º, inciso X).
Por isso, os direitos da personalidade têm como principal característica a imprescritibilidade que decorre da sua natureza indisponível. Não se tratam, pois, de meros direitos trabalhistas como pretendem alguns, ou civis no sentido estrito como sustentam outros. Ao contrário estar-se diante direitos fundamentais de índole constitucional, considerados como cláusulas pétreas. Por conseqüência, dotados de proteção até mesmo contra o querer democrático, ou seja, contra a vontade do legislador (art. 60, § 4º, inciso IV da CF/88) [8].
De fato, o fundamento para reparação do dano decorrente do acidente do trabalho não é civil e mesmo se fosse, naquilo que é objeto do presente estudo – a prescrição da ação reparatória dos danos morais – quisesse o legislador incluir o acidente do trabalho em uma das exceções do art. 206 do Código Civil o teria feito expressamente, pois se reparação civil fosse, não seria uma reparação civil como outra qualquer, como não são, por exemplo, a reparação civil por dano ao meio ambiente (Lei n. 9.605/98) e por dano civil decorrente de ato administrativo (Lei n. 8.429/92 – este com prazo prescricional de 05 anos).
Ora, se não existe previsão de prazo prescricional para o exercício da ação de reparação de danos morais decorrentes do acidente do trabalho em nenhuma norma do ordenamento jurídico nacional, é de se concluir que ela é imprescritível.
Assim, os danos decorrentes da violação a direito fundamental como o direito à saúde, à vida, à integridade física ou mental do ser humano trabalhador são de natureza pessoal e não trabalhista ou civil. Por conseguinte, à ação reparatória desse tipo danos não se aplica o prazo previsto no inciso XXIX, do 7o da Constituição e nem aquele constante do art. 206, § 3º, inciso V do Código Civil para o ajuizamento das ações de reparações civis inerentes aos danos causados ao patrimônio material.
Com efeito, essa espécie de dano atinge a pessoa humana enquanto ser portador de uma dignidade e não apenas no aspecto material ou trabalhista (arts 11 do Código Civil e 1º, inciso III, da Constituição).
No caso do acidente de trabalho ou da doença ocupacional os danos deles decorrentes sejam materiais, morais, estéticos, etc. são pessoais, com prejuízo à vida, à saúde física e/ou psíquica, à imagem, à intimidade, à honra e muitas vezes até mesmo à vida do trabalhador enquanto pessoa humana.
A Carta Maior prevê como fundamentos da República a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, o trabalho com qualidade e o respeito ao meio ambiente (arts. 1º e 170) com a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de proteção à saúde, higiene e à segurança do trabalhador (art. 7º, inciso XXIII).
Não se trata, pois, de direito de natureza trabalhista, nem tampouco civil, mas de direito de índole fundamental que diz respeito à dignidade do ser trabalhador enquanto pessoa humana.
A dignidade humana sendo “aquela qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos[9]”, não é subtraída da tutela constitucional apenas porque aquele que a teve violada não reclamou, muitas vezes por circunstâncias alheias à sua vontade, dentro de certo espaço de tempo. Não se perde a dignidade em razão do decurso do tempo, evidentemente.
Lembra com absoluto acerto Caio Mario da Silva Pereira:
“A prescritibilidade alcança todos os direitos subjetivos patrimoniais de caráter privado. Escapam-lhe aos efeitos aqueles direitos que se prendem imediatamente à personalidade ou ao estado das pessoas. Os direitos à vida, à honra, à liberdade, à integridade física ou moral não estão sujeitos a qualquer prescrição, em razão de sua própria natureza.Por maior que seja o tempo decorrido de inatividade do titular, nunca perecerão os direitos respectivos que sempre se poderão reclamar pelas ações próprias, uma vez que não é lícita a constituição de um estado que lhes seja contrário”[10].
De outro lado, pondera Jorge Luiz Souto Maior:
“Por certo, então se alguém é vítima de um dano à sua pessoa (imagem, integridade física, moral etc.) tem direito a uma reparação e esta reparação não será, igualmente, uma reparação decorrente de responsabilidade civil. E, mesmo que não se queira chegar a esta conclusão, não há como negar que a situação do empregado (do trabalhador em geral, que se submete a condições de trabalho determinadas pela estrutura empresarial de outrem) é diversa. A subordinação potencializa esse efeito jurídico, tornando especial a responsabilidade do empregador para com o empregado, pois, afinal, é do trabalho do empregado que o empregador extrai seu incremento econômico e o direito social se preocupa com a efetivação da proteção jurídica pertinente ao acidente do trabalho, nos sentidos da sua prevenção e reparação, porque se insere em um modelo capitalista de produção, que sem regulação gerou os maiores horrores que a humanidade já conheceu (dentre eles os acidentes do trabalho, pelos quais ninguém se responsabilizava). Neste sentido, a proteção específica da vida no contexto das relações produtivas hierarquizadas é essência da sobrevivência da sociedade e do próprio modelo capitalista, tendo sido, como visto acima, a base de formação do próprio Estado social. Não há, portanto, como reduzir o alcance da relevância dessa questão a um aspecto meramente patrimonial e individualista”.
Vale anotar também que levando em conta a imensa importância que o tema ora tratado tem na vida das pessoas, especialmente daquelas que são as vítimas dos danos decorrentes do acidente de trabalho, quase sempre trabalhadores humildes sem maiores esclarecimentos e qualificação profissional, de fato atrai a aplicação dos preceitos fundamentais dos direitos humanos.
Afinal, como alerta Fábio Conder Comparato[11], cada ser humano é único e insubstituível, pois ninguém pode experimentar, existencialmente, a vida ou a morte de outrem. Nesta perspectiva, o fato de já se ter produzido o efeito, em um processo que seja, da extinção sem análise do pedido e com isto negado, em concreto, o direito à efetiva reparação pelo dano decorrente do acidente do trabalho, quando de fato existente, com a relevante função de punir, exemplarmente, o agressor, para prevenção de outros acidentes invocando-se apenas o decurso do tempo, ou seja, a ocorrência da prescrição, constitui um dano irreparável não apenas à vítima do acidente, mas à própria humanidade.
Assim, em um contexto de exclusão, de desigualdade, de desemprego, de miséria e de fome como o do Brasil em que a saúde, a vida, a honra, a privacidade e a intimidade das pessoas são impunemente violadas a todo instante, não é possível aceitar que as vítimas de acidente do trabalho ou seus familiares fiquem à margem de qualquer tipo de reparação apenas porque, até mesmo pelas dificuldades de identificação do próprio direito e de acesso aos órgãos da jurisdição, não se ajuizou a ação reparatória dentro de um curto espaço de tempo que sequer sabiam existir.
3. Conclusão
As ações de reparação de danos morais decorrentes de acidente de trabalho não estão sujeitas ao prazo prescricional previsto no art. 7º, inciso XXIX da Constituição, pois a pretensão nelas deduzida não tem natureza trabalhista, na medida em que decorre da violação a direito de natureza fundamental inerente à dignidade humana que não é subtraída de proteção constitucional pelo simples decurso do tempo.
A mera circunstância de o acidente ter ocorrido no seio da relação de trabalho ou de emprego e à Justiça do Trabalho ter sido atribuída a competência para o julgamento dessa espécie de ação, não induz a conclusão de que a indenização constitua crédito trabalhista.
Não parece razoável e menos ainda justa, a jurisprudência que vem se cristalizando nos Tribunais Regionais do Trabalho e no próprio Tribunal Superior do Trabalho no sentido de que a sendo a indenização por danos morais decorrentes de acidente do trabalho originária da relação de trabalho, deve ser a ela emprestada natureza de crédito trabalhista e com isso aplicar-se-ia a prescrição prevista no art. 7º, inciso XXIX, da Carta da República, nem tampouco aquela que propugna a aplicação da prescrição da ação em três anos de acordo com a norma do inciso V, do art. 206 do Código Civil.
Tratando-se como de fato se trata de ação que visa assegurar a reparação de danos morais decorrentes de acidente do trabalho, essa espécie de ação além de ser de natureza pessoal ou personalíssima não está efetivamente sujeita a prescrição, pois os direitos fundamentais violados nesse tipo de evento agridem a dignidade humana. E essa categoria de direitos, tem como principal característica a indisponibilidade. Por conseguinte, são irrenunciáveis não estando sujeitos a qualquer tipo de prazo para que o seu titular possa reclamar contra a sua violação podendo ser reclamados perante os tribunais independentemente do transcurso do tempo.
A violação a esse tipo de direito de natureza fundamental é um agravo ao ser humano enquanto pessoa portadora de uma dignidade que não desaparece em virtude de fator cronológico, é claro.
Referências bibliográficas
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SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001.
Notas
[1] O Art. 114, inciso VI da Carta da República, na redação dada pela Emenda 45 atribuiu à Justiça do Trabalho a competência “para julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”, o que provocou muita celeuma por conta da primeira interpretação dada pelo STF ao preceito constitucional que todavia foi revista posteriormente.
[2] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. São Paulo: LTr, 2005, p. 276.
[3] FORNAZARI ALENCAR, Eduardo. A Prescrição do Dano Moral Decorrente de Acidente do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004, p. 115-116.
[4] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 314.
[5] SIMÃO DE MELO, Raimundo. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador. São Paulo: LTr, 2004, p. 463.
[6] GONÇALVES, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 752.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantícias: la ley del más débil. Trad. Española de Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: editorial trotta, 1999, p. 47.
[8] LIMA FILHO, Francisco das C. Alteração das cláusulas pétreas e o poder constituinte evolutivo. In: Revista Unigran. Dourados: Editora Unigran, nº 11, v. 6, ano 2004, p. 122-137.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 62.
[10] SILVA PEREIRA, Caio Mario da. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro; Forense, v. 1, 2004, p. 687.
[11] COMPARATO, Fábio Conder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 27.
Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região. Mestre em Direito pela UNB. Mestre e doutorando em Direito Social pela UCLM (Espanha)
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