Resumo: O presente ensaio é um complemento de texto anterior onde analisadas visões da equidade nas abordagens de Immanuel Kant, John Rawls, Ronald Dworkin e Amartya Sen. Enquanto naquele contexto buscava-se a demonstração da falta de um tratamento sistemático à equidade, aqui se busca chamar atenção para outro ponto para o que chamaremos de sentido “negativo” da equidade, isso é, sua função coadjuvante em relação à lei no momento em que se a entende como “corretora da lei”. Isso será realizado com a demonstração, sintética, de três abordagens da equidade: a aequitas romana, a equity no common law e a equidade no direito positivo brasileiro. Ao final, busca-se responder se a equidade, em seu sentido jurídico, deve ser entendida como um a priori ou um a posteriori no processo interpretativo de aplicação do ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Aequitas. Equity (common law). Equidade. Sentido negativo. Interpretação.
Summary: Introduction 1. The roman aequitas 2. Equity in common law 3. Equity in Brazilian’s law Conclusion
Abstract: The present essay is a sequence from a previous text where we analyzed views of equity in the approaches of Immanuel Kant, John Rawls, Ronald Dworkin, and Amartya Sen. While in that context we sought to demonstrate the lack of a systematic treatment of equity, here we look to what we will call a “negative” sense of equity, that is, its secondary function in relation with the law, specially when one understands it as a “correction of the law”. This will be accomplished by synthesizing three equity approaches: the Roman aequitas, the equity in common law, and the equity in Brazilian’s law. At the end, we seek to answer whether equity, in its legal sense, should be understood as an a priori or an a posteriori in the interpretative process of jurisdiction.
Keywords: Aequitas. Equity (common law). Negative sense. Interpretation.
Sumário: Introdução 1. Aequitas romana 2. A equity no common law 3. A equidade no direito positivo brasileiro Considerações finais
Summary: Introduction 1. The roman aequitas 2. Equity in common law 3. Equity in Brazilian’s law Conclusion
Introdução
O presente ensaio é um complemento de texto anterior[1], onde analisadas visões da equidade nas seguintes abordagens: o conceito de justiça em Aristóteles; a doutrina do direito de Immanuel Kant; a “justice as fairness” de John Rawls; a igualdade como virtude em Ronald Dworkin; e a noção de capacidades e liberdades substantivas de Amartya Sen. Ao final daquele texto, realizou-se uma categorização da equidade em dois sentidos, propondo-se sua conexão para, ao fim, demonstrar um argumento: ainda que a equidade jurídica seja uma medida da justiça que coloca em acordo desigualdades postas em litígio, ela tem seu modus operandi designado pela equidade política.
Ainda naquele contexto, e em sede de conclusão, lembramos o Prefácio do seu livro Equity: in theory and practice, de Hobart Peyton Young, na passagem em que o autor refere três argumentos segundo os quais se poderia dizer que a equidade não existe:
Quando ensino este material para estudantes, advirto-os de que o tema não existe. Dentre outros temas não existentes, na verdade, a equidade ocupa uma posição de destaque porque ela falha em existir em vários aspectos diferentes. Os argumentos contra a sua existência tomam três diferentes formas. O primeiro é que a equidade é apenas uma palavra que pessoas hipócritas utilizam para esconder interesses pessoais. Ela não tem significado intrínseco e, portanto, falha em existir. O segundo argumento é que, mesmo que a equidade exista em uma certa noção, ela é tão subjetiva que não pode ser analisada cientificamente. Assim, ela falha em existir em sentido objetivo. O terceiro argumento é que, mesmo concedendo que a equidade pode não ser inteiramente subjetiva, não há teoria cogente sobre ela e, certamente, nenhuma que seja compatível com a moderna economia de bem-estar social. Em síntese, ela falha em existir em sentido acadêmico. (YOUNG, 1994, p. xi, tradução livre)
Sustentamos que, ainda que pareça um exagero dizer que a equidade não existe segundo qualquer dos argumentos apresentados, a passagem serve como um importante alarme, pois revela a verdade inelutável de que não há um tratamento sistemático da equidade, o que é válido tanto para o campo filosófico-político quanto para o campo jurídico. As três objeções revelam um modus operandi de trabalho com o tema da equidade: a necessidade da obtenção de seu conteúdo material, a consideração subjetiva justificada, a contextualização dos escritos antigos.
Neste texto, o objetivo é chamar atenção para outro ponto: aquilo que chamaremos de um sentido “negativo” da equidade, isso é, sua função coadjuvante em relação à lei no momento em que se a entende como “corretora da lei”. Isso será realizado com a demonstração, sintética, de três abordagens da equidade: a aequitas romana, a equity no common law e a equidade no direito positivo brasileiro. Ao final, busca-se responder se a equidade, em seu sentido jurídico, deve ser entendida como um a priori ou um a posteriori no processo interpretativo de aplicação do ordenamento jurídico.
1. Aequitas romana
Na mitologia romana, Aequitas, ou também Aecetia, era a deusa das trocas justas e dos comerciantes honestos e, em tal representação, da mesma forma que a Justitia, carregava uma balança na mão como sinal de equidade e fairness.
Tomás de Aquino (2001, p. 337), após referir os termos gregos epiikia para equidade e epiike para equitativo, ensina a etimologia da palavra: “En griego, se dice epiikes, como lo que es conveniente o adecuado, de epi (sobre) e icos (obediente) por que por la epiikia se obedece de modo más excelente, en cuanto se respeta la intención del legislador donde las palabras de la ley concuerdam.” Ou seja, para Tomás de Aquino, a própria etimologia da palavra equidade estaria de alguma forma ligada, de um modo geral, a uma situação de obediência e, de um modo particular, à obediência ao legislador e sua intenção.
Esta construção, contudo, não parece conferir com a série de significados que se costuma atribuir à palavra equidade na sua raiz etimológica. A começar, pelo fato de que o termo equidade, segundo consta, é originário de epieikéia (no grego, ἐπιείκεια), tendo por significados, por exemplo, razoabilidade (BOWMAN, p. 19), fairness (SMITH), mitezza (WILSON)[2], compreensão (LONG)[3]. Assim, tais significados não possuem sequer compatibilidade com a ideia de “obediência” a que se refere Tomás de Aquino e, em verdade, parecem o oposto de tal significado.
Ainda que aequitas não seja sinônimo de epieikeia, tratam-se de termos correlatos. Ambos designam um mesmo comportamento do juiz em relação à causa, um mandamento de correção e integração do direito, que deve atentar para o fato de que summum jus, summa injuria, e, portanto, exigem uma mitigação da aplicação mecânica da lei quando ela se revelar demasiado rígida e, por conseguinte, injusta. No campo jurídico, a aequitas teve, inclusive, aplicação anterior a epieikeia.
O romanista José Carlos Moreira Alves (2002, p. 78) refere a aequitas no direito romano como um ideal ético que existe, em estado amorfo, na consciência social e, quando necessário, tende a transforma-se em Direito Positivo.
Francisco dos Santos Amaral Neto (2004, p. 19) melhor aclara os primórdios do termo:
“Com Cícero, o primeiro a usar o termo, aequitas tem o sentido de igual tratamento dos sujeitos, configurando-se a equidade e a justiça como conceitos similares. A justiça como orientação do juiz, do legislador, dando a cada um o que é seu, a aequitas, como regra moral do Direito romano. O Direito era a equidade estabelecida ius est aequitas constituta.
Na fase pós-clássica, tende-se a identificar a aequitas com o ius naturale, e este com os preceitos fundamentais do Cristianismo, pelo menos no plano teórico. No campo prático, passa a ter uma certa elasticidade e imprecisão, manifestadas na pluralidade de significados que se lhe atribui, como benignitas, humanistas, pietas, caritas, isto é, valores cristãos altamente admiráveis do ponto de vista religioso, mas reprováveis do ponto de vista jurídico. E são esses valores que ainda hoje rodeiam o conceito de equidade, dando-lhe uma certa indefinição conceitual e terminológica que dificulta a sua utilização no Direito. Com base nela, os imperadores romanos chegavam a derrogar princípios jurídicos”.
Maria Helena Diniz, por seu turno, refere a correspondência entre equidade e justiça em Roma referindo que a equidade dividia-se em aequitas naturalis e aequitas civilis, sendo a primeira uma espécie de justiça absoluta ou ideal, objeto primeiro do direito, e a segunda o direito vigente, aquele que era aplicado pelos pretores (aequitas praetoris). É nesta segunda acepção que se pode dizer que a equidade projetava-se no Corpus Juris.[4]
Faz-se interessante observar que o direito romano, ao contrário do desenvolvimento contemporâneo do direito, não possuía uma separação entre uma Ciência do Direito e a prática jurídica, sendo que toda a atividade no direito era voltada para a aplicação justa da lei. Já existia em Roma, assim, a ideia de que a norma geral e abstrata poderia não servir para todos os casos de aplicação da lei (AMARAL NETO, 2004, p. 19-20), de modo que o direito fazia-se menos uma metodologia do que uma ars inveniendi serviente para a aplicação do bom e do equitativo.
Igualmente digno de nota que os romanos possuíam duas palavras diferentes para designar o que designamos em conjunto. Em Roma, falava-se em uma aequitas e em uma aequalitas. Em um e outro sentido é costumeiro encontrar referências aos desenvolvimentos que lhes deram Grócio. Em relação a esta (aequalitas), por exemplo, Franz Wieacker (1993, p. 334), historiando o direito privado, lembra que “a definição da aequalitas pressupõe uma teoria do valor, ponto em que Grócio se encosta simultaneamente à contínua tradição da ética econômica da antiguidade e à teologia moral […]”. Assim, para um parâmetro de justiça nos contratos por exemplo, quando se queira identificar uma troca justa e igual (equitativa), seria necessária a construção de uma teoria dos valores, de modo a possibilitar uma referência a um preço justo pela “natureza das coisas”. Já no que toca àquela (aequitas), Grócio (apud MAXIMILIANO, 2005, p. 140) referia-se à equidade como “uma virtude corretiva do silêncio da lei por causa da generalidade das suas palavras”.
Carlos Maximiliano (2005, p. 141) refere que a equidade operou-se como um abrandamento do Direito Romano excessivamente rígido sem ela. Após, citando Miraglia, fornece um elenco bastante abrangente e esclarecedor de significações do direito sem e com equidade:
“A frase – summum jus, summa injuria – encerra o conceito de Equidade. A admissão desta, que é o justo melhor, diverso do justo legal e corretivo do mesmo, parecia aos gregos meio hábil para abrandar e polir a idéia até então áspera do Direito; nesse sentido também ela abriu brecha no granito do antigo romanismo, humanizando-o cada vez mais. ‘Fora do oequum há somente o rigor juris, o jus durum, summum, callidum, a angustissima formula e a summa crux. A oequitas é jus benignum, temperatum, naturalis justitia, ratio humanitatis […]’.”[5]
Tal elenco de significações, embora parta da compreensão do Direito Romano, pode já nos servir para demonstração de como a compreensão da equidade espraiou-se do epicentro histórico do Direito Romano e veio a fornecer um mecanismo de utilização para os ordenamentos jurídicos em geral, especialmente os contemporâneos.
2. A equity no common law
A equidade no common law, em parte, guarda o mesmo sentido de integração do direito que foi referida no tópico anterior e tem, igualmente, raiz romana. Todavia, desenvolveu-se nos países de common law não apenas a ideia segundo a qual, na lacuna da lei ou na abstração da lei, o juiz poderia lançar mão da equidade. Nesses países, criou-se um sistema jurisdicional próprio referente a um procedimento específico de utilização da equidade, separando-se a jurisdição de direito (cortes de common law) e a jurisdição de equidade (cortes de equity).
Smith, Bailey e Gunn (2002, p. 41-43) bem explicam, dentro do processo histórico, a formação destas divisões entre as Cortes e suas respectivas funções. Referem estes autores que, embora atualmente a grande maioria das Cortes serve para a resolução de disputas, a origem das Cortes pode ser apontada em instituições, regionais e centrais, sem distinção entre função de administração, legislação e adjudicação. Na Idade Média, no âmbito regional, havia assembleias da comunidade que resolviam disputas de acordo com o costume local. Estas assembleias passaram a ser baseadas em unidades administrativas estabelecidas pela Coroa. No âmbito central, havia a Curia Regis (Corte do Rei). Três momentos podem ser discernidos no início do desenvolvimento do sistema legal: 1. a administração da justiça era mais um poder adjunto do senhor feudal do que uma questão da comunidade como um todo; 2. mudança pela qual a administração da justiça passou a ser uma prerrogativa da Coroa; 3. a administração da justiça foi diferenciada das outras funções de governo. O fortalecimento da justiça real foi um processo gradual, que envolveu o estabelecimento de cortes reais distintas, a alocação de autoridades reais nas diversas localidades, temporários e permanentes, e o desenvolvimento de uma jurisdição de supervisão das cortes locais pelas cortes reais. Ao centro, três cortes do common law desenvolveram-se em diferentes épocas fora da Curia Regis: o Tesouro Nacional (Exchequer), a Súplica dos Comuns (Common Pleas) e o Corpo dos Magistrados do Rei (ou da Rainha) (King’s – or Queen’s – Bench). Elas ficavam no Westminster Hall. As linhas jurisdicionais entre essas cortes eram complexas. Paralelo ao desenvolvimento dessas cortes houve o desenvolvimento da Corte de Chancelaria e, particularmente, sua função de lidar com petições. Nos séculos XVI e XVII, um número de cortes conciliares (conciliar courts) também cresceu em importância, as quais assumiram a prerrogativa de lidar com questões anteriores ao Conselho Privado (Privy Council), mas que não eram atendidas pelo Chanceler. Aí se incluíam a Corte da Câmara Estrelada (Court of Star Chamber), a Corte de Petições (Court of Requests) e diversos desdobramentos regionais. Estas cortes eram vistas com suspeita pelas cortes da common law e foram abolidas em 1640.
Enquanto a jurisdição de common law era a justiça da Coroa, a jurisdição de equity era emanada pelo Chanceler da Coroa, normalmente um eclesiástico cuja função era a de guardar a consciência do rei.
O desenvolvimento da equity é ligado a uma falta de habilidade das cortes de common law, em razão de sua aderência estrita a formas predeterminadas de ação, a resolver todas as disputas legais. Assim, a Corte da Chancelaria, comandada pelo Chanceler, foi criada pelo rei com a função de administrar a justiça de acordo com princípios de fairness nos casos que o common law não teria como dar respostas ou daria respostas inadequadas. Apesar de a equidade e o direito não serem mais separados, estas noções ainda são utilizadas no direito do common law, seja na jurisprudência, seja em desenvolvimentos doutrinários (GIFFS, 1984).
3. A equidade no direito positivo brasileiro
A ideia de equidade como integrativa ou supletiva do Direito presente na aequitas romana inspirou as roupagens do direito que hoje conhecemos, seja continental, seja de common law, e, como herança da equidade, diversos são os ordenamentos jurídicos que estampam a necessidade de se ater sempre a um juízo ou mandamento de equidade[6].
No Brasil, ilustrativamente, pode-se lembrar o art. 140, parágrafo único, do Código de Processo Civil – que repete ipsis literis o art. 127 do Código anterior –, o qual, numa espécie de limitação à “jurisdição por equidade”, prescreve que “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”. O art. 8º da Consolidação das Leis Trabalhistas, por sua vez, dispõe que “[a]s autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho […].” De modo semelhante, o Código Tributário Nacional, em seu art. 108, prescreve que, na ausência de disposição expressa, a autoridade competente deve aplicar a legislação tributária numa ordem sucessiva de analogia, princípios gerais de direito tributário, princípios gerais de direito e, por fim, equidade. No art. 25 da Lei dos Juizados Especiais, ainda, encontra-se: “O árbitro conduzirá o processo com os mesmos critérios do Juiz, na forma dos arts. 5º e 6º desta Lei, podendo decidir por equidade.”
Também o Código Civil Brasileiro, esse em diversos dispositivos, consagra a equidade. Isso ocorre, por exemplo, no art. 413, quando há uma referência à possibilidade de redução equitativa da sanção penal caso tenha havido o cumprimento da obrigação principal, no art. 479, quando se mostra possível ao juiz, em vez de determinar a resolução contratual, efetuar a revisão deste com modificação das cláusulas de modo equitativo, e, no art. 944, quando é referida a possibilidade de limitação da indenização em casos de responsabilidade civil quando há uma excessiva desproporção entre o dano e a gravidade da culpa.
Concomitantemente à sua presença nos ordenamentos jurídicos, desenvolveu-se a noção da equidade na doutrina. No Direito, assim como na Filosofia, diversas são as abordagens da equidade, via de regra subsumidas a conceitos filosófico, especialmente o de Aristóteles.
Scialoja (apud DINIZ, 2000, p. 146), por exemplo, refere que “[q]uando a norma corresponde à necessidade da vida individual e social, diz-se que a norma jurídica é equitativa, quando não corresponde diz-se que ela é o direito, mas não a equidade […]”.
Enzo Roppo (1988, p. 176), por seu turno, mesmo admitindo a equidade, refere-se a limites no sentido de que o uso da equidade não pode derrogar, nos contratos, a autonomia individual:
“Não é, pelo contrário, permitido ao juiz valer-se dos seus poderes de equidade para modificar o contrato e fazer derivar dele conseqüências contrárias à composição de interesses em que as partes fundaram a operação. Tal como a interpretação, também a valoração segundo a equidade não constitui, na verdade, instrumento com o qual o juiz possa fazer o interesse público contra as escolhas da autonomia privada que se lhe revelem contrárias.”
Não apenas em revitalização histórica, mas agora falando também de uma conformação da equidade ao sistema jurídico e ao próprio “estado da civilização” de um país, Maximiliano (2005, p. 143) refere que a equidade “deve ser acomodada ao sistema do Direito pátrio e regulada segundo a natureza da gravidade e importância do negócio de que se trata, as circunstâncias das pessoas e dos lugares, o estado da civilização do país, o gênio e a índole de seus habitantes.”
Em um sentido mais de aequalitas que de aequitas, Luís Edson Fachin (2003, p. 11) afirma, como escopo de sua teoria crítica do Direito Civil: “Tem-se como objeto desse exame o modelo que inspirou os sistemas latinos a forjar uma ‘constituição do homem privado’ e a rejeitar, no laissez-faire, a verdadeira dimensão da equidade que supõe simultaneamente igualdade e diferenciação.”
Por fim, tentando sistematizar as possíveis extensões do termo equidade, digna de nota a divisão tripartite da equidade que faz Alípio Silveira (1943), em: a) equidade latíssima, que seria a razão prática extensível a toda conduta humana e princípio universal da ordem normativa; b) equidade lata, confundível com a justiça absoluta ou ideal; e c) a equidade estrita, que seria o ideal de justiça da concepção lata quando aplicado, na forma de interpretação.
Considerações finais
A análise da questão da equidade, aqui se atentado para três de suas dimensões jurídicas (aequitas romana, equity no common law e equidade no direito positivo brasileiro), demonstra o fato de que a equidade é tratada, usualmente, de um modo “negativo”. Isso é: há uma função coadjuvante da equidade em relação à lei de modo a entendê-la como uma corretora da lei, seja quando esta for omissa, seja quando esta for demasiado genérica e, pois, não comportar a solução adequada para o caso concreto. Essa noção é propagada desde Aristóteles (2001, p. 109): “equitativo é, por sua natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua generalidade.” Desde essaa tradição, lê-se, em Kant (1993, p. 52), que “[…] a reclamação que se funda na equidade somente tem força no tribunal da consciência (forum coeli), ao passo que a questão de direito é discutida no tribunal civil (forum soli s. civile).” Em Perelman (2002, p. 41), na leitura que faz de Aristóteles, “serve-se da equidade como muleta da justiça.”
Este sentido que chamamos “negativo” da equidade é assente e, via de regra, o único presente nos ordenamentos jurídicos de um modo geral. Como vimos, no Código Civil Suíço, “[d]eve o Juiz, quando se lhe não depara preceito legal apropriado, decidir de acordo com o direito consuetudinário, e, na falta deste segundo, à regra que ele próprio estabeleceria, se fora legislador.” No Código de Processo Civil Brasileiro: “O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.” Curiosas, ainda, as disposições da Consolidação das Leis Trabalhistas (art. 8º) e do Código Tributário Nacional (art. 108), nas quais, apenas após outros mecanismos, como a lei, a analogia, os princípios gerais de direito, os costumes, e de um modo sucessivo, é que aparece a possibilidade de um juízo de equidade.
Este apanhado parece ser um motivo suficiente de crítica que se pode fazer à equidade no sentido de que suas teorias, de regra, não comportam senão uma solução passadista a problemas jurídicos atuais. De fato, no passado, o mecanismo da equidade, mesmo nesta feição negativa, pode ter sido extraordinária vanguarda. Por mais vanguardistas que tenham sido, talvez seja hora de perguntar se o paradigma sobre o qual se assentou a equidade clássica – equidade esta que incorporamos em nossos sistemas legais – permaneceu estanque ou, ao menos, sem alterações substanciais que, à mesma razão e módulo, fizessem imperar novas leituras deste instituto, a fim de o adequar a nossos tempos.
As realidades metanomológicas da contemporaneidade e sua teia complexa, além de não permitirem que a tarefa do julgador seja apenas identificar as leis correspondentes a determinados suportes fáticos e as subsumir, também não permitem que a crítica à subsunção mecânica da lei aos fatos seja apenas o reconhecimento de omissões e antinomias no ordenamento legal que ensejam a utilização da equidade. É preciso que desloquemos o egocentrismo legislativo e reconheçamos que a lei não é a fonte primária do Direito. Sua fonte primária são os fatos.
Mitigar os efeitos da lei, temperar a generalidade com a especificidade, colmatar lacunas, todas estas tarefas são efetivamente tarefas nobres do julgador, mas elas pressupõem a atividade de subsunção dedutivo-formal da lei aos casos concretos. Então, é de se perguntar: quando o julgador consegue identificar as leis correspondentes a determinados suportes fáticos e subsumi-las?
Para responder a esta questão, faz-se útil a distinção criada na teoria do direito contemporâneo entre os casos simples e os, no termo cunhado, hard cases.
Há, nos chamados hard cases (normalmente encontrados quando existe uma colisão de princípios ou direitos fundamentais), imanentes e fundadas dúvidas sobre a possibilidade de aplicação do direito com base na subsunção. Alguns não a admitem. Aqueles que a admitem, são obrigados a reconhecer que esta subsunção deve ser entendida como um processo muito mais complexo do que ocorre nos casos simples. Por vários motivos, acreditamos que a subsunção é impossível.[7] Mesmo que a admitíssemos, relegar a equidade às omissões e problemas de generalidade da lei, neste tipo de casos, é, além de relegar a razão prática em que se funda o Direito, tornar a jurisdição congelada, sem alternativas.
Nos casos simples, diz-se invariavelmente que a subsunção é óbvia e patente. Embora não seja impossível construir fundamentação no sentido de que ela não é tão óbvia, há um problema não apenas de razão prática, mas de razão especulativa em entender-se a equidade num sentido negativo e cujo arrazoado serve tanto para os casos simples como para os hard cases. Este problema é voltado à seguinte contradição lógica: para saber se um caso é um caso simples e não um hard case, é preciso além de verificar as regras a ele pertinentes, analisar todas as circunstâncias que o envolvem, especialmente se não há uma beligerância tácita entre princípios em um conflito aparentemente “usual” e normativo. Assim, simultaneamente ao controle negativo da equidade, faz-se um controle positivo.
Em suma, pode-se dizer que o juízo de equidade deve ser operado, sempre com respeito às regras do ordenamento jurídico, mas não apenas quando há omissão ou defeito da lei. Se assim compreendermos, há que se reconhecer que ela não será apenas uma correção da lei – o que não é papel, ademais, da jurisdição, mas fará parte do próprio ato de decidir.
A equidade, assim, não é um a posteriori de determinados casos sui generis da aplicação da lei. A equidade é um a priori da aplicação do direito cuja justificação, não a equidade ela mesma, se dá a posteriori. Isto quer dizer que ela deve ser utilizada sempre e, por conseguinte, que se faz possível um sentido positivo de equidade cuja função, por abrangência, não anda conjuntamente ao sentido negativo, mas o incorpora.
Doutor em Direito (PUCRS/Universidade de Heidelberg, 2014). Mestre em Direito (PUCRS, 2007). Pesquisador Visitante do Instituto Max-Planck, em Heidelberg (2013). Professor de Teoria Geral do Direito e de Direito Administrativo (Laureate/UniRitter). Advogado
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