Algumas considerações sobre os direitos da personalidade

Resumo: O direito civil por um longo período esteve caracterizado pelo predomínio de uma concepção estritamente patrimonialista, em detrimento da efetiva proteção do ser humano. Com o reconhecimento da pessoa humana como centro do ordenamento, mostra-se imprescindível a proteção da personalidade e dos direitos a ela inerentes. Os direitos de personalidade atualmente são protegidos tanto pela Constituição Federal quanto pela legislação infraconstitucional, pois, como eixo central do ordenamento jurídico, devem ser protegidos de forma ampla e irrestrita, em conformidade com os ditames constitucionais.


Palavras-chave: personalidade civil, direito civil, direito de personalidade, código civil 2002.


Abstract: The civil law was characterized by a long period for the predominance of a strict patrimonialist conception, in detriment of the effective protection of the human being.  With the recognition of the person human being as center of the order, it reveals essential to the protection of the personality and the inherent rights. The personality rights currently are protected in such a way by the Federal Constitution how much for all the legislation, therefore, as central axle of the legal system, they must be protected of ample and unrestricted form, in compliance with the rules constitutional.


Keywords: civil personality, civil law, right of personality, civil code 2002.


Sumário: Introdução – 1 Pessoa e personalidade – 1.1 Concepção tradicional da personalidade – 1.2 A personalidade como conjunto de atributos da pessoa – 2 Direitos da personalidade – 2.1 Características – 2.2 Construção da teoria dos direitos da personalidade – 3 Proteção dos direitos da personalidade – 3.1 Reconhecimento jurídico de sua tutela – 3.2 Os direitos da personalidade no Código Civil de 2002 – Considerações Finais – Referências.


“Omne jus constitutum est causa hominum.” (Codigo Hermogeniano, 294 d.C.)


Introdução


Após o predomínio, por longo tempo, da concepção puramente patrimonialista do direito privado, percebe-se a revalorização do ser humano, colocado agora como centro do ordenamento jurídico. Com isso, em vez de tutelar quase que exclusivamente a propriedade, em todas as suas manifestações, o direito protege também a existência do ser humano. Para isso, reconhece e garante à pessoa a proteção de sua personalidade e de outros direitos inerentes à sua condição.


Não pode haver tema de maior relevância para o direito civil, pois, se a pessoa humana é sujeito de todas as relações jurídicas, imprescindível o seu entendimento. E não só a personalidade cresce em importância, como, cada vez mais, estão em evidência os direitos da personalidade. Se esses inicialmente eram protegidos de forma tímida, atualmente têm sua tutela codificada, e garantida constitucionalmente.


Com o objetivo de melhor compreender essa mudança de concepção no direito privado, nesse breve estudo tratar-se-á da personalidade, e sua íntima relação com a pessoa, passando para os direitos da personalidade, com a construção de sua teoria e características, e a proteção jurídica dos direitos da personalidade, tentando delinear sua controvertida origem, até a sua previsão pelo Código Civil de 2002.


1 Pessoa e personalidade


1.1 Concepção tradicional da personalidade


Pessoa e personalidade são conceitos interligados, pois a personalidade manifesta a faculdade da pessoa de ser sujeito de direito. A personalidade não constitui propriamente um direito, mas um atributo conferido ao ser humano, de que provém todos os direitos e obrigações. Com essa idéia, o ensinamento de Pontes de Miranda (2000, p. 216): “Certo, a personalidade em si não é direito; é qualidade, é o ser capaz de direitos, o ser possível estar nas relações jurídicas como sujeito de direito”.


A personalidade é atributo inerente ao homem; não requer o preenchimento de qualquer requisito, nem depende do conhecimento ou da vontade do ser humano. Mesmo que o indivíduo não tenha consciência da realidade, é dotado de personalidade, pelo simples fato de ser pessoa (PEREIRA, 2001, p. 142). De maneira que o direito privado moderno rege-se pelo princípio da capacidade total de direito, em que todos os homens têm capacidade de direito (MIRANDA, 2000, p. 211). Tal preceito tem por base o fato de que a personalidade é qualidade própria à condição humana.


Esse princípio é consagrado no artigo 1º do Código Civil, que dispõe: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.[i] Como a pessoa é o sujeito das relações jurídicas, e a personalidade, a faculdade a ele admitida, toda pessoa é dotada de personalidade (FIÚZA, 2003, p. 01-04).


A personalidade é atributo inerente ao ser humano, mas não exclusivamente dele. As pessoas jurídicas também são providas de personalidade,[ii] sejam elas entidades de direito público ou privado. Essa possibilidade surge vez que é o próprio direito que confere a personalidade jurídica. Sobre o assunto, Pontes de Miranda (2000, p. 210) se manifesta nos seguintes termos: “[…] a personalidade jurídica é atribuída pelo direito; é o sistema jurídico que determina quais são os entes se têm por pessoas. Nem sempre todos os homens foram pessoas, no sentido jurídico: os escravos não eram pessoas; e sistemas jurídicos houve que não reputavam pessoas as mulheres. Foi a evolução social que impôs o princípio da personalidade de todos os entes humanos”.


Se a capacidade de direito e a personalidade se confundem, o mesmo não ocorre com a capacidade de exercício (ou de fato). A capacidade de direito todos têm, pois se trata de atributo inerente à pessoa. Já a capacidade de exercício pode ser limitada, por razões orgânicas ou psicológicas, situação em que a pessoa não pode exercer pessoalmente seus direitos (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 94).


Como bem assevera Cortiano Junior (1998, p. 45): “Assim, a noção de pessoa não é construída pelo ordenamento, mas é recebida. Ao recebê-la (a noção de pessoa), o direito o faz com toda a carga valorativa de que é dotada, e não pode diminuir ou represar esse valor. Pode, por certo, limitar a capacidade de exercício dos direitos reconhecidos, mas não pode alterar seu conteúdo axiológico”.


1.2 A personalidade como conjunto de atributos da pessoa


A personalidade é atributo que habilita a pessoa a ser titular de relações jurídicas, mas esse único enfoque torna a sua percepção incompleta. A personalidade pode ser considerada sob outro aspecto, que a tem “como conjunto de características e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico” (TEPEDINO, 1999, p. 27).


E é sob esse aspecto que a personalidade mostra-se como valor, e em conseqüência, como objeto de direito que deve ser tutelado. Nesse sentido observa Tepedino (1999, p. 27): “Dito diversamente, considerada como sujeito de direito, a personalidade não pode ser dele o seu objeto. Considerada, ao revés, como valor, tendo em conta o conjunto de atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano (que irradiam da personalidade), constituem bens jurídicos em si mesmos, dignos de tutela privilegiada”.


Muitos debates houveram acerca da proteção da personalidade. A questão centrava-se na aparente contradição que a tutela da personalidade gerava. Se a personalidade se manifestava como a titularidade de direitos, não poderia ser, ao mesmo tempo, seu objeto.


Sobre esse ponto, vale transcrever a lição esclarecedora de José Del Rio (1996, p. 207-208): “La discusión se ha centrado fundamentalmente en la aparentemente imposible separación del objeto respecto del sujeto, ya que, al no ser áquel externo al sujeto, vendría a confurdirse con éste, cuando el objeto se debe presentar siempre desligado del sujeto. Pero, en mi opinión, no puede aceptarse esta visión meramente patrimonialista del derecho subjetivo; pues, aunque es cierto que en los derechos de la personalidad se tienen en cuenta unos bienes inmateriales (la vida, el honor, etc.), la idea de bien hay que conectarla no con que éste sea material o inmaterial y se encuentre dentro o fuera de la persona, sino con el interés que el bien representa para el sujeto”.


O direito privado continuava atrelado à concepção de direitos subjetivos, que protegiam unicamente o patrimônio. De maneira que, bens como a vida, a honra e a saúde, categorias do ser, não poderiam ser amparados, porque incompatíveis, com a noção de direito subjetivo, que amparava apenas as categorias do ter (PERLINGIERI, 2002, p. 155).


A atual concepção de personalidade não pode estar restrita à idéia de capacidade, nem ser concebida como um direito, mas como um valor. E não se trata de um valor, mas o valor, o valor essencial, sustentáculo do ordenamento jurídico. Seu reconhecimento tem como conseqüência o amparo a vários outros direitos, o que reitera sua necessidade de tutela (PERLINGIERI, 2002, p. 155-156).


Ademais, não são os objetos que o Direito protege, mas a necessidade ou o interesse que eles despertam. Qualquer interesse tutelado é direito subjetivo, e não poderia ser diferente com os direitos da personalidade. Assim, se o ordenamento jurídico protege a personalidade e os direitos a ela concernentes, estamos diante de um direito subjetivo, que garante o seu desfrute e obriga os demais a respeitá-lo (DEL RÍO, 1996, p. 208).


2 Direitos da personalidade


2.1 Características


Os direitos da personalidade têm por finalidade a proteção dos direitos indispensáveis à dignidade e integridade da pessoa. Ensina Pontes de Miranda (2000, p. 216) sobre o tema: “o direito de personalidade, os direitos, as pretensões e ações que dele se irradiam são irrenunciáveis, inalienáveis, irrestringíveis. São direitos irradiados dele os de vida, liberdade, saúde (integridade física e psíquica), honra, igualdade”.


Na definição de Carlos Alberto Bittar (apud ELESBÃO, 2002, p. 17), “são da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico, exatamente para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros”.


Os direitos da personalidade compreendem duas categorias gerais: direitos adquiridos, que têm sua existência vinculada ao direito positivo que os disciplina, e os direitos inatos, que independem de legislação, pois estão ligados ao seu titular (PEREIRA, 2001, p. 153). Os direitos adquiridos podem ser examinados em relação ao Estado, e ingressam no campo das liberdades públicas, dependendo necessariamente de positivação. Enquanto os direitos inatos, por serem inerentes ao homem, consideram-se acima do direito positivo, devendo o Estado reconhecê-los e protegê-los, através das normas positivas (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 147).


Os direitos de personalidade têm caráter absoluto, oponíveis erga omnes, de maneira que todos ficam obrigados a respeitá-los. Tal característica tem estreita ligação com a indisponibilidade. A indisponibilidade abrange a sua intransmissibilidade (inalienabilidade), irrenunciabilidade e impenhorabilidade, o que significa que se trata de direito que não pode mudar de titular nem pela própria vontade do indivíduo, pois vinculado à pessoa.


Em razão de serem direitos inatos à pessoa, têm caráter vitalício e imprescritível. Essas características se evidenciam  pelo fato de seu titular poder invocá-los a qualquer tempo, pois tratam-se de direitos que surgem com o nascimento da pessoa e somente se extinguem com sua morte.[iii] São assim, direitos que não extinguem-se pelo não-uso.


E uma característica manifesta do direito da personalidade é seu caráter extrapatrimonial direto, mesmo que, em algumas circunstâncias, em especial em caso de lesão, possa ser medida economicamente. Exemplo bem claro da possibilidade do direito de personalidade também ter caráter patrimonial, são os direitos autorais. Ainda que os direitos morais do autor sejam inalienáveis e irrenunciáveis, coexistem os direitos patrimoniais, que permitem que seu titular utilize, frua e disponha de sua obra (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 153-154).


2.2 construção da teoria dos direitos da personalidade


Seguindo o pensamento do jurista alemão Savigny, Limongi França explica que as relações jurídicas incidem em três campos básicos: a própria pessoa (direitos da personalidade), a pessoa ampliada na família (direitos de família), e o mundo exterior (direitos patrimoniais). De modo que os direitos da personalidade são “as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos” (FRANÇA, 1975, p. 403).


A ordem jurídica claramente reconhece a existência de uma série de faculdades conferidas ao homem, em razão de sua qualidade de indivíduo e de pessoa (PEREIRA, 2001, p. 152-153). Mas a consagração dos direitos da personalidade como direitos subjetivos privados e absolutos não impediu o surgimento de grande discussão acerca de sua tipificação, com concepções manifestamente opostas. Nesse ponto, dividiam-se as correntes em pluralista (ou tipificadora), que reconhecia a existência de um grande número de direitos da personalidade, e monista, que defendia a existência de um único e geral direito da personalidade (TEPEDINO, 1999, p. 42).


Mas esse debate já não tem razão de ser, pois incentivar o confronto dessas duas teorias seria reconhecer a estrutura patrimonialista da relação jurídica, limitando a proteção da personalidade à reparação em caso de sofrer dano, e ignorando a posição hierárquica que o princípio da dignidade humana assume na ordem constitucional (TEPEDINO, 1999, p. 53-54).


De modo que, atualmente, há o reconhecimento que deve haver a tutela geral da personalidade. O argumento que sustenta essa posição é o fato que, se a pessoa é considerada como um valor, sua tutela não pode ser dividida em espécies isoladas, em hipóteses autônomas e incomunicáveis (PERLINGIERI, 2002, p. 155). As hipóteses tuteladas não têm número limitado, pois é o valor da pessoa que tem total proteção. De forma que o direito geral e abstrato de personalidade compreende todos seus atributos, estejam tipificados ou não.


O Brasil recepcionou a concepção do direito geral da personalidade, de forma concomitante da proteção tipificada. O direito geral está expresso na Constituição Federal de 1988, ao estabelecer que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamento do país (artigo 1º, III/CF), e a garantia da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (artigo 5º, caput/CF) (CORTIANO JUNIOR, 1998, p. 47). A proteção mais específica está contemplada em legislações esparsas, e recentemente, no Código Civil de 2002.


O objetivo do ordenamento jurídico é a efetiva proteção da personalidade. O fato de ser considerada como um valor unitário, com proteção total, não impede a previsão tipificada de alguns aspectos da personalidade. As duas formas de proteção, genérica e específica, são complementares. No caso em que não houver previsão específica para sua proteção, deve ser considerada a proteção genérica, de forma a abranger todas as situações (CORTIANO JUNIOR, 1998, p. 47).


 Da mesma forma, foi superada a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado na proteção da personalidade. Com a dignidade humana elevada a princípio constitucional, se estabelece a proteção da pessoa pelo direito de forma irrestrita. O argentino Ricardo Lorenzetti (1998, p. 137) manifesta bem essa superação: “Os direitos da pessoa começam a ter uma nova entidade. Se enlaça aqui o Direito Público, que aporta sua teoria dos direitos humanos e fundamentais, e o Direito Privado, com direitos personalíssimos.” E Cortiano Junior (1998, p. 38): “Assim, não se fala mais em proteção da pessoa humana pelo direito público e pelo direito privado, mas em proteção da pessoa humana pelo direito”.


3 Proteção dos direitos da personalidade


3.1 Reconhecimento jurídico de sua tutela


A origem dos direitos da personalidade é matéria controvertida. Alguns a situam na Antigüidade, na Grécia e em Roma[iv]. Há quem entenda que foi na Idade Média, quando o homem tornou-se consciente da própria personalidade e da necessidade de sua proteção; ainda há os que defendem que foi a partir do século XVII, com a teoria dos direitos naturais, que houve, primeiramente, destaque para os direitos da personalidade.


De modo que, se não se pode precisar sua origem, mais tranqüilo é afirmar que somente no final do século XIX a discussão sobre o direito de personalidade esteve em maior evidência, solidificando sua formulação científica (SAMPAIO, 1998, p. 48-50).


Defendendo a idéia de que a formulação dos direitos de personalidade se constituiu em fins do século XIX, temos as palavras de Del Rio (1996, p. 206): “Si bien es justo reconocer que la Escuela del Derecho natural ejerce una decisiva influencia en la materia, lo cierto es que el punto de arranque lo constituye la Revolución francesa, siendo los derechos de la personalidad, entendidos como reconocimiento y protección de la libre actuación y proyección de la persona, un producto típico del siglo XIX”.


Com destaque, ainda, no histórico do reconhecimento dos direitos da personalidade, para o fato que, inicialmente, sua proteção estava limitada à esfera do Direito Público. Foi através de constituições e declarações de direitos do final do século XIX que os chamados direitos do homem começaram a ser tutelados, em resposta ao poder absoluto do Estado. Apenas mais recentemente houve o efetivo reconhecimento e proteção dos direitos individuais entre os particulares.


A proteção jurídica da personalidade na esfera privada estava limitada à reação do ordenamento contra a lesão, através da responsabilidade civil[v]. Como a responsabilidade civil se mostrou insuficiente na proteção dos direitos da personalidade, começaram a ser reconhecidas ações específicas, de natureza negatória e declaratória de sua existência, e o ressarcimento por dano moral (FRANÇA, 1975, p. 413-414). Se protegida realmente como direito subjetivo, a personalidade não estaria protegida apenas contra lesões, mas seria assegurada o seu pleno exercício, com livre disposição de seu direito (TEPEDINO, 1999, p. 26).


No Brasil, embora o Código Civil de 1916 já contemplasse a personalidade de forma plena, ao dispor, em seu artigo 2º: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”, os direitos da personalidade somente foram consolidados com o advento da Constituição de 1988, que inseriu a dignidade da pessoa humana como valor essencial em que se baseia nosso país.[vi]


Estabelecida a dignidade da pessoa como princípio fundamental, “verdadeiro imperativo axiológico de toda a ordem jurídica” (ELESBÃO, 2002, p. 11), derivou o reconhecimento da personalidade jurídica de todos os seres humanos, como tal protegida pelo Estado, inclusive com a previsão de instrumentos jurídicos destinados a sua defesa.


A Constituição Federal de 1988 também faz referência expressa à proteção da intimidade e declara invioláveis a vida privada, a honra e a imagem, assegurando a reparação do dano moral (artigo 5º, X/CF).


Ainda há de se mencionar que o princípio constitucional da igualdade perante a lei deve ser encarado como definição do conceito geral da personalidade, como atributo natural da pessoa humana, sem distinção de sexo, condição ou origem (PEREIRA, 2001, p. 153).


3.2 Os direitos da personalidade no código civil de 2002


Uma inovação significativa no Código Civil de 2002 foi a inclusão de um capítulo reservado aos direitos da personalidade. Trata-se de um reflexo da nova realidade da sociedade brasileira, que busca a preservação do indivíduo, em detrimento do caráter estritamente patrimonialista que marcou a codificação de 1916. Ademais, significou o ajuste da legislação civil com a índole Constituição Federal de 1988, marcada pelo princípio norteador da dignidade humana.


Ao disciplinar a matéria no Código Civil, do artigo 11 ao artigo 21, o legislador não enumerou taxativamente os direitos da personalidade. De forma que, estabelecendo a proteção da matéria através de enunciados gerais, englobou todos os direitos da personalidade, e não apenas o direito à integridade física, o direito ao nome e a proteção à imagem (ELESBÃO, 2002, p. 16). A previsão ampla e genérica confere total proteção aos direitos da personalidade, vez que permite alcançar todas as hipóteses que se apresentarem, e não apenas as previstas em lei.


O artigo 11 do Código Civil, ao tratar dos direitos da personalidade, estabelece proteção a esses direitos, definindo-os como intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária,[vii] exceto nos casos previstos em lei.


O artigo 12 do Código Civil trata da tutela geral dos direitos da personalidade, protegendo os indivíduos de qualquer ameaça ou lesão à sua integridade física ou moral. Por tratar-se de regra genérica, reconhece proteção a direitos de personalidade que não estão expressos nos demais artigos, mas que poderão se concretizar. A proteção pode ser requerida para evitar que a ameaça seja consumada ou para que diminua os efeitos da ofensa praticada, sem prejuízo da reparação de danos morais e patrimoniais.


A proteção à integridade física está prevista no artigo 13 do Código Civil, que proíbe a disposição do próprio corpo, quando esta importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. A única exceção admitida está contida no parágrafo único do referido artigo, que permite a disposição, por pessoa capaz, de tecidos, órgãos e partes do corpo para fins de transplante ou tratamento, na forma da Lei 9.434/97 (FIÚZA, 2003, p. 26-27).


Tratando de direito ainda referente à integridade física, o artigo 14 do Código Civil dispõe sobre os atos de disposição do corpo. Esse dispositivo admite a disposição gratuita do corpo, no todo ou em parte, para depois da morte, desde que seja com intuito científico ou altruístico. O parágrafo único do artigo 14 do Código Civil prevê que o ato de disposição pode ser revogado a qualquer tempo pelo doador.


O artigo 15 do Código Civil dispõe sobre a exigência de autorização espontânea e consciente do paciente, ou de seu representante, se incapaz, para se submeter à cirurgia ou a tratamento médico, assim, a inviolabilidade do corpo humano.


O direito ao nome está consagrado no artigo 16 do Código Civil, que o assegura, determinando que neles estão compreendidos o prenome e sobrenome da pessoa. O nome integra a personalidade, individualizando e identificando o indivíduo (ELESBÃO, 2002, p. 26).


Por tratar-se o nome de atributo da personalidade, é assegurada a proteção ao seu uso, e sua defesa contra abusos de terceiros (artigos 17 e 18 do Código Civil). Esses podem consistir em publicação ou representação que exponha o nome ao desprezo público, por atingir sua reputação, ou na utilização em propaganda comercial sem autorização de seu titular.


 A previsão da tutela ao pseudônimo está no artigo 19 do Código Civil. Da mesma forma em que é concedida proteção ao nome, o pseudônimo utilizado por artistas e escritores também é amparado pela ordem jurídica, em razão de identificá-los em seu meio “mesmo que não tenham alcançado a notoriedade” (FIÚZA, 2003, p. 31).


O artigo 20 do Código Civil contempla os direitos intelectuais e proteção à imagem. Esse dispositivo protege a imagem e os acontecimentos pessoais da exposição indevida, assegurando a individualidade da pessoa. No entanto, há certas limitações ao direito à imagem, com dispensa de anuência para sua divulgação, quando se tratar de pessoa notória ou no exercício de cargo público, e em todos os casos em que houver interesse público que prevaleça sobre o direito individual.


O direito e a proteção à intimidade estão assegurados pelo artigo 21 do Código Civil, que, ao dispor que a vida privada da pessoa é inviolável, protege a pessoa da indiscrição alheia e de interferências externas em sua vida particular.


Considerações finais


O Direito, em razão da estreita vinculação existente, deve tutelar os valores considerados importantes pela sociedade. O Código Civil de 2002 é nítido reflexo das transformações ocorridas na sociedade brasileira. Se o Código Civil de 1916 tinha como pilares básicos a propriedade, o contrato, o testamento e a família, sempre com uma visão patrimonialista desses institutos, o Código atual volta-se para a proteção do real fundamento do direito: o homem.


Mas se pessoa humana voltou a ser o centro do ordenamento jurídico, não é resultado apenas do advento do novo Código Civil. Desde a Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental de nosso país, norma que deve reger todas as relações.


De modo que, todos os debates sobre a proteção dos direitos da personalidade pelo Direito Público ou pelo Direito Privado, da existência de um direito geral da personalidade ou de direitos da personalidade em espécie, restam superados. Se a pessoa é o centro do ordenamento jurídico, a sua razão de ser, nada mais lógico que a personalidade, e os direitos a ela atinentes, sejam protegidos de forma ampla e irrestrita, em conformidade com nosso texto constitucional.


 


Referências

BRASIL. Código civil e legislação civil em vigor. Org. Theotonio Negrão com a colaboração de José Roberto Ferreira Gouvêa. 22. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2003.

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Org.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. 1. ed., 2. tir. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 31-56.

CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do direito civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 230-264.

DEL RÍO, José Manuel Lete. Derecho de la persona. 3. ed. rev. Madrid: Tecnos, 1996.

ELESBÃO, Elsita Collor. Os direitos da personalidade no novo Código Civil brasileiro. In: Pessoa, gênero e família. Adriana Mendes Oliveira de Castro et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 09-34.

FIÚZA, Ricardo (Coord). Novo Código Civil comentado. 1. ed., 8. tir. São Paulo: Saraiva, 2003.

FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de direito civil. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. v. 1.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1.

LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Atual. Vilson Rodrigues Alves. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000. Tomo I.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v. 1

PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro. In: ________. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 23-54.


Notas:

[i] Da mesma forma, estabelecia o Código Civil de 1916, em seu artigo 2º: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil.” O princípio foi mantido, houve apenas a substituição da expressão “homem” por “pessoa”, em respeito à paridade de direitos entre homens e mulheres, assegurada de forma expressa desde a Constituição Federal de 1988.

[ii] Estabelece o artigo 52 do Código Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.

[iii] Com a ressalva da existência de direitos da personalidade que subsistem à morte do indivíduo, como o direito ao cadáver.

[iv] No direito romano, os direitos da personalidade não recebiam o tratamento atual. Para a sua proteção, havia apenas a actio injuriarum, ação que abrangia qualquer agressão física ou moral à pessoa.

[v] Como bem assinala Cortiano Junior (1998, p. 34), a responsabilidade civil visa a reparação do dano, em regra pelo ressarcimento pecuniário. Ou seja, sua base é patrimonial, em que o fundamento não é propriamente a agressão, mas o prejuízo por ela causado.

[vi] A partir da inclusão do princípio da dignidade humana na Declaração Universal dos Direitos do Homem, este foi positivado em vários ordenamentos jurídicos. Países como Alemanha, Brasil, Espanha, Grécia e Portugal inseriram esse princípios em seus textos constitucionais. (CUNHA, 2002, p. 245).

[vii] Quanto ao exercício dos direitos da personalidade, temos o Enunciado 4 do CEJ: “O Exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. (BRASIL, 2003, p. 42, artigo 11, nota 2).

Informações Sobre o Autor

Daniela Vasconcellos Gomes

Advogada. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Professora de Direito Civil no Centro de Ensino Superior Cenecista de Farroupilha (CESF)


Equipe Âmbito Jurídico

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