ECA

Analisando o casamento infantil sob uma perspectiva de gênero e sob a ótica da proteção integral da criança e adolescente

Karollyne Silva Ferraz – Bacharel em direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Email: karollynes.ferraz@gmail.com

Resumo: Este artigo visa propor uma reflexão crítica sobre a prática social do casamento infantil no Brasil, também conhecido como casamento precoce, com base numa perspectiva de gênero e de infância, uma vez que envolve pessoas com menos de 18 (dezoito) anos e em grande parte do sexo feminino. Trata-se de pesquisa eminentemente teórica que busca demonstrar como a intersecção entre essas categorias identitárias influem na reflexão e criação de medidas de proteção à infância e adolescência, frequentemente violada nessas uniões. Para tanto, utilizou- se da doutrina da proteção integral, em contraposição à doutrina da situação irregular, como parâmetro de análise da atuação do Estado, da família e da sociedade, e como mecanismo de verificação da efetivação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, assim como utilizou-se de conceitos dos estudos de gênero, para demonstrar suas influências na construção da criança e adolescente como menino ou menina, de suas subjetividades e representações.

Palavras-chave: Casamento infantil. Gênero. Proteção integral. Estatuto da Criança e Adolescente.

 

Abstract: This article aims to propose a critical reflection on the social practice of child marriage in Brazil, also known as early marriage, based on a gender and childhood perspective, since it involves people under 18 (eighteen) years and largely female. It is an eminently theoretical research that seeks to demonstrate how intersection between these categories identified in the reflection and creation of protective measures in childhood and adolescence, often violated in these unions. For this purpose, the doctrine of integral protection is used, as opposed to the doctrine of irregular situation, as a parameter for analyzing the performance of the State, the family and society, and as a mechanism for selecting the realization of fundamental rights of children and adolescents, as well as using concepts from gender studies, to demonstrate their influences in the construction of children and adolescents as boys or girls, their subjectivities and representations.

Keywords: Child marriage. Gender. Integral protection. Statute of Children and Adolescents.

 

Sumário: Introdução. 1 Criança e adolescente: de objeto de tutela a sujeitos de direitos. Abordagem com base na teoria da proteção integral. 2 Poder familiar e emancipação da criança para e pelo casamento. 3 Diálogo entre gênero e infância. 4 Casamento infantil e suas implicações jurídicas e sociais. Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O casamento infantil é uma prática social frequente ao redor do mundo, dado os números de casamentos infantis indicados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância. Tal prática se configura com a presença de criança ou adolescente em união formal ou informal com alguém, e se manifesta através de padrões sociais criados nos contextos em que as pessoas envolvidas se inserem, sofrendo influências religiosas, políticas, econômicas e culturais (UNICEF, 2019).

Nesse contexto, embora diversos elementos se relacionem com a temática, pretendo propor uma reflexão sobre a problemática do casamento infantil no Brasil, sob a ótica de duas categorias identitárias e de análise, quais sejam gênero e infância, de forma a demonstrar as implicações destas na criação da subjetividade do indivíduo e em que dimensão esse processo influencia na decisão de uma criança ou adolescente pelo casamento precoce.

Para isso, faz-se necessário entender, de antemão, como a criança e o adolescente foram tratados historicamente, como foi construída a concepção de criança e adolescência no decorrer do tempo, como foi o processo para a criação e manutenção de direitos e garantias, e qual foi o contexto em que a criança e o adolescente se tornaram sujeitos de direitos.

Além disso, é fundamental que se analise a prática por uma perspectiva de gênero, ao passo que o casamento infantil é uma problemática que atinge em maior parte meninas e é um óbice na promoção da igualdade de gênero. Déborah Sayão faz questionamentos que se adequam perfeitamente ao debate aqui proposto, sendo eles: “em que medida estudar a infância amplia a categoria gênero? Em que medida gênero nos possibilita entender melhor a infância?” (SAYÃO, 2003, p. 82). Tais questionamentos servirão de estímulo para pensar a relação entre gênero e infância.

Essa intersecção servirá como meio para se pensar as causas “invisíveis” e enraizadas no imaginário social, que estimulam ou justificam a prática do casamento infantil, assim como meio de verificar a implementação da doutrina da proteção integral para assegurar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, dispostos na Constituição Federal de 1988 (CF/88).

Dessa forma, este artigo visa problematizar o casamento infantil, entendido nesse contexto como meio de se propagar violações contra a infância e a adolescência, através de pesquisa de caráter teórico, objetivando demonstrar que o discurso social em apoio a essa prática tem construção similar ao discurso patriarcal e adultocêntrico, como se verá à frente.

 

1 CRIANÇA E ADOLESCENTE: DE OBJETO DE TUTELA A SUJEITOS DE DIREITOS. ABORDAGEM COM BASE NA TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Inicialmente, observa-se que há um tratamento diferenciado para criança e adolescente na história humana ou história do “adulto” e, especialmente na legislação brasileira a depender do tempo ao qual nos referimos, que pode ser observado em três períodos (fases) históricos, conforme Lima, Poli e José classificam (2017, p. 315).

Na primeira fase, compreendida entre 1501 a 1900, não era dada tanta importância à criança, uma vez que a alta mortalidade impedia a criação de laços afetivos mais sólidos, pois as chances de sobrevida da criança eram pequenas, devido a precárias condições de higiene e saúde.

Segundo Ariès, durante a idade medieval,

“o sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas, O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (ARIÈS, 1986, p. 156).

Ou seja, a infância não era vista com as peculiaridades que hoje são reconhecidas, porém o afeto existia, tanto que gerou, tempos depois, o significado do primeiro sentimento da infância. Contudo, como nesse período a criança não era vista como tal, assim que adquirisse condições de praticar atos sozinha, e não fosse atingida pela mortalidade precoce, era incluída entre os adultos, sem algo que a distinguisse.

 

“Não havia as etapas da infância, juventude e fase adulta. Assim que adquiria uma independência mínima como, por exemplo, se alimentar, fazer suas necessidades fisiológicas, trocar a vestimenta sozinha, já era automaticamente misturada aos adultos. Portanto, não havia um critério a ser seguido como o desenvolvimento biológico, o cronológico de idade e, muito menos, o psicológico para determinar o início e o fim das fases da vida.” (LIMA; POLI; JOSÉ, 2017, p. 317-318).

 

O primeiro sentimento da infância foi criado no ambiente da família, com a noção da ingenuidade e graça da criança, que fazia os “adultos” se distraírem e relaxarem com suas brincadeiras e jeito de falar. O segundo sentimento de infância surgiu no ambiente exterior à família, e voltou sua atenção para o comportamento das crianças, numa ótica moral e racional (ARIÈS, 1986).

Na segunda fase (1901 a 1950), começa-se a discutir a indiferença dos pais em relação à crianças e adolescentes. Nesse momento, aqueles que eram tratados com desinteresse passam a ser objeto de tutela do Estado. Não se entendia que a criança e adolescente pudessem ter direitos próprios, a ideia que vigia era de que seus direitos eram “reflexos do interesse paterno ou social, não havendo, portanto, a preocupação em fazer com que estes indivíduos exercessem, ainda que de forma diminuta, a sua autonomia privada” (LIMA; POLI; JOSÉ, 2017, p. 318).

Essa é a fase em que o surge a Doutrina do Direito Penal do Menor, o Código de Menores e a teoria da Situação Irregular. A doutrina do direito penal do menor era disciplinada pelo Código Penal de 1890. Esse código estabelecia a “inimputabilidade” de crianças com menos de 9 anos, contudo dispunha sobre uma responsabilização gradativa de crianças com idade de 9 a 17 anos.

Aos que possuíam idade entre 9 e 14 anos, aplicava-se a “teoria do discernimento”, na qual o juiz era o responsável por verificar se a criança possuía capacidade para agir com dolo. Verificada a presença de discernimento do ato, eles seriam “recolhidos a estabelecimento disciplinar industrial pelo tempo que o juiz determinasse, não podendo exceder à idade de 17 anos” (PEREIRA, T. 2008, p. 13). Aos que possuíam idade entre 14 e 17, havia a possibilidade de aplicação da cumplicidade como pena, todavia, a atenuante da menoridade permanecia, demonstrando certa influência da idade na penalização do indivíduo.

Iniciada a década de 80, a doutrina da Situação Irregular ganha força com a Lei n° 6.697/79, conhecida como Código de Menores. Nela, a pessoa com menos de 18 anos, o “menor”, que se enquadrasse a umas das “irregularidades” previstas no Código, permitia que o Estado interferisse. Segundo Tânia Pereira, eram 6 (seis) as situações de “irregularidades”, sendo elas:

 

“a. Menor privado de condições essenciais de subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda eu eventualmente em razão de falta, ação omissão dos pais ou responsável e manifesta impossibilidade de os mesmos provê-las.

  1. Menor vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável.
  2. Menor em perigo moral devido a encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes, e na hipótese de exploração em atividade contrária aos bons
  3. Menor privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável.
  4. Menor com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar e comunitária.
  5. Menor autor de infração penal (PEREIRA,T. 2008, p. 15)”.

 

Estas hipóteses dividiam os indivíduos com menos de 18 anos entre crianças e adolescentes e “menores”. Crianças e adolescentes eram os que viviam em famílias que lhe garantiam os direitos básicos, como alimentação, educação, casa etc. e não eram tuteladas pelo Estado, uma vez que pertenciam ao espaço privado, os menores, por sua vez, eram geralmente pobres e em situação de marginalização (MATTIOLI; OLIVEIRA; 2013, p. 19-20).

Obviamente que essa legislação não visava a prevenção, e sim a resolução do “problema”. O juiz possuía uma dupla função, de caráter penal e tutelar, ou seja, “a função do juiz é diminuir conflitos na sociabilidade e conflitos de caráter jurídico” (PEREIRA, T. 2008, p. 16). Assim, a intervenção ocorria tanto nos fatos relacionados ao cometimento de infrações quanto relativos à pobreza, permitindo uma atuação discricionária do juiz, que favorecia a instalação de decisões fundadas em elementos discriminatórios, estigmatizando um perfil de “menor”, seja como “delinquentes”, “abandonados”, “jovens em situação irregular” etc, na “permanente preocupação em ‘qualificar’ para ‘segregar e discriminar” (PEREIRA, T. 2008, p. 33).

 

“Essa herança cultural permitiu que, por muito tempo, a infância fosse tratada com descaso ou, pelo menos, sem o cuidado e a atenção necessários. Com isso, inúmeras formas de violação de direitos foram se perpetuando” (CUSTÓDIO, 2017, p. 624).

 

Nesse contexto, adquiriam interesse jurídico aqueles com menos de 18 anos que implementassem a situação irregular, configurada pela “prática de infrações, seja pela própria condição de exclusão social que as colocava em evidência” (CUSTÓDIO, 2008, p. 25). Isto significa que o Estado interviria no caso de caracterização da situação irregular, seja pelo poder legislativo, executivo ou judiciário, deslocando seus olhos para esse grupo, e se mantinham omissos em caso contrário. A ideia prevalecente era que se tratava do “problema do menor” e não do Estado, já que a irregularidade não era tida como consequência da organização e atuação das instituições públicas.

A teoria da situação irregular, adotada antes da CF/88, não resolvia os problemas inesperados e como se percebe, nem os esperados. Legitimava, contudo, a atuação autoritária do Estado, amparado no regime de segurança nacional do período ditatorial, que autorizava “políticas de controle social, vigilância e repressão”, e que, por conseguinte, resultava em práticas de violação aos direitos humanos e propagação da estigmatização, pelos critérios social-econômico, racial e de gênero (CUSTÓDIO, 2008, p. 24).

A concepção menorista se manteve forte por tanto tempo amparada pelo processo histórico de constituição do Estado brasileiro, que propagou a manutenção de uma estrutura hierarquizada, que não atendia aos anseios da população como um todo, e sim de um grupo específico que possuía o poder.

Já na última fase, após 1951, a discussão internacional estava calorosa em relação aos direitos da criança e do adolescente, tanto que levou à criação da teoria da proteção integral. As discussões acerca dos direitos da criança iniciaram-se oficialmente com a Declaração de Genebra, em 1924, uma vez que foi utilizada pela primeira vez a referência aos “direitos da criança”. Essa declaração tinha como objetivo reconhecer “o direito ao desenvolvimento físico, material e espiritual, além de estabelecer a prioridade da criança no atendimento e assistência” (CUSTÓDIO, 2017, p. 629).

Em 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece “a dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, tratando as crianças, uma vez integrante da família, como sujeito de direitos. Inova, ainda, ao estabelecer “o direito a cuidados e assistência especiais à maternidade e à infância, além de reconhecer o direito à proteção social para todas as crianças” (CUSTÓDIO, 2017, p. 630).

Anos depois, já em 1959, é aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que traz uma pauta que será o pilar para a posterior criação da teoria da proteção integral, qual seja a proteção da criança como fator principal para que os seus direitos fundamentais sejam efetivados.

Embora não tenha tido efeito vinculativo, com força de obrigar os Estados-membros a incorporá-la no seu ordenamento jurídico interno, por ser uma Declaração e não uma Convenção, é indiscutível seu papel no que tange aos posteriores avanços nos direitos da crianças e adolescentes, pois propiciou um debate internacional sobre a importância da proteção à infância e influenciou na mudança das concepções sobre a mesma.

Uma vez inserido nas pautas internacionais, o tema teve seu clímax na Convenção sobre os Direitos da Criança, feita em 1989, que ampliou os direitos e liberdades previstos aos adultos, pela Declaração dos Direitos Humanos, a crianças e adolescentes. Ela foi ratificada pelo Brasil em novembro de 1990, pós Constituição da República de 1988 e pós Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), publicado em julho de 1990.

Nessa conjuntura, agora no âmbito nacional, várias discussões sobre o tratamento da criança e adolescente pelo Estado estavam sendo reavaliadas. Os movimentos sociais e a própria discussão internacional sobre os direitos da criança e adolescente colaboraram para a adoção da teoria da proteção integral pela CF/88, que encerrou com a atuação estatal fundada na concepção menorista.

Conforme relata Tânia Pereira (2008), a doutrina da proteção integral foi fortemente impulsionada pelas articulações feitas pelos movimentos sociais, que fez nascer, por exemplo, o Fórum Nacional Permanente de Direitos da Criança e do Adolescente, que forneceu subsídios, através da mobilização nacional, para a inserção de normas na Constituição Federal, para a proteção de crianças e adolescentes. A autora ressalta que

 

“Se a história constitucional brasileira pode se vangloriar da presença permanente da Declaração de Direitos e Garantias Individuais do Cidadão, a Constituição de 1988, além de enumerá-los, exaustivamente, no art. 5°, introduz na Doutrina Constitucional a declaração especial dos Direitos Fundamentais da Infanto-Adolescência, proclamando a “Doutrina Jurídica  da Proteção Integral” e consagrando os direitos específicos que devem ser universalmente reconhecidos. […] Ser ‘sujeitos de direitos’ significa, para a população infanto-juvenil, deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os adultos, titular de direitos juridicamente protegidos” (PEREIRA, T. 2008, p. 120).

 

Logo após a CF/88, é instituído o Estatuto da Criança e Adolescente, que abraça a teoria da proteção integral como forma de mudar o cenário anterior e ampliar a proteção estatal a todas as crianças e adolescentes. É aplicado a todos os indivíduos com menos de 18 anos e não apenas aos “menores” em situação irregular. O termo “menor”, aliás, é substituído pela expressão “criança e adolescente”. Nesse cenário, a teoria da proteção integral teve forte aceitação já que

 

“conseguiu ao mesmo tempo conjugar necessidades sociais prementes aos elementos complexos que envolveram mudança de valores, princípios,  regras e neste contexto conviver com a perspectiva emancipadora do reconhecimento dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente (CUSTÓDIO, 2008, p. 30)”.

 

Além de adquirirem status de sujeitos de direitos, foi garantido às crianças e adolescentes um tratamento diferenciado, que teria como pressuposto o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e a prioridade absoluta de tratamento, assim como um sistema especial de proteção.

A condição peculiar de pessoa em desenvolvimento significa que a criança e adolescente não consegue ter plena e completa consciência de seus direitos, tampouco tem condições de defendê-los de forma absoluta, assim como não possui mecanismos de satisfazer suas necessidades vitais e básicas, visto que em processo de desenvolvimento físico, social, cultural e psicológico (inclui-se aqui o cognitivo e emocional), e por isso devem ser tratados de forma a respeitar todas essas variáveis.

A prioridade absoluta, por sua vez, significa preferência no atendimento público, na formulação de políticas públicas, na aplicação de recursos públicos e a proteção e auxílio prioritário em qualquer hipótese (PEREIRA, T. 2008, p. 25-26).

No que tange ao sistema especial de proteção, Piovesan aponta que às crianças e adolescentes são reconhecidos direitos especiais, além daqueles garantidos a toda pessoa humana, a fim de que haja “o pleno desenvolvimento das capacidades físicas, mentais, morais, espirituais e sociais, cuidando para que isso se dê em condições de liberdade e de dignidade” (2018, p. 535), um vez que “ainda remanesce no Brasil uma cultura adultocêntrica, que percebe o mundo e a vida a partir da lente dos adultos” (2018, p. 545).

A proteção jurídica de grupos vulneráveis deve observar o processo de “especificação do sujeito de direito” (PIOVESAN, 2018, p. 433), que consiste na constituição de um sistema especial de proteção, que vislumbre as peculiaridades e particularidades dos sujeitos de direito. Grupos como as crianças e adolescentes e mulheres, assim como outros, necessitam dessa proteção especializada, uma vez que o sistema geral de proteção pode se mostrar genérico e abstrato, sendo insuficiente para as especificidades desses grupos.

Os direitos fundamentais são, para Amin, “direitos inatos ao ser humano, mas variáveis ao longo da história” (2018, p. 81). Os direitos da criança e adolescente nem sempre foram assegurados pelo Estado como o é hoje. Todavia, foram conquistados mediante muita discussão e luta nacional e internacionalmente, até serem positivados no corpo da Constituição Federal de 1988.

O caput do art. 227 da CF/88 indica os direitos fundamentais essenciais no desenvolvimento da criança e do adolescente, sendo eles o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Dentre todos esses direitos, o direito à vida é considerado “o mais elementar e absoluto dos direitos, pois indispensável para o exercício de todos os demais” (AMIN, 2018, p. 84). Não é entendido exclusivamente como meio de garantir a sobrevivência de alguém, mas como meio de garantir uma vida com dignidade.

O direito à saúde, por sua vez, não diz respeito apenas à inexistência de doenças, mas à proteção da integridade física, mental e o desenvolvimento social. É destacado no art. 227  da CF/88, por “trata-se de direito fundamental homogêneo, mas com certo grau de especificidade em relação à saúde adulta. […] Cabe aos pais, como dever inerente ao poder familiar, cuidar do bem-estar físico e mental dos filhos” (AMIN, 2018, p. 84).

A alimentação relaciona-se ao direito à saúde e deve ter atenção especial, uma vez que várias doenças causadas pela má alimentação, afetam especialmente crianças e adolescentes, como a desnutrição, obesidade, dentre outras.

O direito à educação busca proporcionar à criança e adolescente uma formação plena, capaz de, além de lhe tornar apto a exercer a cidadania e ingressar no mercado de trabalho, instrumentalizar a implementação dos demais direitos, uma vez que o conhecimento afasta a passividade oriunda da ignorância.

O lazer e cultura foram direitos abraçados pela CF/88 e pelo ECA, como fundamentais no desenvolvimento da criança e adolescente, que precisam dos mais diversos estímulos para tanto. Embora muitas vezes vistos como direitos secundários, provocam importantes efeitos, como o estímulo ao pensamento, de maneira distinta da educação formal, desenvolvimento de habilidades motoras, benefícios à saúde, redução da possibilidade de depressão, dentre outros.

A profissionalização, a priori, é direito do adolescente, com idade superior a 16 anos, havendo limitação quanto ao adolescente com 14 anos, que só pode atuar no contrato de aprendizagem, e expressa vedação constitucional ao trabalho infantil, cujo fundamento é “evitar desgastes indesejados e prejudiciais à formação e à necessidade de escolarização do menor”.

Mesmo parecendo preceitos morais óbvios, o direito à dignidade e ao respeito foram acertadamente normatizados, a fim de evitar práticas tidas como “normais” no período da situação irregular, como a “coisificação dos menores, como se fossem ‘projetos de gente”. Tal forma de ver a criança e adolescente desrespeita sua condição de pessoa em desenvolvimento e enseja práticas de violência física e moral, por isso a importância de elencar esses direitos como direitos fundamentais (AMIN, 2018).

O direito à liberdade relaciona-se ao direito de ir e vir, “liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso, liberdade para brincar, praticar esportes, divertir-se, participar da vida em família, na sociedade e vida política, assim como buscar refúgio, auxílio e orientação” (AMIN, 2018, p. 106).

A convivência familiar se equipara, em nível de importância, ao direito à vida, em razão de ser essencial para a formação e desenvolvimento do indivíduo e sua ausência configura violação ao direito à vida. Maciel o conceitua “como o direito fundamental de toda pessoa humana de viver junto à família de origem, em ambiente de afeto e de cuidado mútuos, configurando-se como um direito vital quando se tratar de pessoa em formação (criança e adolescente)” (2018, p. 157).

A convivência comunitária, por sua vez, pode ser entendida como complementar à convivência familiar, no que diz respeito ao desenvolvimento do indivíduo, além de ser essencial na formação do cidadão. É configurada pela convivência escolar, religiosa e recreativa, que deve ser estimulada pela família (MACIEL, 2018).

 

2 PODER FAMILIAR E EMANCIPAÇÃO DA CRIANÇA PARA E PELO CASAMENTO

A Constituição Federal de 1988 dispõe que a responsabilidade para assegurar e efetivar os direitos da criança e do adolescente é solidária entre Estado, sociedade civil e família, o que significa dizer que qualquer deles se responsabilizam, sem ordem de preferência, contudo, cada qual possui sua esfera de atuação. O Estado atua na formulação de políticas públicas, a sociedade civil tem importante papel na fiscalização e efetivação das mesmas e a família, por uma tradição histórica, possui especial papel na formação do indivíduo, graças ao poder familiar, que lhe confere um poder-dever de atuar na efetivação e proteção dos direitos fundamentais da criança e adolescente. Por tamanha importância, se faz necessário inserir no debate do casamento infantil algumas noções sobre o poder familiar e sua relação com o casamento como fruto da emancipação.

O poder familiar acompanhou a história humana, se aperfeiçoando com o tempo e adquirindo conotações e valores a depender do período a que nos referimos. Nesse sentido, a teoria da proteção integral influiu na formação do conceito atual, ao passo que extinguiu a anterior ideia de subordinação entre os filhos e o pai, isto é, uma vez que os filhos são sujeito de direitos, não cabe aos pais impor seus interesses a eles, todavia, permanece sua responsabilidade frente aos filhos e seu importante papel na efetivação dos direitos fundamentais da criança e adolescente (PEREIRA, C. 2017).

Assim, é crucial que se entenda que o poder familiar ou parental cria uma sujeição do filho/a à autoridade e representatividade da mãe, pai ou terceiro responsável, até que complete 18 anos, adquirindo a conhecida maioridade civil, momento no qual haverá a extinção do poder familiar (MACIEL, 2013, p. 135).

Segundo Katia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel,

 

“o poder familiar […] pode ser definido como um exemplo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais com relação ao filho menor, não emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último. Sendo um direito-função, os genitores biológicos ou adotivos não podem abrir mão dele e não o podem transferir a título gratuito ou oneroso” (2013, p. 137).

 

Significa que, em regra, o poder familiar é indisponível, inalienável, irrenunciável e imprescritível, e só pode ser extinto por força de lei (PEREIRA, C. 2017, p. 521). Esse poder se refere a um “dever moral e a obrigação jurídica de sustentar, educar e ter o filho em sua companhia […] conceder ou negar o consentimento para o casamento do filho” (MACIEL, 2013, p. 137) dentre outras obrigações. Tem como atributo a guarda, que se reflete no direito/dever de cuidar, vigiar, dar assistência e representá- lo, tendo poder de decidir em seu lugar e em seu benefício.

Cumpre, portanto, distinguir que guarda não se confunde com poder familiar, sendo ambos institutos autônomos. É possível que um dos genitores, por exemplo, tenha o poder familiar sobre o filho/a e não exerça a guarda. Esta enseja, inclusive, responsabilidade civil dos pais frente a ilícitos causados por seus filhos.

Os pais e responsáveis possuem o dever de proporcionar a criação e educação, de “orientar a criança, desenvolvendo sua personalidade, aptidões e capacidade” (MACIEL, 2013, p. 173), de prestar assistência material e imaterial (relacionada ao direito ao afeto). Destaca-se a importância de seu exercício em função da garantia dos direitos fundamentais da criança e adolescentes, uma vez que o Estado possui mecanismos de controle do mesmo, indo desde advertências à suspensão ou, em casos extremos, à destituição do poder familiar.

A respeito da destituição do poder familiar, ressalta-se que este é um dos meios de o poder familiar se extinguir, havendo outros, como a morte do responsável ou do filho/a, a emancipação, a maioridade civil e adoção. Nos interessa, nesse momento, falar sobre a emancipação, regulada pelo Código Civil (CC) de 2002.

Amin conceitua emancipação como o “instituto que põe fim ao poder familiar, permite ao emancipado a prática de atos negociais, sem assistência, mas não tem o condão de conferir maturidade fisiológica para pessoa que ainda está em formação. […] Direitos fundamentais e normas de garantia à formação do adolescente até o alcance de sua maturidade fisiológica continuam aplicáveis ao menor emancipado” (AMIN, 2018, p. 83).

A emancipação tem como principal consequência a antecipação dos efeitos da maioridade civil, tornando o indivíduo, antes sujeito à autoridade dos pais ou responsáveis, em plenamente capaz de praticar qualquer ato da vida civil. Nesse sentido, uma das hipóteses de emancipação, reconhecida até o começo do ano de 2019 foi o casamento envolvendo pessoa com idade de 16 a 18 anos, única hipótese de casamento envolvendo indivíduo com menos de 16 anos era em caso de gravidez.

Tal hipótese foi juridicamente extinta com a Lei n° 13.811/19, sendo um avanço no que tange à normatização. Contudo, a prática social do casamento infantil traz problemas muito mais profundos, que devem ter atenção especial de todos os setores atuantes nos direitos da criança e adolescente, da família, do Estado e da Sociedade Civil. Nesse contexto, o uso do poder familiar deve cumprir com sua finalidade de proteção dos interesses da criança e adolescente, de modo que os pais ou responsáveis entendam os impactos que sua atuação e tomada de decisão podem ter em frente à criança e adolescente, a fim de que não haja violações aos seus direitos em virtude de uma atuação omissa ou negligente por parte do (a) detentor (a) do poder familiar.

 

3 DIÁLOGOS ENTRE GÊNERO E INFÂNCIA

Além de ser uma demarcação cronológica da vida, a idade é utilizada como mecanismo de recorte social, em que o comportamento e os sentimentos devem corresponder ao de um grupo específico de tal idade (RAMOS, 2013). Contudo, a idade é uma das categorias identitárias, não sendo a única, se relacionando, portanto, com outras, como o gênero. Esta categoria atua diretamente na construção social da criança como menino ou menina.

Como visto, a doutrina da proteção integral veio para garantir o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente, respeitando seus direitos, considerando sua condição peculiar, contudo, o olhar adultocêntrico ainda permanece vinculado nas práticas sociais, limitando a associação de temas considerados do mundo adulto, como o gênero, com a realidade de crianças e adolescentes (SAYÃO, 2003).

O desenvolvimento da criança e do adolescente é, muitas vezes, visto por essa ótica, que reflete e cria expectativas baseadas nos padrões dos adultos, o que gera uma perda na historicidade própria da criança. Esse paradigma adultocêntrico cria uma concepção de maturidade adulta para crianças e adolescentes, sem considerarem suas peculiaridades (ROSEMBERG, 1996).

 

“esta perspectiva de desenvolvimento acaba por retirar da infância seu caráter histórico (e seu potencial transformador) pois cada nova infância é reconstruída à luz do paradigma adulto atual, que viveu sua infância em outro tempo histórico (ROSEMBERG, 1996, p. 21)”.

 

Conforme Ramos, “não é apenas a idade que opera na constituição das identidades infantis. Se, por um lado, a idade delimita as experiências geracionais das crianças, por outro, o gênero institui o modo como meninos e meninas vivem suas masculinidades e feminilidades na infância” (2013, p. 13). Idade e gênero são, desse modo, “marcas identitárias”, que visam criar subjetividades nos indivíduos e fixar os limites de ser criança, conjuntamente, com ser menina ou menino.

Mas, afinal, o que é gênero? Conforme Connel e Pearse, gênero é “uma estrutura de relações sociais que se centra sobre a arena reprodutiva e o conjunto de práticas que trazem as distinções reprodutivas sobre os corpos para o seio dos processos sociais” (CONNELL; PEARSE; 2015, p. 48).

Estrutura social nesse contexto é entendida como “a manutenção de padrões amplamente difundidos entre relações sociais” (CONNELL; PEARSE; 2015, p. 47), as chamadas relações de gênero, ao passo que arena reprodutiva é entendida como o “local” no qual “os corpos são trazidos para processos sociais, em que nossa conduta social faz alguma coisa sobre diferenças reprodutivas” (CONNELL; PEARSE; 2015, p. 48).

 

“O conceito de gênero consolidado na expressão relações de gênero representa a aceitação de que a masculinidade e a feminilidade transcendem a questão da anatomia sexual, remetendo a redes de significação que envolvem diversas dimensões da vida das pessoas” (TRAVERSO-YÉPEZ; PINHEIRO; 2005, p. 148).

 

Quando se fala em gênero, se fala em construção social, que diferencia homens e mulheres, através, principalmente, de práticas sociais, criadas pelas representações de masculinidade e feminilidade desde a infância.

Joan Scott já afirmava que gênero não se refere à diferenciação de sexos, porquanto esta ser biológica (SCOTT, 1990). O gênero, de outro modo, reflete a identificação de alguém como homem ou mulher, “implica a atribuição de valores culturais a diferenças percebidas, marcando disputa de poder sobre a idéia que pode ser considerado culturalmente legítima e autorizada” (SOUZA, 2008, p. 151). Tratar o gênero como uma categoria implica demonstrar a diferenças sociais construídas ao longo da história, permitindo “a (des) construção das diferenças, hierarquias e formas de dominação de um sobre o outro, seja mulher, homem, seja menino, menina” (SOUZA, 2008, p. 151).

Destaca-se alguns processos pelos quais os indivíduos são submetidos desde a infância, oriundos das relações de gênero, sendo eles a representação social, a socialização de gênero e a performação. Representação social é o conjunto de simbolismos, que propagam ideias prontas de práticas sociais generificadas, através de “definições, explicações e propostas formadas na vida cotidiana” (SOUZA, 2008, p. 153). Na infância essas representações sociais se sustentam em dois pilares: o processo de interação e de pertencimento a certos grupos sociais, em especial o meio familiar e o escolar (SOUZA, 2008, p. 153).

Os simbolismos advindos das representações sociais não são estanques, mas contínua é sua produção e distinta sua forma de atingir cada indivíduo. Assim, “desde o nascimento, as crianças se deparam com um mundo estruturado pelas representações e são com estas que elas se desenvolverão” (SOUZA, 2008, p. 154), ou seja, as crianças constroem “esquemas classificatórios”, em que reproduzem e produzem representações sociais, por meio das ideias, valores, práticas e modelos absorvidos elo contexto e grupos sociais que integra, “marcando fronteiras e declarando relações de poder” (SOUZA, 2008, p. 154).

Moore aponta que “o indivíduo é marcado pelo gênero, e suas experiências contêm um significado que é informado pela fala e pela prática” (2000 apud SOUZA, 2008, p. 158). Por não ser estanque, o gênero pode sofrer influências que alterem as práticas que reforçam os papéis sociais já construídos.

A socialização de gênero é o processo pela qual o indivíduo incorpora as noções de gênero, por meio da reprodução de valores, normas sociais, condutas e papéis pré-estabelecidos. A organização de gênero tem maior impacto na família, vizinhança e escola, uma vez que “demarcam espaços, delimitam possibilidades e configuram matrizes ou  modelos de interação entre as pessoas, implicando pressões sobre aquelas que as transgridem ou subvertem” (TRAVERSO-YÉPEZ; PINHEIRO; 2005, p. 149).

Nesse cenário, cria-se a identificação da criança como menino ou menino, e com isso a necessidade da performação da categoria pela qual se identificou, ou seja, as condutas e normas sociais são reproduzidas, com todos os seus signos e simbolismos (RAMOS, 2013).

O corpo, nesse contexto, é o primeiro instrumento de diferenciação social, que ocorre desde o nascimento, e o principal meio performático. Conforme Salgado e Luiz, todos nascemos com corpos, que ganham significados diversos, principalmente na infância, já que as crianças também são atores sociais. Essas significações dadas ao corpo comportam “representações, discursos, produtos e objetos culturais”, sendo, desse modo, uma externalização da cultura e dos seus elementos, “nesse processo de composição do corpo e de busca de referências para representá-lo e apresentá-lo, o gênero ganha relevância” ( SALGADO; LUIZ; 2012, p. 15).

 

“atravessadas desde cedo por esses signos, as crianças se apropriam de valores e ideias que se materializam em pensamentos e mediam  suas relações com os objetos e os outros sujeitos, de modo a alimentarem o imaginário, definirem a autoestima e incitarem o esforço pessoal para mantê- la ou conquistá-la” (SALGADO; LUIZ; 2012, p. 16).

 

Assim, “o sujeito generificado só passa a existir na medida em que se sujeita às regulações determinadas e validadas dentro de uma sociedade” (SALGADO; LUIZ; 2012, p. 22). O corpo, nesse contexto, é fundamental na propagação de práticas generificadas e na erotização da infância. É através do corpo que meninas tentam se assemelhar às mulheres adultas, tanto fisicamente quando nas práticas sociais, incorporando até nas brincadeiras essa representação.

Apesar de associarmos, por vezes, a infância à inocência e à natureza, é necessário que encaramos que certos assuntos vistos como do mundo adulto, como o gênero, sexualidade e erotização dos corpos, sejam debatidos sobre a perspectiva geracional, isto é, sob a perspectiva da infância e adolescência, ao passo que tais temas são construídos e desenvolvidos também nessas fases.

A erotização infantil e feminina começou a ser discutida na década de 1980, em um contexto em que a mídia televisiva teve grande influência no comportamento social, embora não seja uma problemática tão recente como se parece. Programas para o público infantil estimulavam      o embelezamento, erotização          e sensualidade de crianças,         através           da representação e simbolismos que eram carregados pelas apresentadoras desses programas (GUIZZO; BECK, 2011).

 

“as experiências relativas à sexualidade, sobretudo aquelas encenadas no mundo midiático, têm, a cada dia, aparição constante no universo das crianças, em especial nas suas brincadeiras e nas informações que compartilham entre si. Embora ainda revertidas do sentido de tabu, tais experiências estão, cada vez mais, perdendo a sua aura de “segredos da vida adulta”, o que tem promovido, segundo uma perspectiva mais conservadora, a derrocada das fronteiras entre os mundos infantil e adulto” (POSTMAN, 1999 apud SALGADO; LUIZ, 2012, p. 13-28).

 

Toda essa carga simbólica criada pelas relações de gênero é internalizada por crianças e adolescentes e reforçam práticas sociais nas quais os papéis socialmente construídos para homem e mulher são reproduzidos e mantidos. Daí a importância de se debater gênero, e nesse caso em específico, sua relação com a infância, no estudo do casamento infantil enquanto prática social.

 

4  CASAMENTO INFANTIL E SUAS IMPLICAÇÕES

Casamento infantil ou precoce é uma terminologia de uso internacional para se referir a uniões informais ou formais, e casamentos, que envolva pelo menos um indivíduo com idade de até 18 anos. O termo “infantil” segue a lógica da conceituação de criança adotado pela Convenção sobre os Direitos da Criança, que dispõe que criança é qualquer indivíduo com menos de 18 anos (BRASIL, 1990).

Embora o Estatuto da Criança e do adolescente estabeleça uma diferenciação entre indivíduos com idade superior ou inferior a 12 anos, como adolescente e crianças, respectivamente, se utilizará a expressão “casamento infantil” por ser a mais utilizada em pesquisas e, até mesmo, pela UNICEF, que atua fortemente no combate à violações dos direitos das crianças e adolescentes.

Casamento infantil é uma prática que ocorre em todo o mundo, com maior incidência em regiões específicas, como no sul da Ásia e na África Subsariana. Na América do Sul, o casamento infantil é tão incidente como o era há 25 anos atrás (UNICEF, 2019), o que chama atenção ao fato de tal problemática não ser pauta de discussões.

A UNICEF destaca alguns dados sobre o casamento infantil no mundo. Segunda estimativas feitas por eles, “650 milhões de meninas e mulheres vivas hoje se casaram antes de completarem 18 anos”, computando o número de casamentos infantis envolvendo meninas em todo o mundo, calcula-se que ocorrem 12 milhões anualmente. Aponta, ainda, que “embora a prevalência do casamento infantil tenha diminuído em todo o mundo – de uma em cada quatro meninas casadas há uma década, cerca de uma em cinco hoje – a prática continua generalizada.

A problemática nos parece distante, contudo “o Brasil é o quarto país no mundo, em números absolutos, de mulheres casadas ou coabitando aos 15 anos”, conforme pesquisa feita pelo instituto Promundo, no período de 2013 a 2015. Embora em preocupante posicionamento nesse ranking, o país não despertou o interesse da agenda política nacional visando a iniciação de pesquisas ou elaboração de políticas públicas nesse sentido (TAYLOR et al., 2015, p. 15).

No Brasil, o casamento infantil possui características recorrentes. Primeiramente, a prática atinge mais meninas que estão entrando na puberdade, geralmente a partir de 12 anos (TAYLOR et al., 2015, p. 19). Ademais, destaca-se que um dos maiores obstáculos para maior precisão dos dados, é a informalidade da prática, que dificulta o levantamento de números reais e a documentação (TAYLOR et al., 2015, p. 20 e 24).

A agência de meninas é outra característica, ao passo que constantemente se justifica o casamento infantil como uma decisão consciente da própria menina, seja para evitar conflitos intrafamiliares ou ter independência e liberdade (TAYLOR et al., 2015, p. 62.), contudo há de se considerar que a deficiência educacional e laboral, somadas às desigualdades de gênero e poder masculino oriundo da sociedade patriarcal, influem e muito na tomada de decisão (TAYLOR et al., 2015).

A sexualidade das meninas, nesse contexto, é objeto de controle, principalmente quando se refere à gravidez e a iniciação sexual (TAYLOR; et al., 2015, p. 20), ou seja, sua sexualidade é associada positivamente apenas à sua capacidade de gerar uma vida (OLIVEIRA, 2012, p. 158).

A associação entre sexualidade feminina e matrimônio era percebida pela legislação brasileira até pouco tempo atrás, já que havia a possibilidade expressa de casamento (de menina) em caso de gravidez com menos de 16 anos, não havendo idade mínima prevista na legislação. Essa previsão foi extinta em março deste ano, pela Lei n° 13.811/19.

A condição de ser “mulher”, isto é, a transição de “menina” para “mulher” se estabelece frequentemente no imaginário social com o início da atividade sexual e puberdade, independentemente de sua idade, como se tais eementos justificassem a interrupção do processo de desenvolvimento físico, psíquico e emocional de uma criança e de um (a) adolescente, transportando-o para a vida adulta.

O casamento infantil é expressão dessa transição, já que “a transição das meninas da infância para a vida adulta é ‘acelerada’ (coincidindo de fato com a puberdade), e fortemente marcada por normas tradicionais de gênero que exigem que as garotas dediquem seu tempo ao cuidado de crianças e às tarefas domésticas” (TAYLOR et al., 2015, p. 73).

Ademais, o casamento infantil é, ainda, reflexo de estruturas familiares frágeis, que propagam atitudes abusivas e violentas, à medida que aquele que possui o poder familiar não oferece a devida proteção e orientação que lhes é dever.

Nesse contexto, a prática do casamento precoce é vista como um mecanismo de proteção para as meninas envolvidas (TAYLOR et al., 2015), uma vez que há no imaginário social a ideia de que isso trará estabilidade e segurança para elas. Contudo, as consequências são contrárias. O que se vislumbra é uma violação ao desenvolvimento saudável da infância e adolescência e uma manutenção de uma relação de poder baseada na hierarquização de gênero e de idade (ARTHUR, 2010).

A manutenção da prática por fundamentos culturais, reforça a omissão do Estado em cumprir com a doutrina da proteção integral, e viabiliza a violação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como o direito à saúde, à educação, ao lazer e cultura, à profissionalização, sua dignidade e respeito, e à convivência familiar e comunitária.

Essas violações ocorrem no momento em que infância e adolescência são “flexibilizadas” e dão espaço para diversas obrigações originadas pelo casamento, como o “dever” de cuidar dos filhos, da casa, do marido, além de afetar diretamente a escolarização da menina, que acaba deixando de frequentar a escola, na socialização, uma vez que os vínculos com a comunidade e família podem ser reduzidos, assim como a saúde (psíquica e física), que pode ser prejudicada, seja por um relacionamento abusivo e violências domésticas, seja pela uma gestação precoce, pois “as complicações da gravidez ou do parto são o número dois de assassinos de mulheres em idade reprodutiva” (UNFPA, 2019).

Nesse contexto, a aceitação familiar e social do casamento infantil, além de ilustrar reproduções simbólicas das relações de gênero, são resquícios da doutrina da situação irregular, ao passo que se desconsidera as peculiaridades da criança e adolescente como um indivíduo em desenvolvimento, e desloca-se as responsabilidades do mundo adulto para a criança e adolescente, simplesmente por estarem casadas ou em união com alguém.

As responsabilidades de adultos são repassadas para meninas desde cedo, que cumprem uma rotina semelhante à adulta, iniciando, por vezes, dentro da própria casa, cuidando dos irmãos, da casa, da comida etc demonstrando clara demarcação dos espaços sociais em que a mulher “deve” ocupar. Esse conjunto de responsabilidades adquirido se vincula “a expectativas de gênero e ao status social trazido pelo casamento” (TAYLOR; et al., 2015, p. 76).

Esses contextos de socialização de gênero criam nos sujeitos o que se chama de “pseudoamadurecimento” (AMIN, 2018, p. 110), que desconsidera o processo de desenvolvimento e formação da criança e do adolescente e reforça papéis sociais de gênero, e, por conseguinte, estimula o “pulo” de fases.

Gravidez precoce, o controle da sexualidade feminina, estabilidade financeira, precário acesso à educação, conflitos familiares, pobreza, falta de informação das meninas sobre saúde feminina e contraceptivos, poucas ou inexistentes perspectivas de ingresso no mercado de trabalho e desiguais oportunidades sociais em razão do gênero, são alguns dos fatores que levam ao casamento precoce (TAYLOR et al., 2015).

Afim de acabar com o casamento infantil, foi criada uma parceria entre mais de 95 países do mundo todo e de todos os continentes, chamada “Girls not brides”. Segundo eles, quatro são as áreas que devem ser trabalhadas para a erradicação do casamento infantil, sendo elas: a capacitação de meninas, mobilização de famílias e de comunidades, o fornecimento de serviços e a implementação de leis e políticas (GIRLS NOT BRIDES, 2019). Ressalta-se que a capacitação de meninas se vincula diretamente à promoção de igualdade de gênero.

 

“A igualdade de gênero só será alcançada quando mulheres e homens gozam das mesmas oportunidades, direitos e obrigações em todas as esferas da vida. Isso significa compartilhar igualmente a distribuição de poder e influência, e ter oportunidades iguais de independência financeira, educação e realização de suas ambições pessoais.

A igualdade de gênero exige o empoderamento das mulheres, com foco na identificação e reparação de desequilíbrios de poder e em dar às mulheres mais autonomia para administrar suas próprias vidas. Quando as mulheres estão empoderadas, famílias inteiras se beneficiam, e esses benefícios geralmente têm um efeito cascata nas gerações futuras (UNFPA, 2019)”

 

Alguns dos desafios para se implementar a igualdade de gênero se visualizam entre os fatores que motivam o casamento infantil, como a gravidez precoce e a saúde reprodutiva da mulher, empoderamento econômico, educacional, político. Para melhor visualização a UNFPA aponta que, numa perspectiva global, 6 a cada 10 pessoas pobres são mulheres, e dois terços dos analfabetos adultos são também mulheres, assim como há, mundialmente, falta de representativa e participação feminina na política (UNFPA, 2019).

Nesse contexto, a transformação social no que tange ao casamento infantil perpassa necessariamente a promoção da igualdade de gênero e consequente emancipação feminina (processo pelo qual as mulheres se fortalecem e tornam-as capazes de administrar seus corpos, suas escolhas e vidas).

Cabe, ainda, evocar a responsabilidade solidária entre a sociedade, família e Estado, prevista no art. 227, CF/88, visando a mudança social e cultural, que pressupõe, imprescindivelmente, a reflexão sobre o status da infância e adolescência na sociedade e nas relações de gênero.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por muito tempo a criança e adolescente não tiveram autonomia para serem titulares de direitos próprios, que independessem da vontade de seus pais ou representantes. Seus interesses ficavam adstritos ao de algum adulto, criando uma hierarquia e sujeição entre eles. Com influência da mobilização internacional, a transição da condição de objeto de tutela para sujeitos de direitos no  Brasil ocorreu somente em 1988, com a Constituição Federal, que reconheceu  que crianças e adolescentes poderiam ter interesses próprios ou até mesmo que conflitassem com os adultos, já que os direitos daqueles não mais eram reflexos destes.

Todavia, os séculos de invisibilidade para as pautas relacionadas à criança e adolescente, criaram expectativas de comportamento, propagaram práticas sociais, criminalizaram e estigmatizaram indivíduos, tudo sob um olhar adultocêntrico, utilizando os padrões de comportamento e de pensamento de “adultos” como parâmetro de aceitabilidade ou reprovabilidade.

No contexto do casamento infantil no Brasil, o Estado se mostra omisso em promover políticas públicas com esse objeto, a família se desvincula da obrigação de cuidado e proteção da infância e adolescência, ao consentir com a decisão pelo casamento infantil, nos moldes atuais, e a sociedade sequer tem consciência de sua responsabilidade solidária na proteção da infância e adolescência.

Dessa forma, continua-se a reproduzir os valores da doutrina da situação irregular, dando total titularidade da responsabilidade para decidir sobre o casamento para a criança ou adolescente, reproduzindo a lógica adultocêntrica, desconsiderando que ela deve ser tratado de forma a observar sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Ademais, quando falamos em casamento infantil como um problema social e jurídico, nos referimos ao fato de que essa prática produz efeitos violadores de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, ao passo que interrompe um ciclo gradual de desenvolvimento e antecipa responsabilidades de adultos para indivíduos, em grande parte do sexo feminino.

Por fim, é de grande importância relacionar gênero com infância no cenário do casamento infantil, como já demonstrado, pois essa intersecção elucida as diferenças e hierarquias construídas socialmente acerca dos espaços ocupados pela mulher. Além disso, a reflexão sobre essa relação de desigualdade de gênero é o passo inicial para se pensar meios de solucionar a questão, que afeta, via de regra, crianças e adolescentes do sexo e gênero feminino, devendo haver, necessariamente, uma atuação conjunta entre Estado, família e sociedade no enfrentamento do problema.

 

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