Análise crítica da história do controle de constitucionalidade e seus modelos

Resumo: este trabalho tem por escopo oferecer ao operador do direito conhecimentos mínimos sobre a história crítica do controle de constitucionalidade a fim de dar-lhe subsídio para uma leitura moderna dos modelos apresentados hodiernamente. Discute-se o controle de normas desde a antiguidade até o modelo Kelseniano, além do modelo brasileiro, sempre trazendo à baila questões sociais e políticas da época.

Palavras-chave: controle de constitucionalidade, evolução histórica.

Abstract: This work has the purpose to give the operator the right minimum knowledge about the critical history of judicial review in order to give you allowance for a modern reading of the models presented in our times. Discusses the control rules from antiquity to the Kelseniano model, beyond the Brazilian model, always bringing up social and political issues of the time.

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Keywords: judicial review, historical evolution.

Sumário: Introdução. 1 Conceitos iniciais. 2 Surgimento do controle de constitucionalidade difuso. 2.1 O caso Marbury vs. Madison e as polêmicas que circundavam o julgamento. 3 Nascimento do controle constitucionalidade concentrado como contraponto ao controle de constitucionalidade difuso. 3.1 Premissas do controle de constitucionalidade concentrado defendidas por Kelsen. 4 Surgimento do controle de constitucionalidade no Brasil. Conclusão. Referencias.

Introdução

O controle de constitucionalidade, tema presente em todo o ocidente, é um dos debates mais ricos do direito constitucional moderno. E não poderia ser diferente, a depender do modelo seguido, ter-se-á um juiz menos ou mais empoderado que ditará os limites da lei.

Sabendo disso, este trabalho apresentará todo o histórico do controle de constitucionalidade a fim de demonstrar que desde tempos remotos já se tinha em mente uma espécie de controle do poder de legislar, preocupação essa que se acirrou a partir do século XIX e XX, culminando com modelos diferentes de controle de constitucionalidade que visam dar mais ou menos poder aos juízes frente a vontade majoritária.

1 Conceitos iniciais

As constituições ao fixarem as estruturas básicas de um determinado sistema jurídico promovem a regulação do poder estatal e os direitos e garantias individuais, visando pacificar a sociedade.

O controle de constitucionalidade ingressa nesse contexto para decretar (in)compatibilidade dos atos normativos e das leis, inclusive de emendas à constituição, cujos textos não guardam harmonia com as premissas constitucionais estabelecidas pelo constituinte originário (BASTOS, 2001, p. 397-8).

É oportuno salientar que toda a operação de concretização da lei infraconstitucional revela, em seu bojo, uma análise preliminar de controle de constitucionalidade, pois antes de aplicar a lei ao caso concreto, deve-se verificar sua validade perante a Constituição, se a lei for compatível com a Constituição, aplica-se ela ao caso concreto. Caso contrário, fundamenta-se o porquê da inconstitucionalidade e afasta a norma do caso concreto, “pois aplicar uma norma inconstitucional significa deixar de aplicar a Constituição” (BARROSO, 2011, p. 23).

A premissa do controle de constitucionalidade está no fato da supremacia e da rigidez da Constituição[1]. A primeira traz à baila a questão da hierarquia: todo o ordenamento se conformará com a Constituição. O segundo faz alusão ao processo de elaboração da norma constitucional que deve ser diverso e mais complexo em relação à lei, sob pena desta revogar àquela, não lhe prestando submissão (BARROSO, 2011, p. 23).

Um dos principais objetivos de controle de constitucionalidade é a proteção dos direitos fundamentais frente ao Estado, sobretudo quando se discute direito de minorias que se submetem a maiorias parlamentares, que podem ver seus diretos serem alijados em razão da pouca representatividade nos parlamentos (NOVELINO, 2011, p. 57).

Importante ainda ressaltar que a jurisdição constitucional não é sinônimo de controle de constitucionalidade. A jurisdição constitucional é a aplicação da Constituição por juízes e tribunais, sendo assim, tem dois vieses, pois a Constituição pode ser aplicada diretamente por meio de uma regra nela prevista ou indiretamente quando fixa os parâmetros a serem obedecidos pela lei, seja em sua forma seja em sua matéria. Este último caso representa o controle de constitucionalidade, que nada mais é que uma das espécies de jurisdição constitucional (BARROSO, 2011, p. 25).

Fixadas essas premissas, analisar-se-á a evolução do controle de “constitucionalidade” (tendo vista que constituição em sentido moderno ocorre apenas nos EUA no século XVIII) para que se possa entender a importância desse instrumento para o direito e a democracia.

2 Surgimento do controle de constitucionalidade difuso

É possível identificar ao longo da história vários casos de controle de constitucionalidade, além daquele amplamente conhecido Marbury v. Madison.

Ao abordar o tema, CAPPELLETTI (apud BARROSO, 2011, p. 27-8) que reafirma o pioneirismo do judicial review (controle de constitucionalidade estadunidense) em alguns temas, mas frisa a existência de precedentes de supremacia entre normas no sistema jurídico ateniense (Antígona: controle das leis com base no direito divino), bem como nos tempos medievais.

Mesmo dentro do próprio Estados Unidos relata-se episódios no período colonial em que foi feita declaração de nulidade da lei contrária ao costume e à razão, uma vez que o sistema de direitos anglo-saxão se baseava em costumes.

Nesse sentido, MARINONI (2011, p. 39) ao enfrentar o tema do direito anglo-saxão cita o célebre caso Bonham, que em aproximadamente 1610, fez controle da lei com base no common law, aduziu o doutrinador ao citar COKE:

“As leis estão submetidas a um direito superior, o common law, e, quando isso não acontecer, vale dizer quando não respeitarem este direito, são elas nulas e destituídas de eficácia. […] quando algum ato do Parlamento for contrário a algum direito ou razão comum, ou repugnante, ou impossível de ser aplicado, o common law irá controla-los e julgá-los como sendo nulos.” (grifos do autor)

O intuito de utilizar o common law como parâmetro de controle das leis tinha como finalidade a limitação dos poderes do monarca, pois ao contrário do caso francês, o juiz inglês apoiava a causa burguesa. Entretanto, com a Revolução Gloriosa, de 1668, é instituída a supremacia do legislativo (supremacy of the parliament), motivado em grande parte para controlar os atos das colônias (MARINONI, 2011, p. 44).

As colônias inglesas, como os Estados Unidos, eram regidas por Cartas editadas pelo direito inglês, que eram verdadeiras constituições, pois regulavam a estrutura jurídica fundamental, estabelecia a possibilidade de aprovação de leis próprias, desde que fossem razoáveis e não contrariassem a lei do Reino inglês (MARINONI, 2011, p. 44-5).

Com a revolta dos colonizadores da América do Norte, em razão da cobrança de tributos que feriam a isonomia natural, que alegavam nulos. Em 1776, as colônias americanas tornam-se independentes. E, como, os juízes da época já vinham de uma cultura de decretação de invalidades das leis coloniais tendo como parâmetro as cartas e a legislação do Reino inglês, foi praticamente natural a parametrização da lei frente às constituições dos estados em formação (MARINONI, 2011, p. 45-8).

Por isso, em curto espaço de tempo já se via nos Estados Unidos, agora uma nação independente, o controle de constitucionalidade das leis como assinala HALL (apud BARROSO, 2011, p. 28):

“Marbury não foi o primeiro caso a enunciar o princípio do judicial review. Houve precedentes nas cortes estaduais e nas cortes federais inferiores, nas quais juízes deixaram de aplicar leis que consideram contrárias a dispositivos da constituição estadual ou federal.” (grifo do autor)

NOVELINO (2011, p. 260) cita que há dois precedentes com ideias embrionárias quanto ao controle de constitucionalidade nos Estados Unidos, a citar: Hayburn’s Case e Case Hylton v. United States, julgados em 1792 e 1796, respectivamente. Sendo o primeiro caso de declaração de inconstitucionalidade realizada por órgãos judiciais locais (Circuit Courts), que tinham integrantes da Suprema Corte, e o segundo precedente foi no âmbito da Corte Suprema, contudo, a declaração foi pela constitucionalidade de um tributo atacado.

Cabe ainda citar que até mesmo as bases teóricas sobre o tema já estavam presentes no Federalista nº. 78 escrito por HAMILTON (apud BARROSO, 2011, p. 28) que assim se pronunciava, in verbis:

“Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido.(…) A presunção natural, à falta de norma expressa, não pode ser a de que o próprio órgão legislativo seja juiz de seus poderes e que sua interpretação sobre eles vincula os outros poderes. (…) É muito mais racional supor que os tribunais é que têm a missão de figurar como corpo intermediário entre o povo e o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar que este último se contenha dentro dos poderes que lhe foram deferidos. A interpretação  das leis é o campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes cabe determinar o sentido da Constituição e da leis emanadas do órgão legislativo. (…) Onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edita, situar-se em oposição à vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes devem curvar-se à ultima, e não a primeira.”

Como se pode constatar, o mundialmente reconhecido caso Marbury vs. Madison não foi o primeiro caso de controle de constitucionalidade conhecido. No entanto, doutrinariamente é uníssona a posição que ele é o mais relevante entre todos os precedentes do controle de constitucionalidade difuso, em razão da polêmica política decorrente da decisão.

2.1 O caso Marbury vs. Madison e as polêmicas que circundavam o julgamento

Em meados 1800, nos Estados Unidos, Thomas Jeferson vencera as eleições para a Presidente da República e, além disso, seu partido, o republicano, vencera as eleições legislativas. Entretanto, seu antecessor John Adams com fins de perpetuar sua influência política reorganizou o Poder Judiciário nomeando diversos juízes aliados, reduzindo o número de juízes na Suprema Corte para que novos membros não fossem nomeados. Em 1801, é editada uma lei em que o Presidente John Adams poderia nomear 42 juízes de paz e uma série de juízes federais federalistas (corrente opositora ao governo que viria). Após os nomes indicados terem sido confirmados no último dia de governo, nem todos os juízes conseguiram tomar posse em decorrência da mudança no Executivo (que de pronto revogou a lei), tendo sido o encarregado de nomear esses juízes o Secretário de Estado John Marshall, que também havia sido nomeado para a Corte Suprema, mas prosseguiu no cargo para empossar os juízes de paz, mas não conseguiu fazer por completo, pois alguns juízes de paz não foram investido a tempo da saída do Presidente Adams (BARROSO, 2011, p. 25-7).

Diante desse cenário, Willian Marbury, um dos juízes de paz nomeado, todavia, não empossado, em razão de ser aliado da política anterior, provoca o poder judiciário com a finalidade de tomar posse no cargo. Ocorre que o Congresso novo tinha revogado a lei que reorganizava o judiciário e seus ocupantes foram exonerados. O Congresso ainda atuou para que a Corte Suprema não pudesse se reunir em 1802, sendo o caso de Marbury julgado apenas em 1803. Nesta data, ocorre o julgamento Marbury v. Madison, sendo Marshall, o ex Secretário de Estado, o Presidente da Corte Suprema em razão da nomeação para o cargo feito pelo antigo Presidente. Nesse julgamento, a decisão proferida por Marshall entrou para história do direito constitucional ao fixar as bases do judicial review, além de toda a polêmica que envolvia o caso (BARROSO, 2011, p. 25-7).

Em seu voto, Marshall assentou que cabe revisão judicial dos atos que não estejam em consonância com a Constituição Federal, tendo o juiz, inclusive, jurado defende-la. De modo que, a lei colidente com a Constituição deve ser invalidada (MORAES, 2008, p. 709-10). Sendo a declaração de inconstitucionalidade competência originária da Suprema Corte, sem, contudo, isso estar previsto na Constituição (BITTENCOURT, 1997, p. 12-3).

Nesse sentido, traz-se à colação dizeres de DANTAS (2010, p. 167) que aclaram o assunto:

“[…] como a função de dizer o direito (jurisdictio), inclusive para solucionar eventual conflito de normas, é conferida ao Poder Judiciário, Marshall defendeu que a competência para verificar se uma lei ordinária observa os ditames constitucionais deveria ser exercida por todos os magistrados, no exame dos casos concretos que lhes fossem submetidos a julgamento. Nascia, assim, o controle jurisdicional de constitucionalidade, do tipo difuso.” (grifo do autor)

Com o passar do tempo, essas premissas fixadas por Marshall ganharam dimensão superior sendo conhecida universalmente como o precedente que esboçou “a prevalência dos valores permanentes da Constituição sobre a vontade circunstancial das maiorias” (BARROSO, 2011, p. 32).[2]

Depois desse julgamento célebre o controle de constitucionalidade difuso não sofreu grandes mudanças, afirmando-se nos Estados Unidos e se espraiando para outros países da América, inclusive o Brasil (BASTOS, 2001, p. 407).

Para sintetizar as características do controle difuso de constitucionalidade, toma-se emprestado o ensinamento do professor BUZAID (1958, p.80 apud MEDINA, 2010, p. 80):

“A declaração de inconstitucionalidade pressupõe: a) a propositura da ação; b) exercício do poder jurisdicional; c) o julgamento da questão incidenter tantum, não podendo consistir no objeto principal da causa, nem ser pleiteada por ação direta; d) o judiciário só age por provocação do interessado, jamais ex officio, não decidindo nunca em abstrato, sempre o caso concreto.” (grifos do autor)

Apesar de ser um processo com efeitos entre as partes litigantes, o julgamento torna-se aplicável a todos (erga omnes), quando sua prolação é feita pela Corte Suprema (princípio do stare decisis et quieta nom movere ou, simplesmente stare decisis). Tornando, assim, a lei julgada inválida como “lei morta” (BISC, 2010, p. 80).

3 Nascimento do controle constitucionalidade concentrado como contraponto ao controle de constitucionalidade difuso

O continente europeu desde o século XIX esboçou, de certa maneira, uma preocupação com o controle das leis, como, por exemplo, ocorreu na Espanha onde se tipificou o crime de violação à Constituição (art. 373 da Constituição espanhola de 1812). Já na Alemanha, em sua Constituição de 1971, estava consignada as competências da legislação federal e da estadual, tendo, todavia, a lei federal primazia sobre a estadual e podendo o juiz fazer o controle de legalidade no caso concreto (NETO, 2011, p. 69).

O controle de constitucionalidade chega à Europa apenas no século XX, sendo o caso da Áustria e da Alemanha os mais emblemáticos.

No caso alemão, com a Constituição de Weimar, abriu-se a possibilidade de controle de todas as leis do Estado. Inclusive isto fica evidente com a Sentença de 4 de novembro de 1925 do staatsgerichtshof (Tribunal do estado) da República de Weimar, na qual fica expresso: “[…] há que se reconhecer o direito e o dever do juiz controlar a constitucionalidade das leis do Reich”, mais adiante diz: “[…] os preceitos constitucionais do Reich só podem ser anulado por meio de uma emenda constitucional que se realiza de maneira regular” (NETO, 2011, p. 71).

MORAES (2005, p. 2340), por outro lado, alerta que desde abril de 1921 o Tribunal do Estado da Alemanha já fazia controle de constitucionalidade das leis federais, o que a doutrina alemã entende por embrião do controle jurisdicional de constitucionalidade.

É de se ressaltar que o controle de constitucionalidade tanto na Alemanha como na Áustria vieram a aflorar, em razão de serem Estados federados, com conflito entre as leis federais e as estaduais. O problema austríaco, por exemplo, era semelhante ao alemão no que toca à competência entre as normas, mas no caso de colisão entre leis estaduais com federais resolvia-se a questão com a lei posterior (princípio da lex posterior), seja por meio de órgãos executivos ou órgãos judiciais. Por isso, Kelsen, doutrinador austríaco, pensa então em uma documento (Constituição) que regulasse tanto a lei federal como a lei estadual, e ambas prestassem àquela obediência que seriam julgadas perante um tribunal ad hoc (NETO, 2011, p. 72).

Assim, Constituição austríaca de 1920 introduz, pela primeira vez, o controle de constitucionalidade concentrado com a presença de um Tribunal Constitucional, em oposição ao controle de constitucionalidade estadunidense que era difuso e todo juiz poderia fazer a parametrização da lei com a Constituição (MORAES, 2005, p. 2339-40).

KELSEN (1985, p. 288-90 apud  MORAES, p. 2339) argumentava que:

“Se a Constituição conferisse a toda e qualquer pessoa competência para decidir esta questão, dificilmente poderia surgir uma lei que vinculasse os súditos dos Direitos e órgãos jurídicos. Devendo evitar-se uma tal situação, a Constituição apenas pode conferir competência para tal a um determinado órgão jurídico.”

Em 1929, Kelsen, por meio de trabalhos legislativos, consegue inserir na competência da Corte Constitucional da Áustria, a possibilidade de conhecimento da inconstitucionalidade de dispositivos de lei por cortes não constitucional, com a remessa dos autos ao órgão competente para conhecer da inconstitucionalidade, doutrinam MENDES; COELHO e BRANCO (2009, p. 1057):

“Especialmente a Emenda Constitucional de 7-12-1929 introduziu mudanças substanciais no modelo de controle de constitucionalidade formulado na Constituição austríaca de 1920. Passou-se a admitir que o Supremo Tribunal de Justiça (Oberster Gerichtshof) e o Tribunal de Justiça Administrativa (Verwaltungsgerichtshof) levem a controvérsia constitucional concreta perante a Corte Constitucional. Rompe-se com o monopólio de controle da Corte Constitucional, passando aqueles órgãos judiciais a ter um juízo provisório e negativo sobre a matéria. Essa tendência seria reforçada posteriormente com a adoção de modelo semelhante na Alemanha, Itália e Espanha.” (grifos do autor)

KELSEN (apud NETO, 2011, p. 73-6) ainda dizia que entre a lei e a sentença não tinham diferenças qualitativas, ambas eram produção do direito, inclusive quando feitas em jurisdição constitucional. Esses argumentos inserem-se na tese defendida pelo austríaco que a jurisdição faz norma jurídica individual, pois está a serviço de um caso concreto, ao contrário da lei que é geral e abstrata como a jurisdição constitucional que quando anula uma lei tem o mesmo caráter de generalidade próprio de um legislador positivo, só que no sentido contrário deste, sendo conhecido como legislador negativo.

MENDES (2006, p. 217) ainda alerta que Kelsen proferiu numa conferência em 1928, perante a Associação dos Professores Alemães de Direito Público, palestra argumentando sobre a figura do Advogado da Constituição, in verbis:

“Um instituto novo, mas digno de ser experimentado seria a criação de um Advogado da Constituição (verfassunsanwalt) perante a Corte Constitucional, que – em analogia com promotor público no processo penal – instaurasse de ofício o controle de norma em relação aos atos que reputasse institucionais. Evidentemente, esse advogado da Constituição deveria ser dotado de todas as garantias de independência tanto em face do Governo como em face do Parlamento.”

Esse ensinamento, mais tarde se tornou realidade em vários países, como no Brasil: “[…] o legislador brasileiro acabou, um tanto casualmente, por positivar idéia  de um  advogado da Constituição  (Verfassungsanwalt) (CF 1967/69, art. 119, I, l)” (MENDES, 2006, p. 37).

3.1 Premissas do controle de constitucionalidade concentrado defendidas por Kelsen

A forma proposta de controle de constitucionalidade baseava-se em um tribunal ad hoc especializado em causas constitucionais que decidiria com eficácia erga omnes e vinculando os demais órgãos públicos.

O Tribunal Constitucional federal criado em 1920 na Áustria era autônomo e não decidia questões de fato, restringia sua atuação às questões jurídico-constitucionais. As demandas constitucionais eram realizadas através de subsunção entre o parâmetro e a lei impugnada. Assim, aferia-se a compatibilidade vertical.

Kelsen afirmava que o controle de constitucionalidade era função constitucional, não judicial, pois se caracterizava por ser um legislador negativo (BARROSO, 2011, p. 40-3). Assim, como o Tribunal Constitucional teria o monopólio do controle de constitucionalidade, restava tão somente aos juízes a reprodução das decisões do órgão competente quando o assunto era verificar a compatibilidade das leis com o Texto Maior.

A intenção de Kelsen naquela época era limitar os poderes dos juízes, a fim de evitar “governo dos juízes” que não seguiam fielmente a lei, em razão da “Escola livre do direito e da Jurisprudência livre”, que estavam em evidencia à época e influenciou muitos magistrados (BARROSO, 2011, p. 41-2).

A Escola do Direito Livre consistia, em última análise, o voluntarismo da decisão, o aplicador a fim de alcançar o direito justo baseava-se em fatores axiológicos, emocionais e teleológicos, afastando-se da lógica formal da lei, alegando que o direito não se confundia com a lei. Tal corrente era proveniente da esquerda política e acadêmica que incitava a liberdade do juiz diante da lei e, ainda, fiscalizava o Parlamento (NETO, 2011, p. 78).

Kelsen, à frente da Escola de Viena, engendra uma teoria (positivista) que a um só tempo controla o juiz e o legislador. Concebe-se então que tanto o juiz como o legislador estariam vinculados à lei, sendo esta vinculada à Constituição. Cabendo ao Tribunal Constitucional, independente e não vinculado ao poder judiciário, fazer o controle de constitucionalidade das leis (NETO, 2011, p. 79).

Nesse sentido, KELSEN (apud NETO, 2011, p. 79) dissertou o seguinte:

“A Constituição está acima da legislação porque define o procedimento legislativo e, em certa medida também o conteúdo das leis; do mesmo modo que a legislação está acima da assim-chamada execução (jurisdição, administração), eis que regula a formação e – em medida bastante ampla – o conteúdo dos respectivos atos.”

O ponto culminante da teoria de Kelsen reside na exclusão do conhecimento dos fatos na análise da constitucionalidade das leis. A aferição ocorreria sempre em abstrato, verifica-se a compatibilidade lógica entre dois enunciados normativos, independente da existência de um caso concreto (MORAES, 2008, p. 730). Contudo, para chegar a esse juízo acerca das leis, necessitava-se de um expediente processual que era o ação/recurso direto interponível pelos legitimados a provocarem o processo objetivo, como, por exemplo, o recurso de amparo na Itália e o verfassungsbeschwerde na Alemanha (MORAES, 2008, p. 699-700).

Desse processo, sempre se produziria, caso a lei fosse julgada inconstitucional, uma decisão de efeitos ex nunc. Kelsen admitia até mesmo uma decisão pro futuro.

Em 1929, a Constituição austríaca sofre nova mudança inspirada novamente pelas teses de Kelsen. Verificou-se que se necessitava a ampliação de competência do Tribunal Constitucional para receber questões incidentais de (in)constitucionalidade, enviadas por juízos ordinários para se verificar a compatibilidade, em abstrato, do texto com a norma constitucional, bem como para conhecer ex offício de eventuais litígios de sua alçada (NETO, 2011, p. 81-2).

Assim, pode-se dizer que houve a implantação do controle difuso de constitucionalidade, pois como ensina BACHOF (1994. p. 75, apud MORAES, 2008, p. 700), a verificação da inconstitucionalidade é aferida no juízo ordinário e, assim, entendendo remete a prejudicial ao tribunal competente.

A ampliação da competência do Tribunal Constitucional fez dos órgãos judiciais coparticipante do processo de proteção à Constituição, de forma que só prosseguiriam no julgamento se a norma aplicável ao caso concreto fosse constitucional, como bem ressalta MENDES; COELHO E BRANCO (2009, p. 1057):

“Passou-se a admitir que o Supremo Tribunal de Justiça (Oberster Gerichtshof) e o Tribunal de Justiça Administrativa (Verwaltungsgerichtshof) elevem a controvérsia constitucional concreta perante a Corte Constitucional. Rompe-se com o monopólio de controle da Corte Constitucional, passando aqueles órgãos judiciais a ter um juízo provisório e negativo sobre a matéria. Essa tendência seria reforçada posteriormente com a adoção de modelo semelhante na Alemanha, Itália e Espanha.”

“Em verdade, tal sistema tornou o juiz ou tribunal um ativo participante do controle de constitucionalidade, pelo menos na condição de órgão incumbido da provocação. Tal aspecto acaba por mitigar a separação entre os dois sistemas básicos de controle.”

MORAES (2008, p. 705) ainda traz o fato de que pela falta de um dispositivo constitucional de controle de maioria, foi possível a criação de um Estado totalitário na Alemanha sem a quebra da legalidade, o nazismo; e Kelsen viu toda sua teoria desmoronar quando do encerramento do Tribunal Constitucional na Áustria em 1933 (NETO, 2011, p. 82).

4 Surgimento do controle de constitucionalidade no Brasil

No Brasil, somente se foi ter notícia do controle de constitucionalidade com proclamação da República. Antes disso, no império, tinha-se a soberania do parlamento conjugada com o poder moderador (MENDES; COELHO e BRANCO, 2009, p. 1083).

Mesmo antes da Constituição Federal de 1891 que contempla o controle de constitucionalidade difuso, já era possível verificar tanto na Constituição provisória de 1890 (art. 158 §1º, a e b), bem como no Decreto nº. 848 de 11/10/1890 (art. 3º) que dizia que o magistrado federal poderia fazer o controle de constitucionalidade no caso concreto (MENDES; COELHO e BRANCO, 2009, p. 1084-5).

Nesse sentido, os ensinamentos de MENDES; COELHO e BRANCO (2009, p. 1085-6).

“A Constituição de 1891 incorporou essas disposições, reconhecendo a competência do Supremo Tribunal Federal para rever as sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, quando se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal fosse contra ela, ou quando se contestasse a validade de leis ou de atos dos governos locais, em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas (art. 59, § l e , a e b). […] A Lei de n. 221, de 20-11-1894, veio a explicitar, ainda mais, o sistema judicial de controle de Constitucionalidade, consagrando no art. 13, § 10, a seguinte cláusula: “Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição.”

Na Constituição de 1934 introduziram-se significativas alterações no controle de constitucionalidade. Manteve-se a base criada em 1890 a 1894 e incorporou-se a clausula de reserva de plenário em que os tribunais somente poderiam declarar a inconstitucionalidade de uma lei em quórum de maioria absoluta com a finalidade de evitar decisões de maiorias eventuais, o que se traduz em segurança jurídica.

Ademais, em razão de não se ter precedentes vinculantes como no judicial review estadunidense, construiu-se a fórmula do Senado cuja competência seria dar suspensão a lei, no todo ou em parte, declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário com eficácia erga omnes (art. 91, IV, e 96 da Constituição de 1934). Esta última criação corrigia falta de eficácia dos provimentos judiciais que se restringiam as parte envolvidas no litígio (MENDES; COELHO e BRANCO, 2009, p. 1086-7).

Outro ponto em que se avançou no Texto de 1934 foi no que se refere às intervenções federais que, agora, necessitava de lei interventiva pelo Senado e posterior análise de constitucionalidade pela Corte Suprema[3]. Tal norma tinha o intuito de preservar os entes federativos que sofriam constantes intervenções federais.

Não obstante, os avanços conquistados com a Constituição de 1934, eles não tiveram um grande período de vigência, em virtude do golpe de estado dado por Getúlio Vargas e a instalação do Estado Novo, tendo sido outorgada a Constituição Polaca.

A Constituição de 1937, também conhecida como Constituição Polaca, por se basear na Constituição polonesa, tinha um instrumento peculiar de controle do controle de constitucionalidade, consistia em após o Judiciário julgar determinada questão inconstitucional, o Presidente devolvia a matéria ao Legislativo que poderia derrubar a decisão proferida pelo tribunal, conforme se pode ver pelo seu art. 95, parágrafo único.[4]

Sabiamente, TAVARES (2012, p. 298-99) chama isso de: “reconstitucionalização de lei inconstitucional” para em seguida dizer: “passou a ser constitucional a existência no ordenamento jurídico de uma lei contrária à Constituição, com vigência plena e imunidade, contra sua invalidação pelo Judiciário”, o que contempla os interesses políticos momentâneos. Lembram ainda, ARAÚJO e NUNES (2009, p. 92) que decretado o estado de emergência, o Judiciário sequer poderia fazer controle dos atos governamentais.

Já na Constituição de 1946, a inovação ocorre com a Emenda Constitucional nº. 16 de 1965 que instituiu a representação de inconstitucionalidade de exclusividade do Procurador Geral da República e permaneceu nas Constituição de 1967 da ditadura.

Quanto a esse fato, é interessante a passagem da doutrina de MENDES (2006, p. 222-8) que lembra que em 1970 foi expedido o Decreto nº. 1070, legitimando a censura prévia de jornais, livros e periódicos. Sendo o MDB, único partido de oposição, leva ao Procurador Geral da República pedido no sentido de representar a inconstitucionalidade do Decreto. Contudo, o Procurador entendeu por não levar o pleito ao Supremo. Irresignado, o MDB leva a questão ao Supremo ao fundamento de usurpação de competência da Corte Constitucional em cumprir sua função institucional.

Nesse julgamento ficou assentado que o Procurador Geral da República tem discricionariedade de ir a juízo ou não, não sendo veículo para eventual pretensão de inconstitucionalidade. O que causou um grande desconforto político e jurídico na época.

Prosseguindo na análise dos instrumentos de controle de constitucionalidade ao longo da história brasileira, TAVARES (2012, p. 298-99) menciona ainda a Emenda Constitucional nº. 7 de 1977 que modificou a Constituição de 1967 dando competência ao Supremo Tribunal Federal para nos casos de representação de inconstitucionalidade poder-se dar interpretação para a lei ou ato normativo, bem como criou os órgãos especiais dos Tribunais de Justiça para reconhecimento de inconstitucionalidade.

A Constituição de 1988, por sua vez, contemplou todos os avanços realizados ao longo da história das constituições brasileiras. Estão presentes no texto constitucional vigente tanto o controle difuso de constitucionalidade praticado por todos os órgãos do Poder Judiciário quanto o controle concentrado de inconstitucionalidade a ser realizado pelo Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal.

Em razão da experiência brasileira quanto ao controle de constitucionalidade concentrado, ampliou-se o rol de legitimados para provocar os órgãos constitucionais para se desincumbirem de seus desideratos, ao contrário do que ocorria quando apenas o Procurador Geral da República detinha a prerrogativa exclusiva.

Outras ações constitucionais foram criadas como o Mandado de Injunção, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão, mas apesar de tudo isso, o acontecimento mais importante dessa nova Constituição quanto ao controle de constitucionalidade está no fato de aproximar o controle de difuso do concretado, o que se passou a chamar de abstrativização do controle difuso que é o aproveitamento de elementos do controle difuso (todo juiz fará o controle das leis) e do controle concentrado (efeito vinculante e erga omnes por um órgão de cúpula) com um tendência de maior abstração das decisões constitucionais, assim, ao invés de se resolver o caso das parte, resolve-se a questão constitucional de fundo e amplia-se os efeitos dessa decisão a todos cidadãos.

Conclusão

O controle de constitucionalidade é um dos principais temas do direito constitucional, pois discute se uma lei deve ou não ser aplicada, o que é essencial em uma democracia. Assim, conhecer a experiência internacional ao longo da história possibilita uma visão 360º acerca do assunto, bem como toda a ideologia subjacente ao tema.

Nessa senda, é possível verificar, por exemplo, que se optou pelo controle difuso ou concentrado, a depender da confiança depositado nos juízes. No caso da Inglaterra os juízes poderiam fazer controle difuso, pois a burguesia queria a limitação do poder monárquico e tal sistema foi levado para sua colônia, os EUA.

Já na Europa continental, a ideia era frear a atuação dos juízes, pois a classe constituía um problema ao regime posto. Kelsen notando isso, faz com que o controle de constitucionalidade seja uma manifestação política centralizada e todos os juízes vinculados a esta posição tomada pela corte constitucional.

O Brasil, por sua vez, convive tanto com o sistema americano na maior parte de sua história sem, contudo, ter uma sistema de precedentes vinculantes, o que gerou uma série de incompatibilidade acerca das decisões constitucionais. O que era constitucional em um estado poderia não o ser em outro. Assim, foi-se ao longo do tempo concedendo-se efeito vinculante as decisões constitucionais de um órgão superior, inspirado no modelo kelseniano.

Destarte, verificou-se que a depender do modelo de controle de constitucionalidade adotado, ter-se-á um juiz mais ou menos criativo/discricionário, e tal fato não é um dogmatismo despido de ideologia. Demonstrou-se que a depender da posição estratégica que ocupa o judiciário, ele pode ser utilizado ou para a manutenção do sistema posto ou para a ruptura dele.

 

Referencias
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BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle de Constitucionalidade das Leis. Atualizado por José Aguiar Dias. 2 ed. Brasília: Ministério da Justiça, 1997.
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Notas:
[1] Em sentido contrário, ver: BITTENCOURT (1997. p. 9):  “O controle jurisdicional da validade das leis em face da Constituição costuma ser apontada como decorrência necessária dos sistemas de Constituição rígida. Essa afirmação, porém, não encontra eco na realidade, porque em vários países, particularmente na Europa continental, que possuem Constituições classificadas como pertencentes àquele grupo, não se reconhece ao Poder Judiciário tal faculdade.”
[2] Em sentido contrário ao proclamado por Marshall, importante o ensinamento de BITTENCOURT (1997, p. 14): “[…] foi o próprio Marshall – político sagaz e astuto – que procurou negociá-la [doutrina do controle de constitucionalidade calcado na supremacia da Constituição] em troca de maiores prerrogativas para a função judicante, gravemente ameaçada em face do impeachment intentado contra Justice Samuel Chase, cujo partidarismo insopitável provocara grande reação. Marshall, sentido indiretamente ameaçada tôda facção federalista da Côrte, pela rapidez com que o processo era levado adiante, pleiteou a criação de um tribunal dentro do Congresso, fora e acima das Côrtes regulares, abdicando, assim, da doutrina da Supremacia do Judiciário. Todavia, tendo sido o impeachment rejeitado, por pequena maioria, calou-se Marshall, e sua doutrina permanece íntegra”.
[3] A Alta Corte em 1934 passou a ser chamada de Corte Suprema. Ver: SLAIBI, Nagib Filho. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 168-9,
[4] “Art. 95 […] Parágrafo único – No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.”

Informações Sobre o Autor

Ricardo Guilherme Vera Cruz Cardoso

Bacharel em direito pela Universidade Federal do Rio Grande pós-graduando em direito constitucional pela Anhanguera/Uniderp, Advogado militante


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Equipe Âmbito Jurídico

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