Resumo: O presente estudo faz uma análise de uma nova situação apresentada ao Judiciário Trabalhista. Trata-se da verificação da viabilidade de saque do FGTS, através de culpa recíproca encetada mediante convenção coletiva autônoma, com negociação de 20% da multa e não pagamento do aviso prévio. O trabalho estabelece um cotejo entre a flexibilização coletiva e os princípios limitadores da autonomia coletiva no Direito do Trabalho, além da análise das possibilidades de saque do fundo, aliada à atuação de seu órgão gestor. Análise do Princípio da Dignidade Humana sob os prismas individual e coletivo. Finalmente, verifica-se o conceito legal e doutrinário para a configuração de culpa recíproca.
Palavras-chave: FGTS – culpa recíproca – Convenção coletiva – Indisponibilidade – Flexibilização
Abstract: The present study makes an analysis of a new situation presented to the Judiciary. One is about the verification of the FGTS´s draft viability, settled through “reciprocal guilt” in independent Collective Agreement, with negotiation of 20% of the fine and without the notice to quit. The study establishes a confrontation between the collective flexibilization and the limiter principles of the collective autonomy in Labor Law. Furthermore, establishes an analysis of the FGTS´s draft possibilities, combined to the performance of its Managing Agency. Analysis of the Human Dignity´s principle under individual and collective´s views. Finally, the legal and doctrinal concept for the configuration of reciprocal guilt is verified.
Keywords: FGTS – Reciprocal guilt – Collective Agreement – Unavailableness – Flexibilization
Sumário: 1. Introdução – 2. Ausência de previsão legal para o levantamento e inobservância de direitos de terceiros; órgão gestor do FGTS – 2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana sob os prismas individual e coletivo – análise da possibilidade de saque – 3. Presunção de culpa recíproca, jus variandi e princípio da alteridade – 4. Sopesamento entre princípios da negociação coletiva e indisponibilidade de direitos fundamentais – 5. Conclusão – Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O Judiciário Trabalhista vem enfrentando uma questão nova no que pertine à possibilidade de levantamento do numerário do FGTS. Sindicatos de empresas prestadoras de serviços terceirizados estão encetando convenções coletivas com os sindicatos profissionais no sentido de estabelecer uma nova hipótese de saque. Trata-se de estabelecimento de “culpa recíproca” via negociação coletiva. De pronto, cabe frisar que qualquer discussão acerca da competência para tratar de tais feitos está solapada pela incidência das disposições da EC-45/04, que alteraram o artigo 114 da CRFB-88, bem como pela incidência do artigo 625 da CLT[1]. De fato, a competência, nestes casos, é da J. Especializada.
O caso é de sindicatos de empresas terceirizadoras de mão-de-obra que, ao resultarem vencidas em procedimento licitatório para serviços em órgãos da Administração Pública, resolveram encetar convenção coletiva com o sindicato profissional e criar uma hipótese “culpa recíproca, via negociação coletiva”. Tal disposição prevê os efeitos de depósito de multa de apenas 20% do FGTS aos empregados e não pagamento de aviso prévio. Tais conseqüências ocorreriam na hipótese dos trabalhadores serem absorvidos por outra empresa, vencedora do procedimento licitatório.
Em outras palavras, a cláusula coletiva convenciona que as resilições unilaterais dos contratos de trabalho seriam registradas como casos de rescisão por culpa recíproca, implicando no não pagamento do aviso-prévio e saque do numerário do FGTS, com multa de apenas 20%, além das demais conseqüências previstas na súmula 14 do TST.
A situação vem se repetindo com alguma freqüência, e traz para a análise o sopesamento entre princípios norteadores da produção jurídica oriunda de fontes autônomas e heterônomas; entre flexibilização trabalhista, os limites jurídicos de ordem pública e os patamares mínimos civilizatórios que devem ser observados em situações como a presente. Ademais, mostra-se necessária a verificação se a situação se amolda ao taxativo rol de possibilidades de movimentação da conta do FGTS.
Analisa-se, no estudo, a viabilidade e eficácia jurídica de tal cláusula, tanto em relação aos empregados demitidos, como em relação ao órgão gestor do FGTS – a CEF.
2. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL PARA O LEVANTAMENTO E INOBSERVÂNCIA DE DIREITOS DE TERCEIROS – ÓRGÃO GESTOR DO FGTS
Inicialmente, é necessário verificar que o artigo 20 da lei 8036-90, reguladora do FGTS, não prevê o saque nestas condições (culpa recíproca decorrente de negociação coletiva). A culpa recíproca decorre, como se irá demonstrar, de uma análise fática, para conseqüente subsunção normativa e não o contrário.
De acordo com a professora Vólia Bonfim Cassar, a culpa recíproca detém quatro elementos caracterizadores, quais sejam: a) duas faltas graves; b) proporcionalidade entre as faltas; c) atualidade ou contemporaneidade; d) nexo de causalidade. Com relação ao primeiro requisito, diz a professora, na fl. 1137 de sua obra: “Para a caracterização da culpa recíproca é necessário que o empregado pratique uma falta gravíssima a ponto de, por si só, justificar o rompimento do contrato e que o empregador também tenha praticado outra falta gravíssima capaz de tornar insuportável a continuidade do contrato. Logo, são duas faltas graves, uma praticada por cada um.”.
Sob este prisma, percebe-se que, faticamente, o requisito exigido pela doutrina não existe nos casos em análise, na medida em que a culpa recíproca decorre de uma subsunção de fatos à norma e não o contrário. A situação fática denota uma resilição unilateral do contrato, feita pelas empregadoras, derrotadas no procedimento licitatório. Os defensores da possibilidade da cláusula em debate advogam a tese que a viabilidade da disposição decorreria do disposto no artigo 7º, XXVI da CRFB-88, aliado aos princípios da Criatividade Jurídica das Negociações Coletivas, Adequação Setorial Negociada e Teoria do Conglobamento.
De se observar que o órgão gestor do FTGS, CEF, não participou do instrumento coletivo, sendo que as negociações coletivas não podem se imiscuir em direitos de terceiros. O FGTS, previsto constitucionalmente no art. 7º, III, está inserido entre os direitos sociais básicos e fundamentais dos trabalhadores e foi instituído com funções benéficas à toda sociedade, entre elas, a utilização do numerário para infra-estrutura, habitação e saneamento. Além disto, o intuito primordial foi o amparo do trabalhador em seu momento mais delicado, qual seja, o momento da perda do emprego. Neste diapasão, o legislador infraconstitucional estabeleceu a Caixa Economica Federal – CEF, como órgão gestor do Fundo. A CEF atua por determinação legal – artigo 7º da Lei nº 8.036/90 – sendo responsável, entre outras atribuições que lhe são conferidas, por centralizar os recursos do FGTS, manter e controlar as contas vinculadas, bem como por emitir, quando for o caso, o Certificado de Regularização do FGTS.
O FGTS, como entidade despersonalizada, além dos numerários oriundos dos próprios depósitos mensais feitos pelas empresas, conta com outras rendas, com o intuito de atender todas as suas funções legalmente estabelecidas. Exemplo disto é a contribuição social de 10% do valor da conta vinculada, revertida a favor do Fundo, no caso de dispensa imotivada do trabalhador, prevista no artigo 1º da Lei Complementar nº 110-01. A situação presente que, faticamente, configuraria uma dispensa imotivada, poderia, segundo o instrumento coletivo, transmudar-se para culpa recíproca. Estabelece-se, portanto, que, além de afetar os direitos dos trabalhadores, a prática pode afetar direitos de terceiros, uma vez que o patrimônio do FGTS se reverte em benefício de toda a sociedade, daí a necessidade de gestão da CEF.
A importância do FGTS, portanto, transpõe os limites do interesse de empregados e empregadores, sendo o mesmo relevante para toda a sociedade, porquanto se volta para o financiamento de projetos essenciais ao desenvolvimento social, mormente aqueles relativos ao saneamento básico, infra-estrutura e à habitação. Nesse contexto, indubitável que o órgão gestor também tem interesse no pleito, em obediência aos termos da Lei nº 8.036/90, diploma legal que rege o fundo de garantia.
Assim, entende-se que o estabelecimento da referida cláusula coletiva estabelece uma obrigação para terceiros, no caso a CEF, em liberar o numerário do FGTS fora das hipóteses legais e contra os interesses do próprio fundo, observado, neste particular, o artigo 1º, da LC 110-01 (contribuição social de 10% em caso de dispensa imotivada). Disposição que extrapola os limites das entidades convenentes vai contra o entendimento do artigo 611, parágrafo 1º da CLT c/c a súmula 374 do TST, em aplicação analógica. Frise-se que, nesta situação, de estipulação de promessa de fato de terceiro, eventual negativa da CEF em autorizar o saque, uma vez que fora das hipóteses legais, implica na responsabilização dos sindicatos convenentes pela invalidade da cláusula[2], na forma do artigo 439 do NCC.
Com efeito, não se vislumbra a possibilidade de que, por meio de acordo ou convenção coletiva, conceitos legais estabelecidos possam ser alterados ou ampliados, especialmente no que tange aos critérios legalmente previstos para a movimentação da conta vinculada. Isso porque, dada a importância do numerário para o trabalhador e para a sociedade, todas as hipóteses de saque são autorizadas taxativamente na Lei. Entre elas não está uma “culpa recíproca” criada em negociação e não comprovada pela Justiça do Trabalho. Além disto, não se vislumbra a possibilidade de se estabelecer obrigações, através de instrumento coletivo, para terceiros.
2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOB OS PRISMAS INDIVIDUAL E COLETIVO – ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE SAQUE
Apesar de nos posicionarmos acerca da taxatividade do rol do artigo 20 da lei 8036-90, que trata das hipóteses de saque do FGTS, é necessária a análise de eventuais possibilidades de saque fora das previsões legais, analisando, como pano de fundo, o caso concreto.
O doutor Fabiano Jantalia, em sua obra FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço traz interessante discussão acerca da possibilidade de saque do numerário do FGTS, fora das hipóteses legais. O que se discute seria que o trabalhador, eventualmente, poderia fazer o saque do FGTS, fora das hipóteses legais, com fincas a proteger a sua própria dignidade, em um momento de necessidade financeira. Um exemplo disto seriam as doenças degenerativas não previstas no rol do artigo 20 da lei de regência, como o Mal de Parkinson.
Em hipóteses como esta, o STJ já tem julgados[3] prevendo a possibilidade de saque do numerário, mesmo fora das hipóteses legais, como um meio de garantia à dignidade humana do fundista, que se encontra fragilizado por uma doença de imensa gravidade.
Situações como esta realmente retratam a possibilidade de interpretação acerca da norma, apesar de lembrarmos, mais uma vez, que, ao gestor do Fundo, por exercer um munus público, não lhe cabe fazer interpretações extensivas. Deve, como administrador público, aplicar, tão somente, o previsto em lei. Todavia, para que a questão seja solucionada, uma vez apresentada ao Judiciário, o susomencionado autor faz o cotejo entre a dignidade humana em sua dimensão individual e coletiva. Com efeito: “Dentro dessa linha, a dignidade humana tem contornos individuais e a análise de sua concretização leva em contra apenas a situação ou as necessidades pessoais e fundamentais do titular da conta vinculada, não cogitando de qualquer aspecto externo a ele, como uma eventual repercussão do FGTS. A dimensão individual da dignidade, então, vai privilegiar linhas de interpretação da Lei n. 8036-90 que exaltem o direito do fundista, como único detentor de direitos sobre aqueles recursos, partindo do pressuposto de que a conta vinculada é patrimônio do trabalhador. Por outro lado, se examinando o FGTS à luz da ampla destinação social conferida aos seus recursos, identifica-se uma espécie de dimensão coletiva da dignidade humana, expressada através do provimento de condições básicas de existência aos cidadãos que, direta ou indiretamente, são beneficiados com investimentos em saneamento básico, habitação e infra-estrutura urbana, tendo acesso a dignas condições de vida. Essa dimensão está associada à visão do FGTS como fonte de recursos para investimento em habitação popular, saneamento básico e infra-estrutura urbana, afigurando-se como instrumento de fomento, por destinar crédito a setores e atividades geradoras de emprego e bem estar social. (…) No caso do Fundo de Garantia, a escolha majoritária firmada pelo Estado brasileiro foi no sentido de se valer de seus recursos para a garantia da indenização por tempo de serviço do trabalhador e, subsidiariamente, financiar o desenvolvimento urbano. Desta destinação específica, e da prerrogativa constitucionalmente assegurada ao legislador ordinário de conformar os direitos sociais constitucionalmente assegurados – preservando-lhe, por certo, sua efetividade – é que resulta a legitimidade da restrição, imposta pela própria Lei n. 8.036/90, ao saque das contas vinculadas”. (JANTALIA, Fabiano. Op. Cit., ps. 187, 191 e 192).
Trazendo a reflexão para o caso concreto analisado, percebe-se que a dignidade humana, tanto em sua dimensão individual, como na coletiva, impedem a possibilidade de saque, por culpa recíproca encetada via negociação coletiva. A um porque o fundista não se encontra em situação extrema, que possibilitaria uma interpretação extensiva dos ditames legais; a dois porque há uma dimensão coletiva da dignidade humana em xeque, eis que o Fundo detém funções sociais que garantem à coletividade condições dignas de vida, impingindo o respeito à taxatividade legal; e, finalmente, porque o recolhimento a menor da multa (20%) em uma situação em que, faticamente, não há culpa recíproca, viola a própria dignidade humana do fundista que, em um posterior momento de real necessidade, encontrar-se-á privado ao acesso da maior parte de seu numerário em conta vinculada. O procedimento trata de verdadeira renúncia, eis que o direito é indisponível e certo, tanto pelo aspecto individual, como pelo coletivo (sociedade), como também pela ótica do Administrador Público que gere o Fundo (CEF).
Compreende-se que o desejo a benefício imediato pode viciar a vontade da categoria profissional, ansiosa por um acesso precoce ao numerário, sem o devido sopesamento com necessidades futuras, daí a obrigatoriedade de extrema cautela por parte do intérprete na análise do caso concreto. Neste sentido, ensina Plá Rodriguez: “Em geral, admite-se a transação e rechaça-se a renúncia. Há duas razões fundamentais. A primeira, de caráter teórico, porque a transação supõe a troca de um direito litigioso ou duvidoso por um benefício concreto e certo, enquanto a renúncia supõe simplesmente a privação de um direito certo. A segunda, de caráter prático, porque o fato de a transação ser bilateral não significa sacrifício gratuito de qualquer direito, vez que, ao contrário de uma concessão, sempre se obtém alguma vantagem ou benefício. Mas isto obriga a examinar cuidadosamente o conteúdo de cada acordo para descobrir se ele não se limita a dissimular uma ou mais renúncias, tentação que muitas vezes os trabalhadores enfrentam, desejosos de tornar efetivo, de imediato um crédito que o empregador se nega a pagar integralmente, com ou sem fundamentos.” (Plá Rodriguez, Op. Cit., p. 177).
3. PRESUNÇÃO DE CULPA RECÍPROCA, JUS VARIANDI E PRINCÌPIO DA ALTERIDADE
O FGTS, conforme esclarecido, tem importância que vai além da relação de emprego entre patrões e trabalhadores, beneficiando toda a sociedade. Constitui direito social básico/fundamental previsto na CRFB-88. Assim, necessário foi o estabelecimento de um rol taxativo para as hipóteses de saque dos numerários, na forma do artigo 20 da lei 8036-90.
Esse diploma prevê, como uma das hipóteses de saque, a culpa recíproca, com multa de 20%. Todavia, a verificação de tal culpa recíproca depende de confirmação do fato pela Justiça do Trabalho, como efeito de incidência do parágrafo 2º do artigo 18 do mesmo diploma legal.
A culpa recíproca não pode ser presumida, nem fictícia, sendo que a própria lei exige o seu reconhecimento em ação judicial própria. Diz o parágrafo segundo do artigo 18 da lei 8036-90
“Art. 18. Ocorrendo rescisão do contrato de trabalho, por parte do empregador, ficará este obrigado a depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS os valores relativos aos depósitos referentes ao mês da rescisão e ao imediatamente anterior, que ainda não houver sido recolhido, sem prejuízo das cominações legais.
§ 1º Na hipótese de despedida pelo empregador sem justa causa, depositará este, na conta vinculada do trabalhador no FGTS, importância igual a quarenta por cento do montante de todos os depósitos realizados na conta vinculada durante a vigência do contrato de trabalho, atualizados monetariamente e acrescidos dos respectivos juros.
§ 2º Quando ocorrer despedida por culpa recíproca ou força maior, reconhecida pela Justiça do Trabalho, o percentual de que trata o § 1º será de 20 (vinte) por cento.”
Igual entendimento poder-se-ia inferir do artigo 484 da CLT, que remete o reconhecimento da culpa recíproca aos Tribunais do Trabalho.
Assim, necessária a análise do instituto da culpa recíproca, sendo que, no caso, vem o socorro do magistério de Valentim Carrion, em seus Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, Editora Saraiva, 33ª edição, fls.390-391, in verbis:
“A culpa recíproca possui na doutrina uma conceituação muito rigorosa, tornando difícil, quando não impossível, a configuração do caso concreto. (…)São elementos caracterizadores: a) a existência de duas justas causas; uma do empregado, outra do empregador; as duas graves e suficientes por si sós serem causa da rescisão (Maranhão, Instituições, v.1, p.507; também Lamarca, Manual, p. 45); não se trata de duas faltas leves que pela concomitância se transformem em uma grave(idem); duas relações de causa e efeito; a segunda falta, que é causa da rescisão do contrato, é por sua vez efeito da culpa cometida pela outra parte (idem); c) contemporaniedade (Giglio, Justa Causa) e não simultaneidade, que seria exagero; d) uma certa proporcionalidade entre as faltas. (…). Veja-se o mestre Lamarca, que quis filtrar e vivificar o que havia no campo da justa causa: reproduziu dez casos onde os tribunais tipificaram a culpa recíproca; aceita apenas uma das hipóteses como sendo culpa recíproca e ainda assim o que consistiu “troca de ofensas” entre empregado e empregador (Manual de Justas Causas, 51-S). Haveria que reconhecer que é exatamente assim que a primeira falta rescindiria o contrato e que a segunda, provocada pela primeira, também o fez.”
Nesta esteira, observa-se que a doutrina não corrobora o fato em análise como culpa recíproca eis que, primordialmente, não há atitudes faltosas por parte dos empregados; Tais atitudes, segundo Carrion, são aquelas caracterizadas no artigo 482 (justas causas) da CLT o que, indubitavelmente, inocorre no caso. Seriam necessárias duas justas causas, uma por parte dos empregadores e outra por parte dos empregados. A elasticidade na interpretação do rol do artigo 482 não admite ilações muito extensivas, uma vez que as normas sancionatórias não podem ser alargadas para causar prejuízo. A rigor, também não haveria como capitular no artigo 483 da CLT a atitude dos empregadores.
O que se observa, no caso, é a atuação dos empregadores, no exercício de seu jus variandi, para a terminação dos contratos de trabalho. É certo que o término dos contratos de trabalho deveu-se à ausência de êxito de uma determinada empresa em procedimento licitatório. Todavia, o ônus/risco do insucesso da atividade empresarial é do empregador, segundo informa o Princípio da Alteridade. Insucesso na atividade empresarial, por derrota em procedimento licitatório caracteriza, quando muito, fortuito interno, inerente à atividade empresarial. Este tipo de situação, portanto, não é excludente da responsabilidade patronal. O que se percebe é uma tentativa de divisão de responsabilidades com o empregado, o quê, por via transversa, constituiria uma verdadeira cláusula star del credere, a desfavor dos trabalhadores, figura esta rechaçada pelo ordenamento jurídico.
Ademais, a figura da culpa recíproca deve ser estabelecida pela Justiça do Trabalho, por força dos dispositivos legais susomencionados.
Nos casos analisados, não há qualquer reconhecimento, pela Justiça do Trabalho, de culpa recíproca. Tal situação foi verdadeiramente criada para afetar direitos/deveres de terceiros, uma vez que a CEF teria que responder por um dever criado em uma negociação coletiva da qual não participou. Mais grave, direitos de toda a sociedade estariam sendo violados, na medida em que estar-se-ia criando nova hipótese, não prevista em lei, de saque deste numerário, que é público. Frise-se que entendemos ser a lei é taxativa no que tange às hipóteses de saque ao FGTS, dada à importância do Fundo para a Nação. O órgão gestor não pode permitir saques fora das hipóteses da Lei, sob pena de ferir toda a sociedade e suas próprias obrigações, previstas em lei e sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas da União e do Conselho Curador do FGTS.
Nos termos da própria lei civil, em aplicação subsidiária autorizada pelo artigo 8º da CLT, diz o inciso VI, do artigo 166 do NCC, que o negócio jurídico será inválido, naquilo que tentar extrapolar lei imperativa. Por certo que a lei reguladora do saque do FGTS é norma de ordem pública, com clara função social, que não pode ser desvirtuada para além dos seus limites. Tanto assim o é, que a interpretação sistemática do artigo 7º da CRFB autoriza a sua inclusão como direito fundamental do trabalhador.
Afigura-se temerário que, para solucionar essas questões, a norma coletiva possa dispor contrariamente à lei e, inclusive, impactar no ingresso e na saída de recursos ao Fundo de Garantia, o qual não se destina apenas ao trabalhador já que se constitui em fundo social de múltiplas e complexas funções, com benefícios para toda a coletividade, que, diga-se de passagem, não podem ser comprometidos.
Nesse sentido, Maurício Godinho Delgado, com maestria, leciona, in verbis: “O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, embora preservando nítida natureza trabalhista, também consubstancia, em seu conjunto global e indiferenciado de depósitos, um fundo social de destinação variada, que se especifica expressamente na ordem jurídica. De fato, a Lei do FGTS dispõe que o Fundo é formado não somente dos recolhimentos mensais feitos pelo empregador ou tomador de serviços, mas de outras fontes monetárias (art. 2º, Lei n. 8.036/90). Além disso, o Fundo de Garantia, considerado na globalidade de seus valores, constitui um fundo social dirigido a viabilizar, financeiramente, “a execução de programas de habitação popular, saneamento básico e infra-estrutura urbana” (art. 6º, IV, VI, e VII; art. 9º, § 2º, Lei n. 8.036/90).”
4. SOPESAMENTO ENTRE PRINCÍPIOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA E DE INDISPONIBILIDADE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Este princípio prega que a negociação coletiva, até pela sua natureza transacional, implica na capacidade negocial das partes em transacionar. Ou seja, tudo gira em torno de prestações opostas das duas partes. Como ensina Carnelutti, elemento fundamental da negociação em torno destas prestações é que o objeto das mesmas, muito além de ser res litigiosa, seja res dubia. Neste tocante, cabe frisar que qualquer direito tido como certo e, por assim dizer, indisponível, não pode ser qualificado como res dubia. É que, se um dos contratantes está certo da obrigação que lhe cabe solver (mediante, como foi demonstrado, disposições legais e constitucionais), age obviamente, contra legem, ao transacionar com a outra parte, beneficiando-se das recíprocas concessões então ajustadas. Neste sentido, novamente o mestre Uruguaio Plá Rodriguez, às fls. 175, 176, do seu “Princípios”: “A res dúbia – elemento essencial da transação – deve ser entendida em um sentido subjetivo, isto é, dúvida razoável sobre a situação jurídica objeto do precitado acordo.”, e continua mais a frente: “É que, se um dos contratantes tem certeza da obrigação que deve cumprir, age obviamente de má-fé ao transacionar com a outra parte, beneficiando-se das recíprocas concessões convencionadas”.
No caso, as disposições coletivas extrapolam os limites negociais típicos do pacto social negociado, adentrando ao campo da indisponibilidade do mínimo civilizatório.
5. CONCLUSÃO
Concluindo, a prática em análise viola uma série de direitos de ordem social indisponível, bem como estabelece obrigações a terceiros que não participaram da negociação coletiva. Finalmente, há uma criação jurídica que intenta sobrepujar norma imperativa, criando-se ficção jurídica aonde a norma é taxativa.
A prática, portanto, deve ser vedada, sendo que, a princípio, este vem sendo exatamente o entendimento do TST, haja vista recentes decisões a respeito (RR-415/2006-011-10-00.6 – 7ª turma – DJ 07-12-07; Relator: Ministro Ives Gandra Martins Filho; RR – 63/2007-003-10-00; Relator: Ministro Luiz Phillippe Vieira de Mello Filho – 1ª turma – DJ – 29/08/2008; RR – 853/2006-020-10-00 – 8ª turma – DJ – 22/02/2008; Relator: Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro; RR-232/2007-003-10-00.7 – 4ª turma – DJe 6-11-08; Relator: Ministro Antônio José de Barros Levenhagen; RR-419/2007-016-10-00.7 – 2ª turma – Dje 21-11-08; Relator: Ministro José Simpliciano Fernandes; RR 710-2006-021-10-00-0 – 5ª turma – julgamento em 17/12/2008; Relator: Ministro João Batista Brito Pereira).
Bacharel em Direito pela UFMG. Advogado. Gerente Operacional substituto da Área Trabalhista da Caixa Econômica Federal.
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