Resumo: Trata-se de artigo acerca da importação paralela e o princípio da exaustão e seus reflexos no mercado interno no que diz respeito à concorrência e à proteção da propriedade industrial. O objeto é trazer ao leitor os aspectos mais gerais e horizontais do tema, mas que permitam aos aplicadores do direito inicial uma análise mais aprofundada e menos superficial em eventuais trabalhos que venham a realizar sobre a matéria.
Palavras-chave: Importação paralela. Princípio da exaustão. Exaustão nacional.
Abstract: It concerns an article on parallel imports and the principle of exhaustion and its effects on the internal market with regard to competition and the protection of industrial property. The object is to bring to the reader the more general and horizontal aspects of the subject, but to allow the applicators of the initial right a more in-depth and less superficial analysis of any work they may undertake on the subject.
Keywords: Parallel import. Principle of exhaustion. National exhaustion.
Sumário. Introdução. 1. Brevíssimo histórico sobre a proteção industrial. 2. Bens da propriedade industrial. 3. Proteção e registrabilidade da marca. 4. Doutrina da first sale e princípio da exaustão. 5. Importação paralela e possível cometimento de crimes. 6. Proteção ao consumidor. Conclusão.
Introdução.
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas premissas para a análise da legalidade ou ilegalidade da chamada importação paralela, conceituada como a introdução em um país de produtos ou serviços de determinada marca e provenientes de outro país, sem que haja autorização do titular do direito industrial ou de outrem por ele autorizado em detrimento de eventuais licenciados ou distribuidores exclusivos no país importador.
Destaca-se desde logo haver intenso debate acerca do tema e decisões judiciais nos mais amplos sentidos, com ou sem análise aprofundada da questão. Porém, o tema é de extrema importância em razão da aceitação da importação paralela poder gerar alguns resultados diametralmente opostos:
a) a diminuição no preço dos produtos e serviços importados paralelamente, já que em regra eles são adquiridos em um mercado no qual os preços são mais baixos e muitas vezes inseridos no mercado nacional sem o pagamento dos tributos devidos para a sua oficial internalização; ou
b) o desequilíbrio no mercado nacional, na medida em que não haverá mais interesse dos empresários em investir na divulgação, garantia, qualidade, pós venda e desenvolvimento de determinadas marcas, pois não conseguirão o retorno financeiro necessário a cobrir esses custos e também os decorrentes da tributação incidente sobre a importação legalmente feita; queda na qualidade do atendimento do consumidor que eventualmente terá que buscar a garantia dos produtos em mercados internacionais se não houver representante oficial no país; diminuição na arrecadação tributária, já que os importadores paralelos muitas vezes subfaturam o produto adquirido no exterior; desestímulo à criação de empregos, já que os que hoje detêm os direitos da marca não terão mais interesse em manter a empresa ou alguns departamentos funcionando para o fim de divulgação da marca, garantia, atendimento técnico aos consumidores etc.
Ressalta-se que o presente artigo não esgota o tema, pelo contrário, traz apenas uma visão geral sobre o assunto para que ele comece a ser pensado e os aplicadores do direito atentem-se à profundidade do tema e à necessidade de uma análise exauriente e vertical da questão quando ela surgir para análise.
1. Brevíssimo histórico sobre a proteção industrial.
O marco histórico mais importante e recente de proteção à propriedade industrial é a Convenção da União de Paris criada em 1983 a qual adota, como se pode notar do seu artigo 1º, item 2, um conceito aberto de propriedade industrial, abrangendo, além do direito dos inventores, as marcas e outros sinais distintivos como objetos de proteção.
“2) A proteção da propriedade industrial tem por objeto as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as indicações de providências ou denominações de origem, bem como a repressão da concorrência desleal.” (grifo nosso).
No Brasil, após a sua independência política, foi editada lei sobre invenções atendendo a previsão constante na Constituição do Império:
“Artigo 179, XXVI: Os inventores terão a propriedade das suas descobertas, ou das suas producções. A Lei lhes assegurará um privilegio exclusivo temporario, ou lhes remunerará em resarcimento da perda, que hajam de soffrer pela vulgarização.” (grifo nosso).
Entretanto, a disciplina da matéria, diferentemente da amplitude existente na Convenção de Paris, era feita em diplomas normativos diferentes, ou seja, havia uma lei para marcas e outra para invenções. Somente em 1923 com a criação da Diretoria Geral da Propriedade Industrial foi que as matérias começaram a ser tratadas no mesmo diploma normativo.[1]
2. Bens da propriedade industrial.
Os bens da propriedade industrial são a invenção, o modelo de utilidade, o desenho industrial e a marca.
A invenção é uma manifestação do pensamento humano de efeito técnico e aplicação industrial.
Conforme previsão do artigo 11 da Lei nº 9.279/96, para algo ser considerado invenção, deve ser dotado de novidade absoluta, não podendo decorrer exclusivamente do atual estado da técnica, ou seja, deve ser algo mais que mera decorrência da aplicação dos conhecimentos atuais, tal qual a previsão expressa do artigo 13 da Lei nº 9.279/96. Além disso, a invenção não deve ter qualquer impedimento legal e precisa ter aplicação industrial.[2]
O modelo de utilidade, por outro lado, é um objeto de uso prático, ou pelo menos parte dele, de aplicação industrial, que apresente uma nova forma ou disposição a um produto já existente e gere uma melhora no seu uso ou na sua fabricação. Deve também envolver um ato inventivo e não ter qualquer impedimento legal (artigo 9º da Lei nº 9.279/96).[3]
O desenho industrial é a forma plástica, ornamental, as linhas que possam proporcional ao produto um visual novo, original na sua configuração externa. Trata-se de uma ideia atrelada ao design (artigo 95 da Lei nº 9.279/96).[4]
Finalmente, a marca é um sinal distintivo, perceptível pela visão, não compreendido nas proibições leais. No Brasil, portanto, apenas sinais visuais são considerados marcas e poderão ser registrados. Seus requisitos são: novidade relativa (dentro do seu segmento mercadológico), não colidência com marca notória e ausência de impedimento legal (artigo 122 da Lei nº 9.279/96).[5]
Algumas espécies de marcas são: marca de produto ou serviço (distingue produtos semelhantes de origens diversas), marca coletiva (identificam produtos oriundos de membros de determinada entidade) e marca de certificação (atesta que o produto está conforme as especificações técnicas de determinado órgão ou país) (artigo 123 da Lei nº 9.279/96). Há ainda que se destacar a marca notória (é ostensivamente reconhecida no seu segmento mercadológico) e marca de alto renome (aquela cuja proteção se estende para todos os segmentos mercadológicos e não apenas para o seu próprio).[6]
Em razão do objetivo deste artigo trataremos apenas da marca, mais especificamente da marca de produto.
3. Proteção e registrabilidade da marca.
A proteção conferida a todos os bens industriais decorre da necessidade de se garantir o retorno do investimento feito por aqueles que realizam pesquisas e promovem o desenvolvimento de produtos e serviços que melhoram a vida da sociedade. Não fosse essa proteção, inexistiria interesse no progresso, salvo os de forma altruísta que, em razão dos altos custos envolvidos, é demasiadamente escasso, ou os para utilização na guerra.
Há pesquisas, inclusive, que apontam que em mercados nos quais as marcas e patentes tem proteção relevante a média de qualidade dos produtos são maiores.[7]
Atento a essa situação o constituinte originário previu expressamente a necessidade de se garantir essa proteção:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…)
XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;”[8] (grifo nosso)
A marca, para ser registrada, deve ser dotada de novidade relativa, não colidência com notoriamente conhecida e desimpedimento.
A novidade relativa diz respeito diretamente à identificação do produto ou serviço e basta que seja relativa porque a proteção conferida à marca, em regra, ocorre exclusivamente no segmento mercadológico em que o produto está inserido. Pode acontecer, inclusive, de produtos do mesmo segmento mercadológico terem a mesma marca, desde que isso não gere a possibilidade de confusão para o consumidor. Trata-se do chamado princípio da especificidade.[9]
A única exceção ao princípio da especificidade é a marca de alto renome que recebe proteção em todos os ramos de atividade mesmo sem a possibilidade de gerar confusão no consumidor que conhece muito bem referida marca (artigo 125 da Lei nº 9.279/96).[10]
A não colidência decorre do compromisso assumido pelo Brasil ao aderir à Convenção da União de Paris que em seu artigo 6º bis, item I, prevê que os aderentes devem recusar ou invalidar o registro e proibir o uso de marca já registrada em qualquer dos outros países signatários. Referida disposição vem repetida no artigo 126 da Lei nº 9.279/96.[11]
Finalmente, o último requisito é o desimpedimento, ou seja, que não haja utilização dos elementos elencados no artigo 124 da Lei nº 9.279/96.[12]
A concessão do INPI do direito industrial assegura ao requerente a utilização exclusiva da invenção, modelo de utilidade, desenho industrial ou marca.
Quanto à marca, a ressalva é que o usuário de boa-fé que a explora há pelo menos 06 (seis) meses tem direito de precedência no registro. Entretanto, deve fazer o seu pedido nos 60 (sessenta) dias seguintes à publicação do pedido feito pelo concorrente, conforme o artigo 158 da Lei nº 9.279/96.[13]
4. Doutrina da first sale e princípio da exaustão.
A doutrina do first sale combinada ao princípio da exaustão estabelece que a proteção da propriedade intelectual contra venda ou utilização do produto ou serviço sem a autorização do titular do direito restringe-se à primeira venda, exaurindo-se na sequência.
Melhor explicando, após a introdução pelo titular do direito industrial do produto ou serviço protegido no mercado, qualquer pessoa pode aliená-lo. Cite-se o seguinte exemplo:
“consideramos a conhecida marca “Mercedes” para automóveis. Nenhuma empresa além da suíça Daimler (a proprietária da marca) pode vender um carro novo com a marca “Mercedes” afixada em sua carroceria. Contudo, se o consumidor comprar um carro “Mercedes”, em uma das autorizadas “Mercedes”, ele pode revender esse automóvel para outra pessoa.”.[14] (grifo nosso)
O objetivo da utilização do princípio da exaustão é exatamente promover um equilíbrio entre os interesses do titular do direito industrial e os interesses do mercado e dos consumidores.
É nesse contexto que se insere a importação paralela objeto específico do presente artigo. Ela diz respeito a produtos e serviços vendidos inicialmente fora do Brasil, por exemplo, e que são introduzidos aqui por meio de importação feita por pessoa distinta do titular da propriedade industrial ou que não detenha o direito de uso dessa propriedade. Os bens importados dessa maneira recebem o nome de grey goods.[15]
A exaustão, porém, conforme a advogada Maristela Basso pode ter seu conceito tomado em âmbito nacional, internacional ou regional.[16]
Na exaustão nacional, a venda de um produto protegido em determinado país, não gera efeitos extintivos da proteção do direito industrial em outro país, ou seja, feita a venda do produto no país “X”, a revenda interna e internacional passa a ser livre, porém, o produto não poderá, após ser revendido para o exterior, retornar ao país de origem, onde ocorreu a primeira venda e se foi vendido no exterior, não poderá entrar no país importador sem a autorização do titular da marca ou seu representante. Nesse caso, a importação paralela é claramente proibida.
Na exaustão internacional as importações paralelas são permitidas, desde que o ingresso do produto no mercado, nacional ou internacional, tenha sido feito inicialmente pelo detentor do direito de propriedade industrial ou por alguém autorizado por ele. Nesse caso, “se houver neste último país um importador oficial (agente ou licenciado do titular do direito), ele não pode impedir o trade flow. Os direitos do titular esgotaram-se na primeira venda – onde quer que tenha ocorrido.” (grifo nosso).
Finalmente, na exaustão regional, aplica-se o mesmo conceito da exaustão internacional, mas agora não considerando apenas um país e sim um conjunto deles como, por exemplo, no caso da União Europeia.
5. Importação paralela e possível cometimento de crimes.
Inicialmente, importante transcrever a base constitucional que fundamenta a proteção da propriedade industrial.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…)
IV – livre concorrência;
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.
Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015).”[17] (grifo nosso)
Como se depreende dos dispositivos acima transcritos a Constituição da República protege tanto o direito à propriedade industrial, até como forma de promover o desenvolvimento científico e tecnológico nacional, bem como a livre concorrência.
Logo, cabe ao intérprete, objetivando manter a coerência constitucional e tendo em vista o princípio da unicidade, fazer a interpretação no caso concreto de forma a garantir a harmonização constitucional.
Infraconstitucionalmente e dando concretude ao artigo 5º, inciso XXIX, da Constituição Federal foi editada a Lei nº 9.279/96, cujo destaque neste momento é voltado para os seus artigos 129, 130 e 132 a seguir transcritos.
“Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148.
Art. 130. Ao titular da marca ou ao depositante é ainda assegurado o direito de:
I – ceder seu registro ou pedido de registro;
II – licenciar seu uso;
III – zelar pela sua integridade material ou reputação.
Art. 132. O titular da marca não poderá: (…)
III – impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 68; e” (grifo nosso)
Fácil constatar a proteção conferida à propriedade industrial pela simples leitura dos referidos dispositivos.
No que diz respeito à importação paralela importante verificar que o artigo 130, inciso III oferece o fundamento para que o titular do direito de propriedade industrial evite a diluição da sua marca ou daquela que representa seja em razão da sua falsificação, seja em razão do seu uso não autorizado.
Já o artigo 132, inciso III impõe um limite ao exercício do direito de propriedade sobre a marca.
Conforme bem explanado por Maristela Basso:
“no que diz respeito aos limites no exercício dos direitos de marca, o Brasil incorporou o conceito de exaustão de direitos em nível nacional, com expressa ressalva das situações previstas nos §§3º e 4º do art. 68 da LPI. Segundo esse princípio, uma vez comercializado legalmente o produto marcado no mercado interno (nacional), o titular da marca não pode controlar as operações de venda ou uso subsequentes à primeira venda. Por isso, o princípio também aqui é chamado de doutrina da primeira venda (first sale doctrine), uma vez que os direitos de exploração comercial sobre um determinado produto extinguem-se a partir da sua primeira venda no mercado interno, desde que a venda tenha sido feita pelo titular da marca ou com o seu consentimento.”.[18][19] (grifo nosso)
No mesmo sentido é o entendimento já exarado pelo Superior Tribunal de Justiça:
“DIREITO EMPRESARIAL. IMPOSSIBILIDADE DE IMPORTAÇÃO PARALELA DE UÍSQUE DE MARCA ESTRANGEIRA SEM O CONSENTIMENTO DO TITULAR DA MARCA.
Não é possível a realização de "importação paralela" de uísque de marca estrangeira para o Brasil na hipótese em que o titular da marca se oponha à importação, mesmo que o pretenso importador já tenha realizado, em momento anterior à oposição, "importações paralelas" dos mesmos produtos de maneira consentida e legítima.
O titular de determinada marca estrangeira e o seu distribuidor no Brasil podem firmar entre si um contrato de distribuição com cláusula de exclusividade territorial, de modo que aquele distribuidor contratante detenha a garantia de exclusividade na distribuição dos produtos daquela marca no território brasileiro.
Nesse contexto, ocorre a chamada "importação paralela" na hipótese em que outro distribuidor – que não tenha acordado cláusula de exclusividade na distribuição dos produtos da marca no território nacional – adquira, no estrangeiro – isto é, fora dos circuitos de distribuição exclusiva -, produtos originais daquela mesma marca estrangeira para a venda no Brasil, considerando o fato de que terceiros não estão obrigados aos termos de contrato celebrado entre o fornecedor e o seu distribuidor brasileiro exclusivo. Nesse caso, a mercadoria entra na área protegida não porque houve venda direta ou atuação invasiva de outro distribuidor, mas porque um adquirente "de segundo grau", que comprou o bem do próprio titular ou de outro concessionário da mesma marca, revendeu-o no território reservado.
No tocante ao regramento dado pelo sistema jurídico brasileiro às hipóteses de "importação paralela", deve-se indicar que o art. 132, III, da Lei n. 9.279/1996 proíbe que o titular da marca impeça a livre circulação de produtos originais colocados no mercado interno por ele próprio ou por outrem com o seu consentimento. Ou seja, permitiu-se a chamada comercialização paralela interna ou nacional, hipótese em que, após a primeira venda do produto no mercado interno, o direito sobre a marca se esgota, de modo que o titular da marca não poderá mais invocar o direito de exclusividade para impedir as vendas subsequentes. Com isso, a nova Lei da Propriedade Industrial incorporou ao sistema jurídico brasileiro o conceito de exaustão nacional da marca, segundo o qual o esgotamento do direito sobre a marca somente se dá após o ingresso consentido do produto no mercado nacional, o que implica afirmar que o titular da marca ainda detém direitos sobre ela até o ingresso legítimo do produto no país. Dessa maneira, o titular da marca internacional tem, em princípio, o direito de exigir o seu consentimento para a "importação paralela" dos produtos de sua marca para o mercado nacional.
Como ressalva, ademais, cabe afirmar que certos casos, como o dos medicamentos, podem vir a receber tratamento legal diferenciado, imposto por necessidades específicas determinadas por cada Estado, especialmente relacionadas à necessidade de fornecimento de determinados produtos à população, de estímulo à concorrência para evitar a formação de monopólios ou cartéis ou de atendimento privilegiado de determinadas áreas do consumo.
Não se cogita, no entanto, nenhuma dessas hipóteses no caso em que se está diante de importação de uísque, produto desprovido de fornecimento imprescindível e que, além disso, possui farto fornecimento por diversos produtores e marcas em salutar concorrência no mercado nacional.”[20] (grifo nosso)
A adoção do conceito de exaustão em nível nacional, portanto, fica evidenciada em razão do texto do artigo 132, inciso III anteriormente citado in verbis expressamente prever que o titular da marca não pode impedir a circulação de produtos que tenham sido introduzidos por ele ou por outrem com o seu consentimento no mercado interno. A contrário senso, ele pode impedir a primeira venda (first sale) no mercado interno de produtos que ostentem a marca registrada por ele ou cuja autorização de uso lhe pertença, sem o seu consentimento.
Sendo assim, as condições para aplicação do princípio da exaustão e, portanto, para vedação do exercício de qualquer direito protetivo por parte do titular da marca são: a) mercado nacional; b) produto colocado no mercado nacional pelo titular da marca ou com o seu consentimento; e c) consentimento claro e inequívoco.[21]
Inexistindo qualquer dessas condições não se aplica o princípio da exaustão e, consequentemente, o titular da marca ou o seu representante autorizado possuem direito de restrição do comércio dos seus produtos no mercado nacional.
A questão que se levanta neste ponto é se realmente é conforme a intenção do constituinte e do legislador permitir que produtos adquiridos por importadores paralelos no exterior e introduzidos no mercado nacional tomem mercado de empresas que tem autorização da marca para importar, contratam pessoas para o desenvolvimento dos trabalhos, investem em marketing, tecnologia, pós-venda, promoções, informações, dentre outros.
A título de exemplo pode-se citar o caso de uma empresa, representante exclusiva da marca “x” no Brasil, que ao promover o recall do equipamento “y” descobriu que apenas 22% (vinte e dois por cento) dos produtos enviados pelos consumidores tinham sido adquiridos no Brasil. Os outros 78% (setenta e oito por cento) foram adquiridos no exterior, mas os consumidores, por óbvio e pela seriedade do trabalho, procuraram a empresa brasileira no momento do recall e não os importadores paralelos que colocaram esse produto no mercado.[22]
A aceitação dessa nova realidade pode fazer com que não seja economicamente viável investir em contatos, pesquisa e desenvolvimento, mas tão somente trazer o produto para o País da forma mais econômica possível, com menor responsabilidade, o que pode gerar, além de prejuízo para o mercado e para os consumidores, o incremento na prática do crime de descaminho.
A tipificação do referido crime vem no artigo 334 do Código Penal nos seguintes termos:
“Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
§ 1o Incorre na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
I – pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
II – pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
III – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
IV – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
§ 2o Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
§ 3o A pena aplica-se em dobro se o crime de descaminho é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)”[23] (grifo nosso)
A chance de isso ocorrer decorre do fato de que os importadores paralelos compram produtos legítimos no exterior, mas os trazem sem a sua oficial internalização.
Afora isso, há a possibilidade de configuração do crime tipificado no artigo 195 da Lei nº 9.279/96, ou seja, da prática do crime de concorrência desleal, na medida em que o terceiro não autorizado pela marca estará utilizando-se de meio fraudulento para retirar a clientela do real legitimado à realização da primeira venda do produto no mercado nacional.
“Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (…)
III – emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem;” (grifo nosso)
Para encerrar esse tópico cumpre esclarecer um ponto muito comum de equívoco, o de que as importações paralelas são sempre boas para o consumidor na medida em que permitem que eles comprem produtos com preços mais baixos.
O primeiro problema de se considerar isso totalmente correto é que os produtos importados paralelamente muitas vezes não estão sujeitos à tributação seja porque vendidos em pequenas quantidades pela internet, seja porque o importador paralelo muitas vezes subfatura os produtos e paga menos impostos. Logo, a base comparativa de preços já tem início da premissa equivocada de que tanto o importador legal quanto o importador paralelo pagam o mesmo preço pelos produtos.
Afora isso, o propósito dos importadores paralelos é obter maiores lucros. Logo, possivelmente quando eles retirarem o importador legal do mercado aumentarão os preços para lucrar mais.
No mais, como já exposto anteriormente, os importadores paralelos não investem em pesquisa e desenvolvimento, diferente dos importadores leais.
6. Proteção ao consumidor.
Há ainda que se destacar a importância da proteção do consumidor nesse contexto de irresponsabilidade dos importadores paralelos.
Prevê o Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995). (…)
IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…)
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;”[24] (grifo nosso)
Dos artigos mencionados decorre a necessidade daquele que coloca produtos e serviços no mercado garantir a sua qualidade, bom funcionamento, possibilidade de troca, fornecimento de componentes para substituição, dentre outras coisas, o que, muitas vezes não ocorre quando o produto é introduzido no mercado por um importador paralelo que sequer tem condições de pleitear perante o fornecedor legitimado a substituição do bem ou a sua reparação.
Aliás, no que concerne à concessão de garantia aos consumidores já há entendimento de Tribunais nacionais no sentido de que o detentor do direito da marca ou seu representante exclusivo no País não é responsável pela garantia dos produtos que não foram por ele colocados em first sale no mercado nacional.
Como exemplo desse entendimento seguem as seguintes decisões:
“JUIZADO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. CONFUSÃO COM O MÉRITO. APRECIAÇÃO CONJUNTA. CDC. VIDEOGAME COMPRADO NO EXTERIOR. MAU FUNCIONAMENTO DO PRODUTO. PRAZO DE GARANTIA. INAPLICABILIDADE DA LEI 8.078/90. RECURSO PROVIDO.
1. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor a produto comprado no exterior, ainda que o fabricante possua representação no território nacional.
2. A previsão de responsabilidade do fabricante, importador ou comerciante é quanto aos produtos importados por eles e revendidos no Brasil (CDC, art. 13).
3. O fornecedor tem compromisso com as regras de produção, qualidade, assistência técnica e garantia do país onde fabrica e vende seu produto, normas que, não raras vezes, reflete o grau de exigência e a estratificação social a ser atingida no mercado.
4. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA REFORMAR A SENTENÇA E JULGAR IMPROCEDENTES OS PEDIDOS INICIAIS.[25] (…)
Conclui-se, portanto, que tratando-se de produto comprado no exterior, não se aplica o CDC, ainda que o fabricante possua representação no território nacional. A previsão de responsabilidade do fabricante, importador ou comerciante é quanto aos produtos importados por eles e revendidos no Brasil. O fornecedor tem compromisso com as regras de produção, qualidade, assistência técnica e garantia do país onde fabrica e vende seu produto, normas que, não raras vezes, reflete o grau de exigência e a estratificação social a ser atingida no mercado. No presente caso, o autor informou que comprou a bota para a prática de trekking na loja REI, situada na California-USA e a trouxe para o Brasil, onde um dos ilhós do calçado se soltou. É fato notório que os produtos adquiridos no exterior diretamente pelo consumidor e trazidos para o Brasil, não possuem garantia no território nacional, salvo quando oferecida e/ou contratada garantia com esse fim no país estrangeiro.
(…)”[26] (grifo nosso)
Há de se destacar, porém, existirem decisões em sentido diverso, especialmente quando a marca conta com garantia mundial.
Conclusão.
Conclui-se, portanto, que os benefícios eventualmente gerados pela autorização da importação paralela, em regra, tendem a ser muito menores que os malefícios causados por ela.
Valho-me neste ponto dos argumentos favoráveis e contrários à importação paralela expostos por Maristela Basso, com algumas observações a mais.[27]
Argumentos favoráveis à importação paralela:
a) obstáculo à segmentação do mercado e, portanto, à cobrança de preços diferenciados em diversos mercados;
A ressalva feita neste ponto é a de que mesmo com a cobrança de preços idênticos há diferença no preço final do produto para o consumidor, eis que a tributação nos diversos países é diferente e há outros custos como frete internacional e nacional, mão de obra, valor do serviço de despachantes aduaneiros, dentre outros.
b) bem estar do consumidor para produtos e serviços comuns que receberiam produtos mais baratos com a mesma qualidade;
O destaque aqui concerne à facilidade de introdução de produtos falsificados ou contrafeitos no mercado em que não há controle das importações paralelas.
c) desenvolvimento, já que em tese os produtos produzidos em países em desenvolvimento são mais baratos que os produzidos em países desenvolvidos, o que favorece a exportação pelos primeiros;
d) restrição à discriminação geográfica de preços; e
e) incentivo ao livre comércio.
Argumentos contrários à importação paralela:
a) manutenção da consistência e da qualidade do produto ou serviço, na medida em que as exigências técnicas de um mercado podem não ser as mesmas de outro e importadores paralelos podem não ter os cuidados necessários no transporte ou embalagem dos produtos;
b) discriminação de preços que podem decorrer da necessidade de maiores investimentos em marketing, custos operacionais, dentre outros, possibilitando ao importador autorizado/ produtor investir de formas diferentes em mercados com características distintas;
c) serviços de assistência e manutenção pré e pós-vendas, além de treinamento de vendedores, fornecimento de informações técnicas aos consumidores, show-room, garantia, dentre outros. Todos esses serviços demandam algum investimento e, em regra, os importadores paralelos não os prestam, remetendo o consumidor aos serviços da revenda internacional da qual compraram os produtos o que gera um prejuízo efetivo aos próprios consumidores;
d) em um território no qual se permita a importação paralela fica mais difícil ao importador legal/ produtor prever a capacidade de êxito dos seus investimentos o que, por consequência, diminui os investimentos;
e) as importações paralelas geram uma dificuldade maior na revelação de cópias ilícitas como, por exemplo, de produtos pirateados ou contrafeitos, ou seja, essas cópias podem entrar no país como importações paralelas;
f) importações paralelas desfavorecem a pesquisa e o desenvolvimento o que, ao final, pode gerar menores possibilidades de escolhas e disponibilidade de produtos aos consumidores, diminuição da qualidade dos produtos oferecidos, menor expansão para novos mercados que exigem também pesquisa e desenvolvimento.
Logo, apesar da restrição à importação paralela poder aparentar ter um aspecto restritivo e limitador da concorrência, ela impede a ocorrência do free rider, ou seja, que determinadas empresas se aproveitem dos investimentos feitos por outra (seja ela fabricante ou importador autorizado) sem que tenham contribuído com trabalho ou dinheiro para o desenvolvimento da marca e incremento da qualidade dos produtos e do atendimento ao consumidor.
Evitar o free rider é forma de garantir empregos no Brasil, a qualidade dos produtos e os investimentos feitos em marketing, pós venda e garantia (atentando-se para o fato de que a garantia de produtos importados onera aquele que a presta, já que ele tem custos com frete internacional, por exemplo), além de assegurar a manutenção de investimentos na marca e informações técnicas adequadas aos consumidores.
De todo o exposto, fica a reflexão acerca dos rumos que se pretende dar ao mercado nacional: favorecer as empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento ou importam legalmente suas mercadorias proibindo as importações paralelas e mantendo-se a adoção do princípio da exaustão nacional; ou liberar integralmente as importações paralelas, acolhendo-se os pontos favoráveis a ela (acima expostos) como os mais importantes no equilíbrio buscado e para o maior bem estar dos consumidores nacionais, seguindo-se, então, o regime da exaustão internacional.
Faz-se necessária, porém, uma definição, para que todos os agentes atuantes no mercado, sejam importadores ou representantes legalmente autorizados pela marca, sejam os atuais importadores paralelos e até mesmo os consumidores tenham conhecimento exato do mercado em que estarão atuando e dos seus direitos e deveres nesse mercado.
Juíza Federal Substituta no Tribunal Regional Federal da 1 Região. Pós-graduada em Direito Processual. Anteriormente exercia o cargo de analista judiciário no Tribunal Regional Federal da 3 Região
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