Resumo: Esta pesquisa examina a política pública de recuperação de empresas à luz do marco teórico da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE). Com este desiderato, inicialmente será estudada a construção da política pública de recuperação de empresas no Brasil, a partir do conceito de paradigma de Thomas Kuhn e com a divisão nas etapas da agenda, formulação, implementação e avaliação. Nessa parte, haverá o desenho geral da política pública, com o exame dos seus principais atores, instituições e conjunto de idéias, e a investigação de possíveis conseqüências jurídicas em decorrência da política. Em seguida, haverá a aplicação da abordagem da Análise Jurídica da Política Econômica para o sistema de recuperação de empresas. A AJPE consiste em uma abordagem interdisciplinar convergente com o “Novo Direito e Desenvolvimento”, que analisa o conjunto de princípios, regras, instituições, discursos dirigidos à organização da produção, troca e consumo na sociedade. Nessa perspectiva, almeja-se a construção de um instrumental analítico capaz de conciliar interesses materiais, valores morais, culturais, religiosos, motivações psicológicas, entre outros, levando-se em consideração a avaliação empírica, de maneira a possibilitar o desenvolvimento econômico em bases mais equitativas. Examinar-se-á, outrossim, a juridicidade do desenvolvimento de uma interpretação teleológico-empírica no direito brasileiro, com o escopo de promover o engajamento dos atores jurídicos com as políticas públicas. Por derradeiro, haverá a exposição das conclusões do trabalho relativas à adequação ou não da utilização do instrumental da AJPE para a construção das normas relativas à recuperação de empresas, mormente percorrendo o itinerário do procedimento analítico do direito. [1]
Palavras chaves: Política Pública. Recuperação de Empresas. Análise Jurídica da Política Econômica.
Sumário: 1 introdução. 2. Construção da política de recuperação de empresas. 2.1. Agenda. 2.2. Formulação. 2.3. Implementação. 2.4. Avaliação. 3. Aplicação da análise jurídica da política econômica. 3.1. Interpretação teleológico-empírica. 3.2. Procedimento analítico. 4. Conclusões. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Brasil experimentou um importante desenvolvimento econômico-social com o condão de desencadear um processo de melhoria de qualidade de vida da população, elevando o acesso das classes mais pobres a direitos fundamentais, por meio da manutenção de níveis adequados de emprego, aumento da renda e expansão do crédito. Entrementes, o alcance de melhores níveis de pujança econômica ainda depende da superação de algumas deficiências da nossa legislação. Um desses desafios postos à apreciação dos juristas se refere à necessidade de consolidação de uma política pública específica de recuperação de empresas.
Naturalmente, uma política pública de recuperação de empresas envolve uma gama de medidas de diversas ordens, como oferta de crédito por intermédio dos bancos públicos e privados, capacitação de profissionais, simplificação da questão tributária, definição de regras claras sobre trava bancária, sucessão das obrigações com relação aos ativos alienados, celeridade processual, entre outras. Tudo isso com o intuito de manter a atividade produtiva, os empregos e a arrecadação tributária, permitir o recebimento dos créditos, evitar desequilíbrios na cadeia produtiva, em síntese: conferir maior solidez à economia nacional.
Há quase uma década o Brasil adotou um novo arquétipo de enfrentamento das crises econômico-financeiras experimentadas pelo devedor empresário. Com efeito, evidenciando-se a deficiência do Decreto-lei nº 7.661/1945 (Antiga Lei de Falências) para o contexto econômico do início da década de 90, entrou na agenda governamental a necessidade de estabelecer outro modelo. Nessa perspectiva, seguindo uma tendência mundial, o legislador nacional se baseou em um valor extremamente relevante para evitar maiores danos em virtude da insolvência do empresário, qual seja, o princípio da preservação da empresa. Esta concepção, longe de trazer qualquer privilégio para o empresário, representa, a rigor, o objetivo de manter unidades produtivas, preservando os interesses dos trabalhadores, do Fisco, dos consumidores (mantendo-se um ambiente concorrencial adequado) e da própria economia, tendo em vista que o encerramento de atividades pode ensejar uma ruptura na cadeia produtiva. Acrescente-se ainda a necessidade de tutelar o crédito, estimulando os investimentos necessários para viabilizar o financiamento da economia nacional por atores públicos e privados.
Com este desiderato, vislumbra-se, a partir daquele momento, a formulação e a implementação efetivamente de uma política de recuperação de empresas. Agora, passados quase dez anos, torna-se adequada a avaliação dessa política pública, a fim de corrigir eventuais deficiências e, portanto, melhorar o ambiente de negócios no Brasil, conferindo maior competitividade para os empresários nacionais. A avaliação da política pública, contudo, até mesmo por força de sua natureza interdisciplinar, apresenta uma série de dificuldades para o pesquisador, mormente o jurista, normalmente, desacostumado com os mecanismos analíticos utilizados para capturar os fluxos dinâmicos da política, com profundas interações entre atores, instituições e um conjunto de crenças, a revelarem muito mais do que a visão estrutural da pirâmide normativa.
Não obstante, a abordagem da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE), linha de pesquisa que propõe um novo arranjo institucional entre o direito, a política econômica e a atuação estatal (estudo convergente com o “Novo Direito e Desenvolvimento no Brasil”), parece oferecer instrumental adequado para engajar de maneira mais intensa os valores consagrados na Constituição Federal de 1988 na construção das políticas públicas, em especial, nessa pesquisa, naquela destinada à recuperação de empresas. Pretende-se neste trabalho, portanto, verificar a aptidão da decomposição analítica do direito da AJPE para apresentar respostas satisfatórias na interpretação da Lei de Recuperação de Empresas e Falências do Brasil.
2 CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Atualmente, a dinâmica do Estado vem sendo compreendida por intermédio do instrumental analítico das políticas públicas[2]. Deveras, a partir dos anos 80 o modelo baseado nos grandes sistemas de planejamento exibiu sinais de decrepitude motivados por novas variáveis como as grandes crises financeiras e do petróleo. Assim, fez-se necessária a introdução de mecanismos de respostas estatais mais flexíveis, surgindo nesse contexto a gestão estratégica[3]. Nesse período, outrossim, houve uma cobrança crescente por maior participação democrática, facilitada pelo avanço no campo das comunicações e da informática. Esse conjunto de circunstâncias incorporou à análise estrutural da administração pública uma visão dos fluxos de decisão, isto é, do próprio funcionamento estatal. Tratava-se da construção da ação da máquina administrativa a partir da noção de políticas públicas, um sistema de decisões públicas condicionadas pelo fluxo de reações e valores dos agentes sociais influentes com o desiderato de alcançar determinados fins[4].
Não se desconhece a dificuldade (e talvez impossibilidade) de se formular um conceito jurídico de políticas públicas[5]. Esses obstáculos, contudo, não impedem uma análise jurídica para as políticas públicas, desde que se siga um método compatível com esse complexo de decisões políticas. Nesse sentido, um direito individual pode ser reconhecido, por exemplo, com o fundamento de se encontrar afinado com os objetivos traçados por determinado programa governamental.
A todas as luzes, muitas questões nessa temática permanecem indefinidas, o que, aliás, é natural em face da sua interdisciplinaridade, com problemas envolvendo direito, política, administração, economia, entre outros campos. Não obstante, o desenvolvimento teórico tem se mostrado capaz de lançar novas perspectivas na administração pública. Com este objetivo, será realizada uma decomposição da política pública de recuperação de empresas no Brasil. Os estudos acerca das políticas públicas têm se utilizado da divisão em etapas do ciclo de vida da política, de maneira a capturar mais precisamente a interação entre os atores sociais envolvidos. Nesse sentido, fragmenta-se o estudo da política pública em quatro fases: agenda; formulação; implementação; e avaliação. Em seguida, será realizado o estudo com base em cada uma dessas etapas[6].
2.1 AGENDA
Dessarte, como visto, a primeira fase da política pública é identificada com a agenda, ou seja, o momento em que um determinado tema passa a ser objeto de preocupação dos atores sociais e para o qual se vislumbra um conjunto de medidas com o condão de atender aquela demanda. Assim, no início da década de 90, percebeu-se que o Decreto-lei nº 7.661/45 possuía uma série de deficiências, como por exemplo, morosidade excessiva no trâmite do processo, um procedimento mais direcionado para a liquidação da empresa (o que ensejava o encerramento de empresas economicamente viáveis) e ineficiência na maximização dos ativos, resultando em baixa recuperação dos créditos.
Não seria despiciendo observar que a legislação falimentar possui uma grande importância no desenvolvimento econômico nacional. Deveras, a tutela do crédito é fundamental para o funcionamento do capitalismo na atualidade. No exercício ordinário de sua atividade, os empresários contraem dívidas com a expectativa de saldá-las com os ganhos futuros. Naturalmente, por diversas razões, os esperados lucros podem não ser alcançados, surgindo dificuldade no pagamento dos credores. A busca individual pelos ativos do estabelecimento empresarial pode levar a um desmonte ineficiente das unidades produtivas, tornando o procedimento altamente prejudicial para todos os interesses envolvidos na manutenção da empresa. Além disso, a maior parte dos credores não receberá a totalidade dos seus créditos e, consequentemente, elevará os custos da transação na próxima oportunidade para compensar as perdas e o risco. Com maiores gastos para fomentar a produção, os produtos brasileiros perdem competitividade no mercado externo e mesmo internamente com a concorrência dos importados. Assim, a tendência é gerar menos empregos, tributos etc. Em uma situação extrema, experimenta-se uma crise financeira nacional.
Para evitar esses efeitos extremamente maléficos da inadimplência do empresário, a maioria dos países tem estabelecido um processo de bancarrota organizando os credores. Na realidade, a depender do grau da crise experimentada pelo devedor, opta-se por um procedimento de reorganização (no caso de viabilidade econômica do empreendimento) ou de alienação imediata dos ativos. Neste caso, realiza-se o ativo e há um rateio do produto da arrecadação seguindo uma ordem de prioridades, que no Brasil, em síntese, começa por despesas administrativas da massa falida, salários, créditos segurados, tributos, créditos não-segurados (fornecedores, por exemplo), e acionistas. A legislação falimentar brasileira (Decreto-lei nº 7.661/45) previa os dois procedimentos (a falência e a concordata), contudo se mostrou inoperante. Com efeito, não era capaz de maximizar os ativos (a falta de transparência e a sucessão de obrigações para os adquirentes do estabelecimento deterioravam o patrimônio) e não conseguia reabilitar empresas viáveis, já que apenas aumentava em até dois anos o prazo de pagamento de dívidas (art. 156).
Outrossim, a concordata não passava de um reescalonamento ou abatimento de dívidas (não promovia qualquer reestruturação do empresário) e de efeito restrito aos credores quirografários. Os credores com garantia real podiam executar ativos indispensáveis para a manutenção da atividade. Também os prazos eram excessivamente curtos e os percentuais de pagamento altos (pagamento em dois anos, sendo 50% ao final do primeiro ano), o que praticamente inviabilizava qualquer recuperação. Ademais, a concordata se tratava de um favor legal, com a questão da viabilidade econômica sendo decidida pelo Judiciário, sem a expertise necessária. A legislação ainda não estimulava qualquer acordo extrajudicial, uma vez que, para tanto, seria necessária a aprovação pela unanimidade dos credores para que se tornasse vinculante. Por fim, as dívidas contraídas pela massa não gozavam de prioridade com relação a determinados créditos, o que elevava demasiadamente o custo do crédito para a continuação da atividade em virtude do risco elevado de inadimplemento[7].
Com esse cenário, a necessidade de reforma da legislação falimentar passou a compor a agenda governamental, mormente com as crises econômicas experimentadas pela América Latina ao longo da década de 80. Era o momento de criação de uma lei compatível com a dinâmica econômica da atualidade.
2.2 FORMULAÇÃO
No início da década de 90, iniciou-se a segunda fase do desenvolvimento de uma política pública: a formulação. Dessarte, a Portaria nº 233 do Ministério da Justiça instituiu uma Comissão que foi responsável pelo anteprojeto publicado em 27/03/1992 no DOU para fomentar os debates sobre o tema. Desse anteprojeto, foi apresentado o Projeto de Lei nº 4.376/1993. Após mais de dez anos de tramitação e um intenso processo de negociação no Congresso Nacional, foi sancionada em 9 de fevereiro de 2005 a Lei nº 11.101, com publicação na mesma data e entrada em vigor 120 dias após.
O texto aprovado trouxe uma série de alterações para o sistema de enfrentamento das empresas em crise. Com relação à liquidação, previu limitação do crédito trabalhista a 150 salários mínimos (art. 83, I), preferência do crédito segurado com relação ao Fisco (art. 83, II); previsão de alienação do estabelecimento logo após a arrecadação dos bens, preferencialmente, por inteiro (art. 139); isenção do adquirente do estabelecimento com relação às obrigações do devedor (arts, 60, parágrafo único, e 141, II)[8]; e prioridade com relação aos créditos surgidos no bojo do processo de reorganização no caso de falência (art. 84).
De outro lado, o processo de recuperação judicial possui distinções relevantes em comparação com a antiga concordata. Isso porque aquele admite negociação entre credores e devedor (art. 58) e estabelece o automatic stay, ou seja, durante o prazo de 180 dias são suspensas as ações e execuções contra o empresário (art. 6º, § 4º), permitindo uma efetiva reorganização da atividade. Por fim, a nova lei ainda trouxe a possibilidade de recuperação extrajudicial (arts. 161/167), reduzindo custos nos Tribunais e perda de reputação, e uma modalidade mais simplificada para as microempresas e empresas de pequeno porte (arts. 70/72).
Com relação à formulação, pode-se até mesmo traçar uma analogia com o paradigma de Kuhn[9]. Evidencia-se a instituição dos princípios metafísicos com o núcleo axiológico da lei, traçado nos arts. 47 e 75. Nesses dispositivos, são enunciados valores a serem perseguidos como função social, estímulo à atividade econômica, manutenção da fonte produtiva, preservação da empresa, emprego dos trabalhadores, interesse dos credores e preservação e otimização da utilização produtiva dos bens, ativos, inclusive intangíveis, e recursos produtivos da empresa.
De outro lado, há as normas de ação consistentes, em síntese, nos institutos da falência, da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial de empresas. A rigor, a maior parte das empresas experimenta crises de diversas ordens: financeira, econômica, patrimonial, entre outras. Para o enfrentamento desses momentos difíceis, em primeiro lugar, elas se valem dos mecanismos próprios do mercado, como alterações na gestão, operações societárias, negociação de dívidas, obtenção de financiamento, mudança no rumo dos negócios, redução de custos etc. O agravamento da crise, entretanto, exige a intervenção estatal de maneira a proteger os diversos interesses envolvidos. Nesse sentido, surgem os institutos da falência, da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial com o regramento estabelecido na Lei nº 11.101/2005.
Como terceiro elemento da matriz disciplinar, temos a metodologia caracterizada tanto pela celebração de acordos entre devedor e credores (dentro ou fora de um processo judicial) quanto pela alienação forçada do estabelecimento no processo falimentar. É importante observar que, malgrado a impressão inicial aponte em sentido contrário, a falência também visa à preservação da empresa, contudo sob a titularidade de outro empresário. A falência é do empresário (empresário individual, EIRELI ou sociedade empresária) e não da empresa. Enquanto atividade esta apenas deixa de ser exercida por haver se tornado inviável. O processo falimentar deve ser célere exatamente para evitar a depreciação dos ativos.
Por derradeiro, o paradigma fica completo com os instrumentos postos à disposição dos atores. O art. 50 da Lei nº 11.101/2005 demonstra a amplitude dos meios que podem ser utilizados pelo empresário para superar uma crise econômico-financeira. São exemplos medidas de natureza financeira (remissão parcial e concessão de prazos mais longos), providências societárias (fusões, cisões, transformações, cessões de cotas etc.), alienação do estabelecimento, alteração do controle, mudanças na administração, emissão de valores mobiliários, entre outras. Essa gama de medidas é um dos maiores avanços da nova lei e abre a possibilidade de grandes transformações na empresa, tornando muito efetiva a possibilidade de reerguimento da atividade.
2.3 IMPLEMENTAÇÃO
A implementação da política pública (terceira etapa) consistiu no reposicionamento dos atores sociais com base na aplicação da própria legislação. Na metáfora do jogo social, houve uma jogada reguladora e se examinam agora as jogadas acionadoras, levando em consideração o conceito de situação[10]. Nesta fase, cabe referência aos novos papéis desempenhados pelo juiz, promotor, administrador judicial, credores (trabalhadores, Fisco, bancos, fornecedores etc.) e empresários. É importante destacar que se trata de uma abordagem backward mapping, ou seja, os elaboradores da política de recuperação de empresas não possuem qualquer controle acerca da execução do programa[11]. A política de recuperação de empresas, aliás, guarda interessantes peculiaridades com relação às demais. Isso porque, em regra, a análise de políticas públicas pelo Judiciário ocorre excepcionalmente com base em alegação de inobservância de direito fundamental por parte do Poder Executivo. Em se tratando de recuperação de empresa, ao revés, os Tribunais são a arena adequada para a construção de acordo entre empresário e credores ou mesmo para a liquidação do ativo. Não há sequer um órgão gerencial que acompanhe o desenvolvimento da política em âmbito nacional, regional ou local.
Um dos principais jogadores com atuação modificada a partir do advento da nova legislação foi o magistrado. Deveras, com a atribuição do poder de deliberar pela aprovação do plano de recuperação judicial aos credores (art. 58, Lei 11.101/2005), em tese, o magistrado teria reduzido seus poderes no âmbito dos processos recuperacionais. Não obstante, o núcleo axiológico expresso na legislação, a necessidade de celeridade processual e a ampliação da utilização da lei acabaram sendo bem recebidas pela magistratura, não havendo manifestação de insatisfação nesse sentido. O magistrado permanece podendo controlar a legalidade do plano (Enunciado CJF 44) e inclusive verificar situações de conflitos de interesse (Enunciado CJF 45)[12].
Com relação à atuação do Ministério Público, ocorreu uma restrição na sua participação no processo falimentar. Isso porque houve veto presidencial ao art. 4º da Lei nº 11.101/2005, que estabelecia a intervenção do promotor em todos os processos de falência e recuperação judicial, bem como naquelas em que a massa falida fosse parte (como previsto no art. 210 do Decreto-lei 7.661/45). Com isso, a atuação do Parquet ocorre nos casos expressamente previstos na lei. O veto foi justificado com o intuito de evitar morosidade pela participação do MP em todos os atos, evitando-se ainda a sobrecarga de trabalho desnecessário das promotorias de justiça. Passados alguns anos da vigência do texto legal, ao que parece, o Ministério Público acabou considerando interessante a restrição para se concentrar nos atos em que o interesse público resta mais evidente. Assim, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Recomendação nº 16, de 28 de abril de 2010, prevendo no art. 5º, XII, que é desnecessária a intervenção do MP antes da decretação de falência ou do deferimento do pedido de recuperação judicial[13].
O terceiro jogador com atuação alterada foi o administrador judicial. A rigor, este personagem teve sua natureza substancialmente modificada. O antigo síndico (na falência) ou comissário (na concordata) era escolhido preferencialmente entre os credores. Todavia, como visto, pela ausência de privilégio com relação aos créditos tributários e trabalhistas, o cargo de síndico não era interessante, já que a chance de recebimento, seja do crédito originário, seja da remuneração pelos seus misteres, era reduzida. Com a Lei nº 11.101/2005, entretanto, esse cenário foi alterado. Isso porque o art. 84 previu como créditos extraconcursais a remuneração do administrador judicial, recebendo antes dos credores tributários, trabalhistas e reais, o que normalmente garante o adimplemento. Ademais, a nomeação passou a ser de livre decisão do magistrado, não recaindo mais, como regra, sobre um dos credores, o que evidenciou sua natureza atual de auxiliar do juízo. A garantia da remuneração, naturalmente, está criando um mercado para o exercício desse múnus público, com atuação frequente de profissionais e pessoas jurídicas especializadas.
Os empresários, outrossim, receberam bem a novel legislação. Os dados apontam para uma crescente quantidade de pedidos de recuperação judicial. Em 2013, houve o recorde de 874 pedidos, demonstrando que os empresários têm confiado no portfólio de soluções da Lei nº 11.101/2005, já que a rejeição dos credores ao plano de recuperação implica na falência da sociedade empresária (art. 56, § 4º).
A seu turno, os credores são divididos em diversas classes com interesses diversos. No caso dos trabalhadores, a Lei nº 11.101/2005 manteve o crédito como privilegiado no art. 83, I, e estipulou prazo máximo para o pagamento dos salários na recuperação judicial (um ano para os créditos vencidos até o pedido de recuperação e 30 dias para o pagamento de até 5 salários-mínimos de créditos salariais vencidos nos três meses anteriores ao pedido – art. 54). Há inclusive a previsão de os trabalhadores assumirem a gestão da sociedade empresária (art. 50, VII). Com relação aos bancos, a lei foi benéfica, uma vez que garantiu posição de prevalência até mesmo sobre o Fisco (normalmente as instituições financeiras representam os credores com garantia real em virtude de contratos de mútuo), conforme art. 83, II. Outrossim, em um processo falimentar mais efetivo, o Fisco ganha na arrecadação com a manutenção das unidades produtivas. Ressalte-se que os tributos gerados após a recuperação judicial também são extraconcursais (art. 84, V). De uma forma geral, os atores receberam bem a nova legislação. As suas jogadas respeitam as balizas estabelecidas pela matriz disciplinar da Lei nº 11.101/2005.
2.4 AVALIAÇÃO
A quarta fase alude à avaliação da política. Com este intuito, o primeiro exame a ser realizado concerne à utilização dos institutos de recuperação de empresas, tanto em termos quantitativos (número de sociedades empresárias que se valeram do instituto) quanto em termos qualitativos (se o instituto está sendo utilizado por grandes sociedades, o que impacta de maneira mais evidente a ordem econômico-social). Sobre o tema, importante sublinhar que a partir do ano 2000 houve uma queda considerável no número de falências e a partir de 2010 o quantitativo se estabilizou, mantendo-se no patamar mais baixo desde que os dados começaram a ser levantados em 1991. Por outro lado, ocorreu aumento substancial no número de recuperações judiciais, com estabilidade a partir de 2009[14]. Naturalmente, esses números decorrem de toda uma conjuntura econômica, mas não deve ser desprezada a relevância da nova lei de recuperações e falências.
A esse respeito, impende observar que das 4.234 sociedades empresárias que ingressaram com o pedido de recuperação após o advento da Lei nº 11.101/2005 até o final de 2013, 1.023 (24%) obtiveram a aprovação do plano pelos credores. Ademais, grandes empresas têm sido preservadas por meio da nova lei, como demonstram os casos da Eucatex S/A Indústria e Comércio (setor moveleiro e de construção civil; mais de 2.000 funcionários)[15] e da Leon Heimer S/A (setor de grupos geradores e soluções em energia)[16], ambas recuperadas. Nessa linha de raciocínio, a importância social da recuperação judicial também deve ser levada em consideração. Evita-se o desemprego de milhares de pessoas, bem como a redução de unidades produtivas, permitindo, outrossim, o estímulo à atividade econômica.
Entretanto, muitos motivos ainda entravam o sucesso das recuperações, mormente das pequenas empresas. Em primeiro lugar, há empresas que se tornam inviáveis pelo endividamento, pela obsolescência, pela mudança do mercado, por crises internacionais, entre outros fatores. Ademais, o empresário protela em demasia a adoção de providências para resolução da crise. De outro lado, o acesso ao crédito fica muito difícil em uma situação de crise, o que praticamente inviabiliza qualquer reestruturação (as grandes empresas se valem, muitas vezes, de fundos de investimentos). Ressalte-se ainda que o custo do processo é muito elevado, tendo em vista que demanda profissionais especializados. No Brasil, outrossim, ainda não há uma cultura de participação dos credores na recuperação, de forma que se torna difícil convencê-los a trocar os créditos por participação acionária. Muitos empreendedores, na qualidade de sócios-administradores, também não estão dispostos a alienar o controle da sociedade empresária (tratando a recuperação simplesmente como um mecanismo de reescalonamento da dívida).
Não obstante, há uma questão de suma importância nessa temática que não pode passar despercebida. Com efeito, indubitavelmente, o reconhecimento da recuperação de empresas enquanto política pública provoca efeitos práticos muito relevantes. O fato de haver uma política tem dado azo a uma interpretação judicial distinta da ordinariamente empregada, ainda que com base na aplicação dos princípios da função social e da preservação da empresa. Alguns temas que chegaram ao Judiciário demonstram esse raciocínio, como, por exemplo, na exigência de certidão negativa de débitos tributários estabelecida na legislação para a recuperação judicial. Deveras, o art. 57 da Lei nº 11.101/2005 impõe a juntada de certidão negativa de débito tributário para a concessão da recuperação judicial, exigência também constante no art. 191-A do Código Tributário Nacional. Ademais, o art. 155-A do CTN estabelece no § 3º que haverá lei específica dispondo sobre o parcelamento de créditos tributários do devedor em recuperação judicial e o § 4º do mesmo dispositivo determina que, enquanto não editada a lei específica (que ainda não foi editada), haverá a aplicação das condições gerais de parcelamento fixadas pelo ente da Federação, não podendo o prazo ser inferior ao da lei federal. Ressalte-se que a lei de parcelamento da União (Lei nº 10.522/2002) permite o pagamento em sessenta parcelas mensais (art. 10)[17].
Entrementes, o Judiciário tem afastado a interpretação literal, que exigiria a adesão ao parcelamento em sessenta meses enquanto não editada a lei específica, para privilegiar a recuperação de empresas, dispensando a certidão negativa[18]. No julgado referido, ainda há a referência à suspensão indireta do processo de execução fiscal, malgrado a lei estabeleça que não ocorreria suspensão, nos termos do art. 6º, § 7º, do diploma recuperacional. A interpretação teleológica utilizada pelos Tribunais, entretanto, vem se utilizando de valores abstratos a partir dos princípios jurídicos da função social e da preservação da empresa. Ademais, essa compreensão não viabiliza a compatibilização de todas as políticas públicas envolvidas, como, por exemplo, a tributária. Pretende-se, então, nessa pesquisa, avaliar se esta forma de interpretação é adequada, bem como examinar a possibilidade de construção de novos parâmetros.
3 APLICAÇÃO DA ANÁLISE JURÍDICA DA POLÍTICA ECONÔMICA
O alvorescer do século XXI testemunhou um mundo repleto de um complexo de transformações econômicas, sociais, econômicas e culturais. Todas essas alterações evidenciaram a decrepitude do paradigma econômico vigente para o atendimento do padrão aceitável de respeito aos direitos humanos. A crise financeira, econômica, fiscal e social de 2008 trouxe à baila os riscos de submeter a vida das pessoas a categorias macroeconômicas destituídas de densidade ética. Esse cenário, de outro lado, demonstrou a incapacidade dos juristas de contribuir de maneira efetiva com um novo padrão de governança. Apegados às tradicionais “formas” e “teorias jurídicas”, bem como a importações da filosofia pós-metafísica, os juristas não lograram oferecer modelos capazes de promover transformação social. A impotência jurídica em face de uma realidade extremamente injusta ensejou novas perspectivas acerca do estudo do fenômeno jurídico que se valem da interdisciplinaridade e da influência do estudo empírico na construção das normas jurídicas[19].
A Escola do Direito e Desenvolvimento, nesse contexto, voltou a receber atenção, e busca, em uma nova fase, oferecer instrumental analítico para viabilizar o aperfeiçoamento dos arranjos institucionais, mormente nos países com desenvolvimento tardio. A rigor, pode-se distinguir três momentos distintos na forma de enfrentamento dos problemas de desenvolvimento. Em uma primeira fase, houve triangulação entre uma teoria do desenvolvimento, o Estado como protagonista e o direito público como instrumento de governança. Países como Brasil, Chile, México, Coréia do Sul e Tailândia compartilhavam até 1950 um cenário caracterizado pelo atraso econômico, pela baixa produtividade industrial e falta de competitividade em um ambiente internacional já industrializado, o que era compensado pela redução de custos e salários[20].
No Brasil, a partir do final dos anos de 1940 houve grande influência da teoria do subdesenvolvimento da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) desenvolvida por autores como Raul Prebisch e Celso Furtado. Predominou nesse momento o protagonismo estatal coordenando as iniciativas sociais e econômicas. Essa linha desenvolvimentista alcançou seu esgotamento no início da década de 80 em decorrência da crise da dívida externa ocasionada pelo aumento dos juros norte-americanos e pelos desarranjos da própria economia política interna, que retiraram a força propulsora dos aparelhos estatais.
No início da década de 90, então, um novo paradigma de desenvolvimento foi estabelecido a partir do Consenso de Washington. Países como Brasil, México, Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela e tantos outros convergiram para um modelo marcado pelo protagonismo do mercado com a privatização de algumas empresas estatais e com a criação de Agências Reguladoras Independentes. O Estado assumiu o papel de fazer com que as regras do jogo fossem respeitadas de maneira a estimular os investimentos privados, que trariam desenvolvimento econômico. Entrementes, o neoliberalismo não apresentou os resultados prometidos, mormente para os países em desenvolvimento. A rigor, antes mesmo da grave crise de 2008, o modelo privatista já começava a recuar pela insuficiência das taxas de crescimento e baixa qualidade de vida da maior parte da população[21].
Nesse sentido, o Brasil desde os anos 2000 passou a desenvolver uma agenda denominada de Novo Desenvolvimentismo. Esse modelo possui como características fundamentais o ambiente democrático e o Estado com o papel de estimular o crescimento econômico, ao mesmo tempo em que implementa programas de inclusão social. Não seria despiciendo observar que o Estado nesta quadra precisa agir mediante intenso diálogo institucional, em virtude do fortalecimento da federação brasileira, da própria descentralização administrativa e do amadurecimento da sociedade civil. No novo cenário, o Estado assume a função primordial de fomento econômico. O crescimento dos financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) simboliza o novo tipo de participação do Estado da economia, não mais, predominantemente, de forma direta, porém mantendo como agenda o fortalecimento dos agentes privados. De outro lado, destacam-se como providências relevantes da política social o controle da inflação, as medidas de distribuição de renda, a valorização do salário mínimo e a expansão do crédito.
Interessante observar que nesse contexto o papel-chave do aparelho estatal consiste na sua relevante participação na construção e desenvolvimento das políticas públicas. Naturalmente, as políticas públicas não são impostas pelo Estado, mas decorrem de um complexo de decisões políticas envolvendo constante interação de uma série de atores públicos e privados, um conjunto de instituições sociais e um sistema de crenças compartilhadas em determinado tempo e lugar. Avulta de grande relevância, portanto, o desenvolvimento de estudos que articulem possíveis contribuições jurídicas para que o Estado se desincumba satisfatoriamente de seus misteres na coordenação das políticas públicas de desenvolvimento econômico. Esse campo ainda se encontrado cercado de incertezas e não existe um modelo universal capaz de enfrentar os problemas experimentados. O diálogo horizontal e o pragmatismo democrático apontam para um caminho que certamente levará ao amadurecimento de arranjos institucionais específicos, mostrando-se de grande utilidade a inter-relação com países em condições de desenvolvimento semelhantes como os demais BRICS[22].
A rigor, esse estudo das novas relações entre o direito, a economia e as políticas governamentais encontra distintas linhas de pensamento, com um amplo campo de possibilidades a ser investigado. Neste artigo, contudo, haverá o aprofundamento da abordagem denominada de Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE) com o objetivo de aferir sua capacidade de contribuir com melhorias no Direito Recuperacional. A AJPE se trata de uma nova abordagem interdisciplinar, desenvolvida por Marcus Faro de Castro, que analisa o conjunto de princípios, regras, instituições, discursos dirigidos à organização da produção, troca e consumo na sociedade. Nessa perspectiva, almeja-se a construção de um instrumental analítico capaz de conciliar interesses materiais, valores morais, culturais, religiosos, motivações psicológicas, entre outros, levando-se em consideração a avaliação empírica, de maneira a possibilitar o desenvolvimento econômico em bases mais equitativas. Outrossim, reconhece-se que as políticas econômicas atuam de maneira distintas sobre as ações e a fruição de direitos dos diversos grupos sociais[23].
Aspecto fundamental da AJPE consiste na inclusão das políticas públicas na análise jurídica. Essa percepção enseja a conversão do significado do interesse público em política pública. A inserção das cláusulas de ordem pública, inclusive, torna tênue o limite entre a política pública e o direito subjetivo. Registre-se que o conteúdo da política importará na promoção ou limitação da fruição de determinados direitos. Duas estratégicas analíticas utilizadas nesse contexto são a “análise posicional” e a “nova análise contratual”[24]. Esse modelo teórico apresenta alternativa inovadora à reconfiguração das entidades governamentais, da sociedade, da política econômica e do direito. Nos estreitos limites deste trabalho, contudo, haverá tão somente a aplicação do procedimento analítico para a interpretação jurídica que leva em consideração as políticas públicas e os diversos direitos fundamentais envolvidos, no âmbito do sistema de recuperação de empresas.
3.1 INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICO-EMPÍRICA
Nos últimos anos, o Judiciário tem sido acionado amiúde para o cumprimento das políticas públicas previstas na Constituição Federal de 1988. Essas demandas desafiaram os juristas a buscar soluções aptas a atender às demandas sociais. Modalidades diversas de respostas foram apresentadas sem que nenhuma delas lograsse efeitos satisfatórios. Com efeito, malgrado a diversidade de posições doutrinárias, pode-se sintetizar as soluções em quatro propostas distintas para a resolução das demandas: interpretação formal; interpretação substantiva; ponderação de valores; e Análise Econômica do Direito.
Os defensores da interpretação formalista concentram seus esforços na análise dos dispositivos constantes na Constituição e na lei, não atribuindo grande relevância para as peculiaridades fáticas. Interessante observar a utilização nessa linha argumentativa do princípio da reserva do possível, fundado na distinção consagrada na Alemanha de direitos negativos (ou de defesa contra o Estado, como a propriedade) e positivos (prestacionais – são exemplos a saúde e a educação). Contudo, essa separação é passível de críticas, tendo em vista que a fruição dos direitos negativos também demanda a prestação estatal de serviços de segurança pública, jurisdição, entre outros. A seu turno, a interpretação substantiva almeja a proteção dos grupos vulneráveis. Seus corifeus se dividem entre os que adotam uma linha finalista e aqueles procedimentalistas. O maior problema dessa teoria consiste na desconsideração das implicações de suas escolhas para a ordem econômica. Na prática, é possível que haja perda de competitividade no cenário internacional ou criação de insegurança decorrente do subjetivismo[25].
A interpretação baseada na ponderação de valores, de outro lado, analisa abstratamente os valores em questão. Contudo, esse cálculo prudencial abstrato não é capaz de vislumbrar as dificuldades da realidade fenomênica. Ademais, evidente a dificuldade na construção de soluções capazes de conciliar os interesses em jogo sem que se verifiquem os problemas concretos. Por derradeiro, a Análise Econômica do Direito se baseia no exame do custo-benefício em busca da eficiência econômica, desprezando os interesses e valores não econômicos. Nesse cálculo, não entram, contudo, alguns valores consagrados pela Constituição Federal como orientadores da ordem econômica, tal como a promoção da justiça social [26].
Desta forma, no tema da recuperação de empresas, percebe-se que o julgado comentado anteriormente se valeu dos princípios da função social e da preservação da empresa para afastar a aplicação de regras constantes na mesma Lei nº 11.101/2005. Contudo, essa interpretação foi realizada de maneira abstrata, sem a base empírica que fornecesse subsídios robustos para verificar se a decisão foi adotada de forma compatível com a política pública. Como ressaltado, não há mecanismo seguro para preencher o conteúdo dos princípios sem levar em conta a realidade social, razão pela qual a interpretação aduzida fica carente de fundamentação nos termos defendidos neste artigo.
Propõe-se, portanto, uma interpretação teleológico-empírica como apropriada a capturar os fins da política pública, consagrados no plano legislativo, com base em dados econômicos. Ressalte-se que o ordenamento jurídico brasileiro ampara de forma ampla a interpretação teleológica quando no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42) impõe que o juiz aplique a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências do bem comum. Esta modalidade interpretativa atribui ao magistrado genuína missão política. Não seria despiciendo observar que a previsão da função social (da empresa, dos contratos, da propriedade) apenas reforça esse caráter finalístico, tendo em vista que a legitimidade do direito repousa no cumprimento de seu desiderato.
O Teleologismo Jurídico constituiu uma escola de hermenêutica, fundada por Rudolph Von Ihering na Alemanha. Referido jurisconsulto criticou a jurisprudência conceitualista e a aplicação da lógica formal, sustentando uma interpretação movida pelos resultados, com base no caráter finalístico do Direito. Dessarte, as regras jurídicas são determinadas pelo fim prático e social das instituições jurídicas. Assim, há certa liberdade do intérprete vinculada à consecução dos interesses sociais. Indubitavelmente, a grande contribuição dessa Escola consiste na finalidade prática e social a moldar a interpretação jurídica[27].
De outro lado, o método empírico (ou sociológico) emprega técnica compatível com o atendimento das necessidades sociais, levando em consideração os efeitos reais da legislação. Trata-se de abordagem prospectiva com base nas conseqüências econômicas, políticas, culturais e sociais da aplicação do direito. Nesse sentido, imprescindível o auxílio de outros campos, tais como a Economia, a Ciência Política, a Sociologia etc. O processo sociológico com viés político deve ser o principal na aplicação do Direito. Nesse contexto, importante a referência à Escola Sociológica Americana surgida na primeira metade do século XX, com os nomes de Roscoe Pound, Oliver Wendel Holmes, Benjamim Nathan Cardozo e Louis Brandeis[28]. Carlos Maximiliano já sustentava que o verdadeiro sentido do texto deve ser compatível com o bem social, bem como que o bom intérprete é um sociólogo do Direito[29].
Em um Estado Democrático promotor de políticas públicas, imprescindível que a decisão judicial leve em consideração o seu impacto social e econômico, mesmo porque o Judiciário possui participação, juntamente com outros vários atores sociais, na construção das políticas. Aliás, esse tipo de análise permite uma avaliação da relação daqueles sujeitos dentro da ordem macroeconômica. Um critério dessa natureza, desde que utilizado de maneira transparente, permitiria uma maior articulação dos órgãos estatais na implementação de políticas públicas. Diversos institutos no direito brasileiro consagram as formas de interpretação teleológica e empírica, admitindo argumentos consequencialistas, como por exemplo: a suspensão de segurança na Lei do Mandado de Segurança, a Modulação de Efeitos na declaração de inconstitucionalidade etc.
Desta forma, percebe-se que a análise consequencialista com base empírica, desde que naturalmente respeitando os objetivos expressos da política econômica da Constituição, pode trazer grandes benefícios para a interpretação jurídica. Deveras, o núcleo axiológico da Lei nº 11.101/2005 (arts. 47 e 75) estabelece uma série de princípios e objetivos inseridos na política pública de recuperação de empresas. Para a densificação do conteúdo e compatibilização de todos esses valores com as demais regras e princípios, inclusive com eventuais políticas conflitantes (tributária, de crédito, industrial etc), mister a utilização de dados empíricos. Para tanto, imprescindível o desenvolvimento de um instrumental analítico que ofereça coerência e consistência na interpretação, bem como transparência na fundamentação das decisões. É o que se pretende no próximo tópico.
3.2 PROCEDIMENTO ANALÍTICO
A AJPE oferece um instrumental analítico apto a avaliar a fruição de direitos no bojo de uma política pública de modo a aferir a concretização de direitos fundamentais. Esse procedimento segue uma série de etapas que confere transparência e viabiliza o controle da análise. Dessarte, percorre-se o seguinte itinerário: 1) identificação do componente da política pública objeto da divergência; 2) indicação do direito fundamental envolvido; 3) realização da decomposição analítica do direito; 4) elaboração da quantificação desse direito; 5) construção de um índice de fruição empírica (IFE); 6) desenvolvimento do padrão de validação jurídica (PVJ); 7) avaliação dos resultados no que tange à efetividade do direito; 8) recomendação de reformas na hipótese de falta de efetividade (ou descompasso entre o IFE e o PVJ)[30].
A primeira fase consiste na identificação do componente da política pública que está gerando celeuma. O tema exemplificado no primeiro capítulo, envolvendo a política pública de recuperação de empresas, trata da exigência da apresentação de certidão negativa de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial levando em consideração a mora legislativa em não estabelecer o parcelamento especial previsto na legislação de regência. Em segundo lugar, na ótica da AJPE, deve haver a descrição dos direitos potencialmente afetados. Em se tratando de recuperação de empresas, o número de envolvidos é elevado. Com interesses diretos e indiretos, podem ser apontados: empresário, credores em geral (recebimento dos créditos), trabalhadores (manutenção dos empregos), fornecedores, Fisco (geração de novas receitas tributárias), consumidores (manutenção da oferta de produtos específicos e da concorrência), demais integrantes da cadeia produtiva e governo (em função da geração de emprego e renda e dos riscos para o mercado de crédito).
Neste momento, passa-se à “decomposição analítica de direitos” (terceira etapa), isto é, à análise do conjunto de prestações relacionado com a fruição empírica do direito à produção. No que tange à política de recuperação de empresas, necessário destacar a capacitação de profissionais pela política educacional, o oferecimento de infraestrutura para escoamento da produção, uma política tributária simplificada e de acordo com a capacidade do contribuinte, uma oferta de crédito com taxas competitivas, uma política energética que mantenha preços razoáveis, segurança pública, acesso a matéria-prima, pesquisa e inovação tecnológicas etc. Pode-se pensar nesse contexto na oferta de isenção tributária, linhas especiais de crédito, contratos com o Estado, barreiras a investimento estrangeiro, entre outras medidas[31].
Como por exemplo, o Relatório Doing Business de 2014 do Banco Mundial indica que em uma comparação da economia de 189 países, o Brasil se encontra na posição 116, com base nos seguintes tópicos: abertura de empresas; obtenção de alvarás de construção; obtenção de eletricidade; registros de propriedades; obtenção de crédito; proteção de investidores; pagamento de impostos; comércio entre fronteiras; execução de contratos; e resolução de insolvência[32]. Outrossim, irão balizar a decisão os dados do Índice de Competitividade Mundial (World Competitiveness Yearbook – WCY). Na edição 2014, o Brasil caiu para a colocação 54 de um total de 60 países. A pesquisa se baseia em quatro pilares de competitividade: performance econômica; eficiência do governo; eficiência dos negócios; e infraestrutura. O Brasil apresentou alta de preços, baixa participação no comércio internacional, burocracia trabalhista e regulatória, alta carga tributária, taxas de juros desestimulantes (malgrado a participação do BNDES tenha sido relevante na oferta de crédito), baixa produtividade empresarial e déficits acentuados de infraestrutura básica (estradas, portos, aeroportos, energia), tecnológica (telefonia, internet, entre outras) e de educação[33].
Do mesmo modo, podem ser utilizados os dados do Global Competitiveness Report. No Relatório Mundial de Competitividade 2013-2014 elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ficou na colocação 56 de um total de 148 países. Para a construção do índice doze fatores de competitividade são levados em consideração: instituições; infraestrutura; ambiente macroeconômico; saúde e educação primária; educação superior e capacitação; eficiência do mercado de bens; eficiência do mercado de trabalho; desempenho do mercado financeiro; prontidão tecnológica; tamanho do mercado; sofisticação dos negócios; e inovação[34].
Com relação à quantificação do direito à recuperação judicial (quarta fase), pode-se levar em consideração os princípios, regras, instrumentos (recuperação judicial, recuperação extrajudicial e a falência), mecanismos (alienação de estabelecimento, renegociação da dívida, operações societárias etc.) e instituições da Lei de Recuperações e Falências. Na avaliação do direito à recuperação judicial, desse modo, os dispositivos da Lei nº 11.101/2005 devem funcionar como ponto de partida para a análise do caso concreto. Para a construção de um índice de fruição empírica (IFE) – quinta etapa, faz-se mister salientar que todos os relatórios referidos alhures apresentam uma série de dados e índices que demonstram as dificuldades experimentadas pelo empresário no Brasil. A construção de um índice que aponte para o grau de fruição do direito de produção, portanto, se mostra possível. Não se pretende nesse trabalho a indicação efetiva de um índice, mesmo porque o tema é de grande complexidade e envolve diversas políticas públicas e direitos de grupos diversos.
Também não parece adequado um índice definitivo, mas apenas a estipulação de caminhos para a compatibilização dos direitos com as políticas públicas. A avaliação de políticas públicas possui natureza política tanto quanto as outras fases[35], razão pela qual a sugestão proposta neste artigo aponta para a criação de um Comitê com representação de todos os segmentos envolvidos para oferecer parecer com dados técnico-empíricos no bojo do processo de recuperação judicial. No caso concreto, portanto, o Comitê irá verificar a efetiva fruição do empresário ao direito de produção, o que dependerá da conjuntura a que está submetido (uma pequena rede varejista enfrenta obstáculos distintos de uma grande siderúrgica com foco na exportação).
No que tange ao padrão de validação jurídica (PVJ) – sexto passo, podem ser utilizados tanto os precedentes que se formaram com base na metodologia exposta quanto os dados sobre resolução de insolvências do relatório Doing Business do Banco Mundial[36]. Assim, o Brasil aparece no Relatório de 2014 ocupando a 135ª posição (de um total de 189 países), com um prazo médio de 4 anos para o procedimento de insolvência, custo de 12% do patrimônio do devedor e taxa de recuperação de 19,5 centavos por dólar. Malgrado ainda precise melhorar muito, pode-se considerar a Lei nº 11.101/2005 um sucesso, já que no ano de 2004, o prazo da insolvência era de 10 anos, com custo de 9% do patrimônio e taxa de recuperação de 0,2 centavos por dólar. Pela similaridade dos desafios experimentados pelas respectivas economias, poderia se adotar como parâmetro, por exemplo, a média dos BRICS como objetivo imediato a ser perseguido.
Na sétima fase, avalia-se a efetividade do direito à produção por parte do empresário em crise. Nesse sentido, a partir dos dados de competitividade levantados, haverá a verificação se as dificuldades enfrentadas decorreram de culpa do empresário (má gestão, falta de planejamento etc.) ou foram fruto da conjuntura econômica (custo do crédito e da energia, tributação elevada e burocrática, entre outras hipóteses). Caso se identifique, por exemplo, a culpa do empresário, mas para a política pública seja importante a recuperação, provavelmente a melhor solução para concretização dos princípios da preservação da empresa e da função social será a alienação do estabelecimento empresarial para que outro empresário assuma a atividade de forma mais eficiente. Na hipótese de crise decorrente da conjuntura econômica, o empresário terá direito à recuperação e o Estado deverá promover os meios como oferta de crédito a juros adequados, incentivos fiscais, treinamento de profissionais etc.
Por fim, no que tange à reforma em decorrência da falta de efetividade do direito (oitava e última etapa), com relação ao exemplo sob exame, naturalmente se verifica a necessidade da edição de uma lei concedendo parcelamento especial para viabilizar a superação da crise econômico-financeira por uma empresa viável e até lá, caso se verifique empiricamente que o entendimento se compatibiliza com as políticas públicas em jogo, pode-se dispensar a certidão negativa ou mesmo aplicar algum parcelamento especial dos programas de recuperação fiscal (como o “Refis da Crise”, por exemplo). No presente trabalho, optou-se por se trabalhar com o exemplo da exigência de certidão negativa de débitos tributários na recuperação judicial. Não obstante, o intuito foi apenas assentar as bases para uma nova interpretação jurídica da política pública de recuperação de empresas que será útil para a avaliação de outros tantos casos, como a prorrogação do prazo de 180 dias para a suspensão das ações e execuções contra o devedor empresário[37], a suspensão das execuções fiscais[38], entre outros.
4 CONCLUSÕES
Ao cabo desta pesquisa, podem ser extraídas conclusões relevantes com relação à aplicação do instrumental analítico da Análise Jurídica da Política Econômica para a política pública de recuperação de empresas no Brasil. Com efeito, inicialmente, demonstrou-se que a partir do advento da Lei nº 11.101/2005 houve a configuração de uma genuína política pública de recuperação, levando-se em consideração o paradigma de Thomas Kuhn (com princípios, normas de ação, instrumentos e mecanismos) e realizando-se a divisão entre as etapas da agenda, formulação, implementação e avaliação. Ademais, percebeu-se que a existência de uma política pública de recuperação de empresas tem levado os Tribunais a adotarem uma forma de interpretação que se afasta da literalidade da legislação, malgrado se utilizem de uma argumentação principiológica abstrata. Nesse contexto, sustentou-se que esta não seria a melhor maneira de buscar a construção das normas inerentes aos textos normativos relacionados com a recuperação de empresas por gerar subjetivismo.
Com o desiderato de enfrentar essa questão, esta pesquisa ingressou no exame da abordagem do Novo Direito e Desenvolvimento no Brasil. Assim, verificou-se que após uma fase caracterizada pelo Desenvolvimentismo, entre as décadas de 50 e 80, o Brasil adotou algumas medidas relacionadas com o neoliberalismo. Não obstante, com a ausência de resultados insatisfatórios, houve uma nova agenda denominada de Novo Ativismo Estatal ou Novo Desenvolvimentismo. Assim, o Estado passa a atuar não mais como protagonista na ordem econômica, porém como articulador de políticas públicas que promovem desenvolvimento econômico e justiça social, tomando em conta a realidade sociocultural específica.
Para a análise da política pública de recuperação de empresas, então, optou-se pela escolha de uma das abordagens do Direito e Desenvolvimento, a Análise Jurídica da Política Econômica. A AJPE propõe uma análise interdisciplinar do direito de caráter empírico e leva em consideração as redes contratuais e situações posicionais dos diversos atores com base no cenário macroeconômico. Assim, percebe-se que a utilização de critérios empíricos pode oferecer subsídios mais robustos para preencher o conteúdo de princípios como função social e preservação da empresa. Esse mecanismo hermenêutico compatibiliza a interpretação judicial efetivamente com os fins colimados pela política pública engajando o Judiciário no modelo atual de promoção do desenvolvimento nacional. Nesse sentido, propõe-se uma interpretação empírica dos textos normativos de recuperação de empresas, realizada mediante a decomposição analítica do direito com o desiderato de maximizar os direitos fundamentais de consumo e de produção.
Como conclusão específica desta pesquisa, percebeu-se que o procedimento analítico da AJPE é muito útil para a construção de novas bases interpretativas para a política pública, contudo que, no que tange à política de recuperação de empresas, faz-se mister o desenvolvimento de instrumentos capazes de aferir todo o procedimento analítico proposto acima. Para tanto, pode ser útil a criação de Comitês Técnicos (públicos ou privados) com representantes do governo federal, estadual e municipal, das instituições financeiras (por causa do mercado de crédito), dos sindicatos profissionais, do sindicato patronal relacionado com a sociedade empresária em recuperação e de institutos de pesquisa econômica e social. Esses Comitês ficariam responsáveis pela elaboração de parecer nos processos de recuperação judicial a fim de oferecer ao magistrado o processo de decomposição analítica do direito com todos os dados empíricos. Assim, seria possível se verificar em que medida o direito fundamental de produção foi atendido e no caso concreto elaborar a solução que melhor compatibilize todas as políticas públicas envolvidas. Indubitavelmente, uma avaliação dessa natureza contribuirá com o desenvolvimento nacional e fortalecimento da democracia, expandindo-se o complexo das liberdades fundamentais.
Aluno Especial no Doutorado em Direito da UNB Mestre em Direito no UniCEUB Especialista em Direito na Escola da Magistratura do DF e Bacharel em Direito na Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito no Centro Universitário Projeção Oficial de Justiça no TJDFT Coordenador da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e do Ministério Público da União FENAJUFE Presidente da Associação dos Oficiais de Justiça do DF AOJUS/DF e Membro do Conselho Deliberativo da Associação dos Servidores da Justiça do DF Assejus
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…